Catálogo Diálogo Concreto - Design e construtivismo no Brasil

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DIÁ LOGO CONCRETO

D I Á LO G O C O N C R E TO

produção pat r o c í n i o

design e construtivismo no brasil

design e construtivismo no brasil


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apresenta

25 de marรงo a 27 de abril de 2008 curadoria

Daniela Name


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Foram várias as exposições sobre arte construtiva no Brasil. Contudo, elas não deram conta das produtivas experiências rea­lizadas quando as correntes construtivas no Brasil tomaram um novo rumo, após a dissolução dos grupos concreto e neo­concreto. Hoje, a explosão da arte brasileira no exterior acontece justamente como fruto de investigações de curadores e críticos de arte internacionais acerca deste rico e influente pe­río­do da história da arte brasileira. A exposição diálogo concreto : design e construtivismo no brasil vem, assim, ocupar um espaço

em branco. A exposição pretende mostrar como alguns artistas no Brasil dos anos 1950 estabeleceram intenso diá­logo como comunicadores visuais. Com peças de design, estes criadores levaram para os produtos industrializados e de circulação de massa — cartazes, jornais, embalagens, logomarcas, estampas em tecido — todos os princípios plásticos que orientavam a vanguarda construtiva. Assim, cumpriram, com o design, a maior ambição dos movimentos do período: chegar ao povo e às ruas. A caixa reitera sua posição estratégica de fomento à arte nacional em todas as suas vertentes, linguagens e formas de manifestação, não apenas oferecendo espaço às novas gerações de artistas, mas também valorizando e disseminando o consagrado junto à população. Ao patrocinar a presente mostra, a caixa contribui, mais uma vez, para a valorização e a disseminação da cultura nacional. caixa econômica federal


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“Eu me lembro” Sedução e memória no design construtivo brasileiro

Daniela Name

Na minha infância, Lygia Pape já havia criado todas as embalagens para os biscoitos Piraquê e elas ainda não tinham sido adulteradas pela fábrica. Sorte a minha: o fundo vermelho-vivo dos biscoitos Maria, Maisena e Cream Crackers se confunde com minha memória sobre a hora do recreio. Também soube, pelo pernil, na bem humorada embalagem do Presuntinho, que a fatia rosada de tantos sanduíches na merendeira saía do corpo de um animal. Bendita realidade. O azul-turquesa do Água se mistura com a lembrança de minha avó, escrava da dieta por causa dos problemas cardíacos. A criança que eu fui nos anos 1970 jamais imaginaria que os círculos concêntricos do Drink ou mesmo a Via Láctea 3D formada no saco do Queijinho, vulgo “bolinha”, demonstravam uma sofisticada aplicação da arte de vanguarda das décadas anteriores. Mas foi aí, sem a menor dúvida, que diálogo concreto começou a nascer. A obra dos artistas construtivos brasileiros como designers diz muito sobre a memória e o poder mobilizador das imagens numa sociedade de massa. Ao longo do processo de produção da exposição, foi curioso ver os insights da equipe sobre logomarcas, cartazes, móveis, prospectos, jogos, embalagens. As impressões de cada um eram diferentes das minhas, enriqueciam as minhas, mudavam as minhas. Vinham do repertório de imagens que meus valiosos parceiros acessavam à medida que conviviam com aquelas obras.

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Também no dia da inauguração e nas visitas posteriores à galeria, as três palavras que mais ouvi foram “Eu me lembro”. Depois delas, eu escutava sempre um comentário interessante sobre a lata das sardinhas Coqueiro, a logomarca da Mobília Contemporânea, o cartaz da Panair, os jogos de Palatnik, o parquinho infantil geométrico criado por Waldemar Cordeiro. Quadrados, triângulos, diagonais, planos que se cruzam, cores básicas, jogos óticos, cheio versus vazio. A memória de cada um trazia à tona um repertório subjetivo, mas altamente compartilhável e agregador. Todos que diziam “Eu me lembro” somavam aos trabalhos expostos sua vivência. Cada “Eu me lembro” funcionou, ao longo destes últimos meses, como um tijolo a mais na construção conceitual para diálogo con ­ creto : o entendimento de que o objetivo primordial destes trabalhos

em design parece ser justamente seqüestrar e seduzir o espectador por meio de sua própria memória. Depois que alguém diz (ou pensa) “Eu me lembro” diante de uma destas peças, passa a misturar sua lembrança à obra no momento seguinte. A memória se transforma em alavanca da criatividade, da imaginação e da participação. A obra se conclui no olho e na subjetividade de quem a vê. Memória como elo e cumplicidade. Memória como sedução. “Eu me lembro”. Bingo!

Para situar no tempo “50 anos em 5”. Em 1954, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente do Brasil, prometendo que o país seria levado ao desenvolvimento em tempo recorde. O “presidente bossa nova” se apresentava como o porta-voz da esperança e do otimismo, depois da comoção nacional causada pelo suicídio de seu antecessor, Getúlio Vargas, naquele mesmo ano. Para tentar cumprir o que prometeu, JK abriu o Brasil para o capital e os produtos estrangeiros; estimulou a criação de novos cursos universitários; deu bolsas para que intelectuais de diversas áreas fossem estudar na Europa e nos Estados Unidos; e, sobretudo, concretizou o sonho de construir uma nova capital em meio ao descampado do Planalto Central. Concebida por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer—dupla que ajudara a enraizar os fundamentos da arquitetura moderna brasileira ainda nos anos 1930, com a construção do Palácio Gustavo Capanema, no Rio—Brasília surgia como símbolo deste novo país, que já tinha começado a se desenhar no governo Vargas. Eleito por uma esmagadora votação popular em 1950, o ex-ditador teve um mandato conturbado, em que tentou, sem sucesso, conciliar os desejos das antigas oligarquias, da burguesia industrial emergente

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e das classes populares. Apesar das inúmeras contradições sociais, Vargas começou a abrir o país para a urbanização e a industrialização. Nos quatro anos em que comandou o país do Palácio do Catete, as grandes cidades, especialmente o Rio e São Paulo, passaram a roubar do campo o poder de decidir os destinos da nação. As vanguardas artísticas que se organizam no Brasil neste período precisam ser compreendidas no contexto desenvolvimentista. Levando-o em consideração, fica mais fácil entender por que os artistas ligados aos movimentos Concreto, em São Paulo, e Neoconcreto, no Rio, acabam se aproximando da comunicação visual e do design, dois campos do conhecimento que amadurecem no mesmo compasso do desenvolvimento social, econômico e cultural de um país. Quanto mais desenvolvida é a indústria, mais produtos há para se vender; quanto mais urbano é o país, maior é o raio de ação dos meios de comunicação para divulgar aquilo que é vendido, assim como a quantidade de assalariados para consumir aqueles produtos. Há outras razões para o casamento entre o construtivismo brasileiro e os primórdios do design nacional. Herdeiros de vários princípios das vanguardas que tinham sacudido a Rússia e a Alemanha no início do século xx (Construtivismo, Bauhaus), concretos e neoconcretos tinham a ambição de levar a arte para um espaço muito mais amplo do que o das galerias e dos museus. Eles cultivavam a crença de que a arte pode ser um agente transformador do espaço e da própria sociedade. Por isso nada mais natural que os construtivos brasileiros tentassem levar os princípios que orientavam os trabalhos de fruição e de especulação, em geral restritos aos espaços museológicos, para as ruas, através de projetos arquitetônicos, cartazes, logomarcas, estamparias para tecidos e projetos para embalagens. Alexandre Wollner explica este processo de maneira cristalina. Embora tenha começado a trabalhar como pintor afinado com o movimento concreto paulista, ele acabou se transformando num dos maiores designers dos anos 1950 e 60, com enorme produção em cartazes. Mas levou para a arte gráfica os princípios que orientavam o concretismo, com cores básicas, formas geométricas: sugestão de movimento por meio da repetição seriada e criação de efeitos óticos baseados na Gestalt. Em depoimento, contou por que acabou abrindo mão da pintura: “Se deixei a pintura foi porque desejava um diálogo não com dez, mas 1 W ollner , Alexandre. A emergência do Design Visual. In: A maral . Aracy (org). Arte construtiva no Brasil — Coleção Adolpho Leirner. São Paulo: DBA / Melhoramentos, 1998.

com mil ou um milhão de pessoas, entre outras razões.”

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A vanguarda russa já tinha dado mostras de como era possível integrar processos artísticos aos meios de massa através da extensíssima produção gráfica de Rotchenko, Stenberg e Maiakovski, entre outros expoentes do movimento. Theo van Doesburg também teria

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levado os princípios que nortearam a revista De Stijl, que fundara com Mondrian, para muito além dos limites da pintura, criando vários projetos arquitetônicos baseados numa organização modular que tinha como base os eixos horizontal e vertical e das cores básicas. Mas a Bauhaus foi, sem dúvida o modelo mais explícito de proposta de integração social da arte. Fundada na Alemanha em 1919, durante a República de Weimar, a escola passaria ainda por outras duas cidades, Dessau e por fim Berlim, onde foi fechada em 1933, com a ascensão do nazismo. Como destaca Ronaldo Brito em Neoconcretismo. Vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro (Rio de Janeiro: Funarte, 1985), a Bauhaus tinha como objetivo “a utilização racional, humana e esteticamente progressista dos amplos recursos industriais modernos. A arte deixaria, afinal, o seu tradicional terreno especulativo, ingressando na tarefa de organizar o ambiente.” Para empreender tal organização, professores como Walter Gropius, Was­sily Kandinsky, Paul KIee, Johannes Itten e Herbert Bayer, entre outros, vão propor da criação de um alfabeto “universal” à formulação de preceitos arquitetônicos. Também vão promover uma verdadeira revolução pedagógica com a implementação do “Curso básico” da escola, no qual Itten, talvez a figura mais marcante do quadro docente entre 1919 e 1923, desenvolveu sua teoria sobre as cores e estruturou os fundamentos do design moderno. A chegada de Adolf Hitler ao poder e a Segunda Guerra Mundial interromperam as transformações propostas pela Bauhaus. Nos anos 1950, a Escola de Ulm, na Alemanha, acabou se firmando como um dos mais importantes pólos do design mundial, recuperando boa parte das teorias que a Bauhaus tinha fundamentado 20 anos antes. Entender as relações entre Ulm e o Brasil, sobretudo São Paulo, é importantíssimo para um aprofundamento nas relações entre arte e design no país, como Felipe Scovino explica em seu texto neste catálogo. Um dos principais líderes da escola e um dos grandes nomes do construtivismo, o suíço Max Bill chegou à capital paulista em 1950, para inaugurar uma retrospectiva de sua obra no Museu de Arte de São Paulo (Masp). A agenda do escultor no país contou ainda com uma série de encontros em São Paulo e no Rio, e a presença de Bill parece ter se transformado numa espécie de combustível a uma série de fatores que já contribuíam para o surgimento de uma interpretação nacional para os preceitos das vanguardas construtivas. A I e II Bienais de São Paulo, realizadas em 1951 e 1953, também co­­­laboraram decisivamente para a formação deste novo olhar, já que trou­­xeram obras de nomes importantíssimos das arte da Europa. Da Fran­ça, vieram peças de Marcel Duchamp, François Morellet, Auguste Herbin e de outros nomes radicados em Paris, como o venezuelano

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Jesús Rafael Soto, o holandês Georges Vantongerloo e o húngaro Victor Vasarely. Da Alemanha, Josef Albers, além do soviético Kasimir Malevitch. Da Holanda, Mondrian, Van Doesburg e Cornelius van de Velde. Da Itália, Lucio Fontana, Marinetti, Giorgio Morandi e Giacomo Balla. Da Suíça, além de Bill, Paul Klee e Alfred Roth. Da Inglaterra, Bridget Riley e Ben Nicholson. Assim como aconteceria no processo de desenvolvimento veloz proposto por JK, a arte brasileira também parece ter acelerado processos ao tomar contato com a vanguarda de maneira concentrada, em curto espaço de tempo. Aqui e em países como Argentina, Uruguai e Venezuela, a passagem para o construtivismo se deu de maneira radical, tentando romper com o tipo de trabalho que se fazia antes e criando um novo repertório, que acabou projetando a arte brasileira para fora do país e até hoje influencia as novas gerações de artistas. É importante salientar, no entanto, que não há, no surgimento da vanguarda construtiva brasileira, uma relação de dependência e de mera apropriação dos artistas europeus. Há contextos e estilos próprios em São Paulo e, especialmente, no Rio, e isto acarreta soluções originais tanto para as obras de arte quanto para os produtos de circulação de massa, fruto do design. Em São Paulo, berço da industrialização no Brasil, um ano depois da visita de Max Bill surgiria o Instituto de Arte Contemporâneo (IAC), primeira escola de design da América Latina. Lá estudaram Wollner, Antonio Maluf e Maurício Nogueira Lima, participantes de primeira hora do movimento concreto. Wollner acabaria indo estudar em Ulm pouco tempo depois, junto com Almir Mavignier e Mary Vieira — os dois últimos acabariam se fixando na Europa, embora tenham realizado trabalhos como designers para empresas brasileiras. Diferentemente dos colegas, Wollner voltou ao Brasil e acabou sendo uma figura decisiva na implantação de uma oficina de tipografia no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1962, e na posterior fundação da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, estreitando os laços entre artistas e designers paulistas e cariocas.

Cartazes, prospectos, logomarcas Antonio Maluf vai ser figura importantíssima na criação de uma ponte entre os princípios do concretismo e o design. Criador do cartaz da I Bienal de São Paulo, de 1951, ele é um dos pioneiros não só desta fusão entre arte e arte aplicada, mas do próprio design brasileiro. Criar formas finitas que se repetem ad infinitum, gerando uma poética própria é uma marca que se repete em toda a obra do artista, que trabalhou predominantemente usando guache sobre papel. Além de ter

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Antonio Maluf Cartaz para a I Bienal de São Paulo, 1951

criado numerosas versões para a “Equação dos movimentos”, que fez história no cartaz da Bienal, Maluf explorou a matemática combinada com a progressão cromática em trabalhos como os da série Dízima periódica e Vinte possibilidades de dois meio pontos se articularem por um ponto, antes de formar um ponto, ambos dos anos 1950. Em todos eles, a impressão que se tem é de que a progressão matemática tende ao infinito, ultrapassando os limites do papel. Assim, apesar de todo o rigor, é como se Maluf tangenciasse um campo sensível que vem de uma impossibilidade de controlar por completo este fluxo infinito. Da mesma forma que ocorre com a matemática, as formas estancam parte deste fluxo, mas não conseguem abarcar todo o universo. Os números e sinais simbolizam valores e operações, mas são na verdade uma associação abstrata e — por que não dizer — imaginativa de determinada equação. O artista aplicou estes princípios nas estamparias que realizou para os tecidos da Rhodia nos anos 1960/1970, outra importante contribuição para a fusão entre arte e indústria. Outro pioneiro da arte gráfica foi Geraldo de Barros, integrante do Grupo Ruptura, que lançou seu manifesto em 1952 e formou a base do concretismo paulistano. Pintor e fotógrafo, Barros ganhou uma bolsa de estudos para estudar na França entre 1950 e 1951 e aproveitou a oportunidade para visitar a Escola de Ulm. Em 1954, o artista criou o cartaz para o IV Centenário de São Paulo, que também é um marco, embora

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Alexandre Wollner e Geraldo de Barros Cartaz para o IV Centenário de São Paulo, 1954 Cartaz para o Festival Internacional de Cinema do Brasil, 1954

guarde forte carga figurativa. Na parte de baixo da peça, a cidade é reconstruída a partir de figuras geométricas criadas apenas com linhas pretas, numa composição que lembra profundamente as “cidades” de Paul Klee. O uso de vermelho em apenas alguns dos telhados / triângulos, em contraste com o preto das linhas e o branco do fundo, cria uma curiosa diferença entre os planos da cidade, que deixa de ser um emaranhado de linhas “chapadas” para ganhar o volume de uma espécie de labirinto. Em parceria com Alexandre Wollner, Barros criou, no mesmo ano, o cartaz para o Festival Internacional de Cinema do Brasil. Simples, mas potentíssima, a peça tira partido de dois quadriláteros — que, na verdade, são retângulos ligeiramente adulterados, para criar uma ilusão de ótica. O maior, vermelho, envolve o menor, preto, que por sua vez envolve a palavra “cinema”. O jogo entre as duas formas simula de maneira absolutamente sintética uma tela de cinema e o que seria projetado nela, sem, no entanto, recorrer a elementos figurativos. E a imagem também cria a idéia de volume e profundidade, aproveitando, assim como faziam os construtivos, as áreas brancas como uma região em que o vazio tem a possibilidade de se tornar espaço, volume e significado. Assim como fazia em suas pinturas, Barros se aproximou, neste segundo cartaz, de vários preceitos defendidos por Naum Gabo no “Manifesto realista”, de 1920: há a renúncia da cor como um elemento

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pictórico e ela passa a ser entendida apenas como a “superfície ótica idealizada dos objetos”, sendo usada como uma forma de gerar ritmo e ampliar a leitura dos trabalhos bidimensionais a partir de seu uso por oposição ou complementaridade com outras cores. E, sobretudo no exemplo citado, o espaço é entendido como uma unidade contínua.2 Wollner também faria muitas logomarcas, entre elas a das sardinhas Coqueiro, que comentaremos adiante, e a dos elevadores Atlas. Nesta, os triângulos/seta sintetizam a função de um elevador: subir e descer. A seta para cima somada à seta para baixo também forma a letra A e o fato de a seta para cima ser bem maior do que a para baixo lembra ainda que Atlas é o nome de uma importante cadeia de montanhas. Mary Vieira criou numerosos cartazes, entre eles o belíssimo para a Panair do Brasil (anos 1950, s/d), em que sintetizou a emoção que sentia ao olhar para o encontro de céu e mar da escotilha do avião, todas as vezes em que voltava para visitar o Brasil. Comunica isso usando apenas uma esfera ‘transparente’ (vazada) que se sobrepõe à superfície do cartaz dividido em dois grandes planos; um verde e um azul.

