Poemas aos Homens do Nosso tempo

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O projeto nasce do desejo de experienciar mundos entrelaçados e encontra em Hilda Hilst um ponto de convergência para esses mundos dada a pungência, inteireza e profundidade de uma obra que anseia por diálogos. Assim, foi proposto um rito para fazer conviver público, artistas, produtores, críticos e curadores com as auspiciosas palavras dessa escritora que traz o lado esférico do amor, do divino, do desejo, da dor e da morte. Especialmente, em seu conjunto de poesias “Poemas aos homens do nosso tempo”, Hilda expõe as vísceras de um corpo político por muito tempo anestesiado. Foi pensando nesse corpo político – “estésico“ e estético – que o projeto foi concebido como uma experiência desdobrada em três atos distintos e complementares: a residência (IHH/Casa do Sol e Ateliê Aberto), a exposição com trabalhos inéditos e a publicação. Para tanto, foram convidados os artistas Adir Sodré (MT), Divino Sobral (GO), Nazareno (SP), Paulo Meira (PE), Thiago Martins de Melo (MA), e a designer Daniela Brilhante (PE). “Poemas aos homens do nosso tempo - Hilda Hilst em diálogo“ é uma evocação à série de poemas homônima reunida no livro “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão“ (1974). Publicada em plena ditadura, a obra utiliza vozes masculinas como repertório poéticopolítico em que a escritora estava imersa naquele momento. E é assim que, afinados com esse contexto, os cinco artistas convidados e suas criações travam diálogos com a obra e são também as vozes políticas contemporâneas de Hilda.


Idealizado e desenvolvido por um único corpo tripartido: a crítica de arte e pesquisadora Ana Luisa Lima (PE), o Ateliê Aberto (Campinas/SP), composto por Henrique Lukas, Maíra Endo e Samantha Moreira, e o diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst Jurandy Valença (AL), o projeto traz uma forma de construção curatorial que anseia pelo lado profundo do experimental e experiencial da arte. A criação de um espaço-tempo para ser vivenciado com inteireza. A curadoria está alicerçada no entendimento de que uma residência artística não deve só promover o deslocamento geográfico, mas o deslocamento espacial-subjetivo: aquele deslocamento que se dá cá dentro, na possibilidade de poder ir de um mundo a outro, através do mergulho dado na vida e obra da escritora, bem como traz a possibilidade de relocar significados no convívio uns com os outros. O projeto sempre esteve comprometido com a produção não só das obras inéditas dos cinco artistas convidados, mas principalmente na produção de diálogos, de sentidos, significados, possibilidades, a produção de perguntas, questionamentos, dúvidas e intensidades. Todos os atos que constituíram o projeto foram pensados como desencadeadores de situações para promover o encontro, a pesquisa, a criação e a fruição. Desse modo é que a residência, a exposição e a publicação, se põem como “lugares“ de experiência e experimentação. Ainda que de naturezas diversas (instalação, videoinstalação, happening, pintura e desenho) as obras dos artistas têm em comum a ideia de narrativa. Narrativas essas que, apesar de possuírem vozes autônomas, se entrelaçam umas às outras compondo um grande livro expandido. Livro que convida a uma leitura impertinente, através da qual deve-se estar livre de qualquer regramento gramatical ou visual. A leitura do livro então se faz na experiência do corpo, do mesmo modo que a experimentação pelo corpo carrega em si a possibilidade de leitura única do livro. Esse corpo que experiencia participa também de uma estesia e se reencontra com sua natureza: o de ser um corpo político.


Em sua escrita, Hilda Hilst cria uma nova arquitetura da linguagem, do pensamento. Uma construção linguística que cria possibilidades de junções, conexões, fissuras, brechas, rasgos, interstícios, dobras e desdobras no discurso, pontos de fuga. Outras maneiras de habitar as coisas, a partir da linguagem. Assim, o projeto abriga em sua construção: desejo, amor, dor, vida, morte, epifanias, humor, sexo, religião, política, filosofia e cotidiano. Uma estrutura polissêmica cujas vozes contemporâneas de todos os envolvidos ecoaram nesse corpo visual, sonoro, tátil, político, esse grande livro expandido que são os homens com seus poemas do nosso tempo.

Notas

Ateliê Aberto

Desde 1997, é um organismo auto-gerido e interdependente, idealizador e produtor de projetos voltados para a cultura contemporânea. Localizado na zona central de Campinas, possui galeria, sala multiuso, espaço de residência, cozinha, CineCaverninha (sala de projeção), jardins e biblioteca.

Casa

do

Sol – Instituto Hilda Hilst

Localizada a 20 km do centro de Campinas, em meio à natureza, a casa em que Hilda Hilst viveu a maior parte de sua vida tem uma área de 9.000 m² e jardins tombados como patrimônio histórico, possui bibliotecas com acervo de mais de 6.000 mil publicações e todos os títulos publicados pela escritora, inclusive escritos particulares. Além do acervo, a casa, o mobiliário e a decoração possibilitam um mergulho dos artistas no universo da escritora.





Alguns dias são mais difíceis de amanhecer. Naquele dia, abri meus olhos de volta ao sonho inquieto da noite anterior. Eu havia deixado aquela casa ocre para trás como se tivesse adquirido uma dívida: a demarcação de um novo horizonte. E eu sozinha era pouquíssima gente para realizar tal tarefa. Quando me amanheci, o corpo já havia se rearticulado, por si só, para permitir a co-existência com outros pés e pernas e braços e mãos e bocas e cérebros. Amanheci em dores e suores. Sonhar o sonho é coisa simples. Dar cabo ao sonhado requeria dilaceração. O que tinha visto com meus olhos adormecidos precisava se tornar muita coisa. E eu só tinha pouco mais do que um coração, dois braços, duas pernas e uma ideia. Quando a ideia, como um sopro, veio para fora, já não era mais minha e se fez em tantos detalhes que braços e pernas, e cérebros foram se multiplicando aqui no meu corpo, e eu já nem era mais eu, era muitos. E a ideia teve a necessidade de ser outras ideias, como também, objetivos justificados, planos de toda sorte (inclusive de comunicação) e orçamentos possíveis que coubessem numa planilha. Aquela era a primeira vez que tinha feito contato com alguém que já não vivia – dizer que ela tinha morrido era inadequado. Recorri a muitos relatos da vida que levou para ver se era mesmo daquele jeito as histórias que me contava. Eu estava caminhando perto daquela árvore estrondosa a qual ela costumava fazer pedidos e me emudeci ao ouvir-lhe a voz que dizia: corre, há vozes que são minhas e nunca souberam como sair daqui. Os presságios daquela tarde poderiam, desde então, ser chamados inestimáveis. Mas o corpo nem sempre é capaz de vislumbrar os significados das cicatrizes enquanto essas ainda são feridas. Depois que lhe ouvi a voz, vi uma escrita contundente nas peles de cinco homens. A escrita atravessava as


