APRESENTAÇÃO DEDS EM REVISTA, publicação anual do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social – DEDS, da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS, propõe a cada edição a sistematização de uma das ações sob sua coordenação, a fim de recuperar a memória da mesma e ampliar as abordagens sobre temáticas tratadas ou correlatas. O nome e formato da Revista expressam o caráter dinâmico e transformador das ações que este Departamento executa. O primeiro número da Revista traz para o foco o tema Lideranças Negras, abordado em forma de curso de extensão, em duas edições consecutivas, em parceria com o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. O curso LIDERANÇAS NEGRAS E IDENTIDADE ÉTNICA NO RIO GRANDE DO SUL (SÉCULOS XIX-XX), em 2013, possibilitou uma visão panorâmica das principais formas e modalidades de lideranças - políticas, sociais, culturais, individuais, coletivas, laicas, religiosas, populares, eruditas
- cuja atuação tenha sido pautada pela organização, defesa ou afirmação dos interesses das populações negras no Estado. Foram explorados nos encontros os movimentos político-sociais; as entidades associativas; a imprensa negra, as formas de expressão artístico-culturais, bem como as festas e formas de sociabilidade com papel significativo na constituição da identidade étnico-racial dos afro-rio-grandenses. Configurou-se em importante espaço de divulgação de resultados de pesquisa para jovens pesquisadores (as) negros (as) nos temas em questão.
ação política em diferentes campos.
Em 2014, com o título LIDERANÇAS NEGRAS FEMININAS NO SUL DO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, COR E CLASSE SOCIAL, a segunda edição do evento buscou realçar o protagonismo feminino e abrir espaço de troca de experiências e conhecimentos sobre a participação de mulheres negras em espaços políticos, intelectuais, sociais, religiosos, entre outros. Desta vez, além da participação de pesquisadores sobre o tema, tivemos a oportunidade de ouvir as próprias ativistas relatando suas experiências de vida e atu-
Estes artigos são entremeados por poemas de artistas colaboradores do Sopapo Poético - Ponto Negro da Poesia, realização da Associação Negra de Cultura, inaugurado em Porto Alegre/RS, em março de 2012 e também apresentado nesta revista. Desejamos que esta leitura estimule novas ações, quer de extensão, pesquisa ou ensino, e que seja um momento de prazer e conhecimento a todos nós.
DEDS EM REVISTA traz um recorte destas duas ações de extensão, ao mesmo tempo em que faz um zoom em algumas abordagens, permitindo aos colaboradores das formações rever, ampliar, reformatar suas participações em palestras ou painéis, apresentando figuras ainda pouco conhecidas ao público, ressignificando fatos históricos de nosso Estado e devolvendo a uma parte significativa da sociedade a memória de suas lutas e formas de constituição identitária.
Rita Camisolão Diretora DEDS/PROREXT/UFRGS
Vera Rodrigues
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira - UNILAB
Meu encontro com Carolina ocorreu em 1977, ano de sua morte. A notícia veiculada na televisão me chamou a atenção. Eu nunca ouvira falar dela, mas sua imagem marcou minhas lembranças infanto-juvenis. Talvez, pelo fato incomum de ver uma mulher negra na TV, a qual não era artista, mas escritora. Quase duas décadas depois, eu a reencontrei por meio do seu livro Quarto de Despejo. Li e reli, entre encantos e inquietudes, as diversas faces do seu texto: a crueza, o lirismo e as contradições que impulsionam, hoje, a retomada dessa leitura. Nesse sentido, trato Carolina como uma intelectual, portanto não a aprisiono ou congelo seu pensamento nas reminiscências de um tempo ou lugar, mas a busco na universalidade que o seu olhar
Não pretendo aqui fazer uma biografia da mesma, objeto de outras autoras¹, mas tomar emprestado aspectos de sua história de vida mesclados com trechos do seu diário que dialogam com a temática das relações raciais, territórios e desigualdades. Esse diálogo tem início em data incerta², provavelmente entre 1913 e 1915, na cidade de Sacramento (Minas Gerais), quando nascia Bitita, apelido de infância de Carolina³. A menina, segundo suas biógrafas, morava em um bairro pobre, numa casa de tijolos de terra prensados ao sol (adobe), coberta de capim e de chão de terra. Nessa casa, Carolina e seus sete irmãos foram criados pela mãe, Maria Carolina, empregada doméstica, agricultora, separada do marido. Sobre a relação mãe e filha, um aspecto trazido por Carolina é de que a mãe preferia um dos irmãos por ser filho legítimo e “mulato”, enquanto ela era “negrinha” e “bastarda”, já que
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1 CASTRO, Eliana de Moura; MACHADO, Marília Novais de Mata. Muito bem, Carolina! Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. 2 Conforme a referência acima, há informação de divergências documentais entre os registros de batismo e cartorial de Carolina, o que implica em imprecisão quanto a sua data de nascimento. Porém, há outras fontes que indicam a data de 14 de março de 1914. 3 Para maiores detalhes ver “Diário de Bitita”. Nesse livro, a autora relata a trajetória pessoal e familiar vivenciada na sua infância.
Vera Rodrigues | Acervo: DEDS
crítico construiu e contribuiu para os debates e embates teóricos e políticos sobre gênero, raça/ cor e classe social.
Carolina Maria de Jesus | Acervo: Audalio dantas
O vovô nos contava que os pretos que moravam nas cidades grandes já sabiam ler e tinham até dinheiro nos bancos. Ele não sabia ler, mas procurava saber se os negros já estavam subindo na esfera social. “Oh!”, exclamávamos admirados (JESUS, 2007, p.98).
Quando um homem preto avistava um soldado, entrava na igreja e se ajoelhava aos pés do altar. Permanecia vários minutos orando. Na igreja ele estava protegido. O soldado não ia admoestá-lo, não ia interpelá-lo (JESUS, 2007, p.90-91).
Outros episódios são a peregrinação familiar pelas fazendas da região em busca de trabalho e o contato com a escola. Sobre este último ponto há inúmeras referências a autores e obras lidas, tais como, Rui Barbosa, Bernardo Guimarães, “Escrava Isaura”, entre outros. Assim, o gosto literário manifesta-se tanto enquanto leitora quanto es-
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critora das próprias vivências, como no poema “O Colono e o Fazendeiro”, em que narra a experiência da família como trabalhadores em uma fazenda de plantio de café:
Diz o brasileiro Que acabou a escravidão Mas o colono sua o ano inteiro E nunca tem um tostão4
A escrita de Carolina, ainda que precária, pois alicerçada somente em dois anos de acesso à escola, não será impeditivo para que continue a produzir olhares sobre a realidade vivida. Depois da infância em Sacramento, será a vida adulta na cidade de São Paulo objeto de sua imersão no mundo das letras. Em 1937, Carolina chega à cidade do progresso, da esperança e do recomeço de vida. Uma vida que começa como empregada domés-
4 Trecho extraído de JESUS, 1996b, p. 147-149 apud CASTRO e MATA MACHADO, 2007, p.21.
Essas e outras impressões do cotidiano e das relações sociais irão compor Benedito José, o avô ma- o mosaico de sua trajetóterno, morava próximo dali. ria que perpassa episódios Descrito como um filho de como o assassinato de um escravos beneficiado pela homem negro por um polilei do Ventre Livre e perten- cial, a prisão de sua mãe, cente à etnia Cabinda. Ain- os parentes e a missa freda sobre ele, Carolina es- quentada em horários dicreverá o livro O Sócrates ferenciados por pobres e Africano, em que ressalta negros. ser ele “analfabeto, mas de grande sabedoria e respeitado por todos”. nascera de um relacionamento extraconjugal.
5 Histórico Demográfico do Município de São Paulo. Disponível em: http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/index.php
tica em busca, como tantos outros, de melhores condições de vida numa cidade que vivencia a dinâmica do processo de urbanização e industrialização. Tal processo foi fomentado pelo trabalho escravo e a lavoura cafeeira no século XIX, os quais asseguraram ao estado de São Paulo a posição de produtor de metade do café mundial, bem como detentor de uma população escrava quatro vezes maior do que à da época do ciclo da cana-de-açúcar. Nessa conjuntura, o crescimento populacional urbano, na década de quarenta, refletirá em uma população de 1.258.482 mil habitantes5, sendo parte desse número, de acordo com o Censo de 1940, uma população negra composta de 862.255 indivíduos. Essa maioria numérica também será representativa de um quadro profundo de desigualdades não superadas na pós-abolição. Paralelamente aos dados macros, os olhos indagadores de Carolina captam as nuances em branco e preto da cidade de São Paulo:
Ela teve a impressão de estar em outro planeta. Sentiase maravilhada e também apavorada. Mil ideias passavam-lhe pela cabeça. Procurou deixar de lado o medo e decidiu que São Paulo era uma cidade boa, pois todas as pessoas eram capazes de sorrir e tinham os dentes saudáveis (...). Para Carolina, todos estavam bem vestidos. Tanto os negros quanto os brancos pareciam ricos. (...) Nos dias que se seguiram, ficou sabendo que a maioria das pessoas que vira eram operários de fábricas situadas no centro, não longe da estação da Luz (Castro; Mata Machado, 2007, p.25).
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Essa constatação da realidade ganha cada vez mais sentido à medida que Carolina vivencia os diversos espaços de moradia, ou simplesmente abrigo, na cidade de São Paulo. Consta que antes de morar na favela do Canindé, morou em cortiços, bem como “num cubículo sórdido na antiga favela dos baixos do viaduto Santa Efigênia” e “sob pórticos de grandes prédios”. Na escrita de Carolina está presente essa tensão entre o viver na favela e no centro da cidade, expressa nas suas reflexões sobre a vida na “sala de visitas” e no “quarto de despejo”, a favela do Canindé. Na atualidade do seu centenário, Carolina espalha-se pela cidade de São Paulo. Ela está na biblioteca do Museu Afro Brasil, em uma escola da zona leste, também em uma associação de mulheres negras, bem como em dissertações e teses acadêmicas. Todos esses espaços levam o seu nome. Assim, o legado intelectual, a memória e o patrimônio cultural de Carolina permanecem vivos, atuantes e sendo ressignificados por nós, suas herdeiras,
Entre as fronteiras da cidade e da favela, Carolina nos diz, em uma passagem de Quarto de Despejo, que suas palavras “ferem” e são difíceis de “cicatrizar”. São críticas aos políticos, à fome, à violência, mas também de encanto pelas valsas vienenses ouvidas no seu rádio, pelas crianAinda que não tenha ças, pelos amores vividos. sido meu objetivo percor- Deste mosaico literário rer a trajetória biográfica componho uma abordade Carolina, iniciei pela sua gem antropológica sobre escrita, ainda na infância, a cidade de São Paulo, a que retrata a cidade de Sa- qual, assim como Carolicramento (MG) e o cotidia- na, vivenciei em todas as mulheres negras produtoras de conhecimento. Um legado que aqui percorremos tendo como cenário a cidade de São Paulo e como temas entrecruzados as relações raciais, os territórios negros e as desigualdades sociais.
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suas belezas e paradoxos. Nessa cidade reli Carolina. Retomei seu pensamento para escrever e refletir sobre população negra e sobre políticas públicas de promoção da igualdade racial, objeto de estudo no meu doutorado. Isso me levou a percorrer os territórios negros evocados por Carolina: Brazilândia, Barra Funda, Casa Verde, Vila Formosa, Parque Peruche, Cruz das Almas e Bosque da Saúde, que ganham cor e vida no mapa da cidade, ainda que portadores de índices negativos de qualidade de vida. Entendo que o legado de Carolina e sua influência teórica e política contribuíram para a minha trajetória intelectual de mulher negra, assim como a de outras “Carolinas”, semeadas do norte ao sul do nosso país.
REFERÊNCIAS
Carolina Maria de Jesus | Acervo: Audalio dantas
no familiar. Tais reflexões apontam para as influências no pensamento de Carolina, indicam os fundamentos que moldaram suas reflexões. Desse solo fértil brotaram as obras O Sócrates africano, em referência ao avô, e Diário de Bitita, suas memórias que envolviam a compreensão de ser “‘uma negrinha”, de viver em uma casa que não era de tijolos como era a dos “brancos”, de perceber que havia “fazendeiros” e “colonos” naquelas terras. Assim, a Carolina adulta leva a São Paulo as inquietações da menina Bitita. Agora ela está entre a “sala de visitas”, que é a cidade, e o “quarto de despejo”, a favela do Canindé.