Alexandre Wollner Logotipo Elevadores Atlas, 1958

Almir Mavignier foi outro artista importante na confecção de cartazes. Radicado na Alemanha, admirador do trabalho da psiquiatra Nise da Silveira no Museu de Imagens do Inconsciente, sempre tirou partido das séries matemáticas e das noções de proporção e de escala cromática para gerar a idéia de movimento em seu trabalho. Os dois cartazes incluídos em

diálogo concreto

mostram exatamente isso,

evidenciando sua grande habilidade como artista gráfico, em que tira partido de justaposição de cores para perturbar o olhar do espectador. Também é possível ver, na peça feita para uma exposição do próprio artista, outra característica recorrente em sua obra: colunas e planos são formados de pequenas unidades de formas geométricas (em geral círculos), que vão diminuindo de tamanho do centro para as extremidades, as ‘bordas’, gerando assim uma idéia de dissolução ou reverberação da forma. O espectador é sugestionado a imaginar que aquele movimento que está vendo não termina ali, na área limitada do cartaz ou da pintura. Há uma continuidade em algum lugar. O uso da imaginação, grande diferencial proposto pelos neocon­ cretos, e de uma geometria sensível, sem o rigor proposto pelos concretos, foi uma grande marca da obra do mineiro Willys de Castro, tanto como artista quanto como designer. Embora vivesse em São Paulo, o artista nunca integrou nenhum dos grupos da cidade, estando mais próximo da invenção proposta pelo neoconcretismo do que da matemática. O que não significa que Willys não tivesse conhecimento ou domínio das teorias das vanguardas, tanto as do início do século xx quanto as dos anos 1950. Durante toda esta década, ele trabalhou como programador visual para indústrias de tintas.

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2 Renunciamos ao volume como uma forma de espaço pictórico e plástico; não podemos medir o espaço em volume, como não podemos medir o líquido em metros: olhem para o nosso espaço; que é ele senão uma profundidade constante?”, escreve Gabo.


Willys de Castro Prospecto para tintas Facil-it, anos 1960

3 Em “Sobre a arte moderna” (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001), compilação de uma palestra de Paul Klee proferida na cidade alemã de Jena, em 1924, o artista esmiuça seu pensamento sobre a cor: “A cor é, em

O prospecto para as tintas Facil-it (anos 1960) evidencia o uso cria-

primeiro lugar, qualidade.

tivo da geometria, com a sugestão de planos a partir de quadriláte-

Secundariamente, ela é peso, pois não tem apenas valor

ros irregulares e díspares. Diferentemente dos jogos óticos seriados

cromático, mas também um

do concretismo, que de hábito trabalhavam com formas “perfeitas” e

valor luminoso. Em terceiro

relacionadas entre si, o que há aqui é a criação de espaços a partir

lugar, ela é medida, pois além dos seus valores possui ainda

daquilo que não segue, necessariamente, uma ordem lógica. É impor-

determinados limites, sua área

tante notar que o artista mostra perfeito domínio da teoria cromática

e sua extensão, coisas que podem ser mensuradas (...)

sugerida pela Bauhaus, com o uso das cores primárias (preto, branco,

É possível traçar, atravessando

azul, vermelho e amarelo) e da primeira escala de cores secundárias

dos pontos das três cores principais — as duas cores que ficam em suas pontas. Desse modo, no triângulo, o lado verde se contrapõe ao ponto

(roxo, laranja, verde), de acordo com os preceitos defendidos por Paul Klee,3 entre outros integrantes da escola alemã. Na sucessão de planos do cartaz, Willys tomou o cuidado de aproxi­

vermelho, o lado roxo ao ponto

mar tons opostos na escala cromática. Assim, o amarelo está próximo

amarelo e o lado laranja ao

do roxo, o verde do vermelho (embora interrompido pelo branco), o

ponto Azul. Logo, existem três cores principais e três cores

azul do laranja. À medida que nos aproximamos do centro da imagem

secundárias, ou seis cores

— talvez o termo mais correto seja “miolo”, já que o centro não está no

primordiais vizinhas, ou três vezes duas cores aparenta­das

centro, e sim deslocado para o canto superior esquerdo do cartaz, em

(pares de cores)”. Como vimos,

mais uma “imperfeição” criativa — os quadriláteros brancos que se al-

Willys de Castro seguiu à risca

ternam com os coloridos dão mais um exemplo do vazio “ativo” que vai

os pares de cores de Klee no folder da companhia de tintas.

ser usado pelos artistas do período, em especial pelo neoconcretismo.

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O branco, aqui, não é apenas o suporte para a cor, mas, inicialmente um plano e, adiante, à proporção que o quadrilátero vai sendo torcido em seu próprio eixo, além de um plano o branco sugere também um espaço para lá da bidimensão. Nas peças de Willys, há espaço para que o espectador/consumidor complete, por si mesmo, com sua imaginação, o sentido do que está

Willys de Castro Prospecto Rutilack, Tintas CIL, 1958

pectador que precisa “criar” os vários planos internos sugeridos pelo

Objeto ativo, 1959 /1960 Óleo sobre tela colada em madeira 68,7 × 2,3 × 11,3 cm

prospecto da Facil-It, por exemplo, ou o sentido da logomarca da Mobília

Coleção

Contemporânea) como para o conceitual (é também o espectador que

moderna do rio de janeiro

sendo divulgado/vendido. Isso vale tanto para o aspecto visual (é o es-

precisa fazer o link entre as cores da Facil-It e sua função para uma marca de tintas). Com isso, tais peças se aproximam do conceito de “obra aberta” de Umberto Eco e, assim como o cartaz da dupla Wollner / Geraldo de Barros, tangenciam os exercícios de imaginação propostos pela fenomenologia. É curioso observar a relação da produção gráfica destes artistas não apenas com a história das vanguardas e com a história do design no Brasil, mas, sobretudo, com sua própria trajetória. O artista que cria telas e esculturas é a mesma individualidade que cria cartazes e outros produtos de comunicação visual. Nada mais natural, portanto, que estes produtos de circulação de massa guardem semelhanças com seus trabalhos do campo da arte, mais especulativos, criados sem o vínculo com um produto ou um conceito a ser vendido. Esta proximidade é bastante clara na obra de Willys e também na de outros artistas que

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museu de arte


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têm presença marcante em diálogo concreto : Amilcar de Castro e Lygia Pape. No caso de Willys, chama a atenção o uso de grandes áreas brancas no anúncio das Tintas CIL, de 1957 — em que a criatividade do artista faz com que uma única área com cor seja a preenchida pela repetição da palavra “pintar” — e a oposição entre cheio e vazio vista no anúncio para a Laca (outro ramo das indústrias CIL, s/d). Tal oposição, tão explorada em suas telas e Objetos ativos, é vista de maneira claríssima em duas logomarcas realizadas na década de 1960: a da Mobília Contemporânea e a da Galeria Seta. Guardadas as devidas proporções entre um Objetos ativos e uma peça de design, há um mesmo princípio que norteia o primeiro e a marca da Mobília Contemporânea. Ao subtrair de uma imagem parte dela, deslocando-a no espaço, Willys perturba o olhar do espectador e o convida a criar/ imaginar uma nova geometria. Nos Objetos ativos, isto é feito como uma experiência espacial no lugar da exposição, já que o espectador é obrigado a se deslocar para apreender a peça como um todo. Apesar de sua comunicação quase imediata, a logomarca segue os mesmos princípios — a esfera e o quadrado podem sugerir, é claro, uma mesa ou escrivaninha e o assento à sua frente, mas isso parece ser secundário. O que nos chama a atenção é a idéia de movimento e a criação de um espaço que surgem a partir da oposição entre o quadrado preto (cheio) e o quadrado branco (subtraído, vazio, mas ativo). No caso da logo da Galeria Seta, observa-se um jogo ótico visto em algumas pinturas do artista. A forma que falta — ou que é mandada para o plano de fundo, em branco — é rebatida e divide ao meio as formas cheias, ou seja, nos triângulos pretos. Deste modo, há a sugestão, também a partir da imaginação de quem vê, de que o triângulo branco é uma seta que invade a área negra. Mas também é possível imaginar que o mesmo triângulo branco se abriu em dois triângulos pretos, como um origami... Ou que os dois triângulos pretos são como pétalas, que podem se fechar sobre o plano branco. É importante enfatizar, mais uma vez, as diferenças que existem entre a obra de arte e estas peças de comunicação visual, ligadas ao consumo de massa e à apreensão rápida. Este segundo grupo não elimina, de modo algum, a necessidade da existência do primeiro, que mantém suas particularidades. No artigo “Forma, função e projeto geral”, publicado em 1957 na revista Arquitetura e Decoração, Décio Pignatari faz observações bastante relevantes a este respeito: “As artes visuais encontraram na arquitetura e no urbanismo, bem como no desenho industrial, no cinema, na propaganda, um vasto campo possível de aplicações, enquanto, por urgência de uma comunicação mais rápida e incisiva — mais econômica — a nossa época se colocava sob o signo da comunicação não verbal.

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Willys de Castro Logotipos Novas Tendências, Mobília Contemporânea e Galeria Seta, 1963–1964


Willys de Castro Estudo para projeto gráfico Tintas CIL, década de 1950 guache sobre papel Prospecto e catálogo (frente e verso) da Galeria de Arte das Folhas, 1960/61

A música nova, eletrônica, já começa a ser introduzida no cinema, na televisão e no rádio, para efeitos de sonoplastia. A poesia concreta, por recente, apenas principia a entrever possibilidades utilitárias na propaganda, nas artes gráficas, no jornalismo. Contudo, o objeto útil ou utilitário, em que a forma, sem deixar de ser criativa, apenas buscava a justa paráfrase de uma função (que em outras condições, como na arquitetura, é sinônimo de conteúdo) não pode absorver toda a capacidade de criação das artes, que ainda encontram na idéia-objeto autônoma a mais conseqüente e profunda de suas manifestações.” Mas parece ser importante notar que o design e a comunicação visual, assim como a arquitetura e o paisagismo, não se desenvolvem no Brasil a partir dos artistas concretos e neoconcretos por acaso. Assim como nas vanguardas européias do início do século xx , que percebem a necessidade de mudar a mentalidade vigente a partir de uma intervenção direta da arte na sociedade e no modo de vida dos cidadãos, os artistas construtivos nacionais também parecem notar que os anos 1950 e 60 são um turning point na história nacional.

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A casa e a cidade Além de uma relação direta com a indústria emergente, os artistas construtivos vão querer captar o olhar do público a partir da mudança no ambiente. Foi assim quando Waldemar Cordeiro transformou a cidade de São Paulo em suporte de sua obra, ao criar o projeto do playground do Clube Espéria, realizado em 1966. Grande líder do concretismo paulista, Cordeiro começou a estudar arquitetura a fundo em 1952, mesmo ano em que surgiu o Grupo Ruptura. O que não parece ser um acaso: seus projetos como arquiteto tentam aplicar na paisagem os conceitos da Gestalt e da semiótica, vistos em seus trabalhos como artista. As fotos do Clube Espéria, feitas nos anos 1960 por João Xavier, impressionam pela apropriação lúdica que as crianças fazem da geo­ metria. Parecem demonstrar que, mesmo em iniciativas isoladas, nossa vanguarda construtiva fez do design uma das ferramentas para a fusão entre arte e vida, para a explosão do plano e dos limites dos museus. A vida curta deste artista seminal do construtivismo brasileiro — morreu em 1973, aos 48 anos — não impediu que construísse uma obra que é quase toda um manifesto. Cada peça ou exposição de Cordeiro não existe sem o vínculo com alguma teo­ria ou corrente de pensamento que estivesse interessando ao artista naquele momento. Sua obra fez parte do que Ana Maria Belluzzo chamou de “a aventu4 ra da razão”. O playground do Clube Espéria é uma obra que marca

um momento crucial. A partir de 1964, o artista deslocou seu foco de atenção das formas geométricas para a semiologia, criando poemas visuais ao lado de Haroldo de Campos. Estudou em profundidade o

Waldemar Cordeiro Projeto arquitetônico e paisagístico para o playground do Clube Espéria, São Paulo, 1966 Fotografias de João Xavier Coleção analívia

cordeiro

assunto e, em paralelo, se dedicou ao paisagismo para conseguir um meio de sustento. Para Belluzzo, o paisagismo ensinou a Cordeiro que o movimento construtivo podia atingir novas etapas, concretizando uma participação mais efetiva e mais livre do espectador: “Foi o paisagista profissional que sustentou financeiramente o artista puro. O paisagismo, pensado inicialmente como meio de subsistência, inclui-se no campo de suas atividades criativas. É o paisagista que assinala a dimensão propriamente urbana na visão de Cordeiro. O paisagista que projeta espaços destinados ao tempo livre ensina ao pintor o que é a participação concreta do fruidor. É também o paisagista que traz a arte para a dimensão do contingente e do necessário, nunca do utilitário, e de maneira a impedir qualquer suposição de que exista algum resquício funcionalista nestes procedimentos”.

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4  B elluzzo , Ana Maria. Waldemar Cordeiro: uma aventura da razão. São Paulo, MAC/USP , 1986.