peles e azulava o sangue. E o músculo-bomba latejava uma realidade irreparável. Era algo que os violentava e para voltar a ter seus vermelhos correndo por dentro – aquilo que os faziam demasiadamente humanos – teriam que destilar para fora aquele azul pelos poros. Foi quando entendi que aqueles homens eram, eles mesmos, o novo horizonte da casa ocre. Eles tinham que repreencher os cômodos e as frestas entre os veios das madeiras das mesas e cadeiras. E era aquilo de estar juntos, e serem uns, e serem poucos, e serem todos, e ainda serem também aquela escritora, era o que se chama política e não outra coisa. Isso de ser coisa que pulsa e reverbera e não palavras dentro de outras palavras que querem ser apenas palavras – e que sem estar encarnadas são coisas mortas.

Ai

daquele que ousa falar em política sem que reconheça em si mesmo seu próprio embaraço . O corpo político é atávico . O mero conteúdo do político não é por si mesmo político sem o corpo que faz do verbo carne . N ão é política a arte manejada numa circunscrição apática dentro de um discurso legitimador , ou de paredes brancas institucionalmente banalizadas .

E aqueles cinco homens transpiraram e se derramaram em criações ruidosas. Como a chuva de pratos que se espalham em estilhaços. Ou derramamento de um vermelho-sangue sobre o desejo confesso borrado pela língua salivada. Ou é um deus-sol que cospe pragas sobre aqueles que sobrevivem de bobos discursos, sob uma realidade-simulacro. Ou palavras absorvidas por suas sutilezas que cortam por dentro como navalhas. Ou ainda, o corpo performático que ofende o bom gosto e disseca a alma. O primeiro homem era silêncio. Fazia chover, no pátio central da casa ocre, uma chuva de pratos que ao cair gotejava cacos. Cada prato caído impulsionava os estilhaços e rasgavam os corpos invisíveis acostumados a perambular por ali em dias de lua cheia. Dos corpos que não se viam, os cacos arrancavam vozes que eram captadas por pequeninos rádios. Dizem que, logo depois da primeira chuva, tais radiozinhos começaram a aparecer por entre as raízes da imensa


árvore guardiã da casa. Às vezes, quando desaparecem, lá dos pés da árvore, reaparecem em outro lugar tocando uma programação de uma rádio fantasma. O segundo, era um homem lágrima. Ele fez brotar um vermelho debaixo da terra alaranjada que tomou o caule e galhos da goiabeira que habitava à direita do jardim da casa ocre. Diz-se que, com suas próprias lágrimas, fez derramar vermelho na parede de uma casa longe dali. Debaixo desse vermelho havia alguns dos desejos daquela escritora que foram borrados com a língua e a saliva fez brotar, da parede, galhos como aqueles da goiabeira. No meio da parede que escorria vermelhos, jazia uma fotografia emoldurada da goiabeira do jardim da casa ocre. E aquilo era como um altar à semelhança das religiões lá do oriente do planeta em que se cultuam os ancetrais. Diz-se que aqueles vermelhos eram a própria escritora em corpo descarnado. O terceiro, era o homem força. Dentre esses homens, foi um dos que pode ouvir e interpretar o oráculo ocultado na grande árvore que chorava cipós. E o oráculo era um sol preto e, em tempos e tempos, cuspia pragas sobre aqueles que não o davam ouvidos: os que insistiam em replicar histórias glamorosas sobre aquela casa que não abrigava outra coisa senão muita dor e lucidez. Não à toa, já se soube de toda sorte de parasitas que apareceram por ali: lesmas tomaram os jardins; pulgas e carrapatos tomaram os trezes cachorros; dívidas se acumulavam como o mofo nos alicerces e pilares da casa. O deus-sol era luz e escuridão, iluminação e infortúnio. O olho que tudo via e, a quase todos, cegava. O quarto homem era a calma. Desde o primeiro dia que começou a habitar a casa ocre, resguardouse em redes, cadernos e penas. Desenvolveu um manuscrito especular, do qual aquilo que se lia era também reflexo daquele que também foi lido. E assim, a placidez de seus desenhos e palavras era como gume que cortava doce e velozmente as entranhas. As entranhas uma vez remexidas já não permitiam


apaziguamentos sutis. Foi então que os corpos quando não se reconheciam criavam atritos com lágrimas, berros e muitas espécies de mortes. O quinto homem era chamas. Diz-se que ele era um dos filhos da escritora que reencarnou. E ele era a contradição. O suficiente em seu excesso. A depravação santa. O mau gosto sofisticado. A violência gentil. Ele era a sua própria criação, e a criação era ele. Havia nele uma existência infinita, sem começo nem fim.

Ai

daquele que ousa demarcar as intenções , ou intenta conferir a si mesmo autoria pela decifra ç ão dessas . A i daquele que infla o ego e insiste em palavras amarrotadas sobre aquilo que é da ordem do ritual e não da manipulação de um conceito pseudo - filosófico . A quele que faz isso há de trazer para si mesmo uma existência seca e fantasmagórica .