CASTRO, Eliana de Moura e MACHADO, Marília Novais de Mata. Muito bem, Carolina! Biografia de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. São Paulo:Editora Edibolso, 1976. ________Diário de Bitita. Sacramento (MG): Bertolucci, 2007.
O Sopapo Poético – Ponto Negro de Poesia – foi criado em março de 2012 pela Associação Negra de Cultura (ANdC) com o intuito de reunir a comunidade para ouvir, dizer e compartilhar palavras poéticas negras.
Lilian Rose Marques Rocha | Acervo: DEDS
tâncias. Desta forma, o Sarau Sopapo Poético é Arte-Identidade.
A expressão Arte-Identidade foi criada por Cezar Wagner e Ana Luísa Menezes (psicólogos, educadores biocêntricos, facilitadores didatas de O encontro poético, Biodanza), em 1990, em mais conhecido como En- seus trabalhos ligados à licontro de Vozes Vivas, nha da Criatividade. Neles, tornou-se um espaço co- verificaram que a arte atumunitário e de trânsito de ava positivamente sobre vivências que favoreceu a o mundo primal, arquetíintegração da arte negra pico, consciente e social, com o seu principal sujeito, e como ela influía posititendo como ferramentas o vamente na expressão de uso da linguagem poética si mesmo, na identidade e sua musicalidade. Esta pessoal. linguagem retrata temáticas que expressam a proA arte é um caminho moção da cidadania e da de expressão e recriação autoestima da população da identidade pessoal. O afro-brasileira. ser, ao expressar a sua rePoesia é arte, é a ex- alidade na forma de gespressão genuína de si mes- to, linguagem, símbolo ou mo, em relação ao outro e ação, gera um processo com o todo, é criatividade constante de recriação (criar-ação), é ser criador existencial, ou seja, tornae criatura em todas as ins- -se criativo, recriando a si
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1 Saudação entoada nos saraus do Sopapo Poético que é uma adaptação do canto maçambiqueiro de Osório/RS
Lilian Rose Marques Rocha e Maria Cristina Santos / Ativistas culturais
SARAU Sopapo Poético - PONTO NEGRO DA POESIA |
“O tambor tá batendo, tá repinicando são seus ‘poetas’, o senhor que o tambor tá chamando”¹
Maria Cristina Santos | Acervo: DEDS
A identidade quando vista a partir da vivência, e não do significado, torna-se Arte-Identidade, uma recriação permanente de si mesmo através da expressão artística. Por meio da arte é possível a renovação existencial, pois permitimos fluir o potencial de vida e beleza existente em mesmo a todo instante. O cada um de nós. Criar é ir mundo vivido se transfor- fundo dentro de si mesmo, ma, tornando-se símbolo é aceitar-se como criatue, ao mesmo tempo, ganha ra e movimentar-se como criador: processo fundasignificado gerando arte. mental no trabalho de reO ser, ao fazer-se conti- construção da autoestima nuamente, cria o movimen- da população negra. to necessário para a consA arte possibilita o acestituição da sua identidade, criando um espectro de ex- so à espontaneidade em periências e conexões fu- uma dimensão comunitásionárias e indiferenciadas ria e universal na qual toque o ser humano estabe- dos são iguais. No Sarau lece através da cultura, da Sopapo Poético, a plateia relação com a natureza, sente-se parte integrante com a família, a partir da na construção do proceselaboração de sua própria so criativo e permite-se vivência. A arte como iden- declamar poemas para a tidade é um processo per- sua comunidade. Neste manente de construção de momento, possibilitamos a vivência da corporeidasi mesmo. de primordial, instintiva e A arte como identidade ancestral que desperta e é uma abordagem expres- relembra as nossas potensivo-evolutiva (pedagógi- cialidades. ca e terapêutica). Este é o ponto de partida para Através da linguagem entendermos a arte como poética, resgatamos a nosexpressão profunda do ser sa história, a nossa cultuhumano. ra, os nossos costumes, as
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nossas crenças, ressignificamos o nosso potencial ancestral perante os nossos iguais e reforçamos, assim, a nossa identidade enquanto negros, afro-brasileiros. O sarau deflagra um sentimento de beleza e luz frente ao outro e a si mesmo. A linguagem poética é um mergulho na criação. É o empoderamento de sua história no aqui e agora, é tornar-se sujeito. A poesia nos possibilita o exercício genuíno da imaginação, onde a emoção é expressa no encanto com a realidade, muitas vezes extremamente dura e injusta, transformando-se em força e em cidadania. No Sarau Sopapo Poético, a comunidade afro-brasileira conecta-se com a sua realidade invisível, que está impregnada comsua memórias, vivências, sentimentos e perspectivas futuras. De uma forma descontraída, potencializamos a nossa intelectualidade. Na poesia, onde a expressão poética reflete a percepção da nossa existência, resgatamos a nossa autoestima. Segundo Rolando Toro
O Sarau Sopapo Poético é um espaço de promoção da poesia negra, reafirmando poetas já reconhecidos e apresentando poetas emergentes da nossa comunidade, além de incentivar a escrita e a leitura. Todos saem fortalecidos e cientes das suas potencialidades de gerar ação na construção de novos tempos, mais justos e igualitários. Somos agentes da mudança. A poesia é transformadora, não importa a idade, o gênero, a condição social, a etnia; o potencial criativo é inerente ao ser humano, basta que um eco, fator positivo, se faça presente. É o que fazemos no Sarau Sopapo Poético, catalisamos potenciais, ditos adormeci-
dos, que irão reafirmar a identidade negra em nossa sociedade. O Sarau Sopapo Poético é um foco de resistência da cultura afro-brasileira que, através da linguagem poética e da musicalidade, marca a sua presença e a sua importância na identidade cultural de nosso país.
REFERÊNCIAS
Araneda (2012), “Un poema está vivo o no comunica nada”. Com a voz, reverenciamos a grandeza de uma raça, fortalecemos nossa história, permeamos lutas e criamos espaços de conscientização da nossa realidade. A expressão de nosso corpo integrado à voz demarca uma intenção, extremamente necessária para nos posicionarmos no mundo.
ARANEDA, Rolando Toro. La inteligencia afectiva. La unidad de la mente conel universo.Santiago do Chile:Editora Quarto Próprio,2013. _________. Biodanza. São Paulo: Editora Olavobrás / EPB, 2002. GÓIS, Cezar Wagner de Lima; MENEZES, Ana Luísa Teixeira de. Arte-Identidade: atividade estética do viver. Especialização em Educação Biocêntrica, UNISC. MENEZES, Ana Luísa Teixeira de; PINHO, Ana maria Melo de. A arte e a vivência na psicologia comunitária e na educação popular. Curitiba: Editora CRV, 2014. ROCHA, Lilian Rose Marques da.A arte como expressão da identidade humana. Curso de Extensão em Educação Biocêntrica, UNISC.
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Clรกudia Pons Cardoso
Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Este texto foi resultado de inquietações suscitadas pelo Curso Lideranças Negras Femininas. Meu desafio, naquele momento, era refletir sobre Autonomia e Protagonismo das Mulheres Negras Brasileiras. Protagonismo e autonomia são elementos constitutivos de todo pensamento social crítico. Diante disso, procurei explorar como estes elementos definem o Pensamento das Mulheres Negras Brasileiras, contribuindo para transformá-lo em um pensamento descolonizador, centrado na recuperação de vozes e discursos dos sujeitos subalternos, mulheres excluídas e forçadamente silenciadas, até então, pelo conhecimento hegemônico, como passo a demonstrar.
Protagonismo social pode ser entendido como capacidade para pensar novos projetos políticos, como processo de construção de autonomia, de tomada de decisões, de capacidade de agir para alterar realidades, muitas vezes, adversas. No caso das mulheres negras, falar de protagonismo é destacar ainda outro elemento, o agenciamento, isto é, a ação política, tanto para inventar com altivez condições de vida para garantir a sua sobrevivência e a de outros quanto para reagir e enfrentar as situações de discriminação e exclusão. Protagonismo e agenciamento são fomentadores de empoderamento. Segundo Patricia Hill Collins (2000), empoderamento implica rejeitar as dimensões do conhecimento que perpetuam a objetificação e a desumanização que o outro nos impõe. As mulheres negras se tornam empoderadas quando entendem e usam, individualmente e em grupo, diferentes formas de saber para promover a sua humanidade como sujeitos plenamente humanos. E uma das formas de fazermos isso é através da autodefinição.
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A autodefinição, diz Collins (2000), contribui para o fortalecimento, na medida em que o grupo fala para si e elabora a sua própria agenda a partir de suas necessidades. Ela fortalece para o enfrentamento de estereótipos, ou, como sublinha a autora, das chamadas imagens de controle. A autodefinição realizada pelas mulheres negras tem potencialidade revolucionária, na medida em que cria condições para o entendimento das estruturas de opressão/ dominação, garantindo uma consciência coletiva. Assim, quando as mulheres negras definem a si próprias, elas desafiam e rejeitam o pressuposto daquelas/es que desfrutam de autoridade e legitimidade adquirida em função de benefícios históricos oriundos de privilégios de raça, classe e gênero. Privilégios que garantem posições de poder na sociedade para alguns, além de prestígio social e reputação para realizarem estudos e análises sobre a vida de grupos racialmente discriminados, em especial dos negros e, em particular, das mulheres negras.
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e de atuar em diferentes frentes de luta em conhecimento especializado, em pensamento crítico, com o objetivo de empregá-lo na transformação da vida das mulheres negras (COLLINS, 2000). Nesse movimento de novos pontos de vista, novas abordagens e novos olhares protagonizados pelas mulheres negras surge um pensamento social crítico, que em sua concepção traz o questionamento do conhecimento hegemônico. Esta ação é epistemológica e constitutiva do que venho chamando de pensamento das mulheres negras. Assim, pensamento das mulheres negras é aqui apresentado como discurso, produção escrita, artística, concepção de mundo, forma de organização social e intervenção política. Expressa um olhar marcado por raça/etnia, classe, religiosidade e outros lugares sociais a partir dos quais as mulheres negras afirmam suas identidades. Parafraseando Jurema Werneck (2007), pode ser entendido como conjunto de elementos teóricos e
1 Ver entrevista em CARDOSO, 2012.
Claudia Pons Cardoso | Acervo: DEDS
gra; agiram de modo a desafiar as representações de gênero dominantes (CARDOSO, 2008). Estes processos de insurgência e resistência, porém, ainda estão ocultos. Somente investigações comprometidas com a descolonização do conhecimento de modo geral podem desvelar tais processos e salvá-los do Estudos que deslocam, na esquecimento histórico. maioria das vezes, negras e negros do lugar de proPara resgatar as ações dutores de conhecimento das mulheres negras em para o lugar de objetos de vários momentos histópesquisa. ricos, rompendo com a nossa invisibilidade forçaVale ressaltar que hisda, mesmo diante da pretoricamente têm sido das cariedade de registros, se próprias mulheres negras faz necessário empregar a tarefa de escrever na his- uma perspectiva que colotória as suas experiências, que as mulheres negras no incorporando e falando de centro das análises, que suas ações como trabalha- revele o pensamento das doras, ativistas, intelec- mulheres negras. tuais, enfim, como atores O legado de lutas das sociais. mulheres negras sugere Muitas das experiências um conhecimento de opopromovidas por mulheres sição coletivamente partinegras desafiaram histori- lhado e existente há muicamente os poderes esta- to tempo. Esta sabedoria belecidos, abrindo brechas coletiva se constitui, como desarticuladoras da ordem diz Jurema Werneck¹, em social. Estas mulheres são, “memória de conduta”. desde o período escravis- Memória que orienta a geta, exemplos de transgres- ração de conhecimento, ou são e de enfrentamento seja, transformamos nosdas opressões encontra- sas experiências de como dos em toda a diáspora ne- sobreviver na adversidade
práticos que expressam o ponto de vista das mulheres negras através de formas alternativas, de modo a permitir a autodefinição e a formulação de modelos teóricos que correspondam às experiências específicas das mulheres negras. Segundo Nilma Lino Gomes (2010, p. 503), tal pensamento é constituído“por outra racionalidade que não se dissocia da corporeidade, da musicalidade, das narrativas, da vivência da periferia, das culturas negras, das formas comunitárias de aprender”. Cabe lembrar que as expressões culturais negras, menosprezadas pela cultura dominante, são construídas por mulheres e homens, negras e negros, e valorizá-las, garantindo a sua preservação, referenda a própria história das mulheres negras e de sua comunidade, pois as lutas das mulheres negras não estão dissociadas do contexto mais geral da comunidade negra (GONZALEZ, 1988a).
de um lugar situado à margem da sociedade, que se constitui em um lugar de resistência e protagonismo, visando à defesa e à promoção dos direitos das mulheres negras e da comunidade negra. Como expressão de protagonismo, o pensamento se concretiza através da organização política. A organização do movimento de mulheres negras surge, então, como estratégia, como um formato adequado para fortalecer e intensificar a mobilização, reflexão e ação para a superação das desigualdades raciais, de gênero, de classe e de sexualidade na sociedade brasileira.