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Lygia Clark Construa você mesmo o seu espaço para viver, 1960 Madeira e acrílico 70 × 120 × 15 cm Coleção sandra

Construa você mesmo seu espaço para viver, maquete criada por Lygia Clark em 1960, realiza esta mesma operação de participação com a constituição física do espaço cotidiano. O projeto da artista para uma casa na serra fluminense, feito com a ajuda do arquiteto Sergio Rodrigues, tem um diálogo evidente com sua obra plástica. Todas as divisórias da casa são móveis, permitindo que o morador amplie ou diminua os cômodos de acordo com sua vontade, criando novos planos e novas formas para a planta arquitetônica. A artista diria que o princípio lúdico e participativo dos Bichos (1960 – 64) foi incorporado ao projeto da casa. O espírito lúdico é parte constitutiva da obra de Abraham Palatnik. Grande pesquisador do movimento, pioneiro da arte cinética e da fusão entre arte e tecnologia no Brasil, o artista sintetizou como poucos a ambição do “criador total” proposta pela Bauhaus. Além de jogos como Objeto lúdico (1965) e Quadrado perfeito (1962), o artista projetou, ao longo dos anos 1960 e 70, móveis e utensílios domésticos. Criou bichinhos decorativos feitos de acetato — material predominante em algumas de suas telas de efeitos visuais — e manteve com um irmão

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brito


Abraham Palatnik Objeto lúdico, 1965 Madeira, fórmica, vidro, plástico e bastão magnetizado 4,5 × 42,4 × 42,2 cm Quadrado perfeito, 1962 Tabuleiro de madeira, peças de resina poliéster 37 × 37 cm Coleção do artista

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Abraham Palatnik Máquina de cortar coco babaçu, 1952 Desenhos e protótipo Coleção do artista

uma fábrica que, além destas peças decorativas, criou pesos de papel, bandejas e porta-copos. Exportou-os, inclusive, para a Europa. Em diá ­ logo concreto , móveis, jogos e o projeto do Cortador de coco babaçu, que chegou a ser patenteado, são expostos ao lado de um trabalho pictórico feito apenas com madeira, Progressão, de 1965. O movimento gerado pela peça é baseado apenas no estudo das próprias tonalidades da madeira, somado a um paciente trabalho de engenharia: agrupar cada tira que forma a tela lado a lado com as outras, criando o jogo entre as duas cores da superfície. A obra é aparentemente uma surpresa dentre as criações de um artista quase sempre associado à tecnologia e a peças luminosas e cinéticas, acionadas por mecânica. Mas revela outra tecnologia, mais rudimentar, meditativa, nascida do gesto cotidiano de pesquisar a forma por meio do ensaio e da possibilidade de erro. Palatnik é um artista que cria a partir do labor diário, executando até as ferramentas com que produz móveis e trabalhos artísticos. Nos móveis, a conversa com sua obra plástica é evidente. Não é difícil imaginar, por exemplo, a pintura do tampo da mesa de centro, incluída na mostra, como uma espécie de fotografia de um de seus Cinecromáticos.

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Abraham Palatnik Mesa, década de 1950 Ferro e vidro pintado 38 × 62 × 71 cm Poltrona, 1954/1960 Vidro pintado 63,7 × 72 × 79,3 cm Coleção do artista

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Geraldo de Barros foi outro artista múltiplo. Pintor, gravador, pioneiro da fotografia experimental, levou o design a sério. Realizou importantes trabalhos em cartazes e logomarcas já no início dos anos 1950. Em 1951, viajou para Paris com uma bolsa de estudos do governo francês para estudar na Escola de Belas Artes. Lá, cursou litografia e interessou-se por design gráfico. Freqüentou o famoso ateliê-escola de Stanley Hayter, onde estudou gravura. Viajou para a Suíça, onde conheceu Max Bill, e passou pela escola de Ulm, travando contato profundo com a idéia de arte aplicada. Acreditava que o design era uma ferramenta educativa, para formar e apurar o gosto visual das massas. E foi com esta crença que voltou para o Brasil com as sementes da grande transformação que faria na indústria de móveis. Em 1954, dois anos depois de participar da fundação do Grupo Ruptura, integrou a equipe fundadora da Unilabor, cooperativa para a criação de móveis. Em parceria com os operários, criou a logomarca e diversos projetos para a empresa, transformando o mobiliário em seu foco criador na área de design ao longo dos anos seguintes. Em 1959, fundou o Form Inform, considerado o primeiro escritório formal de design no país a desenvolver marcas e logotipos. Em1964, fundou, com Aluísio Bione, a Hobjeto, outra marca importante de mobiliário. Com vários funcionários egressos da Unilabor,

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a Hobjeto teve um início conturbado do ponto de vista financeiro, sobretudo por causa da instabilidade política do país. Com a abertura da primeira loja, em 1966 — no lugar onde hoje funciona o Shopping Geraldo de Barros

Iguatemi, em São Paulo — a empresa se estabilizou. A Hobjeto sempre

Buffet e sala de jantar

foi ligada aos lançamentos da Feira de Colônia, na Alemanha, servindo

Unilabor, 1954 Marcenaria em jacarandá

como vitrine de tendências para todo o mercado brasileiro, sobretudo

e ferragens em metal

em sua linha de peças para escritório.

Coleção

lenora de barros

Barros foi outro “Da Vinci construtivo”, um artista que atuou em todas as posições do time da arte. Se, ao longo dos anos 1950 e 60 a arte concreta vai nortear sua produção como design, na década de 1970 o caminho vai ser inverso: o artista começa a realizar obras geométricas valendo-se da fórmica — revestimento comum nos móveis — como suporte. Com o uso do material, a obra podia ser reproduzida em larga escala, barateando os custos e socializando a arte.

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O diálogo com as publicações A reforma gráfica no Jornal do Brasil começou em 1956, mesmo ano da segunda exposição do Grupo Frente, e foi levada a cabo no ano seguinte. Não parece ser por acaso que Amilcar de Castro, mentor do novo layout, tenha levado para as páginas do jornal boa parte dos princípios que adotava como escultor e desenhista como integrante de primeira hora do movimento neoconcreto. Amilcar chegou ao JB convidado pelo jornalista Jânio de Freitas e pelo poeta e artista ReynaIdo Jardim, que acreditavam que uma nova “cara” era essencial para mudar o coração do jornal. A reforma gráfica puxaria, assim, uma reformulação ampla de conteúdo e da mentalidade da redação — esta seria modernizada. Assim, a reforma tem um princípio que a norteia, não é apenas uma embalagem aleatória. Fundado em 1891, o JB chegou ao fim dos anos 1940 conhecido como o “Jornal das Cozinheiras”, já as páginas da publicação eram loteadas entre os vários tipos de classificados, especialmente ofertas de emprego. Este tipo de anúncio tomava conta, inclusive, da primeira página, sendo diagramado de forma confusa e aleatória. Em 1954, a Condessa Pereira Carneiro e seu genro, Manuel Francisco do Nascimento Brito, assumiram a direção do jornal. Grande amigo da Condessa, Reynaldo Jardim propôs a ela a criação de uma página feminina que tratasse regularmente de assuntos culturais no jornal. A esta altura, Jardim já havia ganho o status de homem de confiança

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Amilcar de Castro Projeto gráfico para o Jornal do Brasil, 1959 /1960


das empresas da família, já que vinha revolucionando a linguagem radiofônica à frente da programação, de altíssima qualidade, da Rádio Jornal do Brasil. Ganhou carta-branca da amiga e, na página feminina, que começou a ser publicada em junho de 1956, surgiu o embrião da reforma. Amilcar chegou em fevereiro do ano seguinte, depois de ter trabalhado como diagramador da revista Manchete. É importante assinalar esta primeira grande experiência do escultor como artista gráfico, já que foi na Manchete que ele ensaiou os princípios que nortearam o JB sob sua batuta. Durante o período em que esteve na editora Bloch, Amilcar adotou a diagramação da revista francesa Paris Match como paradigma, já que admirava as fotos “sangradas”, sem molduras, a paginação sem vinhetas, os espaços brancos que abriam “respiros” entre textos e fotos, valorizando-os como parte de um todo. No entanto, como conta Washington Dias Lessa em seu ensaio sobre a reforma do JB , Adolpho Bloch, dono da editora, abriu uma “guerra contra o branco”. Os espaços onde não havia nem textos nem fotos eram sistematicamente criticados, sob o argumento de que eram “dinheiro desperdiçado”. Depois de meses de críticas, Bloch acabou demitindo Amilcar e toda a equipe que encabeçara a tentativa de reforma da revista, que voltou a ter os excessos de fios e vinhetas de antes. No JB, Nascimento Brito ensaiou o mesmo tipo de argumento quando os espaços brancos começaram a aparecer. Mas a cumplicidade da Condessa com Jardim e Jânio de Freitas acabou prevalecendo.

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Apadrinhado pelo amigo e parceiro do movimento neoconcreto, Amilcar começou a fazer uma espécie de “operação limpeza” na diagramação para criar a identidade visual do jornal. Construiu os fundamentos para a eliminação de fios, vinhetas, retículas em cinza e outros elementos a partir de um elemento simples: a impressão do jornal era tenebrosa, muitas vezes manchando de tinta a mão do leitor, e por isso a diagramação precisava colaborar com quem ia ler, levando até ele a informação da maneira mais sintética possível. Fez isso de forma lenta e enfrentando uma guerra surda nas oficinas, já que os gráficos consideravam este tipo de firula (que tornava a impressão mais trabalhosa) uma prova de sua incompetência profissional. Outras medidas adotadas foram a compra de uma fonte tipográfica que passa a ser o padrão do jornal (Bodoni), dando unidade visual a todos os textos, e a adoção da lauda marcada para contagem de texto, o que permitia maior comunicação entre a diagramação e os redatores e repórteres, ou seja, entre forma e conteúdo. Washington Dias Lessa tem histórias curiosas sobre esses primeiros passos da reforma: 5 “Dois axiomas formulados por Amilcar sintetizam estes princípios: ‘Jornal é preto no branco’ e o famoso ‘Fio não se lê’ ambos referindo-se à essencialidade da informação gráfica. Seu terceiro axioma, igualmente consagrado pelos jornalistas da época, é o ‘Da esquerda para direita e de cima para baixo’ onde expressa o que chamava de ‘paginação vertical’, própria dos jornais de página grande e de formato vertical. Esta proposta se contrapunha a uma paginação sugerida pelo campo gráfico horizontal próprio das páginas duplas de revista, aprendida durante sua permanência na revista Manchete.” Logo depois da chegada de Amilcar, a página feminina se transformou no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB ), que seria o laboratório para a reforma. Olhado com muita desconfiança pelo editor-chefe do jornal, Odylo Costa, filho, o SDJB era editado da rádio por Jardim, com toda a liberdade. Em março de 1957, apenas um mês depois da contratação do mentor do projeto gráfico, o JB perdeu a moldura que envolvia todas as notícias nas páginas. Também começam a ser tirados os fios que sublinhavam os títulos e separavam as matérias umas das outras. Com a medida, Amilcar espelhava no jornal, um produto de circulação de massa, a “quebra da moldura” que estava sendo levada adiante pela maioria esmagadora dos integrantes do movimento neoconcreto. Foi exatamente nesta época que Hélio Oiticica, Lygia Pape, Lygia Clark, Willys de Castro e Hércules Barsotti começaram, cada qual a seu modo, a questionar os limites da pintura e da superfície. A economia de elementos e um rigor vinculado à criatividade também são semelhanças entre a reforma e a leitura que este grupo de

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5  L essa , Washington Dias. Amilcar de Castro e a reforma do Jornal do Brasil”. In: Dois estudos de comunicação visual. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.


Amilcar de Castro Projeto gráfico para o Jornal do Brasil, 1959 /1960

artistas radicado no Rio faz das vanguardas construtivas. Economia e abertura para o espectador por meio da sensibilidade sempre marcaram a obra de Amilcar como escultor. Com poucos gestos, precisos, o escultor modificava pesadíssima placas de ferro com o corte e a dobra. Cortando e dobrando as chapas, que mantinha sem pintura para que a ferrugem poeticamente passasse a indicar a ação do tempo sobre as obras, Amilcar criava aberturas e novos planos que permitiam que o espectador fizesse múltiplas leituras de uma mesma forma geométrica. Como artista gráfico, perseguiu o mesmo tipo de poética e de liberdade. A transformação no JB amadureceu entre 1959 e 1960, contagiando todo o jornal. Amilcar tinha ficado fora da redação entre meados de 1958 e 1959, demitido, junto com Ferreira Gullar, depois de um desentendimento com Odylo. Quando este último deixou o JB, Amilcar voltou, convidado por Jânio de Freitas e Wilson Figueiredo. Editor do caderno de esportes, Jânio criou outra frente para a mudança além do SDJB . As notícias sobre futebol e outras modalidades esportivas foram as primeiras a adotar o “estilo Manchete”, propondo fotos mais criativas e a interdependência entre fotos e massas de texto. São desta época algumas das páginas mais marcantes da história do jornalismo recente. A página dupla em que foi publicado o “Manifesto neoconcreto” é um destes exemplos. É interessante notar ela foi estruturada, seguindo os princípios que norteariam algumas das obras de artes mais notáveis do movimento. Os dois grupos de fotos formam um eixo diagonal simétrico, dando movimento à página; as colunas, cujo tamanho varia

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de maneira irregular, rompem com as séries exatas e lógicas propostas pelo concretismo paulista, perturbando o olhar e inventando um ritmo próprio; os espaços brancos não significam nada e nem são inúteis, configurando-se como o mesmo vazio “ativo” que seria visto nas esculturas do próprio Amilcar e de Franz Weissmann. Este vazio cheio de significados vai ser verificado em outras páginas, assim como uma modulação geométrica intercambiável, que permite maior liberdade de invenção em cada página. Liberdade formal e invenção foram outras duas palavras-chaves do neoconcretismo. Do mesmo modo como os artistas do período vinham fazendo em seus trabalhos, Amilcar levou para o JB um ritmo de colunas (1 – 2 – 1 – 3 – 1) que era assimétrico e acabou sendo adotado como referência para a primeira página. Além da assimetria no ritmo, ele também cultivou a geo­ metria “imperfeita” e “sensível”, tão cara aos neoconcretos, na criação de ‘medidas falsas’ para as colunas de texto. Surgem colunas duplas, colunas com 1/3 do tamanho da coluna normal, colunas diagramadas em “L”, “abraçando” a foto ou o título/subtítulo da página. Imagens e tipografias também passam a interromper as colunas, criando uma perturbação que na verdade acaba chamando a atenção do leitor. Aluisio Carvão complementa este módulo de

diá ­logo concreto

com suas capas de livros e as feitas para os Cadernos de Jornalismo do Jornal do Brasil. Dono de uma obra lírica e de cores ousadas para o movimento construtivo — usava marrom e tons pastéis sem qualquer cerimônia, fugindo da paleta de cores básicas — Carvão vai empregar

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os jogos óticos da Gestalt nos trabalhos para estes livros. Na capa de A escalada, por exemplo, impressiona o uso de uma variação de losangos da mesma cor como única imagem. É este conjunto de formas Aluisio Carvão Projeto gráfico para capas de livros, 1966/1976

geométricas que gera a idéia de ascensão sugerida pelo título. Nos Cadernos de Jornalismo, Carvão usou imagens que depois serviriam de base para algumas de suas telas, aplicando nelas jogos rítmicos propostos por Kandinsky nas suas aulas da Bauhaus e absorvidos pelos artistas construtivos brasileiros. Setas fazem a forma se expandir para fora de seu eixo ou para dentro dele (em movimentos centrípetos e centrífugos) e a variação de tamanho de uma mesma forma geométrica também brinca com os planos e dita ritmos. Assim como Ivan Serpa, professor de boa parte dos artistas neoconcretos nas aulas do Museu de Arte Moderna do Rio, Carvão ampliou a paleta das cores básicas e secundárias, se permitindo o uso de tons poucos comuns na época, como o marrom. Outra característica muito peculiar é o uso de linhas e formas imperfeitas, caso da que constitui o círculo e sua quase-tangente na capa do livro A opção brasileira, do crítico Mário Pedrosa. Ao insinuar uma letra “b” — de brasileira, de Brasil — instável, Carvão transmite visualmente mensagens sobre o título. A opção brasileira pode não ser tão reta, tão estável — e é talvez justamente isso que a torna tão singular.

