Revista Saraiva Conteúdo - 1ª edição

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saraiva RETRATOS DE

TOMÁS

Casa DE Rui Barbosa Conheça o Arquivo-Museu, “velha fantasia” de Drummond

FERREIRA

GULLAR

RANGEL

ArMANDO Freitas Filho BERNARDO CARVALHO Chico Buarque EUCANAÃ FERRAZ FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ

FLIP 2010 Benjamin Moser Carola Saavedra WENDY GUERRA JOÃO PAULO CUENCA MARCELO JENECI

E os 80 anos, Gullar?

“Isso pra mim é um absurdo!” Ago 2010 • Ano 1 • No 1 • Distribuição Gratuita

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APLICAÇÃO FUNDO ESCURO:

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R: 0 - G: 130 - B: 215

C: 5 - M: 0 - Y: 100 - K: 0

R: 242 - G: 249 - B: 2

APLICAÇÃO FUNDO BRANCO: C: 100 - M: 44 - Y: 0 - K: 0 Pantone 300C

APLICAÇÃO P&B INVERTIDO: K: 40

APLICAÇÃO FUNDO BRANCO: R: 0 - G: 130 - B: 215

APLICAÇÃO P&B INVERTIDO: R: 153 - G: 153 - B: 153


editorial

Temos o prazer de apresentar a revista SaraivaConteúdo, que acontece, não por acaso, durante a oitava edição da FLIP – Festa Literária de Paraty. Foi neste mesmo evento que, em 2009, lançamos o site www.saraivaconteudo.com.br, que agora completa um ano de atividades, formando um significativo recorte dos acontecimentos culturais que ocorreram neste período. Já são mais de 180 vídeos exclusivos captados em HD digital com nomes que vão de Maria Bethânia, Caetano Veloso e Nélida Piñon, a artistas em início de carreira, como Maria Gadú, Roberta Sá, Thiago Pethit, a escritora Carola Saavedra e o cineasta Matheus Souza. Registros com nomes internacionais também ajudaram a construir o padrão do site. Sophie Calle, Jeanne Moreau, Inês Pedrosa, Yoani Sanchez, Mario Bellatin, e Antônio Lobo Antunes são exemplos do olhar amplo a que o Saraivaconteudo se propõe. Para esta edição, escolhemos homenagear o poeta Ferreira Gullar, que completa 80 anos, e acaba de receber o Prêmio Camões. Além de uma conversa recente gravada em sua casa, o texto que apresentamos aqui é o resultado de uma apuração que teve outros dois encontros: o primeiro, em 2009, na Casa Poema, no Rio de Janeiro; e o segundo no Festival Literário da Mantiqueira, em maio deste ano. No www.saraivaconteudo.com.br, você tem acesso ao registro destes três momentos. O sonho de outro poeta nos inspirou a passear pela intimidade de importantes nomes da nossa literatura. Pegamos carona na “velha fantasia” de Carlos Drummond de Andrade – a criação de um arquivo-museu com objetos pessoais, manuscritos e acervo particular de escritores brasileiros, hoje

realidade na Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro – para entrar no universo de Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Pedro Nava e Vinicius de Moraes. Dialogar com a tradição e compartilhar o nosso olhar sobre a produção artística contemporânea - uma marca que temos perseguido no SaraivaConteúdo – também norteou a edição da revista. Além dos perfis de Marcelo Jeneci e Thaís Gullin, artistas sofisticados que vêm conquistando cada vez mais espaço no cenário musical brasileiro, convidamos a jovem poeta Bruna Beber para refletir sobre a palavra em tempos digitais e o cartunista André Dahmer para lançar sua ironia em quadrinhos ambientados no universo literário. A revista oferece ao leitor outras maneiras de dialogar com os textos, vídeos e fotografias que produzimos no site SaraivaConteúdo. Traz a integração entre os meios impresso e digital. Combina o sabor de folhear uma revista com o universo de possibilidades que a internet oferece. Aproxima o seu olhar do nosso. Soma arrebatamentos, sonhos e ideias. E faz desta cumplicidade, um rumo. Até a próxima parada. Até qualquer momento, no mundo virtual. Equipe SaraivaConteúdo


Livraria Saraiva

Diretor de compras Frederico Indiani Diretor de marketing Jaime Chaves Gerente de comunicação Vera Esaú Coordenação geral Sabrina Sakakura

Revista SaraivaConteúdo

Publisher Marcio Debellian Edição Bruno Dorigatti, Carolina Casarin e Ramon Mello Colaboradores desta edição André Dahmer, Bruna Beber, Mauro Ferreira e Thales Guaracy Fotografia Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (FCRB), Jorge Bispo, Luiz Maximiano, Ralph Gibson, Tomás Rangel

TWITTER @saraivaconteudo @saraivaonline

Projeto gráfico e diagramação Rodrigo Rodrigues/ Duat Design Planejamento Claudia Barbosa Produção Carolina Casarin Edição de Vídeos

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João Pedro Bittencourt e Luisa Moscoso Revisão Juliana Lugão

Impressão Ibep Gráfica

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Debê Produções Rua Jardim Botânico, 674 / sala 123 Jardim Botânico CEP: 22461-000 Rio de Janeiro – RJ

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SARAIVACONTEÚDO AGOSTO 2010


Ago.2o1o 16 10

Carola Saavedra “A língua portuguesa é minha casa”

06 A palavra que se adapte 15 Livros digitais 20 Pingue-pongue

Benjamin Moser

36 Novos artistas

Marcelo Jeneci e Thaís Gullin

40 Fotografia Tomás Rangel 48 Lançamentos Wendy Guerra João Paulo Cuenca

Lou Reed

Lançamento de Atravessar o fogo reitera o status poético da obra do artista

28 Ferreira Gullar

Um perfil do grande poeta que acaba de ganhar o prêmio Camões e lança novo livro em setembro

22 André Dahmer

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Casa de Rui Barbosa

Como um sonho de Drummond se tornou o mais importante arquivo-museu de nossa literatura

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comportamento

A

pala-vra

que se adapte Futurar é uma inquietude muito antiga. Na primeira conversa do mundo entre indivíduos de sabe-se lá que tipo – quando ainda não existiam meses, anos, horas, hoje, amanhã, depois, quem sabe um dia e nenhuma outra expressão ou palavra que medisse

O jornalismo cultural, se é que isso existe, anda mais especulativo que o mercado financeiro: qual o futuro da internet, do disco, do papel, da indústria fonográfica, do mercado editorial, das mídias sociais, da pirataria; livro de graça pra download - em partes ou na íntegra; você usa Kindle, Ipad, o vinil voltou pra ficar? É uma chatice infinita. Leandro de Paula, filósofo e estudioso do stalking nas mídias sociais, disse uma vez que um dos baratos da internet foi ter possibilitado que todas as pessoas tivessem uma mídia só pra si. E até várias. Ele se referia não só aos sites pessoais, mas sobretudo ao blog e ao seu desdobramento, o Twitter, e também ao Flickr, ao Tumblr e ao MySpace. Não é novidade que no final do ano de 1999, no Brasil, escritores jovens começaram a mostrar seus trabalhos em blogs. E por meio do blog começaram a conhecer outros escritores, leitores, fundaram revistas, zines literários, pequenas editoras, e, por fim, foram publicados por editoras médias e grandes. Isso tudo resultou em boa parte na literatura contemporânea. Fabrício Carpinejar, Ismael Caneppele, Ivana Arruda Leite e Michel Melamed falam sobre os efeitos da internet em suas carreiras, relação com o público, divulgação do trabalho, livro de papel e livro digital. Fabrício, Ivana e Michel começaram antes da internet, mas Ismael cresceu com ela. A pergunta fatal talvez fosse sobre o futuro da palavra. Mas quem escreve não se preocupa com isso. Confia.

o tempo – a conversa era sobre o porvir. Posso apostar que três grunhidos raivosos para “daqui a pouco”, um grito e um pulo para “o que teremos para o jantar”, um puxão de

Como era seu processo de criação antes da internet? Ivana. Antes da internet eu sentava no computador (ou na máquina de escrever) e ficava dias, meses em cima de uma história sem me cansar. Na maior concentração.

cabelo na mulher amada para “eternamente” e um movimento sensual de quadris para “vamos aproveitar que podemos morrer a qualquer momento”. Por BRUNA BEBER

O futuro veio antes do relógio e depois dos advérbios de tempo, é o último filho da linguagem, foi criado num dia de ócio, quando resolveram dividir o tempo em três grandes blocos disformes e flutuantes: o presente para o agora, o passado para o que viesse depois e o futuro para o amanhã e todas as coisas imaginadas e não sabidas. Ainda hoje é assim. Numa conversa entre indivíduos de sabe-se lá que tipo, três grunhidos raivosos para “qual o futuro do livro?”, um puxão de cabelo na mulher amada para “por que você ainda compra cd?”, um movimento sensual de quadris para “eu curto é pintura, não me ligo em artes visuais”.

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Fabrício. Eu sou pré-histórico como todos que nasceram nos anos 1970, nasci sob o impacto da mudança febril da tecnologia. Comecei a escrever com máquina de escrever, catando milho, depois foi a elétrica, depois o computador com tela verde e disquetes do tamanho de um vinil, fiquei mais tempo aprendendo a mexer nos novos aparelhos do que poetando. Risos. Para provar, tenho um certificado de curso de datilografia, acredita? Acho que meus pais gostariam que eu fosse concursado do Banco do Brasil. Não me imagino sem a internet, foi só uma maneira de organizar minha loucura. Michel. A internet existe desde o início do mundo...? De todo modo, muitas fases: máquina de escrever, o sonho da editora ex-machina, os palcos... Mas, em resumo, diretamente respondendo: os livros sempre estiveram ao alcance dos pés. E dos sonhos, nem se fala, né? Toda palavra escrita é uma carta. Chegará ao destino – os Correios têm fama de prestar bons serviços, confere? ;)


Ismael Caneppele

Fabrício Carpinejar Ismael. Fica complicado falar sobre processo de criação antes da internet, pois sempre convivi com ela, e sempre muito de perto, já na adolescência. Não faço parte daquela geração de escritores que foi pega de surpresa pela hiperconectividade, então, como escritor, não senti o deslumbramento nem o pavor da nova onda. Foi natural desde sempre. E como é criar depois da internet? Ivana. Depois da internet é uma luta pra eu escrever uma hora seguida. É dificílimo manter o foco. Fabrício. Mais rápido, dispersivo e letal. Eu engoli os rascunhos, preciso cuidar muito mais do texto durante a criação, presto mais atenção em cada frase, mais atento ao ruído. Existe o engano de deduzir que a internet traz facilidade, que é somente colocar lá, ela aumentou a exigência, antecipou o processo de edição do livro. Escrever e editar dividem o mesmo momento. Tanto que não guardo mais inéditos, o que escrevo está na rede. Virei mais peixe do que pescador. É difícil imaginar atualmente um Fernando Pessoa morrendo com um baú de guardados. Michel. Sábio e erótico. Pressagiar que você pode ser lido assim que o ponto final é esmagado, é muito gentil, saboroso. Aquela cena clássica do cara transando, a mãe do lado, o psicanalista, chegou ao paroxismo. Você escreve certo de que será lido.

