A Razão e a Loucura Moacir dos Anjos
A Razão e a Loucura (1977) é composto por dois segmentos de bambu que, flexionados até próximo de seu limite de resistência física, têm suas extremidades atadas por correntes metálicas, as quais mantêm as varas retesadas. Na porção mediana de cada uma das correntes, contudo, um de seus elos é substituído por um cadeado fechado, certeza de segurança ou, inversamente, promessa de afrouxamento da idéia de tensão que a obra sugere. As chaves que abrem os cadeados estão, por sua vez, presas aos pontos de maior envergadura dos bambus por meio de correntes idênticas às demais usadas na peça, embora suas extensões difiram. Em uma das duas construções similares, a corrente é curta o suficiente para que, caso se queira usar a chave para destravar o cadeado, terminar-se submetendo a vara de bambu a pressão extrema, quebrando-a. Na outra, a corrente é comprida o bastante para ultrapassar com grande folga o ponto em que se encontra o cadeado, tornando quase incongruente o uso deste para manter a unidade entre os elos da corrente que enverga a vara. Ao primeiro conjunto é associado o nome Razão, gravado em pequena placa que é parte do trabalho; ao segundo, ajunta-se o nome Loucura, também escrito em idêntico suporte. Essa ambiguidade construtiva está presente em dois outros trabalhos criados por Cildo Meireles no mesmo período, os quais, vistos em conjunto, ajudam a situar as questões sobre as quais A Razão e a Loucura se debruça. De imediato, ela evoca Conhecer pode ser destruir (1976), em que uma folha de papel com informações escritas é dobrada em várias partes e perfurada pelo pino de um cadeado, o qual bloqueia, assim, a leitura do texto que ali se guarda. A chave que poderia desfazer o aprisonamento da escrita está, ademais, também inacessível, posto que também trespassada pelo mesmo pino. Para ler o texto, somente destruindo o suporte onde ele foi anotado. Daí, portanto, o paradoxo que o título do trabalho anuncia. A impropriedade aparente que ancora A Razão e a Loucura ecoa, ademais, em Elos (igualdade) (1978-79), trabalho constituído por duas correntes fechadas nelas mesmas em círculos e penduradas na parede por um dos segmentos articulados que as constituem. Uma delas possui todos os elos feitos de metal, menos um, que é feito de papel; a outra, inversamente, têm todos os elos feitos de papel, menos um, que é feito de metal. Embora correntes sirvam, como regra, para segurar ou fixar fortemente objetos diversos, essas duas feitas por Cildo Meireles se romperiam se destinadas a qualquer uso
ordinário. Ainda que construídas de modos distintos, as duas correntes são iguais, portanto, na inadequação que promovem entre matéria e forma, e entre aparência e finalidade. A aproximação a esses dois trabalhos põe em evidência, em A Razão e a Loucura, questão que orienta sua feitura e que é partilhada com muitos outros objetos e instalações produzidos pelo artista ao longo de sua trajetória. Questão que pode ser enunciada, de forma concisa, como a crítica e a busca de superação, no campo cognitivo da arte, às oposições binárias que regem a organização da vida. Se no segmento do trabalho chamado Razão a busca do desfecho da tensão ali contida destruiria a própria estrutura criada – levando, assim, à racional decisão de não abrir-se o cadeado –, no segmento Loucura a tensão é desfeita, desde logo, pela fragilidade a que é exposta a corrente que mantém a vara de bambu retesada – levando então ao adiamento indeterminado, pela ausência de obstáculos ao seu alcance, da abertura da trava. Tal como nos demais trabalhos acima comentados, o que A Razão e a Loucura sugere é a impossibilidade de arranjos de conceitos duais serem capazes de atestar e compreender a complexidade das situações vividas, expondo o absurdo de pensar o mundo (no campo do indíviduo ou das práticas conjuntas) a partir somente de sinais opostos que se excluem. O que o trabalho traz como latência é justo tudo o que o não cabe em pólos extremos e que se situa no lugar impreciso do que sequer se sabe nomear ao certo. Tudo o que está aquém ou além do esperado, ou do que se quer como correto ou errado. O que o trabalho talvez enuncie, portanto, é o papel da arte onde a fala falta e o discurso falha. A afirmação de uma arte que ignora consensos ou que deles escapa, que cria frestas em conveções e que reinventa o que já se pensava saber; ou que torna visível o que não se enxergava. Uma arte que dá a conhecer destruindo, que embaralha distinções muito claras, que é lenta e interrompida, e que traça caminhos sinuosos sem sem fim ou desígnios antecipados. Uma arte contígua à vida.