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O diálogo com as embalagens A atuação de Lygia Pape no ramo da comunicação visual foi tão versátil quanto no das artes plásticas. Entre o final dos anos 1950 e os anos 1970, Lygia criou numerosos cartazes e letreiros para filmes do Cinema Novo, entre eles obras-primas como Vidas secas e Ganga Zumba. A partir de 1960, já com boa experiência como programadora visual, a artista assinou toda a identidade visual da fábrica de massas e biscoitos Piraquê — da logomarca: uma letra “P” formada a partir de uma linha vertical e uma esfera, envolvidas por uma esfera maior, aos caminhos de distribuição, incluindo dezenas de embalagens de biscoitos e massas. Além do desenho de embalagens que se tornaram clássicas, como as dos biscoitos Cream Crackers, Maria e Maisena, Lygia inventou um novo conceito para a embalagem, depois copiado por outras indús-

Lygia Pape

trias do Brasil e do exterior. Até então, os biscoitos eram guardados em

Logotipo Piraquê,

caixas ou latas padronizadas, fosse qual fosse o seu formato. A artista

década de 1960

desenvolveu, no entanto, um método próprio de cortar e colar o papel de embalo, de modo que ele passou a envolver os biscoitos sem gerar sobras dos lados, acima ou abaixo. Os biscoitos passaram a ser empilhados verticalmente e o papel plástico apenas se sobrepunha a esta pilha, criando a forma que as embalagens de Maria, Maisena e Cream Crackers têm até hoje, ou seja, a de sólidos espaciais (cilindros, nos dois primeiros casos, e paralelepípedo, no segundo). Pouco antes, em 1958, Lygia criou, em parceria com Reynaldo Jardim, o Balé neoconcreto, executado a partir do momento em que bailarinos, cobertos por sólidos espaciais, faziam com que estes se mexessem no espaço. Anos mais tarde, a artista enxergava, nos dois trabalhos, herança de seu interesse pela escultura: “Aquele era um momento em que experimentávamos muito em todas as áreas. Eu, particularmente, nunca gostei de ficar restrita a um suporte. Gostava de fazer com que eles conversassem e acabei levando a escultura para o trabalho como programadora visual. Sempre me diverti muito fazendo as embalagens para a Piraquê. Adorava ir à gráfica, me despencava para Madureira para ver como estavam as provas de impressão. O formato das embalagens, que hoje aparece em qualquer biscoito, foi uma inovação para a época. Depois, outras indústrias, como a Aymoré e a Tostines, acabaram copiando a Piraquê. Os desenhos todos coerentes, que hoje foram muito deturpados, também foram uma novidade na época. Aquele vermelho aparecia para valer nas gôndolas do supermercado. Dava para achar os produtos de longe.”

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6  Em depoimento à autora em 23 de fevereiro de 2003.


O uso do vermelho como cor dominante nas principais embalagens de biscoito (têm esta cor, além das três já citadas, o Queijinho e o Goiabinha, outros dois carros-chefes da Piraquê) atendia a princípios industriais (uma cor básica não gera tantos problemas de impressão), de persuasão (não é por acaso que outras marcas famosas, como a Coca-Cola e a Colgate, usam o vermelho, que se comunica imediatamente com o consumidor), mas também estéticos. Ao escolher uma cor primária, Lygia se aproximava, como outros artistas que trabalharam como comunicadores visuais, dos princípios construtivos, assim como da cor mais utilizada pela vanguarda russa em seus cartazes. Além disso, a artista vinculava a Piraquê a uma das cores da bandeira italiana, conceito que era muito importante para uma empresa que pretendia vender a imagem de uma especialista no ramo das massas. Não por acaso, os caminhões da fábrica foram projetados também em vermelho, cortados por uma faixa horizontal verde e com o nome Piraquê e a logomarca impressos em branco. As embalagens das massas com ovos também usam muito estas três cores, pelo mesmo motivo. O curioso é que os biscoitos Piraquê eram praticamente concebidos, do início ao fim, no seio da família de Lygia — nos anos 1960 e 70, mesmo período em que ela vai criar as embalagens, seu ex-marido e pai de suas duas filhas era o químico da fábrica, levando para casa os pós com aromatizantes e corantes que garantiam o paladar e o cheiro dos vários biscoitos. Ao conceber a identidade visual dos biscoitos, Lygia promoveu algumas revoluções. Além da forma criativa e econômica de empa­ cotar, foi pioneira no uso de fotos dos próprios biscoitos para divulgar

Lygia Pape Embalagem do biscoito Queijo, década de 1960

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o conteúdo das embalagens. É por meio da exploração das várias possibilidades destas imagens que a artista aproximou este projeto como designer dos princípios construtivos brasileiros. Embora o trabalho na Piraquê tenha acontecido nos anos 1960 e 70, depois do auge do neoconcretismo, a herança dos princípios do movimento é evidente nas várias peças. Nas três possibilidades de embalagem para o Cream Cracker, por exemplo, é possível perceber isso com clareza. Fotografado e recortado em seus contornos perfeitos, o biscoito deixa de ser apenas biscoito para se transformar num quadrado, que, apoiado num dos seus vértices, acaba virando um losango. A partir daí, Lygia trabalhou com a imagem como se estivesse mesmo manipulando figuras geométricas, sobrepondo-as umas às outras e criando uma série cheia de ritmo, que contorna o sólido espacial formado pela embalagem cheia. No caso da versão integral do biscoito, a imagem de uma espiga de trigo é alternada com o nome do produto, formando um fundo de diagonais para o “balé” de quadriláteros e comunicando imediatamente que a diferença daquele Cream Cracker para os outros vem do trigo. A palavra ‘integral’, impressa sobre o biscoito, reforça a mensagem. No Maria, o processo é bastante parecido, embora a embalagem de seis unidades mereça um comentário à parte. Até meados dos anos 1970, esta versão portátil dos biscoitos mais famosos da fábrica era amplamente utilizada em hotéis e aviões, sendo também adquirida no varejo, pois tinha o tamanho ideal para o acondicionamento nas merendeiras infantis. Hoje, alguns hospitais e cozinhas industriais continuam adotando esta porção, mas em quantidade bem menor que no passado. No caso do Maria, Lygia usou a mesma técnica de sobreposição do Cream Cracker, mas, em vez de gerar uma linha vertical que contorna a embalagem, criou diagonais que atravessam o papel, ampliando ainda mais a noção de dinamismo, de movimento. Com o papel esticado, esta movimentação das diagonais fica claríssima. De longe, a sobreposição das esferas gera uma diagonal, na qual os relevos criam uma espécie de “ruído”. Esta diagonal “tumultuada”, “imperfeita”, se alterna com a vermelha, fluida, homogênea. É interessante notar a diferença entre este trabalho e os realizados por

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Lygia Pape Embalagem do biscoito Cream crackers, década de 1960 Embalagem do biscoito Água e Sal, década de 1960

Antonio Maluf. Enquanto na maioria dos cartazes do artista paulista a geometria é apenas um exercício ótico aplicado quase cientificamente, na obra de Lygia a geometria tem um apelo sedutor, além de incorporar imperfeições e dados inusitados, embora a artista também tenha usado a matemática e se beneficiado do ritmo gerado pela alternância seriada de elementos. No Goiabinha, a série gerada pela fotografia dos biscoitos se toma mais complexa. Além da alternância com as faixas de cor (o vermelho das laterais se alternando com a faixa branca onde se encontram os biscoitos), Lygia criou uma alternância interna nesta área de foto, gerando uma seqüência a partir de quatro biscoitos deitados/empilhados, deixando o recheio de geléia à mostra e um ‘em pé’, e uma quarta unidade, fotografada em sua aparência frontal. Assim, temos o ritmo 1 – 2 – 1 na leitura horizontal da embalagem, ou seja, vermelho-faixa de biscoitovermelho, e outro ritmo (4 por 1 — quatro biscoitos deitados para cada biscoito em pé) que corta o eixo vertical. Também há uma interessante irregularidade causada pela diferença de duração entre estes dois ritmos, já que, pelo formato da embalagem, o eixo horizontal é finito (só há duas faixas vermelhas laterais e uma faixa de biscoitos) e o vertical gera a ilusão de uma sucessão ad infinitum, dando a impressão que poderia contornar a embalagem ou continuar para além de seus limites. Além disso, há uma importância enorme para a venda do produto que o biscoito apareça deitado, já que esta é a única forma de se revelar ao consumidor a geléia do recheio. Na embalagem do Água e Sal também há um tipo de “dança” — ao tirar um, dois ou três biscoitos de uma linha perfeita, mexendo ligeiramente em seu eixo, Lygia cria uma perturbação ótica parecida com a dos Metaesquemas de Hélio Oiticica.

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Na embalagem do Queijinho ou “Bolinha”, a série é aparentemente desfeita e os biscoitos, arredondados, formam uma espécie de cosmos sobre o fundo vermelho, numa aparente desarrumação que no fundo guarda uma ordem interna. Uma ligeira sombra no biscoito, projetada sobre o vermelho, faz com que este fundo deixe de ser fundo para ganhar profundidade, revelando também o volume de cada bolinha, na verdade uma forma ovóide. Por ser um biscoito aperitivo, o Bolinha não foi criado numa embalagem do tipo “sólido espacial”, sendo acondicionado em sacos, assim como o Presuntinho e o Salgadinho. Este último tem uma das mais belas embalagens criadas por Lygia, que preencheu toda a superfície do saco com a alternância dos quadrados formados pela foto do biscoito e quadrados do mesmo tamanho cheios de vazio, espaços em branco ativos (como nos trabalhos de Willys e Amilcar de Castro, analisados antes), que contribuem para gerar uma ilusão ótica que projeta os biscoitos para fora do plano, ou seja, para a frente da embalagem, aproximando sua imagem do espectador/consumidor. No Presuntinho, outro clássico da marca, Lygia retomou a idéia de deixar claro o material constitutivo da “obra”, ou seja, do biscoito. Primeiramente, a embalagem era constituída por diagonais formadas pela repetição da fotografia de um presunto, com direito a osso e tudo. Mais tarde, cada biscoitinho passou a ser alternado com o presunto. Nada bonita, a imagem da carne funciona como informação, mas também gera algum estranhamento, tangenciando certo humor negro visto em obras da artista como Caixa de baratas, de 1967. Este jogo entre biscoito e ingrediente também vai aparecer nos biscoitos de Leite e Leite Maltado, que eram embalados como sólidos espaciais e alternavam a fotografia de cada unidade de biscoito (o primeiro, retangular com arabescos nas bordas, o outro redondo) com a figura de uma vaca.

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Lygia Pape Embalagem do biscoito Wafer laranja, década de 1960 Embalagem do biscoito Presuntinho, década de 1960

7  Em depoimento à autora em 23 de fevereiro de 2003.

No Cream Sandwich (o nome antigo do hoje popular biscoito recheado) de abacaxi, morango, laranja e chocolate, vigora a idéia inicial do Presuntinho, ou seja, o biscoito não aparece, apenas a fruta, nos dois primeiros casos, ou a barra de chocolate. Abacaxis e morangos sobrepostos geram a mesma linha com “ruído” já observada na embalagem do Maria. São, respectivamente, horizontais e verticais que, em vez de sugerir uma única direção de fluxo, como a “perfeição” da linha reta faria, abrem a linha para variados movimentos. No caso do chocolate, Lygia construiu colunas feitas de diagonais, ou seja, as barras de chocolate. Estas barras se alternam com o espaço vazio entre elas de uma coluna para a outra, gerando um curioso jogo de cheio-vazio muito semelhante ao efeito atingido por Willys de Castro na esfera entrecortada por linhas horizontais da propaganda para a Laca Industrial. Na versão portátil dos Wafers de morango e chocolate, com seis unidades cada, o jogo recebe um elemento a mais. Além da fruta, no primeiro caso, e da barra de chocolate, no segundo, as embalagens ganham, respectivamente, as imagens de um papagaio e uma arara. E aí é preciso levar em conta a memória afetiva da artista para tentar entender suas intenções. Criada por um pai apaixonado por aves, Lygia chegou a ter uma seriema de estimação quando menina. “Ao usar a imagem de pássaros, quis criar um bicho de estimação para as crianças neste tipo de embalagem, já que elas eram menores que as tradicionais e geralmente eram levadas como lanche para o recreio escolar”, 7 lembraria mais tarde. Ela usou o próprio papagaio de estimação na embalagem do Wafers morango. Mesmo sem esta explicação, é no mínimo curioso o jogo de cores entre o morango vermelho e o verde do papagaio, além de, mais uma vez, a reunião destes dois elementos no mesmo arranjo sugerir estranheza e um jogo lúdico, outra marca registrada do trabalho de Lygia como artista, como atestam Roda dos sabores e Ovo, ambos de 1968. Nos anos 1970, Lygia também vai criar em papel milimetrado várias colagens e desenhos em parceria com Antonio Manuel. Nelas, os artistas utilizavam aves tropicais e outros elementos evocativos de certa brasilidade, o que pode ter levado Lygia a usar os animais também no projeto gráfico. Outra questão interessante nestas embalagens é a alternância entre uma linha “cheia”, uniforme, formada pelas aves lado

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a lado, alternando, sempre em paralelo, com uma linha “interrompida”, formada pela alternância de dois elementos distintos (o biscoito e seu ingrediente). Assim como acontecia na reforma gráfica do JB, a assimetria gera uma geometria imprecisa e aberta ao olhar de quem vê, própria dos neoconcretos. Esta alternância também vai ser clara no biscoito Drink. Mais uma vez tirando partido do ritmo das diagonais, o projeto concilia as cores italianas da marca com a projeção de formas geométricas a partir da imagem redonda do próprio biscoito e de ingredientes postos sobre ele, como num canapé, revelando assim sua função. Mais complexo, o jogo rítmico aqui alterna uma linha em cor (vermelho), uma linha “cheia” (biscoitos puros, sem ingredientes), uma linha na outra cor (verde) e uma linha “heterogênea”. Foi neste quarto elemento que Lygia aprimorou as alusões geométricas, transformando um pedaço de queijo minas em quadrilátero sobre a esfera (biscoito), uma fatia de ovo cozido em duas esferas concêntricas que se sobrepõem à mesma esfera e algo que lembra um queijo amarelo entrecortado por um frio (presunto, talvez), numa esfera cortada por uma transversal, que também se sobrepõe à esfera original. A exuberância do projeto para a Piraquê confirma Lygia Pape como uma das artistas mais originais — e mais completas — do período.

Lygia Pape Embalagem do biscoito Wafer morango, década de 1960 Embalagem do biscoito Wafer chocolate, década de 1960 Coleção

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eduardo foresti


Alexandre Wollner Embalagens das Sardinhas Coqueiro, 1958

Outro grande idealizador de logomarcas e embalagens, Alexandre Wollner aplicou princípios construtivos na identidade visual das Sardinhas Coqueiro, em 1958. A logomarca apresenta as folhas do coqueiro feitas a partir de uma seqüência de círculos seccionados. Na lata, o próprio peixe e feito a partir de um triângulo e de um quadrilátero — um losango alongado — que se encontram pelos vértices. O projeto resistiu ao tempo até que, em 2000, a Quaker do Brasil, atual proprietária da marca, adulterou o projeto sem consultar o designer. O coqueiro em forma de ícone foi substituído por uma ilustração, diminuindo assim a rapidez de memorização da marca que o ícone garantia. Com a ilustração e a adição de fios e outros elementos que perturbam a absorção de informação, ficou mais difícil gravar na memória a marca da Coqueiro. Prova de que o projeto inicial do artista, a despeito de ser mais belo do que o que está em vigor hoje, era também muito mais eficiente.