As instituições de mulheres negras na sociedade, por si só, já são indicativas de ousadia e resistência. São espaços seguros construídos pelas mulheres negras no Brasil e têm contribuído para sustentar nosso sonho de justiça social e de transformação da sociedade, são instrumentos de empoderamento e se configuram como espaços de conO pensamento das mu- trapoder. As instituições lheres negras brasileiras contribuem para a sustené, portanto, um ponto de tação e constante atualizavista construído a partir ção do pensamento de mu-
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lheres negras brasileiras. Falar em protagonismo e autonomia das mulheres negras brasileiras, desse modo, é abordar dimensões do pensamento político das mulheres negras, um pensamento gestado a partir da realidade de mulheres historicamente discriminadas e que sustenta uma teoria e uma práxis, visando não só transformar efetivamente a vida das mulheres negras, mas a própria sociedade, na medida em que se alicerça no enfrentamento de estruturas de poder (racismo, sexismo, divisão da sociedade por classes e heterossexualidade compulsória). O Pensamento das mulheres negras brasileiras, portanto, traz em seu escopo teórico e prático um projeto político de sociedade, a partir de uma concepção aprendida com o passado e reatualizada constantemente com novas experiências subalternizadas, mas não despossuídas de saber. Como a concepção de amefricana, cunhada por Lélia Gonzalez (1988b), que nos fornece um sentimento de pertença à América negra e
REFERÊNCIAS
Curso de Extensão Lideranças Negras Femininas: Reflexões Sobre Gênero, Cor e Classe Social, realizado pelo DEDS | Acervo: DEDS
indígena e nos conduz em direção a um pensamento descolonizador. Dessa concepção retiro minha compreensão de mundo e a aplico para ler e escrever nossa história de mulheres negras na diáspora, e para protagonizar e pensar outras propostas de produzir conhecimento, elaborado a partir de categorias baseadas em nossas experiências de amefricanas na diáspora negra.
CARDOSO, Cláudia Pons. História das mulheres negras e pensamento feminista negro: algumas reflexões. In: Fazendo gênero. Corpo, violência e poder.Anais Eletrônicos... Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: http://www.fazendogenero. ufsc.br/8/sts/ST69/Claudia_ Pons_Cardoso_69.pdf. _________. Outras falas: feminismos na perspectiva de mulheres negras brasileiras. Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Gênero, Mulher e Feminismo.Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2012. COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York/ London: Routledge, 2000.
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GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre a realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. GONZALEZ, Lélia. A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social. Raça e Classe, Brasília, ano 2, n. 5, p. 2, nov./dez. 1988. __________. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan./jun. 1988. WERNECK, Jurema. O samba segundo as Ialodês: mulheres negras e a cultura midiática. Doutorado em Comunicação. Faculdade de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
ARTE-IDENTIDADE DA CULTURA
SARAU Sopapo Poético | Lilian Rose Marques da Rocha | Musicista, poetisa e escritora
AFRO-BRASILEIRA Ritmo Pulsar Da vida oceânica Que mergulho Enquanto ouço O silêncio rouco Da pausa Inquieta Que bombeia O teu coração. E só assim Mergulho Na fonte Inesgotável Da batida Sincopada E alucinada Da Paixão. E grito Na cadência Descompassada Do meu momento Buscando a harmonia Desta expressão de vida, De força e de luz. Transito entre A certeza do sopro E a verdade da criação E aqui e agora me revelo Mulher, estrela, Terra, luz e água Na ressonância Do amor Do olhar Do meu pulsar Que é também o teu.
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Universidade Federal de Pelotas - UFPEL
Georgina Helena Lima Nunes
De modo a tornar a escrita compacta, optei por trazer apenas excertos da entrevista concedida em 28 de maio de 2014, em Brasília, pela professora Maria Diva, da Comunidade Quilombola Conceição de Crioulas. Trata-se, também, de uma liderança da Coordenação da Articulação das Comunidades Remanescentes de Quilombos (CONAQ). Contudo, cabe dizer, são inúmeras as mulheres quilombolas cujas vozes estão contidas nas entrelinhas deste texto.
É primeiro, se inquietar; [...] e esta inquietação não surge porque mandam você se inquietar, isto vem no processo […]. Elas vão se inquietando com a questão do dia a dia e vão começando a interferir, estudar, questionar, falar, brigar. (Maria Diva e Maria Zélia, C.Q. Conceição de Crioulas/PE)
Ao iniciar a escrita sobre as mulheres negras e quilombolas, principalmente aquelas que, junto ou a partir de outras tantas, se constituem lideranças, é inevitável deixar de enxergá-las dentro de um quadro geral deste feminino afro-brasileiro que, em todo o lugar que se encontra, agrega peculiaridades que só podem ser compreendidas à luz do que o passado aponta com inúmeras lacu-
nas, e o presente, ainda, não abarca quanto à totalidade de suas inquietas experiências de intervenção, estudos, questionamentos, falas e brigas! São inúmeros processos de constituição e reconstituição de si marcados por condicionamentos sociais que as relegam a lugares subalternizados sob o ponto de vista dos muitos poderes em questão. Todavia, o poder é relação, ainda que assimétrica, no que diz respeito àquilo que se pode ser e/ou ter. No caso das mulheres negras, através de suas vivências “meio à opressão racial, de gênero e de classe. A transformação torna-se um catalizador quando as noções interiorizadas de inferioridade e inadequação são consumidas por um senso de propósito e vitalidade” (BANKOLE, 2009, p. 264). No Brasil, as mulheres negras compõem um contingente de 50 milhões, de uma população de 191,7 milhões, segundo dados de 2009. No Rio Grande do Sul, este percentual corresponde a um total de 17%, dos quais 51,5% delas chefiam suas famílias. Na sequência dos números, reco-
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nhece-se que 71% destas mulheres estão em ocupações precárias e informais, contra 54% das mulheres brancas e 48% dos homens brancos; quanto à média salarial, a da trabalhadora negra é metade do salário da trabalhadora branca. Mesmo quando ambas têm a mesma escolaridade, a diferença salarial gira em torno de 40% a mais para esta. Assim,
existe […] um cenário de amplas e persistentes desigualdades de gênero e raça […]. Este princípio trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (MARCONDES et.al, 2013, p.32).
As formas de enfrentamentos femininos e negros foram e são ancorados em suas matrizes civilizatórias africanas enraizadas em seus cotidianos e perpassados, obviamente, por relações interculturais que produzem hibridismos (BHABHA, 2001) responsáveis pelos movimentos de negociação e tradução que permitem
[...] a reelaboração de algumas de suas práticas culturais: religiões de matriz africana, danças, músicas, modo de vestir e de falar, arranjos familiares matricêntricos, relação não tabuizada com o corpo. Essas reelaborações constituíramse em brechas estabelecidas na estrutura social, segundo a dinâmica dominaçãoresistência (BONFIM, 2008, p. 239).
Rita Rosa | Acervo: DEDS
Mediante estes dados estatísticos, é importante observar que não se trata de falar de uma generalização do ser mulher e negra que protagoniza mudanças e resistências ao mesmo tempo em que, sob alguns aspectos, persiste sob a mira de um legado de estereótipos que não as têm impedido de feminizar as diásporas africanas com suas marcas estéticas, portanto, éticas (FOUCAULT, 2004), na busca por liberdades condicionadas, muitas vezes, pelas circunstâncias em que vivem, mas com um potente autocuidado como forma de, também, disseminar cuidado ao outro.
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A configuração entre dominação e resistência presente na história das mulheres negras tem gerado um insurgente movimento de vasculha que aponta para uma singularidade de vivências que, de outros postos de observação, geram perspectivas teóricas, metodológicas (XAVIER et.al., 2012) e políticas explicativas das ambivalentes racionalidades, tanto no campo das opressões sofridas como no das emancipações construídas. A história das mulheres negras, ao ser reescrita, desvela, também, os mecanismos através dos quais, contraditoriamente ao dito acima acerca das suas raízes de matriz africana serem repositório de vitalidade nas disputas cotidianas, ideologicamente, constituíram-se elementos para argumentos que coisificam corpo, subjetividades e espiritualidades, atribuindo-lhes, então, as representações de “mulher-objeto”, “mulher-sexo”, “mulher-labor” (BONFIM, 2009, p. 225). Resta-lhes, então, refazer-se permitindo continuar-se com a persistência de
um sentimento de liderança que coabita diferentes frentes de luta e socialização em diferentes conformações geográficas que não correspondem apenas a características físicas, mas, sim, essencialmente humanas, históricas e sociais, a exemplo dos quilombos. Os quilombos, de todos os tempos, históricos e contemporâneos, são territórios cujas lideranças se forjam como extensão, ou melhor, complementaridade de muitas mulheres e homens. Enfim, confluem para si uma imensidão de sonhos que se tornam coletivos tal qual a forma ancestral de gestar a vida. Tal complementaridade transcende, portanto, a concepção de representatividade, ou seja, ser líder é ser/ ter a própria história sedimentada nas peculiaridades de um território que só pode ser compreendido para além do material, do concreto.
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Liderança negra e liderança negra quilombola: as lideranças quilombolas têm “n” coisas que ela acredita que envolve outros elementos que é a questão da terra, do local onde ela vive, da sua história, do seu jeito de se organizar […]. É querer que aquilo onde você está se transforme, se transforme de forma positiva, e para isso eu vou ter que olhar para diversos aspectos da sociedade e eu vou ter que me encontrar, me achar e me defender dentro daquele espaço que é muito além do visual concreto, que a gente não sabe explicar, que ultrapassa a dimensão do material, do concreto, do que é palpável […] (Maria Diva, liderança da C.Q. Conceição de Crioulas, Mai/2014).
Georgina Helena Lima Nunes | Acervo: DEDS
É chão que se faz território físico, simbólico e cultural; que é fundado pela ideia de convívio comunitário cujas contradições de um viver junto não se sobrepõem às ímpares possibilidades de construir um lugar que se perpetua enquanto espaço de resistência à opressão e, ao mesmo tempo, se atualiza na recriação de coletividades negras que se abrem para o diverso, para o desafiador, para um novo que não prescinde dos fios da memória, por isso, insurgente de um passado vivificado todos os dias e de futuros dinamizados pelas
[…] experiências complexas de luta, opressão, humilhação, superação, amor, dor, desejos, escolhas, alegrias e desafios. Constatar isso pode ser pouco. Mais importante será conhecer e tornar visível – em alguns espaços do conhecimento e da decisão sobre as políticas públicas – o universo das mulheres negras e o seu protagonismo de ontem e de hoje (PAIXÃO e GOMES, 2012, p. 311).