Passados os dias, aquele corpo mútiplo começou a se desfazer. Primeiro foram-se os pés e pernas, e esses dias comecei a perder as primeiras mãos e braços. Ainda debruçada em muitos afazeres, o corpo não pode sucumbir às dores de tantos cortes feitos para fazer existir tantos membros. Dilatadas, as veias pulsam como antes. Se de um lado o sangue vem mais oxigenado, por outro, as feridas sangram três vezes mais. Como disse, sonhar um sonho é coisa simples. Dar cabo ao sonhado resultou-me um corpo dilacerado. Mas não só isso, porque as criações daqueles cinco homens se tornaram volume, cor, textura, largura, altura, de um grande livro. Cada criação, um capítulo que se desvela a cada aproximação do corpo. São quase infinitas as camadas de conhecimento que estão ora sobrepostas, ora justapostas, ora escondidas, existindo de maneira elíptica. Foi assim que aqueles cinco homens destilaram para fora o azul pelos seus poros e o grande livro que fizeram é agora o que atravessa outras peles de mulheres e homens e lhes colore o sangue de uma realidade irreparável.




ROTEIRO 10 Tratamento CRÉDITOS INICIAIS Som de passos em folhas secas. Respiração ofegante. Tela branca.

Narração em off (voz feminina/confissão/sussurro)

Tempo do corpo este tempo, da fome, do de dentro. Acorda a tua palavra enquanto estamos vivos. E pergunta no mais fundo de ti, no teu abismo se é maior teu espaço de amar, ou maiores. É tempo ainda. Interroga-me. Fade in

Cartela: Poemas aos homens do nosso tempo

Fade out

Tela branca. SEQUÊNCIA INICIAL CENA 1 (EXTERNA/NOITE - CASA DO SOL) Um círculo de luz no centro da imagem, fundo preto. Não se sabe ao certo se é dia ou noite, se é sol ou lua. Imagem da terra em plano próximo. Um movimento interno mexe a superfície da terra, como um pulmão. A terra respira. Duas luzes dançam, tangenciando uma à outra, sem se fundir.

Narracão profecia )

em off

(voz

feminina /

A vida se derramando cíclica. Escorrendo. As enormes mandíbulas roendo nossas vidas. Que seja sempre terra o que é celeste e que terrestre não seja o que é só terra. Por isso volta à terra. Esqueça os ares. É essa fome de ti, esse amar infinito. Palavra que se faz lava na garganta, amada vida. Não me pertenço mais. Nem as palavras agora me pertencem.


CENA 2 (EXTERNA/NOITE - CASA DO SOL) Som de cigarras e vento balançando as copas das árvores. Um inseto rebate nas paredes internas de um lustre, sem conseguir sair. Larvas e caramujos tecem a terra. Nenhuma referência à presença humana. Uma corrente pendurada ao telhado balança, som metálico. Gotas de chuva saem da terra e sobem para o céu. Imagens sem saturação, com pouca cor. CENA 3 (EXTERNA/NOITE - CASA DO SOL) Um fio de lã vermelho brota da terra. O fio rasteja pelo chão de terra, a câmera acompanha o fio e o vermelho rasga a imagem ao meio. O fio de lã vermelho encontra um caule de uma árvore seca e começa a se enrolar, envolve o tronco como um casulo. Som de prato quebrando no chão. Uma árvore vermelha se destaca no jardim. Corte seco CENA 4 (EXTERNA/NOITE - CASA DO SOL) Câmera segue os passos de um homem no jardim (som direto). O homem mantém sua mão esquerda fechada com força e delicadeza, como se carregasse algo precioso. Apenas a silhueta do homem aparece, como um vulto sem rosto. Um poço cheio de água. Um líquido vermelho de outra densidade se espalha na água, até que a superfície do poço fique completamente tomada pelo vermelho. A mão fechada se abre (plano próximo). Uma planta nasce na palma da mão esquerda do homem. Plano aberto da figueira.

Narração

em off de confissão )

(voz

feminina / tom

A obsessão do tempo, o sedimento foi nascendo. Tateio e a um só tempo vivo. Ama-me. E eu te direi que nosso tempo é agora. E em sendo assim, amor, de que me adianta a mim, te dizer mais? FIM DA SEQUÊNCIA INICIAL


SEQUÊNCIA FINAL CENA I (EXTERNA/DIA - RUA) Imagens estáticas de grandes cidades com as ruas abandonadas. Nenhuma presença humana. Som silencioso. Uma sacola de plástico dança e se movimenta através do vento. Céu azul, poucas nuvens.

Narração

em off

(voz

feminina )

Mortos? O mundo. Mas podes acordálo. Lúcidos? São poucos, mas se farão milhares se à lucidez dos poucos te juntares. A ideia é ambiciosa e santa. E o amor dos poetas pelos homens é mais vasto do que a voracidade que vos move. E mais forte há de ser. E por isso não te enganas, homem, meu irmão, que a garra de ferro se desfaça diante da luz intensa da palavra. Fade in

Tela branca. CENA II (EXTERNA/DIA - RUA) Tela branca. O ruído de um rádio fora do ar suja o silêncio.

Narração

em off

(voz

feminina )

Ávidos de ter, homens e mulheres caminham pelas ruas, invadidas de um novo a mais querer. Fade in Lentamente surgem imagens desfocadas das pessoas nas ruas. Povo, massa sem rosto. Câmera na mão percorre entre a multidão em direções diversas. Planos próximos e médios.

Narração

em off

(voz

feminina )

As legendas políticas e um punhal incisivo apunhalava um corpo amolecido. O olho aberto, uma bota pontiaguda entrando no seu peito. Enquanto tu caminhas pelas ruas.


Te pergunto: E a entranha? Que te devolvam a alma, Homem do nosso tempo. Pede isso a Deus ou as coisas que acreditas, à terra, às águas, à noite, uiva se quiseres ao teu próprio ventre se é ele que comanda a tua vida. Não importa. Pede à mulher. Pede à chuva. Abre a tua boca, Ruge, como se tivesses no peito uma enorme ferida escancara a tua boca. CENA III (EXTERNA/DIA - RUA) Material de arquivo misturado com imagens captadas. Imagens de televisão, jornais, revistas e internet de manifestações em diversos locais do mundo. Textura de imagem ruidosa, televisão com sinal oscilante. Som ruidoso, rádios, alto-falante, pessoas gritando nas ruas.