Mesmo que não seja. O que importa de fato quando se escreve? Então agora os oceanos são 7 bilhões e o nosso trabalho, o de sempre: inventar garrafas (e quebrá-las também). Ismael. O mais libertador pós-internet foi que o saber se desvinculou da informação. Pouco importa decorar listas, datas, nomes. Tudo está no Google, o que me permite ocupar a cabeça com coisas mais interessantes e mais substanciais. Antes da internet havia um culto à informação no sentido de competir qual cabeça seria capaz de armazenar e memorizar mais dados. Hoje o culto se dá pela capacidade de se criar sobre aquilo que já existe. O sonho pós-moderno finalmente é real, quase cem anos depois. De que modo você usa a internet para divulgar seu trabalho e se relacionar com seus leitores? Ivana. Tenho um blog e isso facilita muito a comunicação com meus leitores. Twitter também ajuda, embora a audiência do blog seja mais “consolidada”. Fabrício. É uma arena de chistes, provocações e debate. Os leitores completam meus textos com evocações e impressões nos comentários. O público nasce junto comigo. Não tenho que procurá-lo. Michel. Afora o que todos sabemos (sites de relacionamentos, blogs etc.), acho importante a internet se impor cada vez mais na relação com o mundo “real”, isto é: essa coisa de establishment versus underground foi morrendo nos anos 1990 Veja a entrevista com Bruna Beber e Fabrício Carpinejar no site www.saraivaconteudo.com.br

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comportamento

Ivana Arruda Leite

Michel Melamed

com as roldanas da internet. Ela é a medula dessa Jericoacoara. Quer dizer, o meio possível para que se viva do seu trabalho, seja escritor, músico, diretor etc., sem necessariamente dialogar com a chamada “grande mídia”. Deveríamos mesmo calcular novos nomes pra isso. A internet é a “grande mídia”. Enfim, o que não falta é gênio. Voltemos às garrafas... Ismael. A internet é parte importantíssima do meu trabalho. Meu blog funciona como um verificador de interesses. Nele, costumo ser radical no que diz respeito à pesquisa de linguagem para testar os limites da cumplicidade com meu público. Gosto de ver até onde os leitores são capazes de suportar uma experimentação linguística ou mesmo um ponto de vista inesperado sobre a vida. Outra coisa na qual presto muita atenção é no tamanho do texto. Sinto que, on-line, não posso escrever longamente pois a internet é o território da transitoriedade e a competição de interesses acaba sendo gigantesca. Sinceramente, o que escrevo não tem como competir em interesse com a caixa de e-mails ou com o Facebook pessoal de qualquer leitor, por isso preciso ser breve e claro na mensagem que quero passar na web.

bém naquilo que não entrou. Se o autor não deixa nenhum texto realmente bom de fora, fracassou na qualidade. Michel. Claro. O conteúdo, ao menos no meu caso, é, muitas das vezes, exatamente este atravessamento das linguagens e mídias. Resumão: faço questão. Frankenstein é brother. Ismael. Tenho bem definido o que será publicado virtualmente e o que será publicado em papel. Publicar na internet é um exercício de desapego, pois as pessoas costumam se ater mais aos últimos textos produzidos. Ainda não sei se, algum dia, publicarei minha vasta produção virtual em livro, não sei qual o sentido disso uma vez que está disponível on-line e de graça para quem estiver interessado. Não vejo muita razão para se pagar pelo que já está disponível, a menos que seja pela fetichização do objeto livro. Você lê livros digitais? Usa Ipad, Kindle etc.? Ivana. Nunca li. Nem tenho vontade. Fabrício. Ainda não, mas pretendo me aventurar. Será mais uma camada geológica superada em minha formação. Michel. Não. Ainda.

Como vê a possibilidade de colocar um conteúdo on-line enquanto está sendo produzido e antes de virar um livro? É uma prática que utiliza? Ivana. De jeito nenhum! Escrever pra mim é sagrado e secreto. Só mostro depois de pronto. Fabrício. Eu faço isso naturalmente nos meus três blogs. Mas organizar um livro é bem mais difícil, é inventar um elo entre as crônicas ou poemas, priorizar o conjunto, eliminar as repetições, selecionar, renunciar. Uma verdadeira obra se faz com tudo que não foi escolhido. O valor dela está tam-

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Ismael. Nada disso. Sou analógico nesse sentido. Leio livro, gosto de escutar músicas em disco de vinil. Não tenho o menor interesse em ler um livro que não seja no papel, pois o valor táctil me é muito caro, talvez por ser ancestral. Adoro cheiro de papel. Sem contar que telas brilhantes machucam o olho. Em literatura, a opacidade das palavras escritas ainda me é fundamental. Bruna Beber é poeta, autora dos livros A fila sem fim dos demônios descontentes (7Letras, 2006) e Balés (Língua Geral, 2009).


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entrevista

Carola Saavedra

“A língua portuguesa é minha casa” Por RAMON MELLO Foto TOMÁS RANGEL

A escritora e tradutora Carola Saavedra nasceu no Chile, mas mora no Rio de Janeiro desde os três anos de idade. Escolheu a língua portuguesa como pátria, fazendo dela instrumento de transformação. A delicadeza das palavras de Carola emite o eco de autoras como Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. A incomunicabilidade das relações afetivas costura as histórias de três de seus romances: Toda terça (2007), Flores azuis (2008) e Paisagem com dromedário (2010), todos editados pela Companhia das Letras, ponto final dessa trilogia. Mas o início dessa busca se iniciou com a publicação do livro de contos Do lado de fora (7Letras, 2005), metáfora para o “olhar estrangeiro” herdado dos pais, que marca sua escrita. Uma trajetória literária construída com a precisão de quem está disposta a vivenciar cada passo, devagar e sem medo. Você nasceu no Chile e vive no Brasil desde os três anos de idade. De que forma essa relação com os dois países interfere na sua produção literária? Carola Saavedra. Costumo sempre enfatizar que sou uma escritora brasileira, não sou uma escritora chilena que escreve em português. Nasci no Chile, meus pais são chilenos, mas fui voltar lá com 17 anos... Eu tinha a “ilha Chile”, que era a casa dos meus pais, com a música, a comida, a literatura. Me lembro que tive um choque muito grande ao perceber que havia diferença entre o “Chile, casa dos meus pais” e o “Chile, país”. Foi um choque cultural, emocional, existencial... Eu tinha uma ideia, quase que uma ilusão, que havia sido passada pelos meus pais. Percebi que aquilo tudo tinha pouco a ver comigo. Na casa dos meus pais ficou um país congelado no tempo. Eu tenho uma herança, claro, mas não me identifico. Andava por Santiago e diziam: “Mas você é uma típica brasileira!” Eu achava curioso porque até aquele momento não estava muito claro o que era ser uma “típica brasileira”, ou ser uma “típica carioca”. Aliás, não acho que eu seja tão “típica” assim, em nenhuma das duas hipóteses. Muita gente me pergunta: “Por que você não escreve em espanhol?” Nunca passou pela minha cabeça escrever em espanhol. Talvez porque a minha formação intelectual tenha sido no Brasil, fui alfabetizada em português. Em casa eu tinha outro mundo.

Por exemplo, comecei a ler literatura hispano-americana ainda muito nova. Eu era uma “típica adolescente carioca”, mas lia [Juan Carlos] Onetti, [Julio] Cortázar, [Jorge Luis] Borges... Era pouco comum. Eu tinha referências do Brasil e do Chile, que eram de casa: música e literatura. Junta-se a tudo isso a Alemanha. Eu estudei em colégio alemão, e desde os oito anos de idade esse idioma faz parte do meu dia a dia. Você foi estudar na Alemanha? Carola. Quando me formei em Comunicação Social, Jornalismo, eu fui fazer mestrado na Alemanha. E fiquei dez anos morando na Europa. A Alemanha foi muito importante também. Às vezes, não sei dizer o que foi mais importante: Chile ou Alemanha. Eu não escreveria se não tivesse passado por essas experiências. O título do meu livro de contos, Do lado de fora, traduz um pouco como eu me via como escritora. Esse olhar de quem está de fora, de quem não pertence totalmente. É um sentimento de sempre ser estrangeiro. Por estar olhando de fora, observando, talvez seja capaz de perceber alguma coisa que quem está “dentro” não perceba. Talvez essa seja uma marca da minha literatura, a experiência do estrangeiro. Como fica seu afeto ao se deparar com a sensação de pairar sobre a vida? Carola. Já foi um problema bastante complicado na minha vida por muitos anos, a sensação de não pertencer a lugar nenhum. Eu sou muito flexível, me adapto rapidamente a muitos lugares. E, ao mesmo tempo, eu nunca me senti em casa em lugar nenhum. Tudo isso mudou quando comecei a escrever, a publicar. Estreei levando a literatura a sério, com o projeto de escrever todos os dias. Quando eu morava na Alemanha, era raro eu falar em português. Mas ficou claro que eu me sentia em casa com a língua portuguesa, não importava onde estivesse. Essa foi uma construção que fiz, criei uma identidade. E esse mundo que criei é em português, onde me encontro. Quando isso começou a ser construído, essa questão de não pertencimento deixou de ser um problema. A língua portuguesa é a minha casa.

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entrevista: Carola Saavedra

Você trabalha como tradutora de alemão e espanhol. Como conciliar o ofício de escritora e tradutora? Carola. Depende muito do tipo de texto que se traduz. Mesmo quando se traduz literatura, depende do tipo de texto que o autor está usando. Quanto mais poética for a linguagem, mais o texto exige do tradutor. Há quem diga que o tradutor recria a obra. Eu penso que não, tento me manter a mais fiel possível ao autor. Há momentos que se manter fiel pode ser um risco, pode ser estragar o trabalho. Mas não me vejo como autora quando traduzo. Sou autora quando escrevo meus livros. E quando traduzo sou tradutora, e traidora. [risos] O que mudou desde sua estreia? Consegue analisar que transformações ocorrem até a publicação do romance Paisagem com dromedário? Carola. Eu consigo, infelizmente. [risos] Não renego o primeiro livro. O início do que sou agora está no Do lado de fora. É claro que, com a experiência que tenho hoje, vejo defeitos nesse livro de estreia. Mas não renego. Com todos os problemas e defeitos, ele tem algo que me agrada. Vejo esse livro como algo necessário, o pontapé inicial. Na sua literatura, os personagens estão sempre se desencontrando, buscando uma comunicação que não se estabelece por inteiro.

“Gosto da ideia de que a escultura já está pronta, dentro da pedra, dentro do barro, e a gente apenas a encontra. Assim como a morte, também já está pronta, desde o início seu formato definitivo dentro do barro, e a gente apenas a encontra.” Veja a entrevista com Carola Saavedra no site www.saraivaconteudo.com.br

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Carola. Paisagem com dromedário se assemelha quase a uma performance, uma instalação. Há um gravador em cima de uma mesa, não tem quem fale ou ouça. O que esses livros têm em comum é a impossibilidade de comunicação, a mensagem que não chega. Essa imagem do gravador numa sala vazia no Paisagem com dromedário é a imagem da minha literatura. Assim como em Flores azuis temos a imagem da carta que chega para a pessoa errada. Temos sempre essa defasagem na comunicação, uma impossibilidade. Talvez esse seja o meu tema, que vejo como um ciclo que comecei com Toda terça e terminei com Paisagem com dromedário. Além dessa questão da impossibilidade da comunicação, são livros sobre o dizer. Como dizer alguma coisa? Em Toda terça, cada personagem monta sua versão e o leitor é aquele que monta o quebra-cabeça. A ideia do Toda terça era dizer alguma coisa através do não dito. No Flores azuis, era trabalhar essa defasagem no dizer: uma mulher apaixonada que escreve cartas para o ex-amante tentando seduzi-lo, mas as palavras chegam para outra pessoa. É como vejo a questão do leitor e do escritor. Flores azuis funciona quase como um pequeno ensaio sobre a escrita e a leitura. Quando escrevo


um livro, a ideia é seduzir o leitor. Mas quando seduzimos o leitor, normalmente, é pelos motivos errados. Os livros se separam do autor, adquirem vida própria. Já em Paisagem com dromedário escolhi trabalhar com as gravações, quase como um radioteatro: há o barulho do mar, do liquidificador, das pessoas passando... Me interessa contar fugindo da palavra escrita, buscando a forma de dizer. Essas marcações pontuam o que a personagem está narrando. Os três livros são reflexões sobre como contar uma história. A morte está muito presente em Paisagem com dromedário: “Gosto da ideia de que a escultura já está pronta, dentro da pedra, dentro do barro, e a gente apenas a encontra. Assim como a morte, também já está pronta, desde o início seu formato definitivo dentro do barro, e a gente apenas a encontra”. Como você lida com a morte? Carola. A morte, assim como o amor, é o tema. A personagem, Érika, vive o luto em todos os sentidos, não é só essa amiga dela que morreu. Quando ela vai para a ilha e começa a repensar a morte, tem a ver como penso. A morte não existe, não é palpável. A morte é um vazio, um buraco. O que existe é o contorno da morte. E através desse contorno conseguimos ver o formato, mas o que há ali dentro é o

nada. Vivemos numa sociedade que tem medo de olhar para a morte. Quando não vivemos o luto, a pessoa não morre. E a vida? Carola. A própria vida me encanta. Com todas as tragédias e dramas, o que me encanta na vida é a intensidade. Sou uma pessoa muito apaixonada, estou dentro da vida seja para sofrer ou ter grandes alegrias. Essa intensidade permite entender que há uma compensação. Na literatura é importante entender que um autor se constrói com o tempo. O talento vai se construindo, vamos andando e fazendo o caminho...