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Brasileiros em Ulm: vanguarda e ruptura

Felipe Scovino

A partir da segunda metade da década de 1940, o Brasil crescia e pedia novas iniciativas de caráter modernizador. O projeto construtivo em arte no Brasil ia de par com projetos semelhantes no campo econômico, político e social — a implantação da indústria siderúrgica, a exploração do petróleo, o Plano de Metas de Kubitschek, a importação de bens duráveis e o plano-piloto de Brasília. Em 1948, são inaugurados os Mu1 Vale ressaltar que não são

seus de Arte Moderna de São Paulo e Rio de Janeiro.1 Almir Mavignier

apenas nessas duas cidades

entra em contato com a dra. Nise da Silveira e testemunha que internos

que serão criados museus para

do Hospital Psiquiátrico D. Pedro II realizam trabalhos abstrato-geomé-

abrigar uma produção de arte

tricos de rara criatividade:

moderna, mas também em Florianópolis, Santa Catarina (1949) e Resende, no Rio de

“Arhur [Amora, um dos internos] descobriu uma caixa de domi-

Janeiro (1950), o que poderia

nós e copiou-os inteiramente. Depois começou a simplificá-los,

configurar uma verdadeira rede de museus dirigidos para esta

abandonando os pontos, encobrindo as faixas brancas e pretas,

produção. Também não deve

rompendo os ângulos, encontrando curvas e criando estruturas

ser esquecida a importância do

de forte contraste ótico. Tratava-se de um geometrismo livre de

Museu de Arte de São Paulo na

influências estrangeiras.” 2

vida desta cidade no período. 2 Mavignier apud Aracy Amaral, in Arte construtiva no Brasil:

O Brasil buscava o novo. Não se permitia mais a defasagem quanto ao que acontecia no mundo. Não estamos falando apenas das artes

coleção Adolpho Leirner. São

visuais, mas de um plano modernizador que abrangia todas as áreas de

Paulo: Lloyds Bank, 1998, p. 57.

conhecimento que colocasse definitivamente o Brasil como potência

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latino-americana. Não era mais o discurso das ilhas modernistas 3 e a sua procura por uma identidade nacional arraigada a um misto entre o folclore nacional, as raízes negras e a linguagem abstrata de um cubismo pueril, tudo isso articulado por uma burguesia que se beneficiava do caráter estatal que regia o incipiente circuito de arte nacional. O Brasil queria mais. Não poderíamos continuar pintando paisagens com leves retoques fauvistas enquanto a história da arte já havia testemunhado Duchamp, Picabia e Man Ray. Portanto, o Brasil se mostrava como um receptáculo ao novo. Em 1948, por ocasião de visita de Alexander Calder ao Brasil — que expõe no Rio de Janeiro e em São Paulo, em seus respectivos Museus de Arte Moderna —, Mário Pedrosa realiza uma conferência sobre o artista. No ano seguinte, defenderia a tese Da natureza afetiva da forma na obra de arte, na Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro. Acaba por se tornar o personagem irradiador e estimulador das inovações estéticas que emergiam no campo das artes visuais brasileiras. Por sua vez, a retrospectiva de Max Bill em 1950 no Masp alteraria vocações, e impulsionaria a ida de jovens artistas para a Alemanha — como Mary Vieira, Almir Mavignier, Geraldo de Barros (que nesse ano havia feito a exposição Fotoformas no Masp), e Alexandre Wollner —, imprimindo novos rumos à arte brasileira contemporânea. A I Bienal de São Paulo em 1951 também acelera o processo de in-

3 Paulo Sérgio Duarte comenta que

tercâmbio de artistas e do público brasileiros com a produção interna-

o modernismo no Brasil nunca

cional. Lygia Clark nesse período estava em Paris estudando com Fer-

existiu enquanto projeto coletivo,

nand Léger, e Abraham Palatnik se encontrava em Israel, aprendendo ofícios que colocavam arte e física lado a lado. Portanto, as vanguar-

mas como ilhas: “ilha Tarsila do Amaral, ilha Di Cavalcanti, ilha Guignard, ilha Malfatti”. Eram

das internacionais, para alguns artistas, já eram uma realidade. Aliás,

agrupamentos individuais que

foi nessa Bienal que nossos artistas tomaram contato com uma obra

não estabeleciam conexões

que marcaria profundamente a trajetória das artes visuais no Brasil —

estéticas entre si. Cada artista possuía seu próprio modelo de

uma estrutura de aço inoxidável, que não possuía massa, na qual o ar

construção simbólico, isolando-se

era o seu volume... e o mais impressionante: não se podia distinguir o

uns dos outros. Diferentemente

de dentro e o de fora das linhas que demarcavam o seu campo visual

do posterior movimento neo­ con­creto (definido por Duarte

— por meio de uma única estrutura em forma de cinta de Moebius,

como um segundo estágio da

suas linhas eram perfeitamente desenvolvidas para criar uma espécie

modernidade no Brasil), os ditos

de ilusão ótica, em que era posta em dúvida a razão sobre algo tão determinante quanto o caminho de uma linha. Nossos artistas esta-

‘modernistas’ brasileiros não possuíam qualquer planejamento, manifesto ou invocação para o

vam diante de Unidade tripartida (1948/49) de Max Bill, a escultura ga-

coletivo (Cf. Aula concedida em

nhadora do prêmio nessa primeira bienal nacional. Almir Mavignier,

10 de abril de 2007 no auditório

Geraldo de Barros e Alexandre Wollner em pouco tempo estariam

da Universidade Candido Mendes, campus Ipanema durante o curso

assistindo aulas com Max Bill, partindo para encontrá-lo na Europa.

Arte e Cultura no Brasil: anos

A ânsia desses jovens artistas por descobrir e estudar os segredos da

críticos, 1958–1972, ministrado

linha era tanta que o lugar deles naquele momento não poderia ser o Brasil, mas Ulm, na Alemanha.

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pelo próprio, pelo autor e pelo pesquisador Frederico Coelho, Rio de Janeiro).


Mavignier, juntamente com Palatnik (já de volta ao Brasil em 1948) e Serpa, formam o primeiro núcleo de artistas abstratos do Rio de Janeiro, todos reunidos em volta dos internos da dra. Nise da Silveira e da teoria de Pedrosa. Mavignier, antes de chegar à Alemanha, estabeleceu-se em Paris, em 1952, e encontrou Mary Vieira (que morava na Suíça há um ano) e Romero Brest (crítico argentino radicado na Europa) e trava o primeiro contato pessoal com Max Bill. Em 1953, muda-se em definitivo para a Alemanha, cursando, até 1958, comunicação visual na Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), em Ulm. Geraldo de Barros, que obtém significativa atenção do meio de artes visuais depois de sua exposição Fotoformas, freqüenta Ulm em 1951, onde iniciou seu aprendizado nas artes gráficas com Otl Aicher e Bill, permanecendo na escola por cerca de um ano. É interessante observarmos que este grupo de artistas brasileiros que estudou em Ulm já desenvolvia um trabalho de tendência construtiva no Brasil. Mary Vieira — que ingressou na escola de Ulm, em 1953, e tornou-se aluna de Joseph Albers — realizara seus primeiros Polivolumes em 1948. Essa série de obras consiste em torres vazadas, feitas em alumínio anodizado, formadas por semicírculos móveis em que o espectador (agora transformado em participador) pode manipular os círculos e escolher suas posições. Estas estruturas são móveis apenas no sentido horizontal. Geraldo de Barros, pioneiro na fotografia experimental brasileira (ao lado de José Oiticica Filho e Athos Bulcão), desenvolvia suas primeiras operações artísticas lidando com a ilusão do plano: por meio de uma economia de linguagem e do uso de cores contrastantes, ele estudava as relações entre figura e fundo, passando a alternar suas posições no quadro, e fornecendo ritmo a uma estrutura plástica. Assim como Mavignier, Waldemar Cordeiro, Antonio Maluf, Willys de Castro, Luiz Sacilotto e Maurício Nogueira Lima, Barros também adotou os ritmos da op art, e foi um dos primeiros a chegar até os limites dessa experiência com o jogo ótico do enquadramento da figura, e a transferir ao espectador a possibilidade de dialogar com a obra. Mavignier e Barros, já no começo da década de 1950, foram pesquisadores do plano, estavam completamente imersos nas operações do tempo e ritmo da figura. Vale observar que os chamados artistas concretos não eram os “objetivos e matemáticos”, e os neoconcretos, os “sensíveis e subjetivos”. Existiam diferenças conceituais entre esses dois movimentos, mas as pesquisas desenvolvidas por Barros e Wollner, por exemplo, estão muito próximas da ‘geometria sensível’, termo adotado pela crítica que estabelecia essa qualidade ou diferencial dos neoconcretos em relação aos seus pares paulistas — a participação ou a transferência de um diálogo entre a obra e o espectador estavam presentes nos dois movimentos.

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A pesquisa envolvendo matemática, Gestalt, arte concreta, abstração e participação continua em curso quando os artistas visuais brasileiros aportam em Ulm. Num ambiente em que a ideologia da Bauhaus era predominante, os brasileiros desenvolvem uma produção harmoniosa entre a subjetividade e os conceitos (nem tão) racionais do construtivismo. Alexandre Wollner seguiu para Ulm apenas em 1954, período em que Geraldo de Barros já havia retornado de lá e organizado as bases para o grupo concreto em São Paulo. Em 1952, Barros publica o Manifesto Ruptura, ao lado de Lothar Charoux, Waldemar Cordeiro, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luiz Sacilotto e Anatol Wladyslaw, no qual a palavra “novo” se faz presente: “É o novo: as expressões artísticas baseadas nos novos princípios artísticos; todas as experiências que tendem à renovação dos valores essenciais da arte visual (espaço-tempo, mo4 vimento, e matéria).” Wollner, apesar de não ter assinado o manifes-

to, freqüenta esse ambiente de discussões e prática artística. Em 1954, assinou junto com Barros o cartaz para o Festival Internacional de Cinema do Brasil, dando início à sua produção como cartazista e de-

Manifesto Ruptura, 1952

signer visual. A circulação dessa nova linguagem se torna atuante nos meios de comunicação de massa, assim como era o desejo de Ulm. Convém lembrar, entretanto, dois fatos: o cartaz se insere no meio das artes visuais em 1951, com o trabalho para a I Bienal de São Paulo, realizado por Antonio Maluf. Os elementos inseridos nesse cartaz são integrados ao seu formato e o movimento resultante das linhas paralelas permite uma vibração ótica em que a posição da figura e do fundo se alterna sem cessar. Outro ponto é que enquanto os brasileiros em Ulm estudavam e se aprimoravam nos conceitos do construtivismo e da inserção da arte na prática da vida, no Brasil, também estava presente a disseminação de uma pesquisa envolvendo arte concreta e princípios bem semelhantes à dos alemães. O Masp implementa em 1951 o Instituto de Arte Contemporânea (IAC), o primeiro curso de desenho industrial da América Latina, formado nos moldes da Escola de Chicago (onde lecionavam artistas como Moholy-Nagy, Josef Albers e Walter Peterhans, imigrantes da Bauhaus que desembarcaram nos Estados Unidos após o fechamento da escola, em 1932). Wollner, estudante do IAC (assim como Antonio Maluf), teve a oportunidade de participar desta porta de entrada das informações de todos os movimentos culturais, acontecidos e que estavam acontecendo na Europa.

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4 C ordeiro , Waldemar et al. Manifesto Ruptura”. In: A maral , Aracy A. (org.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950–1962. Rio de Janeiro/São Paulo: MAM-RJ / Pinacoteca do Estado, 1977, p. 69.


Assim, o Brasil diminuía sua defasagem em relação ao espaço moderno que se constituía ao redor do mundo. Pode-se destacar, como componentes de um grande painel para a recepção, discussão e disseminação da abstração e do construtivismo no Brasil, o ambiente do Atelier Abstração, sob a coordenação de Samson Flexor, nos primeiros anos da década de 1950; os painéis geométricos de Cícero Dias, para a Secretaria de Finanças do Recife (1948); o (des)equilíbrio geométrico de Volpi; e a reunião do Grupo Frente (1954-55). Mário Pedrosa, apresentando a II Mostra Coletiva do Grupo Frente, realizada no MAM-RJ, define seus integrantes como “homens e mulheres de fé, convencidos 5

da missão revolucionária, da missão regeneradora da arte”.

O aprendizado em Ulm Escola com informação política, áreas de comunicação visual, design e arquite­tura, a Hochschule für Gestaltung retomava a herança deixada pela Bauhaus. Entre seus professores estavam Max Bill, que realizou o projeto arquitetônico do prédio da escola, Max Bense e Albers. Mavignier consegue inscrever-se em novembro de 1953, graças, ao apoio de Mary Vieira junto a Bill. Matricula-se no setor de Comunicação Visual (o mesmo que Wollner freqüentará anos mais tarde). Sob a direção de Nonné-Schmidt, ele realiza aquarelas em que desenvolve exercícios cromáticos com uma estrutura geométrica de extrema habilidade e leveza. As lições de Paul Klee (sobre o encontro de duas linhas que formam um ponto de energia) e Albers, a quem era extremamente próximo como aluno, a partir do quadrado, passam a ser inspiradores de seu trabalho. Em seus estudos em Ulm, o artista utiliza esmalte sobre aglomerado de madeira, evitando, assim, segundo os princípios seguidos igualmente pelos concretos paulistas, a tela e os processos artesanais, e optando por suporte industrializado e tinta passível de aplicação com pistola. Interessava o que a pintura poderia dar ao espectador além da estrutura primária, do que percebemos concretamente. “ Concretizando essa idéia em pintura, interpretei as linhas como 5 P edrosa , Mário. “Segunda mostra coletiva do Grupo Frente”. In: C occhiarale , Fernando; G eiger , Anna Bella. Abstracionismo geométrico e informal: a vanguarda brasileira nos anos 50. Rio de Janeiro: Funarte, 1987, p. 231.

uma sucessão de pontos, surgindo assim o primeiro quadro com pontos, distribuídos como elementos a fim de concentrar a cor, foram colocados livremente sobre a superfície, ordenando-se mais tarde gradativamente em tramas. A necessidade de reagir a uma pintura geométrica sem recorrer facilmente ao informal, e sim utilizando os próprios meios geométricos, levou-me a deformar estrutural e visualmente, círculos, quadrados, retângulos etc., através de

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progressões de pontos. Tornava-se necessária uma nova interpretação do informal através do formal, do impreciso através do preciso, do ilimitado através do limitado. A superfície foi dominada progressivamente por estruturas de pontos coloridos, cuja plasticidade revelou uma nova situação de mistura ótica de luz e cor, constantemente mutável, vibrando o quadro até na penumbra. A fim de perceber o conteúdo formal dessas estruturas, o qual se realiza pela sua nitidez, exige-se do observador que procure a necessária distância em relação a cada quadro (...) o fato puramente ótico deverá, porém, ser transformado pela invenção da fantasia até alcançar pelo fascínio uma dimensão espiritual.6 Em 1957, Mavignier começou sua produção de cartazes, quando legitima: “arte é design. Pintura e cartaz são objetos: a pintura fascina e o cartaz informa. A fronteira entre os dois é instável porque ambos podem fascinar. A fim de reconhecê-la fui estudar em Ulm [onde] aprendi que a fronteira não existe”. Esta aproximação entre o cartaz e a linguagem construtiva se evidencia no pôster Brasília –  Burle Marx, de 1958. A produção das artes visuais não está apenas no suporte da escultura, gravura ou pintura, mas busca se propagar, deseja ter o seu espaço na rua, como meio de comunicação e manifestação. Da mesma forma que Mavignier utilizou os princípios óticos que observamos em suas telas e os transfere para os cartazes, Mary Vieira em ‘DC7C Panair’ opera no limite entre figuração e construtivismo. Na divisão entre o verde (da terra, do chão) e o azul (do céu), um círculo delimita o espaço aludindo tanto à visão da janela de um avião quanto ao corte de sua fuselagem. Nesses dois artistas notamos o tema do quadrado, herança de Albers, sob numerosas formas: nas pinturas, no cartazismo, no design de seus catálogos. Porém, pouco a pouco, o quadrado estático e austero de Albers transforma-se num balé de cores e formas, desconstruindo uma noção objetiva da matéria e se nutrindo da intimidade com a cor: e é justamente nestas justaposições e sobreposições cromáticas, num balanço próprio do ritmo de cores e formas que os brasileiros de Ulm promovem um desconcerto, uma ruptura com os dogmas do construtivismo da Hochschule für Gestaltung. O projeto de Ulm retomava os princípios da Bauhaus, que incluíam a criação de métodos didáticos de transmissão da arte e que possuía, definitivamente, uma práxis de integração social da arte. Ulm desejava a utilização racional dos amplos recursos industriais modernos para

6

a disseminação da arte na vida, ingressando na tarefa de organizar

M avignier , Almir. Exposição

o meio ambiente. As premissas de integração do trabalho de arte na produção industrial e o desejo funcionalista de participação do artista

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Almir Mavignier: pintura, “permutações” e cartazes. Rio de Janeiro: MAM, 1963, s/p.