Narração

em off

(voz

feminina )

E sem sorrir vos digo: o povo não é esse pretenso ovo que fingis alisar, essa superfície que jamais castiga vossos dedos furtivos. Povo. Polvo. Lúcida vigília. Um dia. Nosso corpo de vidro rígido à merce dos seus atos corpo político. E as mãos, o ato puro pretendendo. Bombas limpas sobre a carne antiga. Líderes, o povo não é paisagem nem mansa geografia para a voragem do vosso olho. Povo. Polvo. Um dia. E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos Tudo demora. E tudo é véspera e nostalgia desse agora, quando tu pensas que tudo se demora. Completa o teu viver que corre, escuta o teu ouro de dentro. Corte seco


CENA IV (INTERNA/DIA - RUA) Câmera estática. Um quarto escuro com a janela semiaberta. Um feixe de luz corta a imagem, desenhado pela poeira flutuante do quarto. A cortina se movimenta lentamente.

Narração

em off

(voz

feminina )

Quando o poeta fala, fala do seu quarto, não do palanque, não está no comício, não deseja riqueza, não barganha, sabe que o ouro é o sangue. Tem os olhos no espírito do homem, no possível infinito sabe de cada um a própria fome. Fade in Tela branca.

Narração

em off

(voz

feminina )

E porque é assim, eu te peço: Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta o homem está vivo. CRÉDITOS FINAIS FIM

____________________________________________ *os textos da narração em off é uma edição livre de trechos retirados do livro "Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão" (1974) de Hilda Hilst.







Como há muito observou Aristóteles, o homem é um ser incapaz de viver isolado, um ser carente e imperfeito que busca o outro para chegar à completude, sendo, portanto, naturalmente político. Em comunidade, deve ainda opinar e reunir-se com os seus livremente, discutindo e deliberando acerca das problemáticas que dizem respeito à todos. Em uma residência coletiva, os artistas participantes não necessariamente têm relação com quem os elege, sendo escolhidos independente de se conhecerem ou possuírem afinidades em suas produções. Não há a preocupação em criar um grupo coeso. A convivência é exigida, o diálogo se impõe e pessoas até então desconhecidas buscam no outro a desejada completude. Quando a equipe de curadoria escolheu os cinco artistas participantes do projeto – eleitos pela relação de suas produções com a obra de Hilda Hilst - jamais poderia ter imaginado a intensidade da confluência de energias da qual faria parte nos trinta dias seguintes. Traços fortes de personalidade, invólucros, cada um tem em si uma junção de facetas surpreendentes e imprevisíveis que, de forma ininterrupta, geraram interferências, por vezes pequenos atritos. Esta resistência, que só poderia surgir do contato, não impediu a fluidez das ideias e a frequência das trocas. Pelo contrário, a fricção foi combustível para a criação. Por sua vez, a convivência diária entre artistas, equipe curatorial e de produção expôs os perfis, gerou afinidades e estabeleceu conexões espontâneas nos níveis pessoal e profissional. Tão plural foi a vivência na Casa do Sol e no Ateliê Aberto, que passou a ser o ponto de partida do processo de criação de cada artista, quando não um energético alimento que diariamente muniu o desenvolvimento de cada obra, imprimindo camadas. A residência, ao revelar-se experiência estética, ganhou por vezes o status de tema. Tamanha foi a vida que os Poemas aos homens do nosso tempo, produção que expõe a face política da escritora, tomou corpo físico, transformando-se em uma substância fluida onde todos estavam mergulhados, a residência. Percebeu-se que, de forma quase inocente, ao escolher este mergulho como meio de criação dos


artistas, gerou-se uma pequena comunidade – formada pelos artistas, equipe curatorial e de produção onde inevitavelmente as vidas se entrelaçariam de forma profunda e intensa. Cada um destes atores, na busca pela completude dentro da aleatoriedade das personalidades reunidas e da realidade imposta, buscou relacionar-se. A convivência destes homens políticos demandou o confrontamento de ideias e valores, a cada momento via-se um transbordar e um recolher. Ao relativizar o indivíduo em sua integridade, sua constituição matérica e orgânica, sentimentos, emoções, ideias e convicções, a arte se recobre de responsabilidades, assume compromissos e passa a jogar com a totalidade da vida e com a percepção do artista sobre seu entorno, gerando perspectivas. O próximo passo é tornar-se ação, manifestação. A arte, assim como o homem, sempre é política. A experiência compartilhada na residência gerou traços universais entre as pesquisas e produções dos artistas e a antes inexistente coesão foi percebida logo do encaminhamento ou finalização das obras. Com intenções instigantes, provocantes ou catárticas (purgação das emoções), símbolos, representações e simulações tentam dar conta do vivido, como crianças que se deparam pela primeira vez com a feiura do mundo ou como os cegos que convivendo com a feiura um dia percebem seu hálito. Aos homens do nosso tempo, dos Poemas aos homens do nosso tempo

Para Adir Sodré,

trecho do poema

Para Adir Sodré,

trechos do poema

“Tudo vive em mim. Tudo se Na minha tumultuada vida. Não te enganas, homem, meu Quando dizes na noite, que “Que eras como um menino De encantada imprudência Loucura caminhares Na trilha da floresta Sem luminosa armadura.“

VI

entranha E por isso irmão, só a mim me vejo.“

XII


“E os meus olhos de treva Vão te olhando E te guardo no peito Intenso, aberto Colado a mim Homem-Amor“

Para Divino Sobral,

trecho do poema

“O que sabeis Da alma dos homens? Ouro, conquista, lucro, logro E os nosso ossos E o sangue das gentes E a vida dos homens

II

Entre os vossos dentes.“

Para Divino Sobral,

trecho do poema

Para Divino Sobral,

trecho do poema

XIV

“Nosso corpo de vidro, rígido À mercê dos teus atos, homem político. Bombas limpas sobre a carne antiga. Vitral esplendente e agudo sobre a tarde.“ “Ah, meu amigo Que límpida paixão Que divina vontade Fervor feito de lava Fogo sobre a tua fronte“

Para Nazareno,

trecho do poema

Para Nazareno,

trecho do poema

Para Nazareno,

trecho do poema

“E No No Do

XII

I

podeis crer que há muito mais vigor lirismo aparente amante Fazedor da palavra que na mão que esmaga.“

“PÁSSARO-PALAVRA LIVRE VOLÚPIA DE SER ASA NA MINHA BOCA.“

X

XVI

“Irmão do meu momento: quando eu morrer Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo: MORRE O AMOR DE UM POETA.“