Paisagem com dromedário Companhia das Letras 168 páginas Capa de Kiko Farkas e Thiago Lacaz/ Máquina Estúdio

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livro digital

Saraiva entra no mercado de livros digitais

lha, é só baixar o Saraiva Digital Reader para fazer o download do livro digital, que ficará disponível na biblioteca virtual do aplicativo. É possível baixar o mesmo título quantas vezes quiser, em até seis computadores.

Rede de livrarias oferece o maior acervo de obras digitais, entre títulos nacionais e estrangeiros, e aplicativo para leitura com várias funcionalidades

Todos os livros digitais adquiridos permanecem disponíveis na biblioteca virtual. Não é necessário fazer o download no momento da compra e sim quando o cliente achar viável. “Aplicamos o conceito de cloud computing (nuvem) para o cliente administrar seu conteúdo da maneira que lhe for mais conveniente. É exatamente essa comodidade que queremos oferecer, uma experiência que contemple o conteúdo e o atendimento não importa onde ele esteja”, complementa Pousada.

Além de já poder comprar livros digitais através do site www.saraiva.com.br, os leitores encontram o aplicativo Saraiva Digital Reader, elaborado exclusivamente pela empresa para leitura de edições digitais de livros, e oferece diversas funcionalidades, como marcação de páginas, possibilidade de anotações, destaque de trechos dos livros, sistema de busca e importação de conteúdo. Para o lançamento do serviço, a Saraiva oferece cerca de 1.500 títulos nacionais e 160 mil títulos estrangeiros. “Queremos cada vez mais estar conectados aos hábitos de entretenimento das novas gerações, por isso, investimos em mais uma iniciativa voltada para web”, explica Marcílio Pousada, diretor-presidente da Livraria Saraiva. 1 7/21/2010 4:23 PMnavegue AA_205x132,5mm_Penguin-Saraiva.pdf experiência integrada no site permite que o leitor e confira os títulos antes de fechar a compra. Após a esco-

Os livros digitais podem ser abertos em outros aplicativos além do Saraiva Digital Reader. Da mesma maneira que o cliente pode ler no aplicativo da Saraiva os títulos comprados em qualquer loja. “Há livros digitais no site com o preço até 30% mais barato que a obra impressa”, esclarece Marcílio. Quem quiser se familiarizar com o serviço antes de realizar algum investimento, pode baixar gratuitamente cerca de 500 títulos no site.

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artigo

POESIA NAS SOMBRAS Por MAURO FERREIRA Foto RALPH GIBSON

Popstar outsider, Lou Reed não é um estranho no ninho literário Outsider pela própria natureza rebelde, Lou Reed não haveria de se sentir um estranho no ninho literário da 8a. Flip, caso não tivesse desmarcado, na última hora sua vinda a Paraty. Ao seguir a trilha aberta nos anos 1960 por Bob Dylan, o cantor e compositor norte-americano logo foi alçado ao Olimpo habitado pelos poucos roqueiros que alcançaram o status de poeta ao combinar decibéis com letras que retratam em tons profundos o homem e a sociedade viciosa que o molda. No caso de Reed, artista diplomado na sempre efervescente Nova York, cidade onde formou, em 1965 com John Cale, o influente grupo The Velvet Underground, esses tons se mostraram sombrios já no início da carreira solo, pavimentada há exatos 40 anos. O resumo das primeiras três décadas desse cancioneiro embebido em poesia nua e crua está feito em Atravessar o fogo, livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Trata-se da oportuna edição em português do songbook oficial de Reed, Pass thru fire – The collected lyrics, lançado originalmente nos Estados Unidos em agosto de 2002. Reed mexeu mesmo com fogo ao falar de sexo e drogas pesadas em suas letras. Em 1970, com sua saída do Velvet Underground, Lewis Allan Reed se viu totalmente livre para expor como bem entendesse sua visão do (sub)mundo. No primeiro álbum, Lou Reed (1970), ele até pareceu não ter mais o que dizer. Mas era rebate falso. Ao disco fracassado, arquitetado com sobras do repertório do Velvet, seguiu-se um dos clássicos atemporais do (glam) rock, Transformer, álbum de 1972, conhecido por “Walk on the wild side”, o hit manifesto que ajudou a moldar a personalidade solo

de Reed. Sob a produção antenada do colega inglês David Bowie, o roqueiro norte-americano se expôs já na imagem ambígua da capa do disco. E a pista era verdadeira: em “Make up”, uma das 11 faixas do álbum, Reed saiu do armário, revelando uma homossexualidade já abordada no repertório do Velvet Underground em canções como “I’ll be your mirror”. Estudante de literatura nos anos 1960, Reed já mostrava no Velvet a obsessão poética por temas como sexo e drogas, ambos aplicados em doses cavalares nas suas letras. Transformer, o disco ainda hoje celebrado, ampliou seu raio de ação poética, mas a ótica com que o compositor retratava o submundo já era velha conhecida dos (poucos) fãs que cultuavam o Velvet na cena underground. Já na música que abria Transformer, “Vicious”, Reed fala com prazer de sadomasoquismo. E o curioso é que, apesar dos temas espinhosos, Transformer deu a Reed uma projeção mundial que nenhum outro álbum seu alcançaria. Talvez porque o poeta, rebelde, não tenha seguido à risca a receita nos discos seguintes. O posterior Berlin (1973), por exemplo, é (grande) obra conceitual em que Reed dissecou o relacionamento fracassado de fictício casal norte-americano, Caroline e Jim, que residia na cidade alemã que dava nome ao álbum. Trabalho de contornos sinfônicos, moldados pelo produtor Bob Ezrin, Berlin tem atmosfera sombria, tocando fundo na ferida não cicatrizada de assuntos como violência doméstica. Mesmo correndo o risco de não ser genial, o poeta nunca se aquietou ou se acomodou. Após lançar em 1974 dois álbuns de boa repercussão comercial, Sally can’t dance e o Rock’n’roll animal, ao vivo, Reed investiu pesado – e de forma pioneira – na música eletrônica, no duplo Metal machine music, fracasso de vendas em 1975 (o mesmo ano de Coney island baby, disco de aura gay). Era Reed transitando novamente pelo wild side do mercado, sem nunca deixar de fazer suas conexões com a poesia. Não por acaso, décadas mais tarde ele lançaria o álbum The Raven (2003), inspirado na obra do poeta Edgar Alan Poe (1809-1849), outro que transitava pelas sombras. The Raven, na verdade, se originou de um espetáculo (Poe-Try, 2000) em que Reed entrelaçou música, teatro e poesia.

Leia o blog de Mauro Ferreira no site www.saraivaconteudo.com.br

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artigo Popstar cultuado como poeta do rock, Reed chega aos 68 anos entronizado no posto de um dos reis da contracultura. Mas, a rigor, sua obra oscila entre graus díspares de densidade musical e poética. Quando ele acerta, como no álbum New York (1989), em que radiografou o pulmão congestionado da cidade natal que destrata imigrantes com a mesma facilidade com que manda seus jovens para as guerras, Reed faz jus ao status de mestre. Foi com maestria que ele chocou no ninho literário uma obra que ecoa referências de escritores como James Joyce (1882-1941). Obra que guarda discos que, mesmo sem chegar a genialidade de Transformer, deveriam ser mais ouvidos. Caso do já obscuro The blue mask (1982), feito dez anos antes de um álbum conceitual ainda menos ouvido, Magic and loss (1992), retrato fiel de um tempo marcado por perdas. Reed inventariava neste disco a ressaca das drogas e da Aids, então ceifando vidas e contaminando com medo o prazer sexual, em especial o da comunidade gay à qual Reed sempre se aliou com orgulho, ainda que sua ambiguidade sexual o tenha levado a se relacionar com homens, mulheres e travestis. O lançamento nacional do songbook de Lou Reed reitera o status poético da obra do artista e reacende a discussão sobre as relações entre música e poesia. Discussão calorosa quando o assunto é delimitar a fronteira tênue entre o que

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é poesia e o que é letra de música. No caso de Reed, letras de puro rock como as reunidas no livro Atravessar o fogo. Há quem sustente que os versos do compositor de músicas como “City lights” e “Dirty Blvd.” são moldados para o espetáculo do rock e que, sem o volume das guitarras distorcidas, perdem força e poesia. Dizem isso de Reed. Mas dizem isso de Bob Dylan também. E o fato é que tanto Dylan como Reed – para citar somente dois sócios de um clube seleto no qual John Lennon (1940–1980) foi admitido por conta de sua obra solo e da parcela adulta do cancioneiro dos Beatles – alçaram as letras de rock a um patamar poético ainda hoje alcançado por poucos. Por isso, Reed nunca foi estranho no ninho literário. E, por isso, há tanta reverência – justa – a um roqueiro que sempre viu poesia nas sombras. Mauro Ferreira atua no jornalismo musical desde 1987 e assina o Blog de Música do Saraivaconteudo.

Atravessar o fogo Companhia das Letras 794 páginas Tradução de Christian Schwartz e Caetano Waldrigues Galindo Capa de Jeff Fisher


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A literatura brasileira no exterior O biógrafo de Clarice Lispector comenta a situação de autores brasileiros no exterior Por BRUNO DORIGATTI e RAMON MELLO Foto Luiz Maximiano

Autor de uma das melhores biografias lançadas em 2009, o norte-americano Benjamin Moser há muito que trocou seu país natal pela Europa e América Latina. Por aqui, pesquisou durante muitos anos para o livro que narra a vida de Clarice Lispector e seus antepassados, intitulado simplesmente Clarice, e lançado pela Cosac Naify. A seguir, Moser fala sobre como seu livro impulsionou novas traduções de Clarice nos EUA, a quantas andam as traduções brasileiras por lá e rebate a afirmação de a cultura norte-americana ser tão autocentrada. Segundo dados fornecidos por pesquisadores, apenas 3% dos livros lançados todos os anos nos Estados Unidos são traduções. Quais as consequências de tão poucos livros de outras culturas chegarem ao país? Benjamin Moser. Não é tão pouco. Há que lembrar que o mercado americano de livros é enorme. Em língua inglesa, ou seja, junto com a Inglaterra, tem, e de longe, muito mais livros publicados por ano do que em qualquer outro idioma. Dependendo do ano e do cálculo, é entre oito e dez vezes a quantidade publicada no Brasil: centenas de milhares. [Segundo dados da Unesco e da CBL, em 2005 a Inglaterra editou 206 mil títulos e os Estados Unidos, 172 mil. Já o Brasil, em 2007, editou 45 mil títulos entre primeiras edições e reedições.] Então 3% disso não é pouca coisa. Agora, o problema é que com tantos livros espalhados no mercado, não é sempre