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O protagonismo da mulher negra como liderança das lutas que abarca a defesa de um território passa, principalmente, pela capacidade de liderar em uma militância que tem o umbigo enterrado nos seus mundos correlatos ao trabalho artesanal e doméstico, à fé, a uma feminilidade que se anuncia em uma estética que não cabe em modelos preconcebidos. A negritude emerge não de modelos propriamente ditos, mas da maneira como, dentro de uma série de elementos, conjunturas e cenários aparentemente desfavoráveis para fortalecer aquilo que, talvez erroneamente, se dita como identidade negra (é única?), a torna realidade por intermédio da pluralidade de jeitos de ser, viver e fazer sensivelmente bonitos, contundentemente enraizados em tradições filosóficas e histórias que, por analogia, remetem-se às representações presentes nos simbolismos sankofa. Um dos símbolos sankofa, ao trazer um antílope sobre um elefante, o representa como possibilidade de “chegar ao topo pela sabedoria e pelo bom senso, nunca por meio do
Compreender que o espaço quilombola é este “muito além do visual concreto que a gente não sabe explicar, que ultrapassa a dimensão do material, do concreto, do que é palpável […]” e relacioná-lo à formação das lideranças mulheres talvez seja fazer a captura das miniaturas cotidianas, geralmente de difícil visibilidade frente ao reducionismo de um olhar acadêmico, das militâncias
que não reconhecem outros feminismos, e fundar as rupturas epistêmicas e políticas que estas diversidades, positivamente, produzem na luta das mulheres como um todo. Algo que merece um breve realce é a forma como as lideranças quilombolas destacam e se destacam quanto a sua capacidade de fazeres, que podem ser nomeados como trabalho, dentro de uma imensidão de situações que se relacionam, desde as atividades domésticas, nas roças, artesanais e espirituais, dentro do território, e até aqueles fora do mesmo, cujos valores variam entre aqueles com existência de preço, portanto monetário, e aqueles que se produzem no âmbito dos sistemas de dádivas e reciprocidades que não dizem respeito a trocas tão somente materiais, mas afetivas e generosas (OLIVEIRA, 2014). No enfrentamento diário às renovadas imposições e interpretações de um machismo, racismo e sexismo que partem das complexas tramas de um tecido social definido a partir de critérios que legitimam e deslegitimam, reguladores, portanto, da forma como as pessoas lutam e lidam contra
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Geanine Escobar | Acervo: DEDS
peso, da força ou do tamanho. O emblema representa a sabedoria da nação” (NASCIMENTO, 2008). A sabedoria feminina transparece neste princípio e, portanto, não cabe, e nem mesmo as mulheres negras se reconhecem dentro dele, o adjetivo da fragilidade feminina, que se apresenta em alguns discursos como mito ou justificativa para uma suposta proteção do patriarcado (CARNEIRO, 2002). Essas mulheres são sempre fortes, nada frágeis, contundentemente sensíveis e perspicazes, características advindas da forma com que os sentidos se exacerbam na relação direta com a rica natureza quilombola e com as questões de ordem social que o tornam um espaço desafiador, inclusive, no decodificar de sua dinâmica.
Participantes do curso Lideranças Negras Femininas em 2014 | Acervo: DEDS
e com as adversidades, as lideranças quilombolas consolidam-se valorando aquilo desconhecido como valor intrínseco a vivências comunitárias não desprovidas, certamente, de contradições em seu interior. As lideranças anciãs, por exemplo, se fortalecem frente às mais jovens quando exaltadas na sua árdua trajetória de trabalho em serviços cuja presteza era reconhecida, também por elas, como motivo de muito orgulho em virtude do reconhecimento dos patrões – reconhecimento este que não pode deixar de ser analisado dentro de um contexto de exploração e baixa remuneração de um trabalho doméstico rural. Todavia, é recorrente nas falas de D. Lica (C.Q. Iguatemi, Canguçu/RS), D. Santa (C.Q. Potreiro Grande, Canguçu/RS), D. Idalina
(C.Q. Manoel Barbosa, Gravataí/RS), D. Clarinha (C.Q. Armada, Canguçu/RS), D. Diná (C.Q. Faxina, Canguçu/RS), e de tantas outras, na sua grande maioria octogenárias, que entusiasticamente relatam que as qualidades de seus fazeres as mantinham em um lugar de respeito frente à comunidade como um todo, que, de igual forma, interpretava suas sábias metáforas, silêncios, pausas e olhares que explicitavam a leitura deste trabalho imerso nos contrassensos inerentes aos lugares de cor, gênero e classe social ocupados pelas anciãs. As condições de trabalho dos homens nos quilombos também são complexas: poucos hectares de terra e sem meios de produção, enfim, um contexto econômico típico das populações negras rurais que vivem à base da subsistência, que
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obriga, com frequência, os homens a se afastarem do interior da comunidade. Nestas ocasiões, as mulheres assumem a totalidade das demandas, resultando, então, em grupos cuja divisão sexual das tarefas é de baixa intensidade. A assunção do território passa, também, por outras apropriações, dentre elas, a direção política dos movimentos cuja representação das mulheres nos momentos de decisão é cada vez maior. Estas, assim, tornam-se emblemáticas para as infâncias e juventudes que crescem junto a outra dinâmica de compreensão acerca dos direitos territoriais, a partir do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADTC) da Constituição Federal, que garante o direito à posse definitiva das terras de quilombo. Neste sentido,
[...] as maiores decisões, os maiores enfrentamentos, as maiores mobilizações quem enfrenta são as mulheres, quem inicia, quem dá o pontapé inicial são as mulheres, isto não significa dizer que só mulher faz parte daquele movimento de qualquer questão seja ligado à terra, à educação […]. A gente brinca, a gente diz que acha que isto está no DNA das mulheres de Conceição das Crioulas pelo fato de historicamente quando o Brasil era dominado, como hoje ainda é, pelos homens, a questão do patriarcado, estas coisas todas, Conceição das Crioulas já se saiu, sobressaiu a partir das ideias, das lutas, das estratégias das mulheres. A lógica é outra, o formato é outro, os espaços são outros, mas, de novo, as mulheres estão lá puxando a questão do território […] (Liderança da C.Q. Conceição de Crioulas, Mai/2014).
Talvez, indiretamente, vislumbrem uma escola que incorpore nos seus currículos uma concepção de feminino que pense a complementaridade dos gêneros; que se revele feminina não por ser “coisa de mulher”, mas porque tem esta identidade forjada na história regressa das matriarcas que literalmente fundaram os quilombos sob bases concretas, subjetivas e mitológicas (mães dos rios, igarapés e fontes; guardadoras das matas, caminhos e estradas!), tais como C.Q. Crioulas, Salgueiro/PE; C.Q. Murumurutuba, Santarém/PA; C. Saracura; Santarém/PA ; C.Q. Potreiro Grande e C. Q. Cerro das Velhas, Canguçu/RS; C.Q. Campinho da Independência, RJ; C.Q. Para além da luta pela Maria Adelaide Trindade, regularização fundiária, Palmas/PR; C.Q. Vó Euvira, lutam por outros direitos Pelotas/RS, e outras tande cidadania, a exemplo tas existentes. da escola - escola quilomA tradução do que seja bola - que implica para as uma mulher líder e quilomgerações mais jovens a bola numa estreita relação possibilidade de ampliar o de partilha intergeracional campo das atuações pro- que sinaliza continuidafissionais, levando consigo des, define-se como um traço identitário que permita a todos/as estarem em outros contextos sem que deixem de ser quilombolas. Quando as mulheres lutam para não sair do lugar onde muitas delas nasceram e vivem até os dias de hoje, é porque desejam continuar a gestar a vida por dentro, o que não significa, necessariamente, ir à contramão da bandeira de luta que aponta o doméstico como lugar de dominação masculina e, em muitos casos, de violência física e simbólica. É preciso ressaltar, todavia, que os quilombos descentram-se da ideia de lar e constituem-se enquanto coletividades que a ampliam ao invés de reduzi-la, não pelo caráter comunal da terra quilombola, mas pelo nível gregário das relações interpessoais.
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Frente a esta versatilidade e sonoridade de D. Conceição, fica o registro da sua neta que, tal como a avó, também canta a música às margens do rio enquanto lava roupa e que vai à escola – o que representa um passo adiante em relação aos mais velhos - e que a traduz na seguinte expressão, com todos os traços de uma cultura juvenil contemporânea que aponta para um sistema de continuidades entre mulheres que são inquietas fortalezas: “A minha vó não é fraca”!
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Mariana Barbosa | Acervo :DEDS
[...] aquela que escuta e que é uma pessoa que não centraliza as coisas da comunidade em si, mas que divide e compartilha com os outros […] que acredita nas pessoas que estão lá […] de luta que não está condicionada às mulheres, ela está assegurada nas crianças, na juventude que se cria neste processo (Maria Diva, C. Q. Conceição de Crioulas/PE, maio 2014).
Por fim, terminaria com a presença do corpo, voz e melodia de D. Conceição, 78 anos, da C.Q. Saracura (Santarém/PA), que vive em uma comunidade quilombola localizada às margens do Rio Amazonas que há 200 anos sobrevive aos seis meses de intensa seca e seis meses de cheias do rio. Natureza rebelde que faz com que, independente dos “jacarés e piranhas que chegam às nossas portas” (D. Conceição) se vá levantando o assoalho com as marombas até que os dias de sol cheguem, quando é possível tirar o chinelo e cantar no terreiro, em todas as ocasiões e com todas as vozes, a música que se tornou um verdadeiro hino da comunidade: “Saracura está cantando / Lá na beira do tingó / Agora mexe sua Saracura / É o siricó, o siricó, siricó”.
REFERÊNCIAS
BABHA, Homi. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. BANKOLE, Katherine. Mulheres africanas nos Estados Unidos. In: NASCIMENTO, Elisa L. (Orga.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2008. BONFIM, Vânia Maria da Silva. A identidade contraditória da mulher negra brasileira: bases históricas. In: NASCIMENTO, Elisa L. do (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2008. (Sankofa. Matrizes Africanas da Cultura Brasileira; 4). CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados 17 (49), 2003. FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”. In: Ditos & Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
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MARCONDES, Mariana Mazzini et. al. (Orga.). Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: IPEA, 2013. NASCIMENTO, Elisa L. do (Org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. (Sankofa. Matrizes Africanas da Cultura Brasileira; 1). OLIVEIRA, Heron Lisboa de. Comunidades Remanescentes de Quilombolas de Arvinha e Mormaça: processos educativos na manutenção e ampliação do território. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, 2014. PAIXÃO, Marcelo; GOMES, Flávio. História das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. In: XAVIER, Giovana et. al (Orga.). Mulheres Negras no Brasil Escravista e do PósEmancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.
Marcus Vinicius de Freitas Rosa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
O famoso Arraial da Baronesa é uma região próxima à boêmia Cidade Baixa e correspondia à antiga chácara da Baronesa de Gravataí. No século XIX, serviu como local de abrigo e moradia para escravos fujões, atividade que contribuiu para a “má fama” do lugar e para seu apelido, “Emboscada”. Ao longo da primeira metade do século XX, passou por um lento desenvolvimento urbano, sendo zona de eventuais alagamentos e local de moradia de famílias pobres, sobretudo negras. Vários quartéis da Brigada Militar foram construídos em seu entorno, que se tornou ponto de moradia para integrantes da milícia estadual. O saneamento básico e a pavimentação das ruas ocorreram apenas na segunda metade do século XX. O nome popular da região, “Areal”, surgiu por consequência da falta de saneamento básico. Aquele espaço, em oposição aos outros arraiais de Porto Alegre, em geral qualificados como tranquilos e pacatos, era visto pelas autoridades como “lugar de malandragem”, de “imperiosa desordem”, reduto de vadios e pros-
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Marcus Vinicius de Freitas Rosa | Acervo: DEDS
viviam para além de suas “fronteiras” –, motivo pelo qual muitos historiadores o classificaram como um “território negro”. As principais ruas associadas ao carnaval daquele espaço urbano eram a Baronesa do Gravataí e a Miguel Teixeira.
titutas. Abrigou em seus cortiços sujeitos que viviam da prestação de serviços, policiais, pequenos comerciantes e operários. As frequentes inundações, derivadas de sua proximidade com o Arroio Dilúvio, perduraram até a década de 1960, momento em que seus habitantes começaram a ser “retirados” para outras zonas periféricas da cidade, como o Bairro Restinga. O Areal se constituiu através do sentimento de pertencimento por parte de seus habitantes e também pelo contraste estabelecido entre eles e os “outros” – os que
apenas uma visão entre outras visões possíveis.