Para Paulo Meira,

trechos do poema

I

“E quando a noite vem Vem a contrafacção dos nossos rostos Rosto perigoso, rosto-pensamento Sobre os vossos atos.“ “A IDÉIA é ambiciosa e santa. E o amor dos poetas pelos homens é mais vasto Do que a voracidade que nos move. E mais forte há de ser Quanto mais parco“

Para Paulo Meira,

trecho do poema

XVII

“Pretendo apenas, fruir pesares e partidas E júbilo também Porque o instante consente essas duplas medidas“

Para Thiago Melo,

trecho do poema

Para Thiago Melo,

trecho do poema

Para Thiago Melo,

trecho do poema

IX

“Ao teu encontro, Homem do meu tempo, E à espera de que tu prevaleças À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras. Te cantarei infinitamente À espera de que um dia te conheças“ “Deram-te sim Ferocidade, grito E sobre o corpo Chagas E mãos enormes, garras Te levando o rosto E inúmeras palavras“

XII

XV

“Leopardos e abstrações rondam a Casa. E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda Que eu soubesse o que tudo vem a ser, A ideia, a garra, de mim mesma não sei“



playlist criada por S amantha M oreira para a R ádio MHZ desdobramento para o projeto desenvolvido por Meira

HH 911 Paulo

A partir de uma seleção composta por músicas que faziam parte das noites de HH na Casa do Sol (colaboração de Jurandy Valença), de canções cantaroladas por Divino Sobral e Nazareno, do fone de ouvido de Thiago MM, do happening realizado por Adir Sodré | uma colagem quase trilha sonora de cada computador que funcionava entre as tardes e noites de produção, nos encontros, jantares e festas, nos trajetos realizados pela cidade | em alto e bom som as mais tocadas durante os 30 dias de estadia dos artistas em Campinas.

para ouvir: http://www.deezer.com/br/playlist/456913103 ou pela página do projeto no Facebook https://www.facebook.com/poemaaoshomensdonossotempo

"Cantando amor, os poetas na noite
 Repensam a tarefa de pensar o mundo ."


pla yli st

:: Samantha Moreira - Rรกdio HH - 911mhz

Luz Vermelha - Bixiga 70 The Man I Love - Billie Hol iday Tonight - Koop Unicorn - Dizzy Gillespie Portrait - Hocus Pocus Loaded - Primal Scream Sunny - Marvin Gaye Venus As A Boy - Bjรถrk A Night In Tunisia - Ella Fitzgerald Sour Times - Portishead Symphony No 5 - Gustav Mah ler Atrรกs Da Porta - Elis Reg ina Cry Me A River - Julie Lon don Love will Tear us Apart Nouvelle Vague Downtown Train - Tom Wai ts


Walk on the wild sid e - tok tok tok You Don't Know Me Caetano Veloso Ultimo Desejo - Noël Rosa Os Urubus Só Pensam Em Te Comer - Cidadã o Instigado Apaga O Fogo Mané Adoniran Barbosa São Jorge - Metá Met á The Moon 1111 - Otto Calaveras Y Diablitos - Los Fabulosos Cadill acs The Lovecats - The Cur e Me gustas tu - Manu Chao Chameleon - Herbie Ha ncock Grace - Jeff Buckley Pictures At an Exhib ition: 3. The Old Cas tle - Arturo Toscanini Calling aventura kin g - Kid Loco Quebra-Quilos - Pedro Luis E A Parede e Len ine Cristo e Oxalá - O Ra ppa BBBeat - Balkan Beat Box Psycho Killer - Talkin g Heads My Way - Live - Sid Vicious and The Sex Pistols Maps - Yeah Yeah Yea hs This Charming Man The Smiths Life's a Beach - Djang o D.A.N.C.E. - Hawa Shoo-Be-Doo-Be-Doo-Da -Day - Michael Jackso n Envergo Mas Não Quebr o – Lenine Dura na Queda - Elza Soares Todo Sujo De Batom – Belchior Maluco Beleza - Raul Seixas Setembro - Junio Bar reto Negro Amor - Gal Cos ta One Mint Julip - Sar ah Vaughan Teardrop - Massive Att ack Make It Wit Chu - Qu eens of the Stone Ag e Party Girl - Chinawom an Paranoid Android - Ra diohead Misread - Kings of Con venience Save A Prayer - Duran Duran Sunday Morning - The Velvet Underground Luz Do Sol - Caetano Veloso I've Got My Love To Keep Me Warm - Billie Holiday Bimpé – Asa Queremos paz - Gotan Project Float On - Modest Mou se Coisa Nº 8 (Navegação) - Moacir Santos Los Tics Del Jazzero - Kevin Johansen Goldberg Variations, Bwv 988: I. Ária - Bac h


HILDA HILST NOTAS, DOBRAS E DESDOBRAS

É importante situar historicamente alguns fatos em relação à escrita de Hilda Hilst no final dos anos 60 e começo dos 70. Em 1967 ela escreve "A possessa" e "O Rato no Muro", iniciando uma série de oito peças teatrais que escreveria até 1969. Ainda em 1967 lança um livro de poesia, Poesia (1959 / 1967). Em 1968 escreve as peças "O Visitante", "Auto da Barca de Camiri", "O Novo Sistema" e "As Aves da Noite"; no ano seguinte "O Verdugo" e "A Morte do Patriarca". Hilda não escreve mais nenhum texto para o teatro, e em 1970 publica sua primeira obra em prosa, FluxoFloema [obra na qual inicia uma pequena revolução na língua portuguesa por intermédio de experimentações na linguagem], mesmo ano no qual sua mãe morre, e Hilda começa suas gravações e estudos baseados nos experimentos do pesquisador sueco Friedrich Juergenson relatados no livro Telefone Para o Além. HH se dedica, ao longo desta década que se iniciava, à gravação, por meio de ondas radiofônicas, de vozes que, assegurava, seriam de pessoas mortas. No mesmo período anunciou a visita de discos voadores à Casa do Sol [Coincidentemente, um dos trabalhos produzidos por Paulo Meira, um dos artistas residentes para o projeto é uma rádio, a "Rádio HH"]. Depois desse primeiro livro em prosa segue-se um segundo, Qadós [1973], "o ser-pergunta" de Hilda, e só então, sete anos depois de seu último livro de poemas, lança outro livro de poesia, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão [JMNP], lançado em 1974. É nele que estão os "Poemas aos Homens do Nosso Tempo", que inspiraram o projeto. Quando Hilda escreveu JMNP ela ainda estava sob influência do contexto vivido por ela na época de escrita das peças de teatro, nas quais a maioria das vozes são masculinas. Da mesma maneira na qual em seu teatro seus personagens colocam em ação todo um arsenal simbólico, sua poesia também