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fácil encontrar um público para eles. O número de pessoas que lerão um romance da Finlândia, da Itália ou do Brasil não é enorme. Tem exceções, sempre. Mas, em geral, já é um desafio os próprios autores nacionais encontrarem leitores. Isso é a mesma coisa em todo o mundo. O Brasil responde por uma parcela ínfima destas traduções, que vêm aumentando nos últimos anos. Como você percebe as movimentações neste cenário na última década? Moser. Não sei se está aumentando, não tenho visto nenhuma estatística. Mas acho que o Brasil poderia fazer muito mais para promover a literatura brasileira internacionalmente. As pessoas fora do Brasil têm uma ideia muito vaga do país. Acho que desde Carmen Miranda não tem mudado muito. Deviam estar lotando os aviões para eventos como a Flip. Por que não estão trazendo todos os editores, assessoras de imprensa, professores, que podem encontrar? As pessoas – não só os norte-americanos, mas todo mundo – não conhecem o Brasil, não têm noção de suas riquezas culturais. E, apesar disso, têm uma noção muito positiva: quem vem, quase sempre acaba voltando. A mesma coisa com o ensino do português. Muitíssimos americanos estudam o espanhol, que é tão parecido com o português. Quem fala espanhol aprende facilmente: não é como o coreano ou o


árabe. Por que não estão caçando esses estudantes, ainda jovens, para trazê-los ao país? Como o apoio governamental pode ajudar a tradução de obras para outras línguas? Além disso, que outras iniciativas podem ser levadas adiante para que esse intercâmbio entre literaturas e culturas prospere? Moser. Na Holanda, onde moro, um país muito pequeno, onde se fala um idioma que ninguém fala, eles entenderam há muito que a cultura é uma das coisas mais importantes que se deve promover diplomaticamente. Eles têm uma organização extremamente profissional, a Fundação para a Produção e Tradução da Literatura Holandesa (NLPVF, na sigla em holandês), que tem esse papel, paga pelas traduções, apoia autores, participa de todas as grandes feiras. É um modelo muito eficaz, em que o Brasil faria bem em se inspirar. Arriscaria razões para essa cultura norte-americana tão autocentrada? Moser. Os Estados Unidos, com todos os nossos enormes problemas e defeitos, ainda é o país mais cosmopolita do mundo. De longe. Tenho passado grande parte da minha

vida na Europa (e na América Latina) e realmente não há nada que se compare. Não sei de onde vem essa ideia, tão difundida. Talvez porque, pelo menos no mundo literário, é muito importante ser publicado em inglês para a reputação internacional do autor. E quando não acontece, as pessoas culpam a nação inteira. A única explicação é que o nosso povo deve ser burro! Um autor tcheco que não é publicado no Brasil não anda dizendo: “É porque os brasileiros são autocentrados.” São: e isso é verdade em todo país. Mas de nós sempre dizem isso. Sei que já perdi essa batalha, mas continuo insistindo. Quais autores brasileiros são mais conhecidos nos EUA? Existe uma característica comum na produção desses autores? Moser. Agora, para minha grande alegria, Clarice Lispector está ficando cada vez mais famosa. Como resultado de minha biografia, Clarice, (Cosac Naify, 2009), estão retraduzindo e relançando vários livros dela. Há muitos outros sendo traduzidos, mas realmente conhecidos por um grande público, além de Paulo Coelho, não saberia dizer.

Veja a entrevista com Benjamin Moser no site www.saraivaconteudo.com.br

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pingue-pongue Dos autores que começam a ser traduzidos agora, quais lhe chamam a atenção? Moser. Gostaria que o Bernardo Carvalho fosse editado nos Estados Unidos. Eu o traduzi na Inglaterra, mas o livro não foi lançado nos Estados Unidos. Agora, de resto, não sei. Não sou um expert na literatura brasileira especificamente: dediquei muitos anos a Clarice e ao mundo ao redor dela, mas dos autores atuais, conheço só uns poucos. Como o crescente protagonismo do Brasil de uns anos pra cá pode afetar as traduções de autores brasileiros? Moser. Tenho a impressão de que pode ajudar, mas não sei como. Não é um raciocínio que posso acompanhar: a próxima Copa do Mundo será no Brasil, vamos publicar Clarice Lispector! Mas se esse protagonismo for acompanhado por um crescente esforço no campo cultural, com a criação de instituições que entendam que a cultura é mais importante para a reputação internacional do país do que a produção de soja no Mato Grosso, aí pode ajudar. Conhece o projeto Conexões do Itaú Cultural, responsável pelo mapeamento internacional da literatura brasileira no exterior? Qual a importância desse mapeamento? E qual seria o próximo passo?

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Moser. Acho muito interessante, muito positivo. Mas quando leio que a verba da Biblioteca Nacional destinada para incentivar a tradução de autores brasileiros é de até US$ 4.000 por livro, para apenas 24 títulos, com um valor total de aproximadamente R$ 100 mil, fico atônito. Isso é tudo o que um país continental tem para promover sua literatura? Realmente, fico chocado ao ver esse dado. Não levam a coisa a sério. Então talvez dependa das iniciativas privadas, como o Conexões. Mas um caminho seria criarem instituições permanentes, bem financiadas para fazer isso, como o NLPVF da Holanda. Isso é difícil sem o compromisso permanente do governo, mas sem um apoio assim, realmente vai ficar sempre numa coisa pequena, provinciana, voltada para os especialistas. O que Clarice Lispector apresenta de tão universal em sua literatura para que o convencesse de que sua vida merecia ser contada para o público não brasileiro? Moser. Tem escritores que só interessam ao país deles. Porque falam da cultura popular ou da atualidade política da Moldávia, por exemplo, o que não tem interesse para um leitor em Minas Gerais. E tem escritores que, como ela, falam dos assuntos universais. A própria Clarice, uma vez, falando de Guimarães Rosa, disse que “este era exatamente um escritor para qualquer país.” Ela também o é.



especial

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reportagem

ARQUIVO-MUSEU DE LITERATURA BRASILEIRA, A VELHA FANTASIA DE DRUMMOND

Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, mantém o maior acervo pessoal de escritores brasileiros Por Bruno Dorigatti e Ramon Mello FOTOS Tomás Rangel, Marcos Dantas e Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (FCRB)

Quem passa em frente ao velho casarão, sede da Fundação Casa de Rui Barbosa, na rua São Clemente, em Botafogo, por vezes ignora que lá exista o fruto de um sonho do poeta Carlos Drummond de Andrade. No fundo do silencioso quintal, próximo ao jardim da moradia do ilustre diplomata, onde atualmente mães e babás fazem passeios diários com seus carrinhos de bebês, está localizado o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. “O Arquivo-Museu foi criado por sugestão do poeta Carlos Drummond de Andrade. Quando Drummond foi procurado por Dona Lili Brant para autografar um caderno em capa dura com anotações e recortes de textos de escritores, ele percebeu que aquilo servia como um micro arquivo-museu pessoal. Em seguida, publicou uma crônica no Jornal do Brasil [em julho de 1972] referindo-se à ‘velha fantasia’ de criar um museu de literatura que reunisse papéis e objetos relacionados à criação e à vida dos escritores brasileiros”, diz Eduardo Coelho, chefe do Arquivo-Museu de Literatura da FCRB, cujo cargo já foi ocupado por Plínio Doyle e Eliane Vasconcellos.

Américo Lacombe, então presidente da Casa de Rui Barbosa, frequentador das tertúlias, logo aderiu à empreitada, recebendo o apoio de escritores como Paulo Mendes Campos, Murilo Araújo, Wilson Martins, Aurélio Buarque de Holanda, Alphonsus Guimaraens Filho, Pedro Nava, Afonso Arinos, Raul Bopp, Ciro dos Anjos e Peregrino Júnior. Em 28 de dezembro de 1972, a Fundação Casa de Rui Barbosa instalou em sua sede o Arquivo-Museu de Literatura, inaugurado com a exposição Camoniana, comemorativa do quarto centenário de Os Lusíadas, e com uma amostra com cerca de cem documentos do recém-criado arquivo.

Cadeira de Manuel Bandeira

Drummond e seus contemporâneos reuniam-se aos sábados em encontros na biblioteca da casa do advogado Plínio Doyle, em meados dos anos 1960. Na famosa reunião, batizada de Sabadoyle, Carlos Drummond deu prosseguimento ao seu sonho. Plínio Doyle apelou aos amigos escritores e intelectuais: “Para evitar que se perca ou se disperse a preciosa documentação da nossa história literária, mandem para a Casa de Rui Barbosa todo tipo de material que sirva à nossa finalidade específica”. Ele foi atendido prontamente, e assim juntou em 15 dias mais de 500 documentos.

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reportagem Acervos e coleções Neste centro de memória e informação, através do ArquivoMuseu de Literatura Brasileira, são preservados e divulgados alguns dos mais expressivos acervos documentais de escritores brasileiros, entre eles Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Antonio Callado, Lúcio Cardoso, Pedro Nava, Plínio Doyle, Adalgisa Nery, Fernando Sabino, Cacaso, Vinicius de Moraes, Helio Pellegrino, Rubem Braga, Osman Lins, Caio Fernando Abreu e Carlos Drummond de Andrade. “O Arquivo-Museu é constituído de arquivos e de coleções. Os arquivos reúnem acervos de escritores que são titulares desses arquivos, ou seja, tudo que foi acumulado pelo próprio autor, o titular. Por exemplo, o arquivo do Drummond possui documentos que ele próprio guardou ao longo de sua vida. E as coleções agrupam documentos doados por pessoas distintas. Já temos cerca de 124 acervos de escritores brasileiros, além de coleções com mais de 600 pastas, entre documentos avulsos, diversos originais e coleções de recortes de jornais”, explica Coelho, que completa: “Há arquivos antigos como o de Machado de Assis, José de Alencar, Cruz e Sousa. E, nas coleções temos as mais representativas, como a do Guimarães Rosa. A coleção de Lauro Escorel, por exemplo, é pouco estudada, mas tem documentos extremamente importantes. Uma das boas qualidades de Escorel era a curiosidade, ele perguntava muito aos autores sobre os processos construtivos. Então, por meio dessa coleção seria possível fazer o mapeamento da constituição do plano poético no Brasil.” É possível ainda encontrar originais datiloscritos de Água viva, de Clarice Lispector, antes intitulado de Objecto gritante. No rico acervo de Pedro Nava estão os originais de Balão cativo, peças raras, com desenhos artísticos ilustrando suas memórias. E pode-se pesquisar, por exemplo, a correspondência entre Adalgisa Nery e o casal de artistas Diego Rivera e Frida Khalo, no período em que a poeta foi embaixatriz no México ao lado do segundo marido, Lourival Fontes. Também estão na Casa de Rui cartas do então jovem poeta Vinicius de Moraes. Por exemplo, uma carta de 1938, quando Vinicius, recém-chegado a Londres, se correspondia com Rodrigo de Mello Franco sobre a literatura inglesa e a obra de Aleijadinho. Além disso, destaca-se também a rara coleção bibliográfica com revistas e jornais literários dos séculos XIX e XX, organizada pelo bibliófilo Plínio Doyle, fundador do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro. Além dos acervos e coleções, integram o Arquivo-Museu aproximadamente 1.200 peças, entre móveis, canetas, óculos, medalhas, caixas de músicas, esculturas e telas. Pode-se relacionar esses objetos com elementos das obras dos autores,

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É possível ainda encontrar originais datiloscritos de Água viva, de Clarice Lispector, antes intitulado de Objecto gritante. No rico acervo de Pedro Nava estão os originais de Balão cativo, peças raras, com desenhos artísticos ilustrando suas memórias. por exemplo, a tela A menina morta (autoria anônima, 1890), que provavelmente inspirou o quarto romance, homônimo, de Cornélio Pena. O acervo Clarice Lispector é o mais valorizado. Duas exposições já foram realizadas sobre a escritora a partir deste acervo: Clarice Lispector — a hora da estrela, de 2007, que correu o país depois de produzida pelo Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e Clarice Pintora, de 2009, que exibiu no Instituto Moreira Salles as telas da escritora, entre elas Sem sentido, de 1975, descrita no livro Um sopro de vida (1978). Arquivos virtuais, o desafio Um dos principais desafios do Arquivo-Museu é como tratar e catalogar o acervo, com arquivos enormes e que crescem todos os anos. E com o surgimento das novas tecnologias, a preservação se torna uma questão cada vez mais desafiadora. Como preservar os arquivos digitais? Como comprovar a autoria dos textos digitais? O que fica da geração de escritores que trabalham com o computador, na web? Vinicius de Moraes em Congonhas - MG, 1938


COLEÇÃOFRONTEIRA

A escrava que não é Isaura Mário de Andrade

A cinza das horas Manuel Bandeira

Morte em Veneza Thomas Mann

Corpo de baile - Volume I João Guimarães Rosa

A casa de Carlyle e outros esboços Virginia Woolf

CLÁSSICOS DE TODOS OS TEMPOS OBRAS INDISPENSÁVEIS DA LITERATURA MUNDIAL EM EDIÇÕES ATUALIZADAS E REUNIDAS EM UMA BELÍSSIMA COLEÇÃO.