No carnaval de 1935, os integrantes do Bloco Filhos do Mar ensaiaram suas apresentações sob a direção do maestro Claudino Oliveira, que se “impunha” nos ensaios para que as canções do grupo fosAs valorações negativas sem entoadas com técnica associadas ao Areal da Ba- e qualidade. A preocuparonesa e aos seus morado- ção com a imagem pública res ficaram conhecidas por estava presente naquele meio da pena de diversos grupo, composto por moraletrados porto-alegrenses. dores de um território para A “má fama” do lugar era o qual os poderes constibastante antiga, remonta- tuídos faziam questão de va à época da escravidão, não olhar ou de enxergar e permaneceu conhecida com olhos bastante prena cidade durante muito conceituosos. Sua “cavertempo. Não é difícil per- na” – ou seja, a sede do ceber que o lugar recebia bloco – ficava em uma das péssimos significados por- principais vias do Areal, a que seus moradores – em Rua Baronesa do Gravataí, grande parte, negros, en- nº 480. tre os quais muitos ex-esDurante o carnaval, era cravos – eram persistentemente mal vistos pelas sempre possível encontrar classes dominantes. É im- indícios do alto nível de orportante ressaltar, entre- ganização dos foliões do tanto, que as opiniões dos Areal quando estes trataescritores, jornalistas e ou- vam de formar as comistros letrados acerca dos in- sões para administrar os divíduos que habitavam o festejos. O grupo responAreal expressavam precon- sável pela festa em outra ceitos e estigmas cristali- importante rua da região, zados na visão de mundo a Miguel Teixeira, contava, das elites locais. Tais for- em 1948, com os moradomas depreciativas de olhar res Saturno Dutra, como para os mais pobres eram presidente; Carlos Salo-
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Na Rua Miguel Teixeira, no carnaval de 1950, a comissão organizadora solicitou, por intermédio do jornal Correio do Povo, o comparecimento de todos os grupos de foliões daquela via a uma reunião. A própria existência de grupos de pessoas desempenhando diferentes funções (presidência, diretoria, secretaria e tesouraria) dá uma ideia da importância que atuar no carnaval tinha para muitos moradores do Areal. Eram foliões que não tratavam como brincadeira os dias consagrados a Momo, vistos por eles como algo que ultrapassava a concepção do carnaval como mera folia.
públicos e visitas dos blocos aos simpatizantes, frequentemente para arrecadar quantias financeiras). O conjunto, composto por moradores do Areal da Baronesa, foi descrito por um jornalista como sendo um “rancho batucado”. Sua estudantina era ensaiada pelo pandeirista Darcy Oliveira. Mais uma vez, estava presente a intensa preocupação com o desempenho musical, revelando a preocupação dos festeiros com sua imagem pública. Além disso, os integrantes do Não Sei enviaram uma de suas composições à imprensa (A Federação, 10 jan. 1933, p. 02), obtendo a tão almejada publicação. Era um samba-canção, intitulado “Parece mentira”:
Parece mentira Parece Que eu deixei de amar Você Mas a culpa toda É sua De me deixar dormindo Na Rua Foste iludida Pelo luxo e a riqueza Hoje andas de chinelo No Arraial da Baronesa Você comigo
Moradores da comunidade do Areal da Baronesa | Acervo: Foto disponibilizada pela página Areal Futuro - Comunidade no facebook
mão, como vice-presidente; Nelson Soares e Dorival Leivas, como secretários; Vitor Severo e Carlos Pereira, como tesoureiros. A hierarquia e a organização interna de grupos como este contrastavam com a antiga e persistente imagem acerca dos habitantes do Areal como “desordeiros”.
Foi bem antes do carnaval de 1933 que os foliões do grupo burlesco Não Sei começaram a sair às ruas da cidade para realizar as famosas muambas (nome dado aos passeios
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Não andava enchapelada Não tinha luxo nem nada Mas sempre andava calçada
Moradores da comunidade do Areal da Baronesa | Acervo: Foto disponibilizada pela página Areal Futuro - Comunidade no facebook
Desfiles e publicidade das canções, para aqueles foliões, tinham o mesmo objetivo: visibilidade social, tão importante para sujeitos “invisíveis” (ou malvistos) durante a maior parte do ano, e que, talvez nos dias dedicados a Momo, pudessem dar alguma publicidade às suas precárias condições de vida. Durante os folguedos de 1949, o jornalista Nelson de Assis se dirigiu ao Areal para fazer uma reportagem sobre o bloco X do Problema (Revista do Globo, 19 fev. 1949, p. 3134). Seu líder e ensaiador
chamava-se Dorvalino Fogaça. No início da década de 1930, ele havia integrado o bloco Os Tesouras; em 1949, completou doze anos como compositor. Embora Dorvalino buscasse divulgar suas melodias pelas rádios da cidade, essa dedicação não lhe propiciava renda alguma. Suas próprias palavras são significativas: “Sou contínuo do Banco do Rio Grande do Sul e é com ordenado desse emprego que sustento casa, mulher e quatro filhos. A música não me tem dado muito”. A busca por visibilidade, aceitação e reconhecimento não era garantia de as-
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censão social ou retorno financeiro. Ainda assim, Dorvalino não abandonava o carnaval. O X do Problema costumava ensaiar nos fundos de uma churrascaria da Rua Baronesa do Gravataí, cujo quintal foi transformado em um terreiro de samba. Em certo momento, o repórter fez um comentário bastante significativo em relação ao encontro do grupo: “Nada disso, senhores! O tempo não vai fechar. Isto é apenas o ensaio”. A pecha de “brigões” e “desordeiros” orientava o modo como muitos jornalistas (e, provavelmente, muitos leitores da Revista do Globo) olhavam para os moradores do Areal. Dorvalino, contudo, percebia que o reconhecimento não era algo facilmente obtido, pois assim dizia uma de suas canções: “Sei que existe no Sul diversos autores/Mas estes autores não ganham valor”. Longe de celebrar uma identidade nacional durante o tríduo momesco, muitos foliões como Dorvalino buscavam ser vistos e reconhecidos por uma sociedade que os excluía durante o ano inteiro.
ele não ganhavam valor. Fogaça era apenas mais um folião em busca de visibilidade durante o carnaval. Ao contrário da Ilhota, região pobre que acabou removida violentamente pela urbanização, as duas principais ruas do Areal – Miguel Teixeira e Baronesa do Gravataí – continuam existindo com os mesmos nomes. O Areal, hoje reconhecido como quilombo, está situado entre os atuais bairros Cidade Baixa, Menino Deus e Praia de Belas. Não muito distante do centro de Porto Alegre, o Areal da Baronesa continua sendo, em pleno século XXI, um dos espaços referenciais para os carnavais de Porto Alegre.
REFERÊNCIAS
Local que contava com má fama desde o século XIX, o Areal da Baronesa era, conforme a opinião das autoridades públicas e letrados locais, um antro de marginais, desordeiros, criminosos e mulheres de vida fácil. Todavia, dificilmente esses pontos de vista seriam compartilhados com os festeiros que lá moravam ou que por lá circulavam. Muitos foliões daquela região formavam grupos com hierarquias internas e faziam reuniões para tratar de assuntos que – do ponto de vista dos próprios moradores – eram importantíssimos: os ensaios das canções e as confecções das fantasias que seriam apresentadas, a organização dos blocos ou a própria administração dos folguedos. Isso certamente destoava da pecha de desordeiros e indicava uma preocupação com a imagem pública. A busca por publicidade e reconhecimento, aliás, ficou bastante explícita nas palavras de Dorvalino Fogaça, que estava plenamente ciente das dificuldades que a ele se apresentavam quando buscava espaço para seus sambas, motivo pelo qual concluiu em uma de suas canções que, no Sul do Brasil, compositores como
ROSA, Marcus V. de F. Quando Vargas caiu no samba: um estudo sobre os significados do carnaval e as relações sociais entre os poderes públicos, a imprensa e os grupos de foliões em Porto Alegre de 1930 a 1940. Mestrado em história. Porto Alegre: UFRGS, 2008. _______. Além da invisibilidade: história social do racismo em Porto Alegre durante a pós-abolição (18841918). Doutorado em história. Campinas: UNICAMP, 2014.
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SARAU Sopapo Poético | Lilian Rose Marques da Rocha | Musicista, poetisa e escritora
Grata Mulher Pela tua doce E amarga Presença Somos sobreviventes Muitas vezes Com um sorriso Ou com uma lágrima Molhando o nosso rosto. Mas como guerreiras Novamente Viramos a página E seguimos A história Com amor, com afeto Com resiliência A vida nos exigiu Presença Pois então... Aqui estamos Prontas, belas Mães, filhas Trabalhadoras Cientistas Essência feminina No desabrochar Sensível e forte Da humanidade.
SARAU Sopapo Poético | FÁTIMA FARIAS | poetisa e escritora
Mulher de Respeito Uma mulher só é feliz quando é valorizada Transforma-se em fera ao sentir aprisionada Nosso espaço é curto Mas longa é a nossa estrada Mulheres se forem unidas Nunca serão dominadas Eu gosto de ser assim como sou Forte e abusada Aquela fraqueza antiga Há muito foi derrotada Vou erguer minha bandeira E exigir ser respeitada Uma mulher de respeito Será para sempre amada
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Natalia Pietra MĂŠndez
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Natalia Pietra Méndez | Acervo: DEDS
Começo este texto agradecendo o convite do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social da PROREXT/UFRGS para participar do Curso Lideranças Negras Femininas: reflexões sobre gênero, cor e classe social. A iniciativa ganha importância em um contexto em que as universidades brasileiras estão iniciando um processo de ruptura com a exclusão histórica da população negra nos espaços acadêmicos. Assim, falar sobre gênero e história é uma boa oportunidade para pensar as relações de gênero dentro da universidade e o lugar ocupado por mulheres - especialmente por mulheres negras - na produção do conhecimento e na gestão universitária. Se atualmente já podemos perceber um aumento da presença de mulheres negras nos
cursos de graduação, a realidade é diferente quando se examinam os cursos de pós-graduação, os docentes dos departamentos e os cargos de gestão. Rementendo ao título deste curso, com base no gênero, na cor e na classe, são delimitadas fronteiras invisíveis, que tornam difícil e até mesmo improvável o acesso aos diferentes estágios da vida acadêmica. Este texto não vai relatar especificamente as dificuldades encontradas pela história das mulheres e pelo gênero para se consolidar (será que já se chegamos lá?) dentro do campo da história. Mas, para começar a conversa, vale lembrar que se atualmente os estudos de gênero e história possuem um lugar destacado (inclusive com uma profusão de publicações, eventos de caráter internacional, núcleos e grupos de pesquisa) é porque ao menos uma parte da população feminina conseguiu diluir essas fronteiras existentes dentro das universidades. Este texto se dedica a trazer alguns aspectos que nos permitirão compreender como o gênero vem sendo discutido em uma área específica das ciências humanas: a história.
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É difícil – e talvez nem seja adequado - traçar uma linha do tempo indicando quando a história começa a se aproximar de uma problemática de gênero, mas é possível apontar algumas influências. Dentre as mais significativas está Simone de Beauvoir, que com seu livro O Segundo Sexo tentava responder à pergunta: “o que é uma mulher?”. Para Beauvoir, a mulher era “o Outro” definido pela alteridade masculina. Em uma de suas sentenças mais famosas, a filósofa disse: “Não se nasce mulher, torna-se mulher: nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade. É o conjunto da civilização que elabora esse produto” (BEAUVOIR, 1980, p.09).
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1 Acerca da discussão sobre teoria feminista e essencialismo, ver: AZEREDO, Sandra. Encrenca de gênero nas teorizações em psicanálise. Revista Estudos Feministas. Vol. 18, nº 1, 2010. MATHIU, Nicole. Sexo y Género. In: HIRATA; LABORIE; LE DORARÉ; SENOTIER; (coord). Diccionario crítico del feminismo. Madrid: Ed. Síntesis, 2002.
sencialismo, vertente que parte da primazia da existência de uma identidade mulher, fixa, universal - em oposição à identidade do homem universal. Esse enfoque recorre à categoria sexo como elemento central da análise¹. A principal ressalva feita ao essencialismo refere-se a um de seus pressupostos que considera o sexo biológico como elemento deflagrador das identidades – tanto masculina quanto feminina. Este pensamento não levaria em conta que a própria construção da identidade sexual (e do Entre as décadas de sexo biológico) não são 1960 a 1980 (esta tempo- imutáveis e também ralidade varia conforme o precisam ser examinadeslocamento geográfico), dos em uma perspectihistoriadoras influenciava sociocultural. das pelo feminismo passaram a questionar o caráter No entanto, esta crípretensamente universal tica genérica descondo conhecimento histórisideraria a diversidade co. Indagavam as razões de discussões teóricas da prevalência de um olhar feministas que se demasculino sobre a ciência senrolaram nas décae, igualmente, na escrita das em questão, geneda história. ralizando o rótulo de Os estudos sobre mu- essencialista a toda a lheres no campo da his- produção feminista do tória produzidos nesse período. Esta ressalva período são genericamen- é apontada por Clare te criticados pelo seu es- Hemmings, que afirma: Beauvoir questionou o determinismo biológico do sexo na elaboração da identidade feminina. Seu pensamento contribuiu para pensar se mulher pode ser uma categoria histórica, uma vez que a própria identidade feminina é mutável. Para a filósofa, homens e mulheres têm a liberdade de construir suas próprias experiências. Mais recentemente, a historiadora Michelle Perrot apontou para a historicidade da categoria mulher. Para ela, trata-se de uma entidade coletiva e abstrata à qual atribuem-se caracteres de convenção (PERROT, 2005:35).
2 Sobre o conceito de patriarcado ver: HIRATA; LABORIE; LE DORARÉ; SENOTIER; (coord). Diccionário crítico del feminismo. Madrid: Ed. Síntesis, 2002.