vai abrigar memória e esquecimento, rupturas e continuidades. HH usa – mais do que a palavra escrita – a fala, a oralidade que o teatro traz em potência ao lidar diretamente com o espectador. E ela aborda temas recentes como as censuras e opressões nos meios sociais e políticos, por intermédio de uma teatralidade que se constrói numa constante reflexão sobre a ordem social e suas imposições. Coincidentemente algo que está acontecendo no país nos últimos meses, período que ocorreu todo o projeto. Fortes elementos simbólicos e figuras arquetípicas de poder põem em cena as inquietações de HH no que diz respeito a uma época de totalitarismos e de miséria espiritual. Suas peças têm um caráter revolucionário que se percebe, por exemplo, na fala do Demônio, da peça "A morte do patriarca", anunciando a chegada de um novo tempo em que será preciso "reviver alguma verdade", "experimentar outras palavras", descobrir "alguma coisa que emocione novamente" o homem. Nos anos de chumbo, HH usa de alegorias e simbologias contundentes. Outro exemplo, em "A Possessa" (1967), ela narra a trajetória da jovem América, personagem criada por Hilda e que foi proibida de expor o que pensa; já em "O rato no Muro" (1967), dez freiras - das quais não sabemos os nomes - estão encarceradas e destituídas de qualquer expressão num ambiente de clausura. O poema que fecha a peça "O novo sistema", quando o elenco se reúne não mais como personagens mas como atores, dirigindo-se para o público, antecede em voz alta o que irá se desdobrar nos "Poemas aos Homens do Nosso Tempo":

Ah! Nosso Ah! Nosso

tempo de fúria ! tempo de treva !

(abrindo os braços para o público)

Dá-me

a tua mão .

Dá-me

a tua mão .

(o elenco de mãos dadas)

Que os nossos homens se deem as mãos. Que a poesia, a filosofia e a ciência Através de uma lúcida alquimia


Nos preparem uma transmutação: Asa de amor Asa de esperança Asa de espanto (pequena pausa)

Do

conhecimento .

O mesmo apelo – feito há quase 40 anos – não só se renova nos "Poemas aos Homens do Nosso Tempo", publicados no livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, em 1974, mas também nos dias de hoje, 2013. Nesses poemas, a morte que Hilda lamenta é a de um modo de ver e pensar o mundo. Oferecendo esse poema aos homens do seu tempo, sua palavra se dirige também aos poetas, artistas, pensadores do futuro. Tanto nesse livro de poesia, e mais ainda em seu teatro, há uma produção dramática de forte cunho político-dialógico, cuja escrita encontra melhor diálogo e interpretações junto às concepções performáticas. O protagonista tanto do teatro hilstiano como de sua prosa e poesia é um sujeito, ou melhor, uma subjetivação fragmentada, que não estabelece eixos fixos e dramáticos plenamente identificados ou apresentados, que não situa o começo ou o fim, e na qual fluem com potências iguais tanto o silêncio quanto a palavra. Em Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, dedicado a uma grande paixão que teve pelo jornalista Júlio de Mesquita Neto, na época diretor-responsável do jornal O Estado de S. Paulo, o desejo, o erotismo, o sexo se unem em um lirismo poético pontuado aqui e acolá por questionamentos políticos. Para HH a política se desdobrava não só no campo social, mas também pessoal, do corpo, das ações e das palavras. Em JMNP, Hilda também dialoga com a obscenidade da paixão, da política, da própria escrita, principalmente na sua prosa e poesia. Mas quero pontuar aqui que o obsceno na sua escrita significa tanto algo erótico, indecente, erótico e imoral (ob-caenum, próximo à sujeira), quanto homofonicamente algo que está "fora de cena" (ob-scenus), que foi excluído, dissociado, acobertado, recalcado, o que me faz lembrar de Derrida ao discorrer sobre o tema. Ele diz que o obsceno, o que foi "deixado de fora" deve ser sacrificado para


que só assim o sujeito, antes recalcado, concretize sua identidade. Há um paradoxo, afinal para manterse como sujeito deve renunciar a algo de si mesmo. Mas na escrita de HH esse sujeito, essa subjetividade fragmentada, estilhaçada não renuncia, ela anuncia; ele, o sujeito, não recalca, ele desmascara. Entre os barulhos de uma chuva de pratos que caem e se quebram no vídeo de Paulo Meira, entre os desenhos e as palavras emolduradas na série de desenhos de Nazareno, entre a pintura ritualística e a performance de Adir Sodré, entre as camadas de tintas e símbolos na pintura em grande formato de Thiago Martins de Melo, e entre os galhos de uma goiabeira enrolada com mais de 150 novelos de lã vermelha e uma parede coberta com a mesma cor na instalação de Divino Sobral aconteceram diálogos que ecoaram não só na residência, na exposição e nessa publicação, como também entre cada um dos artistas, curadores, produtores, monitores, público e leitor. Diálogos abertos. Diálogos com HH e com os homens [e mulheres] do nosso tempo.

Uma residência que reúne cinco artistas contemporâneos de diferentes Estados do país, com trajetórias distintas, com trabalhos em suportes variados [como pintura, desenho, vídeo, performance, escultura, instalação e fotografia] em um instituto cultural que não só é sediado em uma casa, mas também é uma casa na qual moram duas pessoas é, por si só, uma experiência inusitada e potencialmente não só criativa como também explosiva. Afinal, a partir desse momento políticas pessoais são apresentadas, discutidas, experiências são trocadas e outras vivenciadas in loco. Uma nova ordem é instaurada, acontece uma certa “desterritorialização”. Um outro lugar surge, e que não deixa de ter sua natureza política, pois estão todos deslocados de suas zonas de conforto. Parece que tudo adquire um valor coletivo no qual o individual passa a ser coletivo.