A mulher desiludida Simone de Beauvoir

Vestido de noiva Nelson Rodrigues

O homem de fevereiro ou março Rubem Fonseca


“Tentamos criar pontos de diálogo com o pesquisador comprometido com aquele arquivo e nossos trabalhos de preservação. O setor público ainda está atrasado na questão da preservação de acervos digitais. Estamos interessados em colher acervos digitais de alguns autores contemporâneos, como Rodrigo de Souza Leão, para criar essa frente de trabalho. Hoje em dia os manuscritos estão praticamente em desuso. Não há respostas, há buscas por soluções. Temos que encarar a superação das tecnologias, esse é o grande desafio”, afirma Ana Pessoa, diretora do Centro de Memória e Informação da FCRB, que também enfrenta a supervalorização dos acervos: “As famílias acham melhor reter para si na subestimação completa do que seja o processo de arquivamento. Há uma mística sobre os inéditos, é bom esclarecer que quando um acervo é recolhido não se fere os direitos autorais, que continuam sendo da família. Nós temos acervos digitalizados que não foram disponibilizados na internet porque as famílias têm

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receio de perder o controle do acervo”, diz. No entanto, há exemplos positivos em relação à disponibilização virtual dos acervos, como a iniciativa da família do poeta Vinicius de Moraes, que digitalizou e publicou a coleção doada por José Mindlin – projeto que, em abril deste ano, inaugurou o Simpósio Internacional de Políticas Públicas para Acervos Digitais, realizado pelo Ministério da Cultura. “Suzana de Moraes, ao digitalizar todo acervo de seu pai, Vinicius, ajuda a provar que não é um risco. Ao digitalizar, criase uma rede de leitores em torno do autor, que busca o livro como anteparo de uma ferramenta mais acessível do que a web”, explica Eduardo Coelho.

Veja a entrevista com Eduardo Coelho e Ana Pessoa no site www.saraivaconteudo.com.br e leia a crônica de Carlos Drummond de Andrade.


reportagem

Preservar é preciso O trabalho de preservação exige muita modéstia de quem faz, e ao mesmo tempo previsão de futuro em termos históricos. Arquivistas e especialistas em literatura brasileira têm se dedicado à melhoria do Arquivo-Museu. “O padrão é perder, dispersar. Todo projeto de preservação é a eleição de alguma coisa que estaria perdida. O Arquivo-Museu de Literatura Brasileira é fundamental, paradigmático. Ele é a matriz do tratamento de coleções pessoais de literatos. A partir dele foram gerados outros arquivos-museus no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo... É um padrão, uma referência para os demais arquivos”, defende Ana Pessoa.

Serviço Arquivo-Museu de Literatura Brasileira Fundação Casa de Rui Barbosa Rua São Clemente, 134 - Botafogo - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 3289-4600 Atendimento: 2ª a 6ª feira, de 9 às 18h, com a última entrada 45 minutos antes do fechamento.

Adalgisa Nery

Plínio Doyle

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Presente na edição 2010 da Festa Literária de Paraty – Flip

O mundo pós-aniversário Um retrato da infidelidade assinado pela autora de Precisamos falar sobre o Kevin.

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O POETA AOS 8O Por Bruno Dorigatti e Ramon Mello FOTOS TOMÁS RANGEL

Uma tarde em Copacabana Segunda-feira, 12 de julho. Apenas alguns carros rodam pelas ruas Duvivier e Carvalho de Mendonça, no sempre movimentado e barulhento bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. A paz e o silêncio imperam e pouca gente circula pelo comércio local, onde funcionam uma loja de antiguidades, um brechó, uma cutelaria, lojas de ferragens. Na esquina, ali perto, no primeiro andar de um prédio antigo, Ferreira Gullar nos recebe à vontade – camisa marrom quadriculada, calça social preta e sandálias de couro – para uma conversa descontraída e informal sobre a sua trajetória. Em princípio, muito sério, nenhum sorriso é visto no rosto emoldurado pelos fios lisos de cabelos brancos, quase prateados. 2010 tem sido generoso com o poeta maranhense, que completa 80 anos no dia 10 de setembro. Até lá, sai o seu novo livro de poemas, Em alguma parte alguma, depois de 11 anos desde a edição de Muitas vozes,

em 1999, pela editora José Olympio. No último dia de maio, na cidade de Monteiro Lobato, onde iniciava uma série de palestras em bibliotecas do interior de São Paulo, ficou sabendo que havia recebido o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa. E o poeta nos informa que, ainda este ano, sai Zoologia bizarra, um livro com suas colagens a ser lançado pela Casa da Palavra. Em sua sala, a biblioteca guarda volumes antigos e alguns mais recentes, como Poemas esparsos e a Nova antologia poética, ambos de Vinicius de Moraes, Crônicas, de Oscar Niemeyer, Agosto e Coleira do cão, de Rubem Fonseca, As flores do mal, de Charles Baudelaire, La machine du monde, edição francesa do livro de Carlos Drummond de Andrade, Crônicas da província do Brasil, de Manuel Bandeira, livros sobre Portinari, Arthur Bispo do Rosário, Raul Bopp. Acima, esculturas, de Gullar e D. Quixote, fotos e uma infinida-

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especial: Ferreira Gullar de de objetos, como o copo com a famosa frase proferida na Flip, em 2006: “Não quero ter razão, quero ser feliz”. Pelas paredes, pinturas de amigos como Iberê Camargo, colagens, um original de Niemeyer. No teto da sala estão pendurados oito móbiles coloridos, que dançam lentamente conforme o vento que circula no ambiente. A mesa, no centro da sala, é ocupada por uma pilha de papéis, entre convites, textos originais, recortes de papéis coloridos e um calendário repleto de anotações. Ao ouvir a campainha, se pergunta: “Será que marquei dois compromissos na mesma hora?” Confere: “Não, felizmente.” Informalmente, já se vê seu sorriso, Gullar reclama do barulho da vizinhança, de um bar que varre a madrugada com pagode alto e ninguém toma providência. Na calçada ao lado de seu prédio, um vendedor de livros, que estende os volumes em uma toalha no chão, dia desses foi abordado pela polícia, motivada pelo Choque de Ordem do atual prefeito carioca. Ao ver a cena, Gullar desceu e foi tirar satisfação. Como um vendedor de livros, que espalha cultura, poderia estar incomodando alguém? Ouviu dos policiais que eles receberam uma denúncia. “Ora, então por que não atendem a denúncia de reclamação do barulho?”, indagou o poeta. Não teve resposta, mas depois de muita conversa convenceu os homens da lei de que o vendedor de livros era mesmo inofensivo. Ele segue vendendo seus livros, assim como o pagode continua noite adentro pelo bairro. A seguir, um passeio pela vida de Gullar, a partir deste e de outros depoimentos concedidos pelo poeta. De volta ao Maranhão Radicado no Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1950, José Ribamar Ferreira (Gullar era o sobrenome da mãe) nasceu na Rua dos Prazeres, 497, em São Luís do Maranhão. Assim o poeta relata em seu “Poema sujo”, escrito no exílio em Buenos Aires, nos 1970: “meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo sob as balas do 24º BC na revolução de 30” “Nasci numa ilha, consequentemente cercada por água em todos os lados, inclusive, de cima também, pois o que chovia… De modo que meu convívio com a água é uma coisa permanente. A tal ponto que quando eu saí de São Luís, a escolha que eu fiz foi o Rio de Janeiro, não por ter água aqui, por ser uma cidade à beira-mar, mas porque era a capital cultural do país. E a água que eu estava precisando naquela época era cultura, mergulhar neste oceano de conhecimento. Depois, conheci São Paulo, uma cidade linda, mas onde não moraria, porque não tem mar, não tem praia. Tem água, mas é encanada, o rio está poluído, quer dizer… Essa ideia de que a cidade está perto da água e, especialmente perto do mar, é uma coisa que me constitui.”

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Na infância, os banhos nos rios São Luís e Anil eram quase diários. “E foi assim, tomando banho naquela águas, que um dia aprendi o seu lado mortal; um dos nossos companheiros afogou-se. Aquilo era divertido, jogar-se do cais dentro d’água, mas parei de tomar banho no Rio Anil.” O futebol era outra distração naqueles tempos. “Éramos todos garotos, entre oito e dez anos, e nosso campo de futebol era a área cimentada do Mercado Novo, que ficava em frente à quitanda de meu pai. A pelada era depois das quatro da tarde, quando já tínhamos voltado da escola. Pereba, Carroca, Espírito e eu, também conhecido como Periquito, podíamos ser considerados sofríveis, para não dizer pernas de pau. Os dois craques eram Esmagado e Canhoteiro que, aliás, iam no futuro se tornar estrelas do futebol profissional”, recordou em crônica sobre o amigo que chegaria à seleção brasileira. Poesia: “Coisa de gente morta” Quando garoto, ainda sem saber o que era poesia, Gullar acreditava que fosse coisa de gente morta. “Tinha 13 anos, por aí, e, como todo mundo, não sabia o que ia fazer da vida. Como a vida é inventada, como é que vou me inventar?” Uma nota boa numa redação o fez pensar que poderia ser este o seu caminho. A nota dez não veio por causa de dois erros de português. “Se eu vou ser escritor, tenho que saber a língua, gramática, ortografia. Passei dois anos lendo gramática, a Gramática expositiva, de Eduardo Carlos Pereira.” Ao final do livro, havia uma antologia de poemas, desde Camões, Bocage, Gonçalves Dias até Bilac. Todos mortos. “Como não conhecia nenhum poeta no meu bairro e os que eu conheci no livro estavam todos mortos, achava que poesia era uma profissão de mortos, uma coisa que se fazia antigamente. É estranho que mesmo assim eu decidi ser poeta, adotar uma profissão de defuntos.” Os primeiros poemas, as irmãs liam. Outro irmão, mais velho, ficou preocupado, chamou Gullar de canto e disse: “Olha em que você está se metendo”. Pois perto de onde morava, tinha uma casa grande, de família rica, onde um tinha ficado meio pirado, fazia discursos da janela, declamava poemas. “Aí meu irmão pensou que eu ia ter o mesmo destino. Enquanto pra mim poesia era coisa de defunto, pra ele era coisa de maluco.” Um dia, a irmã mais velha, Concita, falou o seguinte: “Olha, você sabe que o pai da Iracema é poeta?” “Não acredito.” “É poeta e mora aqui perto.” Era um poeta de verdade, de carne e osso, tanto que os filhos se chamavam Iracema, Horácio, Homero, Lucrécio. Gullar foi até lá, mas não levou muita fé. “Ele estava de tamanco, camisinha, uma casa pequena... Pra mim, poeta era Byron com aquela cabeleira, Castro Alves. Ele não parecia poeta, olhei e fiquei meio desconfiado. Foi o primeiro que conheci, que leu os meus poemas, se entusiasmou, me levou para o jornal. O problema é que a cidade estava cheia de poetas, fiquei amigo deles, uns da minha idade, outros mais velhos”, recorda