Dessa maneira, uma razão pela qual eu considero tão graves as infundadas afirmações sobre o essencialismo da escrita feminista dos nos 70 é que elas ignoram as ricas discussões sobre as relações entre gênero, sexualidade e raça que foram travadas naquela década (HEMMINGS, 2009, p.220).
Outro problema de caráter teórico que acompanhou o estabelecimento da história das mulheres refere-se ao uso do conceito de patriarcado (entendido como sociedades em que o poder é concentrado nos homens) para todas as realidades sociais, desconsiderando, por exemplo, sociedades matrilineares nas quais as mulheres possuem uma importância significativa para as suas comunidades².
Um dos principais debates teóricos que podemos situar partir dos anos 1980 estava vinculado ao gênero e seus usos na história. A categoria gender, vale lembrar, surgiu ainda nos anos 1960, primeiramente nos países anglo-saxões. Neste primeiro registro, não houve grandes inovações teóricas: seu uso era sinônimo de sexo. O antropólogo Gayle Rubin, ao que tudo indica, foi o propositor do uso da expressão sex/gender systems para definir a correlação entre os regimes de matrimônio que oprimem as mulheres e os processos econômicos e políticos globais (MATHIEU, 2002: 240). Parte das historiadoras das mulheres tomou o gênero como uma categoria de análise que permitiria investigar os diferentes significados produzidos sobre o ser masculino e feminino, contradizendo a ideia de que há uma identidade definidora do “homem” e da “mulher”. Ou seja, o gênero seria uma alternativa à categoria mulher, tão questionada devido aos debates sobre o essencialismo, tema comentado acima. Embora a adesão ao gênero não tenha sido
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unânime, ele contribuiu para repensar a escrita da história. Mesmo quando se aproxima das teorias feministas, a história tem dificuldade de superar algumas características: a oposição binária homem/ mulher, a identificação de uma cultura feminina em oposição a uma cultura dominante masculina, a separação entre público e privado, o projeto de construir uma identidade comum às mulheres, a noção de que a história das mulheres funciona como um suplemento à História. Para Scott, é preciso refletir sobre o caráter subjetivo das identidades e pensar o gênero como um aspecto geral da organização da sociedade, considerando que “devemos deixar de lado também a tendência a compartimentalizar, de boa parte da história social, que relega sexo e gênero à instituição da família, associa classe com o local de trabalho e com a comunidade e aloca a guerra e os temas constitucionais exclusivamente no domínio da “alta política” do governo e do estado” (SCOTT, 1994: 19). Contrária à opinião de Scott, Eleni Varikas afirma o caráter analítico das pesquisas em história social
que dialogam com o gênero. Segundo ela, a história social propõe investigar o sujeito em todas as dimensões de sua existência, e não apenas como epifenômeno das relações de produção (VARIKAS, 1994: 76). Dentro da perspectiva da história social, a ênfase não está na oposição entre “mulher” versus “gênero”. Reconhece-se que o gênero, como relação de poder, é um constructo de identidades que geram diferentes experiências femininas. Para Varikas, a tradição thompsoniana possibilitou observar as experiências dos homens e das mulheres como uma dimensão constitutiva dos seus conceitos de classe, de consciência de classe, de política ou de identidade operária. As relações de gênero são examinadas junto a outras categorias de análise - como classe, raça, nacionalidade - para reconstruir as experiências das mulheres no passado. Apesar do sucesso que o conceito de gênero alcançou, a aproximação entre estudos de gênero e escrita da história vem sendo marcada por uma grande heterogeneidade teórica e por divergências quanto ao seu uso que, por
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vezes, são escamoteadas devido a uma tentativa de construir uma retórica do pensamento feminista ocidental como uma marcha incansável de progresso e perdas (HEMMINGS, 2009: 215). Essa visão, de acordo com Clare Hemmings, tende a atribuir às feministas pós-estruturalistas o pioneirismo por questionar a validade analítica da categoria “mulher” e a afirmar, por exemplo, o caráter essencialista da produção historiográfica da década de 1970. Igualmente, essas análises, centradas no feminismo anglo-saxão, estabelecem uma linearidade nos estudos feministas a partir de alguns recortes e escolha de autorias que deixam de fora outras narrativas (HEMMINGS, 2009: 224-225). Como lembra Scott, escrever uma história das mulheres a partir do gênero é um desafio constante. O conhecimento produzido é visto por uns como uma alegoria dispensável da História (com H maiúsculo) ao mesmo tempo em que seu projeto questiona as premissas da história, especialmente sua pretensa universalidade:
A emergência da história das mulheres como um campo de estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história. Mas esta não foi uma operação direta ou linear, não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anteriormente faltando. Em vez disso, há uma incômoda ambiguidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslocamento radical dessa história (SCOTT, 1992, p.75).
As análises feministas, como destaca Spivak, acabam promovendo uma violência epistêmica com os seus “objetos” de estudo. Quando se pensa, por exemplo, nas pesquisas sobre gênero e história, é pertinente questionar a história de quais mulheres se está produzindo. Em que medida a história das mulheres, mesmo influencida pelo gênero, não está silenciando outras histórias? Gayatri Spivak salienta que o feminismo ocidental reforça visões colonialistas e a ideia de um sujeito totalizante (por exemplo, “a mulher do terceiro mundo”) (SPIVAK, 1999:13). Seguindo a pista deixada por Spivak, pergunto em que medida a história das mulheres e os estudos de gênero têm sido capazes de superar a visão da mulher negra como “a escrava”? Em uma dinâmica social em que gênero, raça e classe se cruzam, faz sentido questionar se o gênero é a relação primária de poder. O debate proposto por Hall dá relevo ao caráter de fluidez que permeia as identidades, nem sempre sendo possível estabelecer a qual (ou a quais) relação de poder somos, primeiramente, submetidas:
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(...) à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).
Dentro deste desconcerto, a própria identidade feminista pode ser questionada. O que é ser feminista? Existe um feminismo correto a ser seguido para ser considerada feminista? Os sentidos históricos atribuídos às masculinidades e às feminilidades propagam múltiplas distinções e segregações sociais. O feminismo, enquanto movimento e teoria social, não está a salvo das relações
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. CARNEIRO, Suely. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: http://www.unifem.org.br/ sites/700/710/00000690.pdf. Acesso em: jun. 2014. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Revista Estudos Feministas, v.17, n.1, UFSC, 2009. MATHIU, Nicole. Sexo y Género. In: HIRATA; LABORIE; LE DORARÉ; SENOTIER; (Coord). Diccionario crítico del feminismo. Madrid: Ed. Síntesis, 2002. PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005. SCOTT, J. História das Mulheres. In: BURKE, P. A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Ed.
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3 CARNEIRO, Suely. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000690.pdf. Acesso em: jun. 2014.
REFERÊNCIAS
de poder que se manifestam (e se reproduzem) em todos os âmbitos da vida. Como bem lembra Suely Carneiro, é preciso enegrecer o feminismo³. Eu acrescentaria que é preciso, também, enegrecer e generificar a história.
SARAU Sopapo Poético | PÂMELA AMARO | atriz, cantora, compositora, arte-educadora
Veneno do Café Nega me traz um café Ele gosta de dizer Botei no café meu veneno E dei pro santo benzer Preparei um cafezinho com carinho a meu amor No primeiro gole acorda No segundo já tombou Que que eu dou, que que eu dou Que que eu dou para esse rapaz Já lhe dei um par de chifres Um par só não satisfaz O segundo e o terceiro par de chifres que lhe der Vou traí-lo com um homem e depois com uma mulher Eu sou Maria da Penha, não Maria degolada Sou a tua companheira, não a tua empregada Esse tal de seu machismo, “Tá com nada”, meu irmão! Mude a letra do seu samba, Que eu encerro a minha canção
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Giane Vargas Escobar
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
tes, têm projetos de vida diferenciados, mas lutam Movimentos de ruptupor uma mesma causa, a ra, resistência e resiliênluta antirracista. cia fazem parte da história das populações negras Embora muitas veno Brasil. Graças à capa- zes tais diferenças sejam cidade criativa, com base usadas por aqueles que nos valores civilizatórios detêm o poder como uma afro-brasileiros¹, homens estratégia de enfraquee mulheres negras conse- cimento dos movimentos guiram sobreviver, mesmo negros com a justificativa diante das condições ad- de que falta aos negros versas e violentas, como uma efetiva articulação foram os mais de três sé- política, é preciso salientar culos em que foram víti- que essas diversas formas mas de tráfico, escravismo de atuação negra contra com genocídio e crimes de as desigualdades de raça, lesa-humanidade. gênero e classe, que cotidianamente afetam muNeste contexto surgem lheres, homens e crianças diferentes movimentos ne- negras, permanecem ingros que, embora muitas visíveis, mascaradas pelo vezes desarticulados pe- “mito da democracia ralas estruturas hegemôni- cial”. Elas são reverenciacas, têm em comum a luta das como representação por uma sociedade efeti- de nossa identidade naciovamente justa e democrá- nal como ferramenta para tica e, principalmente, o a manutenção do status combate às desigualdades quo sociorracial (MOORE, raciais, de gênero e de 2007, p. 24), perpetuando, classe, que ainda são os assim, as profundas assipilares da sociedade bra- metrias entre brancos e sileira. negros. Assim como qualquer outro segmento político, de gênero, de classe, étnico ou cultural, os movimentos negros também agregam pluralidades e contradições, pois são diferentes, têm pensamentos diferen-
Diante da complexidade de práticas racistas que historicamente negam à população negra o acesso aos direitos sociais mais básicos e, principalmente, negam-lhe a visibilidade - visto que, embora cons-
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Giane Vargas Escobar | Acervo: DEDS
Introdução
titua 50,7% da população brasileira, conforme aponta o censo de 2010², homens e mulheres negras estão ausentes ou são retratados de forma estereotipada nos meios de comunicação -, e também diante de uma sociedade fortemente marcada por um imaginário colonial/ patriarcal, a população negra tem elaborado novas e diferenciadas formas e
1 A circularidade, a religiosidade, a corporeidade, a musicalidade, a memória, a ancestralidade, o cooperativismo, a oralidade, a energia vital, a ludicidade. Disponível em: http://www.acordacultura.org.br/oprojeto. A Cor da Cultura. Valores Civilizatórios. Acesso em 10Fev2015. 2 Em 2010, o Brasil contava com uma população de 191 milhões de habitantes, dos quais 91 milhões se classificaram como brancos (47,7%), 15 milhões pretos (7,6%), 82 milhões como pardos (43,1%), 2 milhões como amarelos (1,1%) e 817 mil indígenas (0,4%). Segundo o IBGE pretos pardos constituem a população negra no Brasil, ou seja, a maioria, que totaliza 50,7% da população. 3 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Prêmio Mulheres Negras Contam sua História – 2013. In: SOUZA, Claudenir de. O Trabalho Doméstico no Brasil. Brasília: Presidência da República. p. 67-96.
espaços de resistência, de construção de sua humanidade, como, por exemplo, os clubes sociais negros.
1. Clubes sociais negros: solidariedade e sociabilidade negra por negros e para negros Muitos dos clubes sociais negros foram criados antes e outros após a abolição da escravidão no Brasil. São instituições que emergem de um momento de crise, de ruptura nas estruturas sociais e, principalmente, da intensa criatividade da população negra. A assinatura da Lei Áurea, no dia 13 de maio de 1888, institui essa data como um marco histórico, ainda hoje lembrado como o dia da abolição da escravatura no Brasil, quando trabalhadores negros escravizados passaram oficialmente a serem reconhecidos como “homens e mulheres livres”.
negra, como os conflitos diretos, as fugas e a formação de quilombos, que conjugados às campanhas abolicionistas forçaram o governo brasileiro a posicionar-se, até decretar oficialmente o fim da escravidão, o que não significou uma efetiva mudança social, já que as elites brancas continuaram a beneficiar-se do trabalho explorado de negros e negras libertos. O abandono da população negra pelo Estado culminou numa profunda condição de subalternidade que ainda hoje prevalece no contexto social brasileiro e determina, por meio do cruzamento das desigualdades de raça, gênero e classe (CARNEIRO, 1995, p. 546), o lugar específico das mulheres negras, ora como objeto sexual, ora como trabalhadora doméstica³ - alguém que é “quase da família”, mas que ainda é vítima de discriminação e exploração.