E entre o eu e o outro se instala um intervalo indeterminado que coloca o indivíduo em um “forade-si”, abrindo-o para diversas possibilidades e impossibilidades, movendo-o em direção ao Aberto que é estar em uma comunidade, também uma potencial zona de conflitos, consensos e dissensos. Ou melhor, uma zona indiscernível entre o “eu” e o “outro”, da qual transparece aquilo que o escritor e filósofo Francês Maurice Blanchot denomina o “Fora” da literatura. E afinal de contas, é a literatura um dos eixos do projeto “Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo”. Para Hilda, leitora de O Antí-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia, a literatura sempre é esse risco de sair da zona de conforto para a zona de conflitos, onde o escritor vai dialogar com o leitor, esse outro que também é uma multidão. E a multidão é uma multiplicidade, um plano de singularidades, um conjunto aberto de [inter] relações, que não é nem homogêneo e nem idêntico a si mesmo e está sempre sujeita a causalidades e interferências. Na leitura de Deleuze e Guattari, o “Fora” é o lugar da multidão, “de uma vitalidade anônima e de intensidade sem sujeito constituída de perceptos e afetos”, como um avesso a partir do qual as práticas artísticas e sociais se articulam. E o artista, na sua individualidade, começa a articular práticas comuns e diálogos. O termo “público” nos remete imediatamente à esfera da coletividade, enquanto o termo “privado” remetenos para a esfera do particular, do íntimo. Na Grécia Antiga era bem definida a separação entre o público e o privado. O primeiro acontecia na praça pública, na ágora (na época, a principal praça pública nas cidades), o lugar do diálogo e da discussão coletiva. Para os gregos, o espaço público era a esfera da ação, onde o cidadão dialogava, competia por reconhecimento e pela realização de suas ideias. O espaço privado era representado exclusivamente pela casa do indivíduo, considerado um lugar sagrado e inviolável, onde a “lei” era ditada pelos membros da família, sem imposições externas.


Entre consensos e dissensos, abolir as distinções entre o privado e o público, o íntimo e o social não é uma tarefa fácil e nem muito menos rápida. Sua eficácia, talvez, aconteça apenas quando nem um e nem outro deixem de existir, mas passem a coexistir, estabelecendo um equilíbrio que – por sua natureza cambiante - sempre há de ficar em uma estabilidade instável. Para a filósofa belga Chantal Mouffe, a arte pode agir como fomentadora de dissensos, como construtora de formas de dissenso. E aqui ela dialoga com o filosofo francês Jacques Rancière quando ele diz que “o dissenso é, no seu sentido estrito, uma diferença na partilha do sensível, ou seja, o dissenso seria, antes de tudo, estético, um conflito entre diferentes regimes sensíveis, agenciamentos de relações entre regimes heterogêneos do sensível". Tanto a arte quanto a política provocam, produzem fricções. Para Rancière, ambas também produzem “ficções ou novas relações, tensões ou dissensos, ou seja, outras formas de reconfiguração da nossa experiência sensível“. Em uma residência, entre outras ações e práticas, entre fricções e ficções, tensões e relações é também preciso explorar a “capacidade de fala” dos lugares. Afinal eles nos contam histórias, evocam lembranças, despertam expectativas e nos emocionam com suas particularidades. Lugares são bens simbólicos com natureza social e processual que lhes concedem condições não só objetivas mas também subjetivas. E é também nessa experiência que é uma residência artística que os lugares se transformam, pois não são objetos estáticos, mas necessariamente cambiantes. A identidade espacial que se expõe aos observadores em seu dia a dia é apenas uma parte do conjunto de características dos lugares (aquela que permanece no tempo), pois outros atributos mudam no decorrer do tempo. Por intermédio de outros processos, de outras residências, onde sempre haverá o risco – por não ter um caráter estático – de embaralhar as fronteiras entre o público e o privado.







adir sodrĂŠ













divino sobral










"Porque o amor de Túlio O vermelho da vida Pela primeira vez Se anuncia fecundo." "Ai coração, lamenta e apaga Teu existir de sangue" "Quando se ama, rubor e lividez, Banalidade e chama, se alternam, Como em certas tardes." "O vermelho da vida, Pela primeira vez, Secreto, se avizinha." "Sabe que o ouro é sangue." "Rubra Explodindo em sangue Tua palavra omissa em meu peito amante." "O vermelho da vida pela primeira vez Se anuncia fecundo." "Meu tempo lunar, Transfigurado e rubro." "A idéia Túlio, vai se fazendo rubra À medida que vou te refazendo." "Trabalhas a tua riqueza,

e eu trabalho o sangue."

"E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade." "O vermelho da vida pela primeira vez Se anuncia fecundo." "Se uma ave rubra e suspensa, ficará Na nitidez do meu verso? Há de ficar." "Embriaguez da vontade, Túlio, Sangue buscando a veia É o que me faz perpétua."

Textos poéticos de Hilda Hilst selecionados no livro ”Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”


É noite. Os cachorros que durante o dia dormiram pelos cantos da casa, agora vasculham o quintal iluminado pela lua quase cheia. Fachada da casa pintada de cor rosa com barrado inferior de cor branca. Varanda da frente com seis colunas. Quatro janelas laterais e a porta de entrada para a sala com acabamento em arco, madeira pintada de marrom. Porta larga em duas folhas se abre para fora no pequeno alpendre entre a varanda e a sala. À noite, o lustre de vidro azul torna lilás a parede do alpendre. Junto à porta de entrada, imagens entalhadas na madeira, São Benedito à esquerda e São Francisco à direita. Passeio pela alameda de palmeiras, e do portão dois olhos ficam me fitando. Choveu o dia todo. Mais de um dia. A árvore sagrada, a figueira de Hilda, banhada pela chuva e pela luz dourada do final de tarde, ameniza a tristeza. É ainda bem cedo, o sol acabou de entrar no Portão da Casa do Sol. A luz entra pela janela da frente e ilumina a fotografia de Hilda Hilst com a legenda "poeta da memória, da paixão e do escárnio" exposta na parede da sala. Coloquei flores para ela. Estranhamente me veio ao pensamento: esta casa não é mais de Hilda. Sua memória se apagando entre os pelos dos cachorros caídos no chão. Fantasmas avistados no jardim. Luz dourada no final da tarde passa pela janela, atravessa a sala rosada esquentando o ambiente e iluminando o canto esquerdo da lareira. Portada solene e mística. No alto um sol com face, olhos, nariz e boca que sorri discretamente, tem Cabelos como chamas. O sol humanizado reina superiormente. O portão foi comprado por Hilda Hilst em um antiquário; é de ferro batido em estilo eclético, possui as iniciais HH e data de 1890. Em breve será emparedado e perderá a luz dos primeiros raios de solares. Onde estará Hilda quando o portão de sua casa não puder mais se abrir para receber os poetas? divino sobral