Almir Mavignier Cartaz para exposição do artista em Frankfurt, Alemanha, 1962 Cartaz Brasília–Burle Marx, 1958

Mary Vieira Cartaz para a Panair do Brasil, anos 1950

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na prática de construção do novo ambiente (observado também em 7 Mondrian e no grupo reunido em torno da revista De Stijl )  ainda eram

o objetivo principal das propostas construtivas de Ulm, na sua função positiva de articular a arte no espaço social. Foi o design que tornou possível fazer uma análise das ideologias construtivas e sua cumplicidade com a sociedade na qual pretendia operar transformações. A produção de cartazes, móveis e objetos em Ulm instalou o modo mecânico de estabelecer vínculos entre a produção de arte e o meio social, porém essa atividade sofreu pressões estruturais que resultaram em questionamentos sobre seu meio de circulação. Como observa Ronaldo Brito, “com o desenvolvimento do capitalismo, na segunda metade do século [xx], as pressões estruturais levaram ao surgimento de uma fissura dentro das tendências construtivas descaracterizando 8

completamente algumas de suas propostas mais conseqüentes.”

A herança de Ulm no projeto construtivo brasileiro Essa herança da teoria construtivista e da prática cotidiana é absorvida integralmente pelos brasileiros que estudaram em Ulm. Alexandre Wollner, logo depois de retornar ao Brasil, realiza a programação visual das latinhas das sardinhas Coqueiro, em 1958. O sinal da marca Coqueiro consegue transmitir com poucos elementos uma relação de profundidade e ilusão ótica quando Wollner explora sutilmente os semicírculos da folhagem da árvore. Já o cartaz para as mesmas sardinhas não significa apenas função, disseminação de informação sobre um produto, mas espaço de experimentação com uma economia de linguagem que, de forma alguma, simplifica o jogo entre palavra, formato do cartaz, cor e diagramação. O cartaz incorpora o novo espaço e a função da palavra — que era discutido pela poesia concreta —, conjuga a forma e a divisão de idéias da prática presente na Bauhaus e promove uma profusão de cores (e sabores) criando um dispositivo que podemos identificar como sendo a sua assinatura “brasileira” para esse corpo construtivista. Não existe exemplo mais prático de como o conjunto de idéias do construtivismo atingiram a nossa vida como esse trabalho de programação visual de Wollner. Nesse mesmo ano, o artista realiza a programação visual para o logotipo da empresa Atlas Elevadores. Condizente com os seus pares concretos nas artes plásticas, neste logotipo não há excesso de informação, mas precisão geométrica: a eficácia estrutural do “A” promove a sensação de movimento e dinâmica que o produto solicita, ao mesmo tempo que dialoga com uma figura

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7 Em “Realidade natural e realidade abstrata”, de 1919, Mondrian atesta que “o artista verdadeiramente moderno é cônscio da abstração numa emoção de beleza: é cônscio do fato de que a emoção de beleza é cósmica, universal (...) Esta nova idéia plástica ignorará as particularidades da aparência, ou seja, forma e cor naturais. Pelo contrário, deveria encontrar sua expressão na abstração de forma e cor, isto é, na linha reta e na cor primária claramente definida.” In: M ondrian , Piet. De Stijl, apud A maral , Aracy A. (org.). Projeto construtivo brasileiro na arte: 1950 –1962, p. 40. 8 B rito , Ronaldo. Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 21.


geométrica (triângulo), repetidamente utilizada pelos concretos paulistas para transmitir um ritmo alucinante às suas obras bidimensioAlexandre Wollner Cartaz para publicidade das Sardinhas Coqueiro, 1958

nais. Wollner ainda faria o design de produtos para uma indústria de perfumes e, junto com Karl Heinz Bergmiller, desenvolveria uma linha completa de produtos para a Equipesca. A disseminação do aprendizado em Ulm também se faz nos móveis e projetos para produtos domésticos. Geraldo de Barros reuniu o grupo concreto à sua volta e constrói em poucos anos (logo após o seu retorno de Ulm, por volta de 1952) uma trajetória artística que reúne quadros, cartazes, fotografias, outdoors, móveis e projetos. Talvez tenha sido o “brasileiro de Ulm” a levar mais a sério o projeto da escola alemã. Funda em 1954 a cooperativa Unilabor, dedicada à produção de móveis, com uma clara tentativa de popularizar esse “novo”, transformado num móvel com linhas retas, claras e objetivas do construtivismo, aliado ao método da produção em série, herança da Bauhaus. Os móveis desejavam ocupar o mesmo patamar dedicado à arquitetura. Eram projetos que reuniam ofícios do design, programação visual, escultura e arquitetura: o “objeto total”, um campo de manifestação para as práticas construtivistas, o alargamento de suas idéias e o seu

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contato com a rua. Barros ainda fundaria a Forminform, em 1957, na qual cria marcas e logotipos ao lado de Rubem Martins, Walter Macedo e Alexandre Wollner, e a Hobjeto Móveis, em 1964. expandir sua produção valendo-se dos mais distintos suportes de ex-

Geraldo de Barros Composição, 1955 Esmalte sobre aglomerado 60 × 60,5 cm

pressão, e como essas obras podem ser encaixadas ou interligadas.

Coleção

Note-se a preocupação do artista, com raízes na arte concreta, de

No quadro Composição, de 1955, Barros explorou a relação entre sinuo­ sidade e linhas retas, numa composição que rende harmonia para essas formas e aponta um diálogo com os seus móveis. A escolha de cores escuras também reflete essa composição entre o bidimensional e seus projetos de design para mobiliário. No cartaz em homenagem ao IV Centenário de São Paulo, 1954, Barros transformou uma série de triângulos e linhas verticais e horizontais, aparentemente desconexas, numa trama que constrói o próprio tecido da cidade. A cidade não cabe no cartaz, está em expansão para além dos nossos limites. Devemos imaginar, especular, como a cidade se apresenta. Nada mais simples e genial do que o espelho-cartaz da própria situação da cidade de São Paulo nos anos 1950: uma das maiores metrópoles da América Latina, que não parava de crescer. Os mastros com as bandeiras que anunciam a informação sobre a comemoração realizam um jogo visual, trabalhando, apenas por meio das cores, com a relação entre figura e fundo. Mais uma herança dos ‘brasileiros de Ulm’ para a história da Bauhaus, do construtivismo e da própria história da arte.

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hecilda e sérgio fadel


biografias

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Abraham Palatnik Natal (RN), 1928

É um dos artistas mais múltiplos da história re-

O artista sintetiza como poucos o ideário

cente brasileira, pioneiro mundial da arte cinética

construtivo de fundir arte e vida, o ético e o es-

e da investigação das relações entre arte e tec-

tético. Disseminou a arte em trabalhos para uso

nologia. Além de objetos cinéticos e luminescen-

cotidiano e de caráter industrial, fazendo com que

tes, vem realizando obras bidimensionais, peças

eles dialogassem constantemente com sua obra

de mobiliário e jogos. Cria as próprias ferramen-

como artista plástico. A tela de acrílico presa em

tas com que trabalha e, nos anos 1970, manteve

uma poltrona criada por ele pôde ganhar autono-

com um irmão uma fábrica de objetos de design

mia anos mais tarde, assim como os acetatos

que chegou a ter 50 funcionários.

de suas pinturas-objeto pôde sugerir o material

Morou em Israel entre 1943 e 1947, e estu-

adequado para a produção de objetos, como ban-

dou, simultaneamente, mecânica e artes. Voltou

dejas, pesos de papel ou enfeites em forma de

ao Brasil em 1948 e passou a freqüentar o Centro

bichos diversos realizados por ele em sua extinta

Psiquiátrico Pedro II, coordenado pela dra. Nise

fábrica. A madeira usada em suas Progressões

da Silveira, ao lado dos artistas Almir Mavignier

também passou a ser um material usado na obra

e Ivan Serpa.

artística depois que ele ganhou intimidade com

Os Aparelhos cinecromáticos (1949) marcam

o material.

o início de suas pesquisas no campo da arte ci-

Atividades e materiais convivem e se comu-

nética. O crítico Mário Pedrosa comparou estes

nicam em seu ateliê no Rio de Janeiro, instalado

trabalhos, em que luzes coloridas são acionadas

no apartamento onde mora, com vista para a Baía

por uma sofisticada engenhoca mecânica, a um

de Guanabara. Arte e vida caminham juntas.

caleidoscópio. Com eles, Palatnik mostra sua proximidade com as teorias da percepção e com a Gestalt e também sua não-conformação com a apreensão da obra de arte através de uma visão unidirecional. Os cinecromáticos começaram em caixas e depois se desprenderam delas — as formas coloridas passaram a ser projetadas diretamente na parede, libertando a cor de qualquer suporte. Um destes trabalhos não foi aceito de imediato pelo júri da I Bienal de São Paulo (1951) por não se encaixar em nenhuma das categorias que faziam parte da exposição. No entanto, diante da ausência da comitiva japonesa, a obra participou da mostra e obteve uma Menção Honrosa. Palatnik participou do Grupo Frente, entre 1953 e 1955, mas não assinou o Manifesto Neoconcreto. Fez parte, em 1964, da XXXII Bienal de Veneza e da importante exposição de arte cinética Mouvement II, na galeria Denise René.

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Progressão, 1965 Madeira 129,3 × 118,2 cm Coleção joão

sattamini

Comodante museu

de arte contemporânea de niterói

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Alexandre Wollner São Paulo (SP), 1928

Um dos pioneiros da profissionalização do de-

as latas). Neste momento, atingiu o apogeu do

sign no Brasil, Alexandre Wollner recebeu o

ideário da Bauhaus: o produto de arte, industria-

prêmio Revelação de Pintura da II Bienal de São

lizado, serializado, mas ainda projetado segundo

Paulo em 1953, ano em que concluiu seus es-

uma técnica construtivista, finalmente encon-

tudos de design no Instituto de Arte Contem-

trou seu meio de circulação no povo (a progra-

porânea (IAC), do Museu de Arte de São Paulo

mação visual foi tão marcante que a empresa

(Masp) — onde estudou com Lina Bo Bardi e

só veio a alterar o design das latas cerca de 40

Leopoldo Haar, entre outros. A importância do

anos depois).

IAC revela-se, sobretudo, na formação de uma

Em 1963, com Karl Heinz Bergmiller, Si-

nova profissão para artistas — a de designer — e

meão Leal, Marcello Roberto, Flávio de Aquino

na instituição de um novo currículo educacional.

e Aloísio Magalhães, fundou a primeira escola

Nessa mesma escola formou-se Maurício No-

de design no Rio de Janeiro, a Escola Superior

gueira Lima, outro importante artista concreto.

de Desenho Industrial (Esdi). A fórmula entre de-

Ainda em 1953, Wollner foi convidado por

sign e arte construtiva no Brasil fincou suas raí-

Max Bill a ingressar na Hochschule für Gestal-

zes e depois disso, institucionalizada, conseguiu

tung (Escola Superior da Forma), em Ulm, Ale-

propagar idéias que regem o encontro entre for-

manha. Antes de partir, realizou a programação

ma, conteúdo, construtivismo e meio social.

visual de catálogos, projetos de exposição e car-

Wollner ainda foi responsável pelos progra-

tazes, tais como o do Festival Internacional de

mas de identidade de empresas como: elevado-

Cinema do Brasil (1954), quando assinou junto

res Atlas (1958), Banco Itaú (1980) e indústrias

com Geraldo de Barros.

Klabin (1979, 1999).

Estudou em Ulm entre 1954 e 1958, abandonando a pintura para se dedicar exclusivamente às artes gráficas, trabalhando nos estúdios de Max Bill e Otl Aicher. O uso do suporte e o reaproveitamento das ‘idéias-forma’ oriundas das experimentações de Ulm marcam seu trabalho como designer. A formatação estrutural de seus cartazes não obedece apenas à idéia de propagação da arte, mas amplia a função do cartaz como campo de experiência para conceitos que envolvem cor, palavra, arte concreta e informação. De volta a São Paulo em 1958, fundou, juntamente com Geraldo de Barros, Rubem Martins e Walter Macedo, a Forminform, responsável por alguns dos primeiros programas de identidade visual de empresas brasileiras. Foi neste ano que desenvolveu a programação visual das sardinhas Coqueiro (tanto a logomarca quanto

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Vive e trabalha em São Paulo.


Cartazes para III e IV Bienais de S達o Paulo, 1955 e 1957

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Almir Mavignier Rio de Janeiro (RJ), 1925

Ao lado de Mário Pedrosa, Ivan Serpa e Abraham

Ainda em Ulm, aprendeu o caráter objetiva-

Palatnik, formou o primeiro núcleo de pesquisa

do e a autonomia no processo de criação artís-

em arte abstrata do Rio de Janeiro. A tese de

tica. Em vários de seus quadros dessa época,

Pedrosa “Da natureza afetiva da forma na obra

utilizou a justaposição de minúsculos pontos, e

de arte”, em que discute o fenômeno da Gestalt,

pontos de pigmento em intensidade variada, que

marcaria o trabalho de Mavignier, que foi instru-

traria à tona também o convexo/côncavo que ex-

tor de artes no Centro Psiquiátrico do Engenho

plorou em ampla série nos anos 1960 e 70.

de Dentro em fins dos anos 1940. O trabalho dos

Depois de formado, estabeleceu-se como

internos desse Centro marcaria profundamente

artista gráfico em Ulm, onde manteve ateliê até

a trajetória do artista. Imerso nas pesquisas so-

1971. Em seus cartazes, além da prática de ‘so-

bre o abstracionismo e as correntes construti-

cializar’ a informação através do projeto de arte e,

vas, sentiu-se inibido diante da espontaneidade

do ponto de vista técnico, a presença constante da progressão reticular — duas lições aprendidas

e ‘pureza’ das obras dos internos. Aproximou-se dos teóricos argentinos To-

em Ulm —, o artista utilizou em muitos casos o

más Maldonado e Lidy Prati, que disseminavam

jogo de palavras como experiência para o campo

as práticas construtivistas no seio da vanguarda

visual, método típico dos concretos brasileiros e

de seu país. Ligou-se a Geraldo de Barros e aos

mais especificamente da poesia concreta.

concretos paulistas, participando da I Bienal de

Entre 1965 e 1990, foi professor de pintura

São Paulo (1951). Tornou-se um dos pioneiros da

na Escola de Belas Artes de Hamburgo, cidade

op art no Brasil, ao trabalhar em suas primeiras

onde vive e trabalha até hoje.

obras com uma sucessão de formas, com rigidez matemática, que buscava em si uma interlocução com o espectador, com a expansão espacial. Ao assistir à exposição de Max Bill em São Paulo, Mavignier entrou em contato direto com as correntes abstracionistas e, com o apoio de seu maior interlocutor no Brasil, Mário Pedrosa, seguiu para a Europa. Mudou-se em definitivo para a Alemanha em 1953, cursando, até 1958, Comunicação Visual na Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), em Ulm, tendo como professores Josef Albers e Max Bense. Entrou em contato com o suporte industrializado e a tinta industrial com aplicação em pistola, o que o diferenciou totalmente do ambiente artesanal do concretismo brasileiro. Surge pela primeira vez a característica que marcou seu trabalho: o ponto. Pontos, que ressurgem nas suas pinturas, em vários momentos, sob diferentes formas, e de pontos a partículas de pigmento puro.