Gullar que teve o primeiro poema, “O trabalho”, inspirado numa redação escolar de mesmo nome, publicado no jornal O Combate, em meados dos anos 1940. A ocupação, fora do colégio, além dos banhos de rio e do futebol, era jogar pedras nas pessoas. “Eu era um pivete, o Periquito. Meus colegas eram o Esmagado e o outro, me desculpe a expressão, o Espírito da Garagem da Bosta – esse era meu mundo. Quando me tornei ledor de gramáticas, rompi com eles. Ficavam gritando, me chamando pra rua, mas eu queria ficar lendo. E não fazia amizade com ninguém, até que conheci o poeta Manoel Sobrinho, pai de Iracema e companhia. Foi assim que entrei para a literatura.” Foi Sobrinho quem lhe indicou o Tratado de versificação, de Olavo Bilac, onde aprendeu a fazer versos rimados e metrificados, decassílabos, hendecassílabos, dodecassílabos. “Aprendi tão bem a fazer versos rimados que comecei a falar em dodecassílabos, já saía metrificado.” Isso em 1948, em São Luís do Maranhão, onde o movimento modernista de 1922 só chegaria no ano seguinte. Os jornais começaram a publicar Murilo Mendes, os Sonetos brancos, Drummond, e o jovem não entendia aquilo, sem rima. “Fiquei cabreiro. Lua diurética? ‘Escrevo teu nome com letra de macarrão na sopa.’ Isso não é poesia, esses caras estão de gozação.” Gullar foi então à biblioteca ler sobre a poesia moderna e descobriu O empalhador de passarinhos, de Mario de Andrade, e Cinza do purgatório, de Otto Maria Carpeaux, a primeira compreensão da poesia moderna. “Na hora não aceitei, não, mas aí virei poeta moderno também. Moderno radical, mais radical do que o Drummond. Cheguei à conclusão de que esse negócio de rimar e metrificar tinha que ser excluído, mas de uma maneira total, a tal ponto que, a partir dali, a linguagem tinha que nascer junto com o poema, não poderia antecedê-lo. A criação do poema seria a invenção da própria linguagem.”

minhar nesta direção”, era o pensamento do poeta na metade do século. “Entrei em crise, pois era a consumação do que pretendia, mas era também o fim da experiência.”

Implodindo a linguagem “A minha atitude a partir daquele momento foi a de não obedecer norma alguma, rejeitar qualquer forma pré-estabelecida. Entrei numa aventura literária de tal ordem, que terminei desintegrando a linguagem. Os poemas que comecei a escrever em 1950 até 1953, 1954 resultaram em A luta corporal, a busca pela linguagem essencial, onde nunca poderia chegar, evidentemente. Eu não abria mão da minha atitude e a linguagem não se sujeitava à minha vontade. Então terminamos brigando e eu arrebentei com a linguagem.”

Logo ao chegar ao Rio, em 1951, torna-se amigo de Mario Pedrosa, crítico de arte, no momento em que nascia a arte concreta no Brasil, que buscava uma nova linguagem para a pintura, uma mudança drástica em relação à pintura moderna, ligada ao sentimento nacional, à redescoberta do Brasil, como também era com a poesia. Já na pintura abstrata, a linguagem é universal, são formas platônicas, ideais. Foi um corte abrupto na tradição modernista, com reações por parte da crítica e de artistas como Portinari. E que influenciou a concepção artística de Gullar.

Passo a passo, Gullar vai abandonando os procedimentos adotados anteriormente por outros, que são buscas e tentativas de dar um passo adiante na direção do que ele entende como poesia. “Ficar fazendo embromação que não significa o avanço da minha proposta, não faço mais, eu paro de escrever. Tudo o que eu fizer a partir de agora vai ser para ca-

A luta corporal foi editado em 1954, às custas do poeta, na oficina da revista O Cruzeiro, onde Gullar tinha começado a trabalhar como revisor de textos, e se incomodou com o chefe da oficina, que não acertava a paginação dos poemas, fora das normas, esquisita. O livro foi a primeira de várias rupturas que marcam sua trajetória.

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especial: Ferreira Gullar

Enterrando o poema Depois do encontro que teve com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Decio Pignatari, começava a se esboçar a poesia concreta. A linguagem velha foi desintegrada, era preciso inventar uma nova. Nascia então a poesia concreta, com palavras no espaço, que se articulam pela proximidade e semelhança entre elas, e não mais pelo discurso. Em 1956, Gullar entraria no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, criado por Reynaldo Jardim, e começa a escrever sobre arte. O suplemento se tornaria o veículo da poesia concreta publicando os manifestos, artigos e poemas do movimento. Ele rompe com os paulistas, depois que estes intentaram fazer a poesia matemática, e se filia a artistas como Lygia Clark, Helio Oiticica, Weissmann, Amílcar de Castro – responsável pelo novo projeto gráfico do SDJB. Era a turma neoconcreta, cuja origem está em procurar a saída do meramente ótico. É desse momento o Livro-poema, onde o passar das páginas compunha o poema. Nasceu casualmente, mas logo chegou às artes plásticas. A partir daí, Lygia Clark e Helio Oiticica começaram a fazer obras manuseáveis, como seus penetráveis e labirintos. E o poeta sai do manuseável para o próprio corpo, quando cria o “Poema enterrado”, numa sala subterrânea na casa do pai de Oiticica, na Gávea, onde o leitor entra e descobre três cubos para encontrar a palavra “rejuvenesça”. Na inauguração, por causa de uma forte chuva, o poema inundou. Gullar chega a outro impasse. “Eu, como poeta, tinha necessidade de continuar a usar a linguagem de poeta. E naquele caminho que eu tinha seguido, usava apenas uma ou outra palavra. Isso me afastava da minha condição de poeta. Podia fazer aquilo, mas tinha que retomar minha verdadeira expressão.” É quando chega a trabalhar em Brasília, no governo de Jânio Quadros, para dirigir a Fundação Cultural, uma cidade que ainda estava sendo feita, uma experiência inovadora no interior do país, onde só havia poeira vermelha e sertanejos, artesãos do Nordeste, uma mistura do Brasil velho e do Brasil novo. No exílio A aproximação com as ideias marxistas se deu, curiosamente, através do livro de um padre francês antimarxista. Filiou-se ao Partido Comunista logo após o golpe militar de 1964, mas, um ano antes, se envolve com o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, quando começa a atividade política e a produção dos cordéis, que se estende até o exílio. Gullar entra para a clandestinidade em 1970, e aguenta, trancado num quarto, por oito meses. Então peregrina por Moscou, onde foi fazer um curso no Partido, Santiago, no Chile, Lima, no Peru e Buenos Aires, onde escreve o Poema sujo. “Cheguei no dia em que morreu Perón, assumindo Isabelita. A instabilidade era crescente e os

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“Pássado Tenista”, colagem que estará no livro Zoologia bizarra, que sai em setembro pela Casa da Palavra.

exilados chilenos e uruguaios começaram a sumir ou ter que fugir. Sabia-se que a polícia da ditadura brasileira atuava em acordo com a Argentina, e isso aumentava minha intranquilidade. Enfim, temia que a qualquer momento, também eu sumisse. Então decidi escrever um poema que dissesse tudo o que me restava dizer, um poema final. Um belo dia, em maio de 1975, comecei a escrevê-lo e só o terminei em outubro. Durante esses meses não vivia outra coisa senão o poema.” Publicado no Brasil em 1976, depois que Vinicius de Moraes, de passagem por Buenos Aires, fez o poeta gravar o poema em uma fita cassete, para que fosse transcrito e editado aqui, pela Civilização Brasileira, de Ênio Silveira, é no Poema sujo que aparece a letra feita para “O trenzinho caipira”, parte das “Bachianas Brasileiras n. 2”, de Villa-Lobos. Quando garoto, o pai de Gullar o levava nas viagens de trem entre São Luís e Teresina. Então comerciante ambulante, seu Newton Ferreira vendia mercadorias maranhenses no Piauí, e vice-versa. “Eu me lembro da primeira vez em que fiz essa viagem: saíamos de madrugada e quando o dia começava a amanhecer o trem chegava nos Campos de Perizes, uma espécie de Pantanal, enorme, muitas aves”, recorda. Ao ouvir pela primeira vez “O trenzinho caipira”, Gullar se lembrou dessas viagens com o pai. Teve vontade de colocar letra, e tentou por 20 anos. Mas não conseguiu. Na capital argentina, quando trabalhava no Poema sujo, “uma retomada de todo o indivíduo”, no momento em que fala da viagem com o pai, recordou-se da música.


Acidente na sala

O duplo

movo a perna esquerda de mau jeito e a cabeça do fêmur atrita no osso da bacia sofro um tranco

Foi-se formando a meu lado um outro que é mais Gullar do que eu

e me ouço perguntar: aconteceu comigo ou com meu osso? e outra pergunta: eu sou meu osso? ou sou somente a mente que a ele não se junta? e outra: se osso não pergunta, quem pergunta? alguém que não é osso (nem carne) em mim habita? alguém que nunca ouço a não ser quando em meu corpo um osso com outro osso atrita?

que se apossou do que vi do que fiz do que era meu e pelo país flutua livre da morte e do morto pelas ruas da cidade vejo-o passar com meu rosto mas sem o peso do corpo que sou eu culpado e pouco

Poemas extraídos do livro Em alguma parte alguma (José Olympio, 2010), a ser lançado em setembro

“Interrompi o poema, coloquei na vitrola o disco que levava comigo e em 20 minutos fiz a letra que por 20 anos tentei fazer. É um negócio engraçado. Na poesia, as coisas não são determinadas pela lógica e pela vontade. Há outros fatores. Se você não está no estado possível, ela não nasce. Tem o acaso também. A vida da gente, como tudo o que a gente faz, tem um componente de acaso muito grande, uma probabilidade de fatores incontroláveis que participam de tudo.” Se lhe perguntam: “Você é poeta?”, ele responde: “Às vezes...” Hoje Depois de mais de uma década, o aguardado livro de inéditos do autor chega às livrarias na véspera dos seus 80 anos. E é sempre assim. Entre um livro e outro são muitos anos para publicar. O livro anterior a Muitas vozes (1999), Barulhos, havia sido lançado em 1987. Sua poesia reunida, 56 anos depois de A luta corporal, não ultrapassa 500 páginas.

“Porque poesia não se faz por vontade. Não posso decidir, ‘vou escrever um poema hoje’. Não depende de mim. Bandeira já diz isso: ‘É o poema que te escolhe, não a gente que decide que ele vai nascer’.” Um dia, ao chegar a Nova York, no hotel, escreveu cinco poemas, depois de meses sem pegar na caneta. “Só escrevo movido por alguma coisa que faz valer a pena escrever. O poema tem que ter uma causa outra, um espanto, como sempre digo. A poesia nasce do espanto, de alguma coisa que me tira o equilíbrio, que me revela algo que eu não sabia, não conhecia. Ou algo que acontece comigo, inesperado, que nunca experimentei antes,” ideia que ainda encontra eco no crítico e filósofo francês Roland Barthes: “Escrever é espantar-se”. E o que constitui Em alguma parte alguma? Poemas sobre o cosmos, a linguagem e as artes plásticas, com versos dedicados aos amigos Amílcar de Castro, Iberê Camargo, Weissmann. “Neste livro, a questão da linguagem, de ultrapassar sua forma usual, está presente o tempo inteiro. Tanto que o primeiro poema se chama ‘Fica o não dito por dito’. O poema não diz a poesia tal como o poeta quer dizer. É uma redundância falar isto, o que a linguagem não diz não se pode dizer. Mas é nesse limite, entre o que se pode dizer e o que não se consegue dizer, que a poesia acontece.” O mesmo problema que já aparecia em A luta corporal. E que persiste em muitos dos novos poemas. Só que agora Gullar não pensa mais em destruir a linguagem, mas em lidar lucidamente com essa loucura, esse limite e deslimite. Sobre o Prêmio Camões, o poeta se diz contente sobretudo com a reação das pessoas, que ficaram felizes com o prêmio. “Não sabia que tinha uma torcida tão grande”, afirma o poeta, vencedor do Prêmio Jabuti em 2007 na categoria Melhor Livro do Ano com as crônicas reunidas em Resmungos (Imprensa Oficial, 2006), e também ganhador, pelo conjunto da obra, do Prêmio Machado de Assis, a maior honraria da Academia Brasileira de Letras. Fora as entrevistas, não gosta, de forma alguma, de pensar no passado: “Tenho horror ao passado. Ou porque foi doído e você não quer lembrança ruim, ou porque foi bom e você tem saudade. Bom é o presente.” E os 80 anos, Gullar? “Não penso nisso, estou vivendo. Esse negócio de 80 anos, é o pessoal que vive falando, não estou preocupado com isso, nem acredito que eu tenho 80 anos. Isso pra mim é um absurdo!” Toca o telefone na casa do poeta. Ele se levanta, sai do quadro da filmagem, e a caminho do aparelho conclui: “É uma idade excessivamente alta pra mim.” Veja a entrevista com Ferreira Gullar no site www.saraivaconteudo.com.br.