paulo meira













nazareno













thiago martins de melo












PROJETO "POEMAS AOS HOMENS DO NOSSO TEMPO" - HILDA HILST EM DIÁLOGO Idealização e Curadoria

Ana Luisa Lima, Ateliê Aberto e Jurandy Valença Artistas

Adir Sodré, Divino Sobral, Nazareno, Paulo Meira e Thiago Martins de Melo Realização

Ateliê Aberto Instituto Hilda Hilst Produção

Ateliê Aberto Identidade visual

Daniela Brilhante Assessoria de comunicação

Tiago Santos Educativo

Jurandy Valença Monitoria

Caio Lion Man Breno Camargo Corrêa EXPEDIENTE Edição

Agradecimentos:

Adia Borges, Adriane Pianowski, Agostinho Ghomes, Angela Hayashi, Beatriz Abdalla, Carlois Amorim, Centro de Documentação Alexandre Eulálio [CEDAEUNICAMP], C hico F ransé, Clarissa Lima, Cristhiano Aguiar, Daniel Fuentes, Daniela Castro, Depósito São Francisco de Assis, Dica Nicolau, Douglas Marcondes [Vitória Hotéis], Eurico Palazzo, Fernando Précaro, Francine Jallageas, Fred [Cia da Arte FW], Frederico Guilherme Lima, Gilvan Silveira, Iara Mendonça e João Mendonça, João Valdo de A ssis , K átia M aria da Silva, Lucas Malkut, Malcolm Lopes do Carmo, Mariela Mei, Mazé e Roberto Moreira, Olga Bilenky, Paulo Biáfora, Ricardo Lima (Lilika), Romain Brichet, Sabrina Sanfelice, Tatiana Braga, Valdir Barros, Valdir Girardi, Vanessa Franco e Veridiana Weinlich.

Ana Luisa Lima Participações

Adir Sodré, Ana Luisa Lima, Divino Sobral, Henrique Lukas, Jurandy Valença, Maíra Endo, Nazareno, Paulo Meira, Samantha Moreira, Thiago Martins de Melo Produção

Ateliê Aberto Projeto gráfico

Daniela Brilhante Fotografias

Ana Luisa Lima Ateliê Aberto

Direitos autorais cedidos por Daniel Fuentes (presidente do Instituto Hilda Hilst) para realização da publicação.


17.05 a 16.06 de 2013 Residência Ateliê Aberto e Casa do Sol 14.06 a 26.07 de 2013 Exposição Ateliê Aberto ADIR SODRÉ

O caderno cor de Lori Bamby Oferenda à minha Hilst

rosa de mãe

Hilda

Happennig 2013

DIVINO SOBRAL (galeria)

Sangue

buscando a veia

Textos de Hilda Hilst, lágrimas e saliva do artista, galhos de goiabeira envolvidos por lã, lápis de cor, grafite, tinta acrílica, fotografia de Henrique Lukas da intervenção no jardim da Casa do Sol sobre parede e vinil transparente sobre vidro. 300 x 315 x 60 cm

2013 NAZARENO (galeria)

Vejo

os seus olhos 31 x 23 cm

Os Sonhos

31 x 23 cm Como dar forma ao mundo 31 x 23 cm E se eu não sou nada posso ser tudo 31 x 23 cm E então chega você 31 x 23 cm Raízes 31 x 23 cm Suas posses... 31 x 23 cm Em suas visões. 31 x 23 cm O jogo da amarelinha 31 x 23 cm Não se engane 36 x 26 cm

Culpa

36 x 26 cm Uma independência brutal 36 x 26 cm As Amizades 36 x 26 cm (Coisas) Para se ter muito cuidado 32,5 x 25,5 cm

Desenhos, nanquim s/ papel 2013 PAULO MEIRA (cinecaverninha)

Mensagens Sonoras de C acos

com

Canto

>Programa da Rádio Textos: livre adaptação do livro “Contos d'Escárnio/ Textos Grotescos“, Hilda Hilst. Vozes: Divino Sobral, Ana Luisa Lima, Nazareno e Jurandy Valença. >Vídeo Fotografia de Henrique Lukas e Paulo Meira Locação: Casa do Sol Participaram: Thiago Martins de Melo, Jurandy Valença, Nazareno, Divino Sobral, Samantha Moreira, Gilvan Silveira e Nenê. Vídeo instalação, projeção de vídeo, cacos de porcelana e rádios. Dimensões variáveis

2013 THIAGO MARTINS DE MELO (galeria)

Simulacro e Parasitismo Casa do Sol Preto

na

Óleo e pigmento sobre tela 360 x 160 cm

2013


Ateliê Aberto Rua Major Solon, 911 - Cambuí, Campinas - SP | Brasil www.atelieaberto.art.br

Casa

do

Sol | Instituto Hilda Hilst

Rua João Caetano Monteiro, s/n - Parque Xangrilá, Campinas SP | Brasil www.hildahilst.com.br

www.facebook.com/poemaaoshomensdonossotempo

Esta publicação foi produzida entre junho e julho de 2013. Foram impressos 1.000 exemplares na gráfica E-Color, Campinas - SP. Para a capa foi utilizado papel triplex 250gr/m2. Para o miolo, papel offset 90gr/m2, e tipogragfia 'smithyXT' para corpo de texto.



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