Foi por meio do imagináPorém, essa é apenas rio e das práticas sociais e uma versão da história, culturais que o preconceia oficial, na qual não são to, o racismo, as fronteiras retratados os diversos mo- visíveis e invisíveis estabevimentos de resistência leceram-se e perpetuam-
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No Rio Grande do Sul, Estado brasileiro hegemonicamente branco, essa prática social e cultural permaneceu em muitos lugares até quase o final da década de 1980, o que contrasta com a imagem de democracia racial que ainda hoje é vendida como principal característica do Brasil, onde o racismo e o privilégio de ser branco (SOVIK, 2009) não são assumidos, não são evidenciados, estão submersos nas profundas desigualdades raciais e sociais existentes no país.
Fachada da primeira sede da Sociendade Cultural Ferroviária 13 de Maio, em 1911 | Acervo: Prefeitura Municipal de Santa Maria
-se cotidianamente nos mais diversos espaços de sociabilidade, onde a proibição de pessoas negras compartilharem os mesmos espaços sociais e de lazer frequentados pelas brancas determinava que cada um tinha o seu devido lugar.
de entre seus pares e fami- um importante legado para as novas gerações. liares.
Ao longo do século XX, alguns setores dos movimentos negros não reconheciam os clubes sociais negros como parte integrante da articulação política negra, como lugar também de luta e de resistência. Por isso, durante muito tempo, eles foram considerados como espaApesar dos clubes so- ços de uma “elite negra” ciais negros reproduzirem empoderada pelo capital uma visão de mundo con- cultural e econômico adservadora e até mesmo vindo do trabalho remucontraditória, identifica- nerado, visto que muitas mos neles uma dimensão famílias negras exerciam profundamente afirmati- funções no setor público e, va da comunidade negra, assim, conseguiram consonde prevaleciam os laços truir, com seus próprios de amizade, de pertença, recursos, seus espaços de de afetos e de solidarieda- lazer que hoje constituem
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Essa percepção acerca dos clubes sociais negros aos poucos foi sendo desfeita, pois diante da iminência do desaparecimento de centenas de clubes sociais negros espalhados pelo Brasil o movimento clubista, segmentos da sociedade civil e o Estado se uniram em dois encontros nacionais em prol da preservação desses “lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial” (ESCOBAR, 2010), legitimados e reconhecidos também pelo poder público em diferentes instâncias. Em tais encontros4, realizados em 2006, em
O Clube Treze de Maio, por sua vez, está inserido nesse contexto de lutas por reconhecimento e valorização do patrimônio negro brasileiro, já que em âmbito municipal foi tombado como Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria (Lei 4809/04 de 28/12/2004), além de ser reconhecido como bem
Em consonância com essas iniciativas nacionais de valorização e reconhecimento dos clubes sociais negros é que, na cidade Santa Maria, desenvolve-se um importante trabalho de reconstrução da história do clube social negro Treze de Maio, do qual participo, desde a sua gênese, com uma pesquisa científica.
tas e fazendo com que novas perspectivas de interpretação surgissem, em especial no que diz respeito às mulheres negras que um dia foram rainhas e princesas desse clube. Livros de atas, carteirinhas sociais, fichas de associados, fotografias, documentos administrativos que se encontravam submersos na água (ESCOBAR, 2012, p. 281) e que foram em parte salvos com técnicas de conservação e preservação de documentos, desde 2002, ajudaram a construir essa face da história de parte da população negra de Santa Maria.
A partir de estudos acadêmicos realizados no ano de 2001, a vivência com antigos sócios, o registro de suas memórias e relatos e o acesso a novos documentos possibilitaram avanços na investigação, ampliando as descober-
Diante da documentação coletada foi possível contextualizar a trajetória da Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio – ou, simplesmente, Clube Treze de Maio, popularmente conhecido como “O Tre-
que integra o Patrimônio Cultural do Estado do Rio Grande do Sul (Lei 12183 de 21/12/2004)5.
2. O Clube Treze de Maio: memória e resistência negra no Bairro Rosário, em Santa Maria
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4 Site dos Clubes Sociais Negros do Brasil. Projetos. Os Encontros do Movimento Clubista Negro Brasileiro. Disponível em: http://www.clubessociaisnegros.com.br/projetos/os-encontros-do-movimento-clubista-negro-brasileiro/. Acesso em: 10Fev2015. 5 Site Museu Treze de Maio. Legislação. Disponível em: http://museutrezedemaio.com.br/o-museu/legislacao/. Acesso em 10Fev2015.
Santa Maria, Rio Grande do Sul, e no em 2010, em Sabará, Minas Gerais, impulsionaram uma ação governamental que visava o reconhecimento de todos os clubes sociais negros existentes no país como Patrimônio Cultural Brasileiro, sugerindo sua inscrição no Livro de Registro dos Lugares, atividade realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR) e a Fundação Cultural Palmares (FCP).
6 Essa data ganhou nova conotação ao final do século XX, quando negros e negras inseridos em movimentos de luta e resistência perceberam que não podiam mais continuar reproduzindo essa versão da história oficial, já que essa ação governamental não permitiu o acesso aos direitos fundamentais, muito menos dignidade e igualdade entre negros e brancos. Além disso, muito antes da Princesa Isabel, já havia luta e resistência negra, assim como o líder negro Zumbi dos Palmares, que passa a ser considerado o símbolo de resistência do movimento negro contemporâneo. 7 Conforme planta arquitetônica da fachada da primeira sede do “Club Treze de Maio”, em 1911, encontrada nos arquivos da Prefeitura Municipal de Santa Maria, em 2002.
com banda de música, um grande número de sócios e sócias, doces e líquidos, que no dia 14 de maio de 1911 – animados ao som da ‘Banda de Música Lira Popular’ –, às três horas da tarde”, que esses idealizadores do Treze fincaram, literalmente, no solo da rua 24 de Maio (atual Silva Jardim, número 1407), no bairro do Rosário, a pedra Foi no início do sécu- fundamental que deu orilo XX, quinze anos após a gem à primeira sede do abolição oficial da escra- “Club Treze de Maio”7. vatura, que um grupo de Essa primeira casa, arquarenta e sete cidadãos quitetada por negros e fundou o Clube Treze de Maio com o objetivo de co- para negros, foi construída memorar a “gloriosa data com tábuas dos vagões de treze de maio”6, dentre trens que eram desmanos quais destacam-se na chados e doadas aos ges“Acta da Fundação” de tores do Treze pela extinta 1903 (Escobar, 2012, p. Rede Ferroviária de Santa 287-288) a composição Maria. Reutilizavam a mada primeira diretoria: José deira, o ferro e o zinco, Fontoura, primeiro presi- para materializar um sodente; Manuel de Moura, nho. E o sonho tornou-se vice-presidente; Sisnan- realidade, permanecendo de Antonio de Oliveira, no mesmo lugar por mais tesoureiro; Osório Nunes de sessenta anos, quando do Nascimento, primeiro então o espaço já não mais secretário; José Alves Teixeira, segundo secretário e comportava os quase oitocentos associados e suas Ovídio A. Prado, orador. famílias negras. Partiu-se, Esse grupo se reunia assim, para a construção com frequência na resi- de um novo prédio, mais dência de um dos mem- imponente, mais equipado bros da diretoria, Sisnande e de acordo com as expecAntonio de Oliveira, e “foi tativas de seus idealizaze”. Destacam-se períodos distintos: a fase da criação, a fundação – 19031914 – que se caracteriza pela atuação de famílias de ferroviários negros neste processo de formação do clube e tem como foco as comemorações ao dia 13 de maio e a Princesa Isabel, como referenciais da abolição da escravatura no Brasil.
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Festa dos 50 anos da Sociedade Treze de Maio, 1953 | Acervo: Particular de Maria Domingues (Mariazinha)
dores, que a cada dia orgulhavam-se mais do seu lugar de pertencimento. O período de 1920-1940 é uma fase de transição, de intercâmbios com outras sociedades congêneres. É a fase da estruturação e afirmação como Clube essencialmente negro.
Recreativa Ferroviária 13 de Maio”, conforme Ata datada de 17 de novembro de 1946.
1980 é lembrado pela maior parte dos antigos sócios como a “época de ouro do Treze”, o auge, a fase de legitimação e fortalecimento da Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio, o que significou uma postura baseada na organização, eficiência, moralidade e rigidez, reconhecida por negros e brancos como um grupo que fazia parte da “elite negra” de Santa Maria. Santos (2011, p. 20) utiliza esse termo no plural e, segundo o pesquisador, “elites negras” trata-se de uma definição limitada aos quadros negros que ocuparam posições privilegiadas nas suas comunidades de origem, grupos negros que tiveram condições sociais, materiais e capital cultural para circular por toda a sociedade. Santos afirma ainda que nas cidades essas elites negras constituíram, grosso modo, uma classe média baixa que se utilizou das influências pessoais e políticas das quais a maioria dos membros de sua comunidade de origem étnica estava excluída.
Em 1947, os associados passaram a ter as mensalidades do Clube descontadas diretamente em folha de pagamento, autorizados pela Cooperativa dos Empregados da Viação FérInicialmente fora batizarea, com uma grande interda de “Sociedade Treze de ferência desta organização Maio”. Foi a partir de 1946 nos quadros da Sociedade. que incorporou a palavra Segundo relatos orais, cor“Recreativa” a seu nome, roborados pelas atas das passando a denominar-se reuniões, até a década de Sociedade Recreativa 13 1960 só se permitia que de Maio. Neste mesmo ferroviários fizessem parte ano, após aprovação em da diretoria do clube. Os frequentadores do Assembleia, recebeu a deO período de 1950 a Treze tinham o status de nominação de “Sociedade
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Além da crise econômica, do desemprego e da abertura dos clubes brancos para negros – entre as medidas adotadas pelos clubes brancos para superarem as suas próprias crises –, Silveira, apud Escobar (2007, p.102), destaca como um dos principais
ainda é negligenciada e invisibilizada em todos os setores da sociedade. Entretanto, quando ela tem oportunidade de ser a protagonista de sua própria história, ainda corre o risco de ter que ficar em segundo ou terceiro plano dentro do espaço construído por ela mesma. O Museu Comunitário Treze de Maio (MTM) surgiu em 2001 a partir da iniciativa da comunidade negra e alunos do Curso de Especialização em Museologia/Unifra, respaldados por antigos sócios do Clube Treze de Maio e materializado no mesmo lugar do centenário Clube, na Rua Silva Jardim, 1407, no Bairro do Rosário.
O Museu foi oficializado no ano de 2003 visando o fortalecimento, a valorização das origens negras, bem como as comemorações do dia 20 de Novembro, em referência a Zumbi dos Palmares, engos de direção possam ser quanto ícone da resistênconsideradas aliadas, isso cia negra, e a busca pelo representa uma forma de reconhecimento e preserocultar, de negar protago- vação do seu patrimônio. Foi reconhecido como munismo negro. seu comunitário em 2008 Esta é uma das contradi- e 2011 pelo consultor inções de muitos espaços de ternacional em Comunidaorigem negra e sabemos des, Patrimônio e Desenbem o quanto essa parce- volvimento Local, Hugues la da população brasileira de Varine8, quando visitou
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8 Membro fundador do MINOM - Movimento Internacional para uma Nova Museologia.
fatores que levou à extinção dos clubes sociais negros em geral, e segundo relatos de antigos sócios, igualmente do Clube Treze de Maio, o ingresso de pessoas brancas ou não-negras que passaram a assumir o lugar de poder da comunidade negra nas diretorias ou a presidência do clube, gerando uma crise interna pelo desgosto dos associados. O escritor O Treze foi o lugar de e poeta da Consciência valorização da beleza da Negra salienta, ainda, que “já houve casos de clube mulher negra, embora negro perdido dessa forcom um ideal eurocêntri- ma, passando para mãos co. Aquele era o espaço espertas, bem montadas e possível e que, diferente ajudadas pelo descuido e da mídia, destacava jovens a negligência de dirigentes negras como princesas e negros”. rainhas. Assim, naquele Situações como esta, clube era garantido às mugeralmente combinadas lheres negras o lugar de ou acumuladas, geram ser e sentir-se como uma profundas fragilidades rainha. Foram elas, por dentro da comunidade neexemplo, Rainha do Carna- gra, já que ela perde seu val, Rainha da Primavera, poder de atuação dentro Rainha de Festa, Rainha de seu próprio espaço e, do Baile do Chopp, Rainha embora as pessoas brandos Esportes, etc. cas que assumem tais carserem ferroviários e de pertencerem a um clube considerado modelo pela comunidade negra. Além disso, possuíam um privilegiado poder aquisitivo e uma autoestima elevada, proporcionada, também, pela garantia de ter um lugar de pertencimento e visibilidade aos seus frequentadores.