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Cartaz para exposição De Stijl, 1964 Cartaz para exposição do artista no Museu de Arte de São Paulo — MASP, 1977

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Aluisio Carvão Belém (PA), 1918 / Poços de Caldas (MG), 2001

Participante de todos os grandes eventos da

Um ano mais tarde, seu Cubo-cor radica-

formação do grupo neoconcreto, desenvolveu

lizou a importância da cor como matéria cons-

posteriormente uma obra mais lírica e menos

titutiva do seu trabalho: um cubo, pintado de

ligada aos princípios estritos do construtivismo.

vermelho vivo, corporifica toda a matéria que

Passou a juventude no Amapá, onde foi ilustra-

a cor pode ter; é a cor-matéria por excelência.

dor de revistas e cenógrafo.

Em 1963, Carvão intensificou sua atuação como

Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1949 e,

artista gráfico e professor. Quatro anos depois,

em 1952, iniciou o curso livre de pintura, de Ivan

produziu a série de Superfícies farfalhantes, em

Serpa, no MAM-RJ. Fez parte das reuniões de

que tampas de garrafas achatadas e presas em

artistas construtivos na casa de Serpa e integrou

fileiras nas telas evidenciam seu flerte com o ci-

o Grupo Frente desde sua formação, em 1953.

nético e o sonoro. A cor, no entanto, nunca dei-

Participou da I Exposição Nacional de Arte Abstra-

xou de ser o coração de seu trabalho, não só em

ta (1953), I Exposição Nacional de Arte Concreta

pinturas, mas também em capas de livro ou em

em São Paulo (1956) e Rio de Janeiro (1957).

murais para espaços públicos.

Assinou o Manifesto Neoconcreto de 1959, e participou das mostras do grupo no Rio de Janeiro e Salvador. Figurou na exposição Konkrete Kunst em 1960. Nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio Viagem ao Exterior no Salão Nacional de Arte Moderna e freqüentou a Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma). De volta ao Brasil em 1963, participou de exposições importantes como Nova Objetividade Brasileira (1967) e realizou o projeto de várias capas de livros, tais como A opção brasileira, de Mário Pedrosa. Logo no início de sua carreira, a preocupação de Carvão estava muito ligada à forma: reduzia todos os componentes de sua pintura a estruturas elementares, gestálticas. A partir do momento em que o neoconcretismo toma corpo, a cor passa a ocupar o centro de sua poética artística. Tudo está a serviço dela em suas obras. A hierarquia clássica entre forma, cor e fundo é abolida pelo artista — e por alguns de seus pares no neoconcretismo — progressivamente. A distinção entre obra e parede também cai por terra: em 1959, Carvão criou Clarovermelho, pintura sem moldura que questionava os limites da tela, da área ocupada pela cor e do plano.

60


Cornucópia, 1955 Óleo sobre tela 70,5 × 70,5 cm Coleção joão

sattamini

Comodante museu

de arte contemporânea de niterói

61


Amilcar de Castro Paraisópolis (MG), 1920 / Belo Horizonte (MG), 2002

Considerado um dos maiores escultores de toda a história da arte brasileira, Amilcar de Castro desenvolveu como poucos a utilização das áreas vazias propostas pelo construtivismo em esculturas, desenhos e obras gráficas. Mudou-se para Belo Horizonte com a família em 1934. A partir de 1944, estudou desenho e pintura na Escola de Arquitetura e Belas Artes de Belo Horizonte, sendo aluno de Alberto Guignard. Estudou também com Franz Weissmann, outro grande nome da escultura brasileira e da vanguarda construtivista. Em 1951, assistiu à conferência de Max Bill no Rio de Janeiro e ficou muito impressionado. Mudou-se para o Rio no ano seguinte, iniciando sua carreira de diagramador em 1953 nas revistas A Cigarra e Manchete. Participou da I Exposição Nacional de Arte Concreta no MAM-SP (1956) e MAM-RJ (1957). Ainda em 1957 iniciou o projeto de reformulação gráfica do Jornal do Brasil, atuando ativamente no Suplemento Dominical. Em 1959, assinou o Manifesto Neoconcreto e participou de exposições do grupo neoconcreto neste ano e em

ferro se revela como a grande matéria-prima de

1960. No carnaval de 1964, realizou a cenografia

Amilcar. Conferindo peso e matéria a cada peça,

do enredo da Escola de Samba da Mangueira,

o ferro também é escolha importante na defini-

com Hélio Oiticica e Jackson Ribeiro.

ção da superfície e suas texturas. As esculturas

Viveu, posteriormente, mais de três décadas

podem se modificar à medida que o ferro oxida,

de muito trabalho e reconhecimento. Criou de-

registrando a passagem de tempo. O corte e a

senhos sobre tela de grandes dimensões, feitos

dobra também se relacionam com o tempo, já

com a ajuda de uma vassoura cuja piaçaba era

que transformam cada peça única em duas, em

impressionada com tinta preta. Eventualmente,

dois tempos, dois ritmos, dois movimentos.

algumas áreas internas destas estruturas geo-

Despojada, ascética, sua obra escultórica

métricas eram preenchidas com cores básicas

abre mão de todos os excessos de elementos,

como amarelo, azul e vermelho — a mesma pa-

assim como o Amilcar diagramador de revistas

leta de Mondrian, mas, no lugar da linha reta

e jornais suprimiu fios, imagens e recursos grá-

perfeita, traços que revelam o corpo do objeto

ficos que não tinham função informativa nas pá-

utilizado para fazê-lo.

ginas. Na obra deste artista genial, traço e corte

Esta transparência do fazer artístico também está presente nas esculturas, nas quais o

62

correspondem sempre à estrutura, nunca ao ornamento.


Sem título, s/d Acrílica sobre papel 81 × 62 cm Sem título, 1999 Escultura em aço corten 143 × 100 × 143 cm Coleção

va n da k l a b i n

63


Antonio Maluf São Paulo (SP), 1926 / São Paulo (SP), 2005

Pioneiro do construtivismo em São Paulo, autor

entre os elementos de linguagem e o suporte

do histórico cartaz da I Bienal de São Paulo, An-

sobre o qual esses elementos são aplicados.

tonio Maluf aplicou princípios matemáticos na

Essa relação adquire o status de informação

elaboração poética de suas pinturas, trabalhos

artística apenas quando a linguagem não tem

gráficos e estampas para tecidos.

outro ponto de referência a não ser o próprio

Iniciou seus estudos em pintura na Escola

suporte, e vice-versa. Isto é, os elementos de

Livre de Artes Plásticas, e, em paralelo, com

linguagem e o suporte deixam de significar por

Samson Flexor, no final dos anos 1940. Estudou

si só para criar uma relação de cumplicidade.

desenho industrial no Instituto de Arte Contem-

É com esse pensamento que o artista pas-

porânea do Museu de Arte de São Paulo (Masp),

sa a conceber murais com elementos pré-mol-

onde desenvolveria o que iria se transformar em

dados, em colaboração com arquitetos como

sua produção: a minúcia na construção do traba-

Vilanova Artigas e Fábio Penteado. É o caso da

lho, as padronagens e, sobretudo, a geometria.

Vila Normanda, em que a partir de 12 variações

Também tomou contato com a exposição de

possíveis de azulejos, o artista cria múltiplos

Max Bill em São Paulo. Herdeiro do construtivis-

agrupamentos, que compõe de acordo com prin-

mo russo, a arte abstrata de Bill, assim como a

cípios de equilíbrio e contrastes de cor formando

Bauhaus, postulava que a arte deveria ser univer-

ritmos rigorosamente planejados; da Caixa Eco-

salmente compreensível, visto que embasada

nômica Estadual, em Bastos (SP); do Banco No-

em leis matemáticas, nas quais não há espaço

roeste, em Guarulhos (SP), dentre outros.

para interpretações pessoais.

Os estudos geométricos e a grande variação

Entendendo que a arte de cunho geomé-

de elementos a partir de uma economia de linhas

trico era acessível a todos, a Bauhaus pregava

levaram o artista a produzir estampas para a in-

que a arte fosse inserida na sociedade e cum-

dústria da moda (a Rhodia fabricou modelos do ar-

prisse uma função de transformação social. Para

tista, entre as décadas de 1960 e 70). Na área do

Maluf, entretanto, a leitura da exposição de Bill

design, Maluf também foi responsável pela cria-

e da Bauhaus, por conseguinte, foi assimilada

ção de logomarcas, projetos de outdoors, anún-

para­doxalmente como exemplo de disciplina

cios em classificados e encadernações pessoais.

aliada à liberdade de criação. Os elementos estruturais que usou no cartaz da I Bienal de São Paulo ressaltam essa motivação de trazer o ritmo e a ruptura com o já esperado. O artista utiliza a vibração ótica nesta obra, ou seja, à medida que são reduzidos, os retângulos da obra se adensam em direção ao centro, projetando uma perspectiva tanto espacial quanto temporal. Apesar de conviver com seus membros, o artista não assinou o manifesto do Grupo Ruptu­ ra. Desenvolveu o conceito da “equação dos de­ sen­volvimentos” para aplicação em sua obra: es­ ta­beleceu uma relação de igualdade que ocorre

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A última progressão, 2005 Acrílica sobre madeira 60,2 × 60,2 cm Coleção thiago

maluf

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Geraldo de Barros Xavantes (SP), 1923 / São Paulo (SP), 1998

Precursor da fotografia abstrata no Brasil, desig-

acervo definido de peças geométricas e compo-

ner de móveis, logomarcas e cartazes, Geraldo

sições intercambiáveis, que compunham seus

de Barros foi um dos artistas mais versáteis da

móveis, promovendo um discurso sintomático

vanguarda paulistana. Em 1948 entrou em con-

entre arte construtiva e design.

tato com Mário Pedrosa e conheceu a teoria da

Nesse mesmo ano, criou o cartaz de tendên-

Gestalt. Em 1950, apresentou no Masp a radical

cia construtiva em homenagem ao IV Centenário

mostra de fotografias experimentais intitulada

de São Paulo, e recebeu o prêmio Aquisição na

Fotoformas, a qual traçou um diálogo substancial

XXVII Bienal de Veneza. Em 1957, fundou o escri-

com a exposição de Max Bill realizada no mesmo

tório de programação visual, Forminform, ao lado

espaço e no mesmo ano.

de Rubem Martins, Walter Macedo e Alexandre

Apesar de Barros buscar uma espontaneida-

Wollner.

de ‘pura’ em sua obra, o que não encontraria eco

Cada vez mais Barros diversificou suas

nos dogmas de Bill, ambos estavam interessa-

ações de propagação da arte na prática cotidiana,

dos nas possibilidades de investigação e experi-

sempre aliando seus trabalhos a uma estrutura

mentação que a arte concreta, por meio de seus

conceitual construtivista. Ainda em 1964, fundou

efeitos óticos, poderia criar. Em 1951, e por cerca

a Hobjeto Móveis, com o mesmo objetivo ante-

de um ano, o artista freqüentou a Hochschule für

rior de tornar acessível o móvel moderno à clas-

Gestaltung (Escola Superior da Forma), em Ulm.

se média, mais uma vez promovendo um diálogo

Na volta ao Brasil, tornou-se um dos sig-

entre a indústria e a arte.

natários do manifesto do Grupo Ruptura, lan-

Participou da criação do Grupo Rex (1966 – 67),

çando as bases do concretismo em São Paulo.

no qual a ironia passa a ser o fio condutor do tra-

Em pouco mais de dois anos Geraldo de Barros

balho dos artistas. Integrou diversas exposições

criou intensamente, usando em muitos casos a

com a temática construtiva entre as décadas de

figura do triângulo como motor estrutural para

1950 e 80.

transmitir dinâmica e movimento dos elementos pictóricos em seus quadros. O ritmo, a matemática e o uso de cores contrastantes tornaram-se seus aliados no campo de suas experiências construtivistas. Também como herança de Ulm, a partir de 1954, concentrou-se na questão da industrialização e seriação dos meios de comunicação de massa, como cartazes, logomarcas e outdoors. A disseminação de sua arte passa a interessar ao artista: em 1954, fundou a cooperativa e fábrica de móveis Unilabor, que durou poucos anos. Pioneiro, começou a fazer o design e a comercializar sua própria produção. Esta cooperativa caracterizou-se pelo estabelecimento de um sistema flexível de módulos que permitia um

66


Fotoformas, 1949/50 matriz-negativo Coleção fabiana

de barros

67


Lygia Clark Belo Horizonte (MG), 1920 / Rio de Janeiro (RJ), 1988

Investigadora do espaço, Lygia dedicou sua pes-

as esculturas que só adquirem sentido quando

quisa sobre o caráter orgânico do concretismo,

manipuladas tornam a artista uma das pioneiras

os limites e aproximações entre o trabalho ar-

da arte participativa mundial.

tístico e a terapia e, por fim, a afirmação da arte como potência transformadora da vida.

No caso dos Bichos, as dobradiças, que ligam as diferentes formas geométricas que

Em 1947, no Rio de Janeiro, iniciou seus es-

estruturam essas esculturas, tornam-se a linha

tudos artísticos com Zélia Salgado e Burle Marx.

orgânica, o objeto de investigação da sua fase

Entre 1950 e 52, fixou-se em Paris, onde teve

neoconcreta. O mesmo sentido participativo é

aulas com Léger, Dobrinsky e Szénes, dedican-

retomado no seu projeto, de 1960, para casa de

do-se à produção de óleos e estudos a carvão

campo intitulado Construa você mesmo o seu

e grafite, cujos temas eram o seu ateliê, seus

espaço para viver. A maquete, cujas paredes

filhos e as escadas.

são formadas por painéis móveis dispostos sob

De volta ao Brasil, sua casa se transformou

trilhos, tem sua estrutura orquestrada pelo es-

em ponto de encontro de artistas que formariam

pectador e retoma a questão da linha orgânica:

o Grupo Frente (1954 – 55). Ainda em 1952, rea-

os módulos são, agora, definitivamente constru-

lizou os primeiros estudos para as Superfícies

ídos ou planejados pela mão do espectador.

moduladas, quando formalizou, mediante suas

Nos anos 1960, abandonou o objeto artís-

pesquisas com a cor e a forma, o conceito da “li-

tico e dedicou-se às proposições sensoriais: a

nha orgânica”: seus quadros não possuíam mais

artista utilizou objetos baratos e da natureza,

moldura, a linha orgânica, produzida a partir do

cuja função passou a ser a de mediadores de

corte de um bisturi no compensado de madeira,

experiências que buscaram no corpo uma me-

secionava o quadro em diferentes planos; estes,

lhor relação do espectador consigo mesmo e

por sua vez, através da fronteira da linha orgâ-

o mundo. Ganhou uma sala especial na X X X I V

nica e com o uso de cores neutras e escuras

Bienal de Veneza.

formulavam um jogo ótico que estimulava a par-

Morou em Paris entre 1964 e 1976 e, como

ticipação do espectador na criação visual de um

professora da Sorbonne, buscou a liberação da

novo plano conceitual. Em 1955, criou as Ma-

criatividade dos alunos por meio de exercícios

quetes para interior, sua tentativa de incorporar

de sensibilização. Na volta ao Brasil, iniciou

as estruturas das Superfícies moduladas na de-

uma nova fase (Estruturação do Self ), que fica

coração e design de interiores: a artista intentou

na fronteira entre a terapia e suas experiências

concretizar a idéia do construtivismo de ocupar

sensoriais.

através de forma prática o cotidiano. Em 1959, assinou o Manifesto Neoconcreto e realizou a obra que se torna um limite entre o bidimensional e o plano tridimensional: Casulo. Obra ícone da Teoria do não-objeto (1960) de Ferreira Gullar, o Casulo é um objeto fixo à parede, mas cujas formas secionadas demonstram seu interesse em conquistar o espaço. Finalmente, o Casulo cai da parede e se torna o Bicho (1959 – 64):

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Em 1997, a Fundació Antoni Tàpies organizou uma retrospectiva de sua obra que atravessou cinco países.