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DDiversão iversão

SSabor abor

Imaginação Amor

VVida ida EEmoção moção

EEscolha scolha o seu e boa leitura.

Lady Gaga, A revolução do pop – Emily Herbert, A Barca de Gleyre – Monteiro Lobato, O Compromisso – Herta Müller, A América de Jamie Oliver, Dom Quixote das Crianças – Monteiro Lobato, Os Exércitos – Evelio Rosero, Sodoma e Gomorra – Marcel Proust, Agassi, Os Caminhos de Mandela – Richard Stengel, A Cor do Invisível, A Rua dos Cataventos, Baú de Espantos, Canções, Espelho Mágico – Mario Quintana

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THAÍS GULIN, UM PRESENTE PARA A MÚSICA BRASILEIRA Cantora e compositora curitibana radicada no Rio de Janeiro é uma das grandes apostas do ano Por Ramon Mello Foto JORGE BISPO

Do novo time de cantoras da música popular brasileira, Thaís Gulin se destaca “não apenas pela voz clara de emissão segura, mas pela escolha criteriosa do repertório, com um viés de vanguarda de que ela participa como autora, e ainda pelo tratamento instrumental inventivo”, afirma Tárik de Souza, referindo-se ao primeiro álbum da cantora e compositora, Thaís Gulin, lançado em 2007. Gulin se prepara para lançar o segundo álbum em setembro. O repertório do disco, produzido por Alê Siqueira e Kassin, inclui a música de Ivan Lins – “Paixão, passione” – gravada por Gulin para a trilha da novela Passione, da TV Globo. E há ainda composições próprias e inéditas, de nomes como Adriana Calcanhotto e Tom Zé – único artista a participar do disco, com “Ali sim, Alice”. O que é tão diferente nesta nova fase? “A distração. O acaso das ideias, dos encontros e inspirações”, revela a cantora. Aos 30, Thaís carrega em sua música a inquietude que adquiriu no tempo em que fazia teatro na adolescência. Ainda muito nova, veio ao Rio fazer as oficinas de Gerald Thomas. Em 2001, radicou-se na cidade com o propósito de ser atriz e cantora. A música foi trilhando o rumo da sua vida, e ela se formou no curso de MPB – Arranjo, na Unirio. Desde então, vem conquistando crítica e plateia pelo Brasil com interpretação bastante particular, cheia de força, personalidade e lirismo. Em seu canto, a música brasileira é marcada por criatividade e atitude, revelando uma sonoridade ímpar.

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PIANO, SANFONA E JENECI Depois de acompanhar nomes como Zélia Duncan, Vanessa da Matta e Arnaldo Antunes, músico prepara seu primeiro disco Por BRUNO DORIGATTI Foto TOMÁS RANGEL

A história do acordeon que Marcelo Jeneci pediu emprestado a Dominguinhos para excursionar com Chico César pela Europa é conhecida. Ele nem dominava o instrumento, tinha 17 anos e Dominguinhos não só lhe emprestou a sanfona, como deixou que ficasse com ela. Foi nessa turnê que Jeneci conseguiu juntar dinheiro o suficiente para comprar um piano usado. Dez anos depois, é no mesmo Yamaha que Jeneci vem compondo e tocando as músicas que vão integrar seu primeiro álbum, Feito pra acabar, que sai ainda em 2010. Como instrumentista, ele acompanha artistas consagrados e grupos da nova geração, como Arnaldo Antunes e o Cidadão Instigado. Depois de anos tocando com essa turma, começou a aparecer a vontade de compor. “Mesmo sendo instrumentista, tentava me expressar de maneira autoral no trabalho dos outros. Mesmo sem palavras, já saía algo que apontava para uma vocação de compositor, um cancioneiro. Isso foi se acumulando e, de uma hora para outra, desaguou”, conta Jeneci. A sonoridade, ele diz que remete aos sons que ouviu muito na infância, sobretudo “os discos do Roberto Carlos”. Algo do novo disco pode ser ouvido no Myspace de Jeneci, que traz versões ainda não finalizadas de canções como a ótima “Felicidade” e “Dar-te-ei”, todas cantadas em parceria com Laura Lavieri. Feito pra acabar tem produção de Kassin. “Optamos por fazer a gravação ao vivo, no estúdio, em fitas, sem computador, com erros, mas com muita emoção, sem possibilidade de edição”, explica. Para isso, montaram uma banda com nomes como Curumin na bateria, Bruno Buarque na percussão, Régis Damasceno tocando baixo, Estevan Sinkovitz na guitarra, Gustavo Ruiz no violão e na outra guitarra, Edgar Scandurra, solto, também na guitarra e Jeneci no piano e sanfona. Um dos discos aguardados deste 2010, Feito pra acabar tem tudo para corresponder à expectativa. Veja a entrevista com Marcelo Jeneci no site www.saraivaconteudo.com.br

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fotografia

LUZ, CÂMERA, PALAVRA RETRATOS DE TOMÁS RANGEL

“A fotografia, como qualquer outra linguagem, em geral deve produzir uma visão. Tomese, aleatoriamente, entre todos os exemplos possíveis, uma foto de Mapplethorpe. Não há ali anterioridade. A imagem é engendrada a partir de sua textura, de sua composição, do contraste clássico (nítido) entre as matizes no interior do preto e branco. De modo simetricamente oposto, um fotógrafo que se disponha a fotografar um balé irá lidar com uma anterioridade, mas aí se trata de algo que é passível de se tornar visível: o movimento gracioso existe já no objeto, cabe ao fotógrafo captar o instante mais perfeito de cada uma de suas formas. O retrato de escritores não se encontra em nenhum desses casos, mas em algum ponto cego entre ambos. A imagem não aposta exclusivamente em seus recursos próprios de composição para produzir uma forma e um sentido, mas tampouco poderá flagrar a forma e o sentido dados por seu ‘objeto’. As imagens de Tomás Rangel ocupam tateantes esse entrelugar, oscilando entre um significante (texturas, luz, composição) que arrisca ser insuficiente e uma anterioridade que não é possível. Ele, no entanto, se sai bem dessa equação delicada. Observe-se a foto de Armando Freitas Filho, onde um lustre irregular – gago, dir-se-ia – derrama uma luz que parece partir do escritor, deixando uma penumbra ao redor. O escritor e os livros são iluminados. Ao fundo, na capa de um livro do próprio Armando, lê-se Lar,. O detalhe tem valor de comentário: o lar do escritor é a luz engendrada por ele e os livros que lê e escreve. Eis, portanto, uma foto legível, uma foto que fala. Mas as melhores fotos de Tomás são, a meu ver, aquelas em que o impasse constitutivo da foto de escritores é como que tematizado. Se a imagem do escritor não fala por si só (é sua obra que fala por si só), então que se tente tornar visível esse silêncio mesmo. É essa vibração silenciosa e negativa que Tomás consegue captar na foto de Eucanaã Ferraz, por exemplo. Ou na de Bernardo Carvalho, onde, se não forço a nota, o preto e branco almeja o estatuto de expressivo silêncio.”

Francisco Bosco Trecho do texto Falar (ou calar) a imagem: as fotos de escritores de Tomás Rangel, escrito para a exposição Sobre ensaios

Chico Buarque www.SARAIVACONTEUDO.com.br www.Saraivaconteudo.com.br

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fotografia

Eucanaã Ferraz

Gabriel Bá e Fábio Moon

Quando fui convidado para participar de uma galeria de fotos de escritores, e nela, um deles, seria o Chico Buarque, quis arrepiar carreira. Afinal de contas, quem ia olhar para mim? Nem a minha família, aposto. E, se olhassem, pensando bem, seria pior. Graças, contudo, à máquina Rembrandt de Tomás Rangel, eu, e todos e todas, saímos muito bem na foto! Sob cada clique, num chiaroscuro que só os verdadeiros artistas alcançam, somos todos, chicos e chicas.” Armando Freitas Filho

Visite a exposição Sobre ensaios, de Tomás Rangel, na Casa da Cultura de Paraty. Rua Dona Geralda, 177, Centro Histórico.

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Armando Freitas Filho


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Bernardo Carvalho

Zuenir Ventura

Como falar de retratos do Rangel realizados sob a encomenda da luz, da relevância e sobretudo do respeito? Ao fotografado, tudo! Sem falar do back, dizendo do entorno, do som no jazz que é a representação do baixo acústico. Em suma: a fotografia é como a música, vive de sutilezas não verbais. Vive do sentimento intrínseco. Walter Firmo

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Quando as palavras ganham dimensões

(L x P x H)

“ entre a porta que se abria, um rastro de luz que vinha da janela. Os tons , as sombras, volumes, as formas e um enorme desejo de viver. Coisas que não sabemos falar, olhar, ver, refletir, sentir, ouvir ou pensar. Na paisagem de proporções exuberantes, meticulosamente construída, as perspectivas se abrem cheias de vazios, de volumes, de vidas. Sentimentos que as vezes não rimam, não tenho como explicar. Assim as palavras ganham dimensões, largura, profundidade, altura, enfim... realizar” Naassom Rosa

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HQ

André Dahmer Por Bruno Dorigatti Foto Tomás Rangel

André Dahmer não perdoa e há dez anos é assim. Suas tirinhas, charges, cartuns, que apareceram na internet, apresentam algumas das melhores críticas, com muito sarcasmo e escárnio, um humor negro corrosivo e autodepreciativo, sempre direto e claro a estes estranhos anos que inauguram o novo século. A solidão é algo presente no trabalho deste carioca que começou a desenhar ainda criança, uma das maneiras que os pais encontraram para tentar melhorar o problema de déficit de atenção e a hiperatividade. Vem funcionando, e bem. Através do desenho, ele ri deste mundinho covarde, de si e da gente. Os solitários, “seguem morrendo aos poucos nos bares e dentro dos quartos, varando madrugadas sinistras com a ajuda da pornografia em banda larga e álcool, muito álcool”, escreve o quadrinista no prefácio de

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“Não se pode confundir arte com mercado de arte. A arte, já foi dito, é um pedaço do que o rico pode comprar por não conseguir fazer. Claro que a maioria deles compra por pura especulação. É também uma ótima forma de lavar dinheiro de drogas, armas, diamantes.”


seu livro mais recente, A cabeça é a ilha, lançado pela Desiderata em 2009, assim como seus outros dois livros, O livro negro de André Dahmer (2007) e Malvados (2008). Estes últimos personagens, parecidos com um sol e que destilavam veneno e crueldade sem pudor nem piedade, o desenhista matou, para desespero de centena de milhares de