Bicho, 1984 aço inoxidável 45 × 50 cm Coleção sandra

brito

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Lygia Pape Nova Friburgo (RJ), 1927 / Rio de Janeiro (RJ), 2004

Uma das mais inquietas artistas da vanguarda

tecido crie uma obra de corpo único e com várias

construtiva brasileira, Lygia Pape realizou uma o­bra

cabeças, constituída pelas próprias pessoas.

múltipla, carregada de humor e sensualidade.

Também em 1968, criou a Roda dos prazeres,

Nos anos 1950, estudou com Fayga Ostro-

formada por tigelas com líquidos de várias cores.

wer, no MAM-RJ, e, nestes cursos, aproximou-se

No trabalho, o espectador é atraído para uma das

de Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Décio Vieira, e ou-

cores e escolhe beber gotas daquele líquido, que

tros artistas que iriam formar o Grupo Frente, em

tanto pode ter um paladar agradável (de moran-

1953. Ainda nesta década, desenhou e executou

go), como de algo ruim (purgante, azedo).

jóias em cobre e esmalte e integrou todas as ex-

É interessante observar que Lygia alinhava

posições do Grupo Frente e do neoconcretismo.

o projeto para a citada Roda no mesmo período

Em 1958, idealizou o primeiro Balé neocon-

em que estava realizando as embalagens para a

creto a partir do poema “Olho e alvo” de Reynal-

Piraquê. Na fábrica, convivia proximamente com

do Jardim. Assinou o Manifesto Neoconcreto em

as essências que davam sabor aos biscoitos da

1959, ano em que criou a série Tecelares, na qual

marca. É autora de 16 curtas-metragens para o

formas geométricas se misturam ao desenho na-

cinema com temática experimental.

tural da madeira. No mesmo ano, realizou tam-

Entre o fim dos anos 1960 e a década se-

bém o Livro da criação, composto por pranchas

guinte, a artista produziu objetos e instalações

coloridas que fazem alusão à criação do mundo

marcados pelo humor negro, a crítica política e

através da geometria e da cor.

social e a ironia. Algumas destas peças pertur-

Com a dissolução do grupo neoconcreto,

bam o sentido do espectador ao beirar a esca-

manteve sua pesquisa em artes visuais, mas

tologia, caso de Caixa de baratas (1967), em que

se abriu à produção de cartazes para o cinema

ela agrupa uma série desses insetos numa caixa

e à criação de logotipos e embalagens para a

de acrílico com fundo de espelho, como se as

indústria Piraquê. Neste último caso, aplicou no

baratas estivessem ordenadas para uma feira de

desenho das embalagens os jogos óticos utili-

ciências ou fossem aquelas borboletas raras que

zados pelo construtivismo. Sua atividade como

fascinam os colecionadores.

designer coincide com o momento em que sua

Nos anos 1970, foi professora da Universi-

obra caminha na direção da participação cada vez

dade Santa Úrsula e da UFRJ e costumava levar

maior do espectador e também do uso da ironia

os alunos de arquitetura para as favelas cariocas,

e do humor negro.

onde pedia que observassem as soluções criati-

Em Ovo (1967), Lygia envolveu cubos de madeira com papel ou plástico muito fino de cores

vas das casas erguidas pelos moradores destas comunidades.

básicas (branco, azul, vermelho). Os participantes

Lygia Pape manteve-se em atividade até o

da obra deviam penetrar em seu interior e romper

ano de sua morte. Em 2001, realizou a potente

a superfície do cubo de dentro para fora, experi-

instalação Carandiru, em que lembrava o massa-

mentando a sensação de nascimento. Em Divisor

cre dos presos na penitenciária de São Paulo com

(1968), um grupo enorme de pessoas interage

uma cachoeira de líquido vermelho, parecendo

com um tecido de 30 × 30    m, com recortes em

sangue. No ano seguinte, criou a bela instalação

formato de círculo para a passagem da cabeça

Tteia, no Paço Imperial do Rio de Janeiro, em que

dos participantes. As aberturas fazem com que o

contrapunha uma teia de fios de cobre com a luz.

70


Balé neoconcreto, 1958 still de vídeo

71


Mary Vieira São Paulo (SP), 1927 / Basel (Suíça), 2001

É, ao lado de Palatnik, uma das principais artistas no campo da experimentação da arte cinética mundial. Em 1948, na cidade de Sabará, onde foi criada, Mary Vieira deu início à realização das obras da série Polivolumes: torres com dimensões variáveis e formadas por discos que permitiam ao espectador a sua manipulação. Segundo a artista, “o que queria era pesquisar a origem de todas as formas estéticas. Cheguei ao movimento que, num tempo determinado, determina a forma”. Em 1950, depois de assistir à exposição de Max Bill no Masp, iniciou uma troca de correspondência com o artista e mudou-se para a Europa em definitivo. Entre 1953 e 1954, foi aluna na Escola de Ulm, tendo Joseph Albers como mestre. Desse encontro, o legado para a artista foi a capacidade de sua obra enriquecer a tão intransigente severidade do funcionalismo construtivista. Em seus trabalhos tipográficos desenvolvidos, seja em Ulm ou depois da estadia na Alemanha, a artista utilizou poucos padrões de tipos e tamanhos, estilos negrito e seminegrito,

espaço ao meio: na metade de cima, o azul do

e sempre sem nenhuma modificação técnica ou

céu; na metade de baixo, o verde da terra. Um

estética. Linhas de textos eram colocadas em

círculo, a janela do avião, no centro, mantém

caixa baixa, a forma que, desde a Bauhaus, se

essa divisão.

tornou característica da concepção racional de uso dos signos alfabéticos.

Em 1995, projetou o material gráfico das comemorações do V Centenário do Brasil e, em o

Essa pesquisa que envolvia participação do

1997, a logomarca do 52 Congresso Nazionale

espectador, efeitos óticos e jogos visuais por

dell’Associazione Termotecnica Italiana com alu-

meio da vibração e ritmo das linhas foi transferi-

são ao movimento de círculo concêntrico, assim

da para seu trabalho como designer gráfica. Nos

como era a dinâmica das peças de seus Polivo-

anos 1950, ganhou uma série de prêmios na

lumes quando acionadas pelo espectador. As

Suíça por conta da produção de cartazes. Des-

pesquisas plásticas da artista trouxeram a dinâ-

tacam-se, dentre eles, o cartaz ‘Brasilien baut

mica ao campo de experiências do construtivis-

Brasília’ (Brasil constrói Brasília) e o produzido

mo europeu, que parecia se interessar por cores

para a empresa de aviação Panair, ambos de

elementares em campos estruturais.

1957. Nesse último, a economia de linguagem chama a atenção. Duas áreas de cor dividem o

72

Em 2005, o CCBB-RJ organizou uma retrospectiva de sua obra.


Polivolume: superfície multidesenvolvível, 1966 Alumínio anodizado 56,5 × 10,5 × 1,5 cm Acervo

museu de arte moderna do rio de janeiro

Coleção

gilberto chateaubriand

Disco plástico negro,1960 Alumínio anodizado preto, 36 × 34 Ø × 17 cm Acervo archivio

belloli - vieira ,

Milão, Itália

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Waldemar Cordeiro Roma (Itália), 1925 / São Paulo (SP), 1973

Grande incentivador do concretismo em São

Estudioso, Cordeiro vai se aproximar da

Paulo, líder do movimento de vanguarda cons-

poe­sia e da semiologia justamente neste perío-

trutiva, o Grupo Ruptura, e pioneiro no campo da

do, rea­lizando obras de caráter participativo em

arte e tecnologia, Cordeiro exerceu múltiplas ati-

vários suportes — e com o uso de espelhos e

vidades: foi jornalista, crítico de arte, ilustrador,

superfícies de vidro como recursos recorrentes,

paisagista e artista visual. Participou da mostra

fazendo o espectador interagir com a própria ima-

Do Figurativismo ao Abstracionismo, que inau-

gem — e outras em que manipula palavras e ima-

gurou o MAM-SP em 1949.

gens usando páginas de jornal como suporte.

Participante da I Bienal de São Paulo, orga-

Jornal, de 1964, instiga o espectador a par-

nizou nesta mesma cidade a I Exposição Nacio-

ticipar / imaginar, fazendo com que preencha

nal de Arte Concreta. Em 1952, publicou, ao lado

va­zios gerados por palavras truncadas, que su-

de Lothar Charoux, Geraldo de Barros, Luiz Sa-

gerem uma associação de idéias. Da metade

cilotto, entre outros, o Manifesto Ruptura, uma

para o fim desta mesma década, começou a

síntese do concretismo no Brasil. Nesse mesmo

produção dos objetos que o poeta Augusto de

ano, iniciou seus estudos de paisagismo.

Campos batizou de Popcretos, criados, à la Du-

Na década de 1960, participou das mostras Konkrete Kunst (em Zurique), Opinião 65 e Nova Objetividade (as duas últimas realizadas no MAM-RJ). Crítico de arte e teórico, manteve uma coluna de artes plásticas no jornal Folha da Manhã. Em 1966, realizou o projeto para o playground do Clube Espéria, em São Paulo. A partir de 1972, tornou-se professor da Unicamp, onde dirigiu o Centro de Processamento de Imagens do Instituto de Artes. Recebeu o prêmio de aquisição na IX Bienal de São Paulo. Apesar de ter sido uma grande liderança do movimento construtivo no Brasil, Cordeiro passou a se dedicar a experiências mais livres de pintura na década de 1960. A geometria rigorosa dos tempos do Ruptura dá lugar a manchas visuais e a estruturas criadas na tela por meio de jatos de tinta lançados por um compressor. Em 1963, cria Opera Aperta, em que pedaços de espelho são colados às telas, refletindo a imagem do espectador. O nome da série é uma referência explícita à teoria da “obra aberta” de Umberto Eco — o livro Obra aberta, de Eco, foi publicado em 1962.

74

champ, com a apropriação de objetos cotidianos e restos de outras peças.


Opera Aperta, 1963 Óleo, espelho, colagens sobre tela 75 × 150 cm Coleção família

cordeiro

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Willys de Castro Uberlândia (MG), 1926 / São Paulo (SP), 1988

Apesar de ter vivido em São Paulo, Willys abriu sua obra como artista plástico e como designer para a sugestão da subjetividade, da imaginação e da participação do espectador, princípios que nortearam o neoconcretismo carioca. Mudou-se para São Paulo em 1941 e, entre 1944 e 1945, trabalhou como desenhista técnico, formando-se em química industrial em 1948. Em 1954, fundou, com Hércules Barsotti (1914), o Estúdio de Projetos Gráficos. A dupla trabalhou integrada, realizando vários projetos a quatro mãos, até 1964, mas nunca se dissolveria; foram parceiros a vida inteira. Durante este perío­ do, Willys criou uma série de logomarcas — entre elas as da Mobília Contemporânea e da Galeria Seta — convites, folhetos e cartazes, além de estudos para estamparias em tecido. Nos anos 1960, sua pesquisa com tecido fez com que fosse convidado para desenvolver uma série de estampas para a Rhodia, no mesmo período em que Antonio Maluf também criou peças para a mesma fábrica. Paralelamente, Willys trabalhou fazendo cenários e figurinos para teatro. Foi um dos idealizadores do movimento Ars Nova, dirigido por

por um de seus lados. A pintura apresentada

Diogo Pacheco, do qual participou como baríto-

frontalmente é uma continuidade dos planos la-

no e compositor, de 1954 a 1957. Foi, ainda, co-

terais, o que faz com que o espectador se mexa

fundador e diagramador da revista Teatro Brasi-

diante da peça e interaja com ela para capturá-la

leiro, e, entre 1956 e 57, fez cenários e figurinos

em sua plenitude.

para peças do Teatro de Arena e Teatro Cultura Artística.

O duelo entre a superfície bidimensional da tela e o espaço foi uma das grandes questões do

Participou das Bienais de São Paulo entre

movimento neoconcreto, encontrando nas obras

1957 e 1962. Em 1959, integrou exposições do

de Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica outras

grupo neoconcreto. Foi neste mesmo ano que

pesquisas nesta mesma direção. A tela foi posta

iniciou a pesquisa dos Objetos ativos, conside-

em xeque como suporte exclusivo e incontestá-

rados sua grande contribuição à arte construtiva

vel para as discussões pictóricas. Willys deu um

brasileira. Peças de madeira retangulares que se

passo decisivo e marcante para a explosão deste

apresentam como uma espécie de régua vista

espaço restrito e a proposição de uma pintura

de perfil, estes trabalhos são fixados à parede

sem amarras nem limites.

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Campos interpostos, 1959 Óleo sobre madeira 40 × 20 cm Estudo, 1957/1958 Guache e grafite sobre papel 5 × 5 cm Sem título, 1957/1958 Guache sobre papel 5,7 × 5,7 cm Sem título, 1957/1958 Guache sobre papel 5 × 3 cm Coleção

museu de arte

moderna do rio de janeiro

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78


presidente da república

Luiz Inácio Lula da Silva m i n i s t r o d e e s ta d o d a fa z e n d a

Guido Mantega p r e s i d e n ta d a c a i x a e c o n ô m i c a f e d e r a l

Maria Fernanda Ramos Coelho

exposição

c at á lo g o

curadoria

t e x to s

Daniela Name

Daniela Name Felipe Scovino

c u r a d o r i a a d j u n ta

Felipe Scovino

p r o d u ç ã o e d i to r i a l

Tisara Arte Produções Ltda. coordenação geral

Mauro Saraiva

p r o j e to g r á f i c o

Fernando Leite produção

Tisara Arte Produções Ltda. Clarice Magalhães

revisão

cenografia

f oto g r a f i a s

Flávio Graff

André Spinola e Castro p. 19

iluminação

Fernando Leite p. 4–5, 6, 22, 25, 26, 27, 42, 52, 62, 63, 77

Antonio Mendel

Sonia Cardoso

João Xavier p. 21 m o n ta g e m

William Galdino Paulo Cezar Seabra p r o j e to g r á f i c o

Fernando Leite revisão

Marcelo Correa p. 69 Paula Pape/Projeto Lygia Pape p. 35, 36, 37, 38, 39 Paulinho Muniz p. 61 Rômulo Fialdini p. 12, 49, 72, 75

Sonia Cardoso

Vicente de Mello p. 17, 23, 55, 61, 76

assessoria de imprensa

Wim K. Steffen p. 73

Raquel Silva Assessoria de Comunicação

impressão

administração

J. Sholna

Loane Malheiros t r a n s p o rta d o r a

Alves Tegam s eg u r o

JMS Seguros produção

pat r o c í n i o


Agradecimento especial Loane Malheiros

Agradecimentos

Lea e Abraham Palatnik

Alexandre Wollner

Lenora de Barros

Ali Kamel

Lilian Chiosolo

Almir Mavignier

Luis Erlanger

Aluisio Carvão Junior

Michel Favre

Analivia Cordeiro

Monique Cardoso

Associação Cultural O Mundo de Lygia Clark

Museu de Arte Moderna de São Paulo / Ana Paula Montes

Celso Colombo Filho Nina Galanternick CGCOM / Rede Globo Piraquê Cosac Naify / Elaine Ramos Coimbra, Mário Ferraz, Aline Valli e Letícia Mendes

Projeto Lygia Pape / Paula Pape, Ana Filomena Fontelles

Daniel Zarvos

Lurixs Arte Contemporânea / Ricardo Rego, Martine Gerbauld

Denise Mattar

Rômulo Fialdini

Eduardo Foresti

Sandra Brito

Glaucia Villas Boas

Suélen Brito

Heloisa Vallone

Thiago Maluf

Hércules Barsotti

Vicente de Mello

Izabel Ferreira

Walter de Castro


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design e construtivismo no brasil

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