órfãos. “Eles dizem: ‘Ah você abandonou a gente...’, mas não tem importância nenhuma, porque saudade também é bom. Eu precisava de mais coisa, não fiz de sacanagem. Também corri riscos, porque tem que correr, abandonar certas coisas. Se tiver que largar amanhã os quadrinhos para fazer o que descobri que gosto de fazer de verdade, não tem problema nenhum pra mim”, afirma Dahmer, que também pinta em

Uma seleção especial para quem quer saber mais sobre a cultura brasileira

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HQ

aquarela seus solitários e rechonchudos personagens. Em um de seus sites, há uma frase do escritor polonês Witold Gombrowicz: “A arte perturba os satisfeitos e satisfaz os perturbados”. O que ela resume? “Não se pode confundir arte com mercado de arte. A arte, já foi dito, é um pedaço do que o rico pode comprar por não conseguir fazer. Claro que a maioria deles compra por pura especulação. É também uma ótima forma de lavar dinheiro de drogas, armas, diamantes. É um campo que não é dos mais bonitos de se olhar. Arte é outra coisa. Conheço gente que está fazendo arte dentro de casa, grande arte, há muitos anos, e que nunca vai mostrar na rua.” Dahmer finaliza seu primeiro livro de poesias, Amor como audácia, uma edição com 600 exemplares e capa pintada a mão. “Vai dar um trabalho danado. Mas quando vi que o Liniers tinha feito a mão 5 mil capas, achei que era possível. Sempre tive vontade, imagina, um livro com todas as capas diferentes. E eu duvidava. Mas eu não sou o Liniers, então eu posso fazer 600”. Ele também finaliza um documentário com o amigo Terêncio Porto, em que entrevistaram só pessoas uniformizadas: bombeiro, médico, guardador de carro,

“Não tenho vergonha nenhuma de falar. Porque o desenho não é a coisa mais importante do mundo, pelo menos do meu mundo.” gari, garçom. “A gente falava: ‘Você pode dar uma entrevista?’ Aí quando ligava a câmera: ‘Você pode contar como foi seu primeiro beijo na boca?’ O uniforme desumaniza muito a pessoa, depois que você veste um, ninguém te olha, você vira um mobiliário. E são incríveis as histórias, eles choram contando”, diz Dahmer, que se considera só um desenhista esforçado. “Não tenho vergonha nenhuma de falar. Porque o desenho não é a coisa mais importante do mundo, pelo menos do meu mundo.” E o que é mais importante no seu mundo? “O meu funcionamento. Tenho vários problemas, não consigo me deslocar de carro, de avião. Então meu mundo também é ter coragem, para fazer o mínimo que consigo fazer.”

Veja a entrevista com André Dahmer no site www.saraivaconteudo.com.br


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UMA MULHER EM SUA ILHA Por Thales Guaracy Foto DIVULGAÇÃO

Falo por e-mail com a escritora e poetisa Wendy Guerra, em Havana. Guerra diz que vive “longe de tudo e de todos”. Que pouco fala com editores. Como foi criada no regime comunista, que ensinava russo às suas crianças, lê mal em inglês. Vive numa cobertura em Miramar, “rodeada de mar e luz”, onde come “entre cristais”. Em seu mais recente romance, Nunca fui primeira dama, que acaba de ser lançado no Brasil pelo selo Benvirá, sua personagem habita um casarão “cheio de sal” no Malecón, a célebre fachada da cidade diante do mar, semiabandonada. Sempre me perguntei se de fato haveria gente morando ali, naquela galeria fantasma. Na obra de Wendy, há. Um pouco dela está lá. Como acredito que a ficção diz mais sobre o escritor do que a vida real, vejo Wendy em seu palácio abandonado, como se ali vivesse de verdade. Decidiu usar sua presença em Cuba como manifesto. Seu romance, belo e pungente, conta a história de uma mãe foragida do país por escrever um livro sobre a falecida secretária de Fidel, Celia Sánchez. Por isso, a mãe teria abandonado a filha em Cuba, aos dez anos de idade. Ao contar a história da mãe, a narradora de Wendy conta também a de Celia. Resgata a figura da mãe, em todos os sentidos. E completa o trabalho materno, publicando a história proibida da mulher que mais perto esteve de Fidel. Como autora, coloca-se no papel de sua própria personagem. Wendy fica em Cuba, como estandarte de uma cruzada pessoal. Não quer sair, como tantos que saíram, esgotados com o regime. Ao fim dos termos, sua história pessoal é também de defesa da liberdade, da literatura e da expressão, numa Cuba que não precisa abandonar suas utopias para voltar a ter tudo isso, e ainda agregar o progresso. Como ela diz, pertence a uma geração que não é nem a de seus avôs revolucionários, nem mesmo a de seus pais, os operários a quem se atribuiu a tarefa de construir na vida real os velhos sonhos. Ela é de uma geração que deseja igualdade social, mas também liberdade. Que faz da vida comum e das necessidades mais simples, como a de reconstruir a família destroçada pelas antigas gerações, a sua verdadeira bandeira política e o seu manifesto.

Em seu castelo feito de memórias, Wendy não está sozinha. Com ela, estão os injustiçados do passado, os banidos, os inconformados. Os que vão embora, mas sobretudo os que não vão. Os inconformados que ficam, marcam posição. Os que tentam reconstruir algo sobre um passado incompleto e desolador. Hoje já não existem ilhas completamente isoladas. Como sua personagem, Wendy rasgou as capas que cobriam os livros proibidos da biblioteca de sua casa, também como um gesto simbólico. Cuba aos poucos muda. Apesar de não ter seus romances publicados em Cuba (por lá saíram apenas os de poesia), Wendy não precisa fugir de sua ilha para escrever. Sim, o Malecón à noite é semiabandonado, feio e sombrio. Dá medo. Mas lá há vida que se espalha sobre o mar. Thales Guaracy é escritor, jornalista, e diretor editorial do selo Benvirá, da editora Saraiva.

Nunca fui primeira-dama Benvirá 256 páginas Tradução de Josely Vianna Baptista Capa de Mariana Diamante

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Final

O escritor João Paulo Cuenca foi para o Japão buscar inspiração para seu novo romance. Curador do projeto Amores Expressos, em que autores viajaram para diferentes países com a intenção de escrever histórias de amor, Cuenca dá voz a uma boneca inflável em sua narrativa urbana.

“Existem dois narradores: um é japonês e o outro é uma boneca de silicone, das chamadas love dolls. São bonecas super sofisticadas, caríssimas, que eles compram para transar, cuidar, vestir... Mas isso é uma coisa meio underground de Tóquio, não é fácil entrar numa loja e se deparar com as bonecas. Tive que ter ajuda de uma intérprete, uma amiga minha, japonesa, que ligou e marcou o encontro. Transformei a boneca num dos narradores do livro. São duas histórias de amor que ocorrem em separado: uma é a história de amor da boneca com o pai desse outro narrador, e a outra é a história de amor de um narrador jovem, de trinta e poucos anos, esses salary man engravatados japoneses que se vê em todos os lugares. Ele se apaixona por uma romena-polonesa, uma mulher do leste da Europa. São dois casais bem estranhos”, conta Cuenca. Leia a seguir o trecho que abre O único final feliz para uma história de amor é um acidente, recém-lançado pela Companhia das Letras.

Antes do sr. Atsuo Okuda abrir a caixa, tudo estava escuro.

O sr. Okuda queria que meus ossos fossem salientes, e assim eles são.

Mais que isso: não havia nada para ser iluminado antes do sr. Okuda abrir a caixa. Se o sr. Okuda nunca houvesse aberto a caixa, nada existiria. O mundo só começou a partir do momento em que o sr. Okuda abriu a caixa e disse a palavra. Ele disse: Yoshiko.

O sr. Okuda em nenhum momento se identificou para a Luvdoll Inc. E pagou pelo projeto personalizado a quantia de cinquenta milhões de ienes, o que me faz ser a boneca mais cara já produzida no Japão.

E Yoshiko ficou sendo o meu nome.

O sr. Okuda é um poeta conhecido e anunciou que parou de escrever há muitos anos. Isso é mentira, porque o sr. Okuda recita poesias para mim, dizendo que poderia ter pago por mim muito mais do que a quantia de cinquenta milhões de ienes, porque eu sou perfeita, e, porque eu sou perfeita, sou também a única pessoa com quem o sr. Okuda compartilha a sua poesia. Isso o sr. Okuda também me contou num poema que ele escreveu entre as linhas de outro poema.

FELIZ

Depois que o sr. Okuda disse Yoshiko, eu ganhei, além de um nome, muitos começos e um fim. Eu começo na ponta dos meus dedos, nos fios dos meus cabelos, na planta dos meus pés, nos bicos dos meus peitos, na pele que cobre o vazio que há no meu corpo e em toda a superfície que me faz ser quem eu sou. Não poderia ser outra porque tenho esse corpo, e só eu tenho esse corpo, e eu sou esse corpo. E o meu fim com esse corpo é um só: servir ao sr. Okuda. O sr. Okuda é o meu mestre, mas não é o meu criador. O meu criador é a Luvdoll Inc., localizada em 4-5-28 Nishi-Kawagushi, na cidade de Kawagushi, província de Saitama. O meu criador seguiu as instruções detalhadas do sr. Okuda, sob a ordem de encomenda número 2358B. A ordem de encomenda número 2358B, reproduzida em cinco vias que circularam por sessenta e cinco dias pelos diferentes departamentos da Luvdoll Inc., dizia que eu deveria ter olhos castanho-escuros (Pantone 4975C), pele aperolada #5, seios modelo senoide 220 g com 92,5 cm de diâmetro, umbigo com 0,8 cm de profundidade e vagina extrapequena #2, com pelos púbicos em corte vertical, profundidade de 8 cm e 4 cm de circunferência. Outros detalhes foram adicionados em conversas entre o sr. Okuda e a Luvdoll Inc., pois o sr. Okuda foi extremamente detalhista em seus pedidos, e isso fez com que a Luvdoll Inc. estabelecesse novas variações na sua linha de produção. Entre outras minúcias inéditas para a Luvdoll Inc., o sr. Okuda desenhou com detalhes a curvatura dos meus pés, a espessura dos ossos das minhas clavículas e dos quadris.

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O sr. Okuda só se dirige a mim em versos. O sr. Okuda não precisa recitar os versos para que eu os entenda. Eu sei o que ele quer dizer quando olha para mim. Recebo ordens através do seu silêncio porque eu sou esse corpo e esse corpo tem apenas um fim, que é servir ao sr. Okuda, nem que seja ouvindo suas poesias sobre a minha perfeição, sobre os ciprestes numa estrada de Shikoku, sobre o canto dos pássaros ou, ainda, sobre a poesia em si, tema muito caro ao sr. Okuda, que ele também infiltra entre as linhas de outros poemas, e entre essas linhas ainda traça outros poemas sobre muitos outros assuntos, alguns que eu mal posso compreender, e assim os poemas e as linhas dos poemas se multiplicam e se intercalam até o infinito, e através delas o sr. Okuda me faz enxergar não só os belos sentimentos que tem por mim como também o mundo exterior, e o que está sobre ele e abaixo dele, porque eu nunca saí ou sairei de casa, esta que é a minha casa e também a casa do sr. Okuda. E, pensando melhor, na verdade a minha casa, a minha única casa, é o sr. Okuda. Ele-mesmo. Veja a entrevista com João Paulo Cuenca no site www.saraivaconteudo.com.br


A GENTE LEVA EDUCAÇÃO E CULTURA A LUGARES QUE FICAM BEM LONGE. AO FUTURO, POR EXEMPLO. Oi Futuro é o instituto de responsabilidade social da Oi que trabalha para transformar a vida de milhões de brasileiros. Em 10 anos, já beneficiamos mais de 4 milhões de pessoas, através de programas próprios nas áreas de educação, cultura, esportes e social, além do apoio a iniciativas de outras organizações via seleção por edital. É assim que estamos inserindo cada vez mais brasileiros no mapa da cidadania. oifuturo.org.br



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