9 Disponível em: http://www.museumhorizon.se/news_esp.html. Acesso em 10Fev2015. 10 Disponível em: http://museutrezedemaio.com.br/o-museu/legislacao/. Acesso em 10Fev2015.
a cidade de Santa Maria. Além disso, o MTM foi legitimado e reconhecido pela Associação Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitários (ABREMC) nas II Jornadas Formação em Museologia Comunitária realizada em Santa Maria, no ano de 2011. Em 2014, recebeu o reconhecimento internacional da Fundação sueca Hans Manneby e do Museu Horizon9, com o prêmio “Museum Prize Winner 2014”. O Museu Treze de Maio é o primeiro museu da cultura afro-brasileira do Estado do Rio Grande do Sul. Reconhecido como Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria (Lei 4809/04 de 28/12/2004) e bem integrante do patrimônio cultural e histórico do Estado do Rio Grande do Sul (Lei 12183 de 21/12/2004)10.
de homens, mulheres e crianças negras. É um dos lugares aonde o Movimento Negro se encontra, bem como os alunos das universidades realizam seus trabalhos finais de cursos em todos os níveis e estágios acadêmicos, cuidando e preservando com a comunidade o acervo do Museu Comunitário Treze de Maio. O Museu Treze de Maio é também um espaço político, um espaço de reivindicações por políticas públicas e ações afirmativas. Constitui-se num verdadeiro mosaico da comunidade negra santa-mariense, um local gerador de sonhos, de redes de parcerias e de lideranças com capacidade criativa imensurável, onde redescobrimos as identidades negras e suas memórias. O Museu Treze de Maio é um lugar de encontros, reencontros e desencontros, de pertencimento, de divergências e convergências, um lugar de aprendizado constante.
Nesse museu acontecem oficinas de dança afro, capoeira, percussão, samba, encontros da juventude negra e Considerações de grupos de mulheParciais res negras, trabalhanO Clube Treze de Maio do com a autoestima e autoimagem positivas entrou em decadência ao
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final da década de 1980, e esse processo durou até o início dos anos 2000, quando, então, aquele projeto original de visibilidade negra já não dava mais conta das demandas por reconhecimento que a nova geração negra almejava. Embora o Clube tenha sido extinto, pode-se afirmar que as memórias permaneceram e se materializaram no Museu Comunitário Treze de Maio, que veio para recuperar e visibilizar as lutas do passado, promover as ações no presente, participando ativamente da construção de políticas de reconhecimento dessa espacialidade negra como patrimônio cultural material e imaterial. Isso significa a possibilidade de contar uma história de resistência negra ainda não contada ou somente retratada sob o ponto de vista dos opressores, que oferecem à população negra somente o lugar da escravidão, da subserviência. O Museu Treze de Maio é a memória e a história daqueles que foram capazes de construir clubes
Por isso, é fundamental ampliar as vozes das mulheres negras nos poucos espaços negros que ainda sobrevivem na sociedade brasileira, fortalecendo, assim, seu protagonismo e atuação política. Que essa iniciativa da comunidade negra de Santa Maria, mesmo com suas limitações, seja vista como uma possibilidade de construir um ponto de vista negro sobre a história de homens e mulheres negras que engendraram estratégias de resistência contra o racismo, o sexismo, a pobreza e, principalmente, a invisibilidade.
REFERÊNCIAS
sociais negros onde se realizavam os melhores e mais lindos bailes e festas, com mulheres e homens negros elegantemente vestidos; onde o momento festivo era também a oportunidade de partilhar afetos e alegrias, de construir e reconstruir laços de pertencimento.
BRITTO, Augusto César Luiz; RODRIGUES, Claudia Daiane Moares; FLORES, Daniel; ESCOBAR, Giane Vargas. Catálogo do fundo fechado Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio (SCFTM). Estágio Supervisionado em Arquivologia (2010). Universidade Federal de Santa Maria. p. 1110. CARNEIRO, Sueli. Gênero, raça e ascensão social. 1995. p. 544-552. ESCOBAR, Giane Vargas. Museu Treze de Maio: lugar de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. In: DUTRA, Maria Rita Py e QUEVEDO, Julio (Orgs). Nas trilhas da negritude: consciência e afirmação. Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 2007. _______. Clubes sociais negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial. Dissertação (Mestrado Profissionalizante em Patrimônio Cultural). Santa Maria: UFSM, 2010. _______. A face afro-brasileira do patrimônio: a reinvenção do Clube Social Negro Treze de Maio de Santa Maria em Museu Comunitário. In: RIBEIRO, José Iran, WEBER, Beatriz Teixeira (Orgs.). Nova História de Santa Maria: outras contribuições recentes. Santa Maria: Câmara Municipal de Vereadores, 2012, p. 279-299.
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ESCOBAR, Giane Vargas; VARINE, Hugues de. Patrimônio comunitário e novos museus: a face Afrobrasileira da museologia comunitária. In: Práticas Comunitárias em Memória e Museologia Social. Jean Baptista, Cláudia Feijó da Silva (Orgs). Rio Grande: Ed. da FURG, 2013. p. 61-67. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Censo Demográfico 2010. Características da População e dos Domicílios. Resultado do universo. Rio de Janeiro, 2011. IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. IPHAN faz mapeamento dos Clubes Sociais Negros no Brasil. Disponível em: http:// portal.iphan.gov.br/portal/ montarDetalheConteudo.do?i d=18604&sigla=Noticia&retorn o=detalheNoticia. Acesso em: 21 fev. 2015. MOORE, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza edições, 2007. SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da história. Trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS. Porto Alegre, 2011. SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
“Morder o fruto amargo e não cuspir mas avisar aos outros o quanto é amargo cumprir o trato injusto e não falhar mas avisar aos outros o quanto é injusto, sofrer o esquema falso e não ceder mas avisar aos outros o quanto é falso; dizer também que são coisas mutáveis... E quando em muitos a noção pulsar do amargo e injusto e falso por mudarentão confiar à gente exausta o plano de um mundo novo e muito mais humano.” Tarefa, de Geir Campos
Sandra de Deus
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
Para chegar até aqui, fiz um longo percurso, pois já passei dos cinquenta anos, o que significa dizer que passei por cidades, estados e países; por escolas e universidades; por redações de rádio e jornal; por salas de aula e laboratórios de estudo. Ora fui estudante, ora professora; filha e mãe; casada, viúva e solteira. Caminhei por necessidade, por obras do tal destino e, outras vezes, única e exclusivamente, por opção. O longo caminho percorrido é sempre marcado pelo “ser uma mulher negra”. Certa vez, fui admirada como uma excelente babá quando minha filha era bebê. Em um verão na praia, uma senhora estressada com sua filha no colo, sem muitas perguntas, pediu para que eu avisasse minha patroa que ela pagava muito mais do que eu certamente recebia para que eu cuidasse da filha dela. Muito elogiosa, disse que nunca tinha visto uma babá tão carinhosa com uma criança quanto eu com aquele bebê que eu carregava. Naquele dia, feliz, eu respondi que minha criança era bem mais cara que a dela, e que eu não troca-
ria de lugar. Minha filha, já crescida, questionou-me por que uma senhora queria saber se eu realmente era a mãe dela. Respondi que certamente a mulher enxergava pouco e não percebia o quanto somos iguais. E assim a vida segue, marcada por códigos (im) próprios de uma sociedade branca e preconceituosa. Depois de 30 anos de formada em jornalismo, ouvi de um colega, durante um encontro comemorativo, que eu acabei sendo a grande surpresa daquela turma, porque ninguém esperava nada de mim. E aqui preciso considerar que, no exercício do jornalismo, este foi o lugar onde menos encontrei preconceito. Fui repórter, redatora, chefe de reportagem, coordenadora de jornalismo e diretora de rádio. Talvez porque o rádio não mostra cor... Só voz, que não tem cor. Só sonoridade!
Sentindo na pele o preconceito Atualmente, porque o lugar é outro e os postos de comando ainda são reservas masculinas brancas, a
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Sandra de Deus | Acervo: DEDS
sociedade, cada vez mais preconceituosa, obriga-me a ouvir questionamentos em relação a minha competência para exercer um lugar de poder, só porque sou negra. Senão, vejamos: “Mas que surpresa boa te ver neste lugar, ocupando este cargo!”. O espanto seria normal se não viesse carregado de preconceito. Um preconceito de gênero e de raça; sou, afinal, mulher negra, sou negra e mulher. Sou mulher negra e, para os olhos de alguns, isso me impede de estar
em determinados lugares e de ocupar certos cargos. Esta condição – a de mulher negra – me exclui a possibilidade de estar em postos de poder, mesmo nos setores que deveriam ser os mais democráticos, como o da educação, supostamente sem preconceito, mais solidário, mais avançado. A surpresa é porque sou Pró-Reitora de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É importante lembrar que a universidade é um dos principais lugares de poder na educação brasileira. Sou mulher negra, como posso estar neste espaço? Quem teve a ousadia de “me conceder” este lugar que raramente é para mulheres, e muito menos para mulheres negras? A quem faltou juízo no momento de permitir que uma negra fosse nomeada para o cargo de Pró-Reitora de Extensão de uma das mais importantes universidades brasileiras? Não faltou juízo; sobrou competência, independente da raça. O racismo está contido na surpresa de quem ainda reserva às mulheres negras uma atividade
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de submissão, jamais um lugar de poder em uma Pró-Reitoria, que é objeto de interesse de nove entre dez que almejam visibilidade sem pensar no trabalho que dá dialogar com os diferentes, negociar com os adversários, dar voz para muitos e ouvir a comunidade. Desde que assumi como professora na UFRGS, encontrei veladas (e outras muito claras) atitudes racistas. Nunca expressas por estudantes, talvez porque eles trazem impregnada a ideia de que o professor tem o poder de reprovar; talvez porque jovens estão isentos de preconceitos tão mesquinhos; talvez porque, vendo a vida colorida, e diante de tantos apelos, não tiveram tempo de dividir a humanidade em branco e preto. De colegas, porém, ouvi piadas racistas e fui alvo do olhar invejoso de quem sempre esperava um erro para ter certeza de que este não é o meu lugar. Certa vez, uma colega professora perguntou com toda a carga de preconceito: “Onde tu queres chegar? O que tu queres provar?”. Deveria ter respondido, mas fiquei calada. Muitas vezes recuei para não sofrer, por
falta de disposição para enfrentar o adversário, por absoluta e silenciosa indignação. Quando fui Secretária de Comunicação da Universidade (2004/2008) e acompanhava o Reitor em
um evento, um empresário, surpreso, perguntou se eu estava adaptada ao Rio Grande do Sul. Na mente pobre e preconceituosa do infeliz interlocutor, a única justificativa para o Reitor estar acompanhado por uma negra naquele cargo era ter sido importada de outro Estado. Rapidamente devolvi a pergunta: “E o senhor está adaptado a este Estado?”. Sem resposta e envergonhado, provavelmente pelo fato da Universidade ter uma negra naquele cargo, o homem se retirou. Passado um tempo, o mesmo empresário me encontrou já como Pró-Reitora de Extensão da Universidade, ocasião em que ele propunha uma parceria institucional. Certamente ele teve vontade de desistir para não se “misturar”, não se “contaminar”. Outras tantas vezes, o que ferve é meu sangue misturado de negro, espanhol e índio. Bem brasileiro!
contrei uma negra como servente de cozinheira. Assim, éramos três negros naquele domingo no restaurante. Ao visitar a cozinha, tive a impressão de que, pelo olhar dos outros, a única peça fora do lugar era eu, que deveria estar lá servindo e não sendo servida.
Racismo é o pior olhar sobre o ser humano
Todo o preconceito é horroroso. O racismo é o pior olhar do ser humano sobre o ser humano. É mais grave ainda quando decreta que nossas conquistas de mulheres negras são concessões, quando não favores trocados em meio aos lençóis. Entre batalhas perdidas e olhares indignados, cá estamos nós, mulheres negras, assumindo postos de comando na sociedade brasileira, respondendo pela formação de outras mulheres negras a quem Em outra ocasião, en- cabe a importante tarefa trei em um restaurante de de respeitar o caminho já cardápio excelente e de trilhado, manter a vigilânpreços elevados, onde ob- cia e não ceder diante das servei que havia um único muitas negativas, ameanegro, e este era garçom. ças e desrespeito. Assim Convidada pelo proprietá- como eu, mulheres negras rio a visitar a cozinha, en- que ocupam cargos de
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gestão em universidades brasileiras, como Reitora ou Pró-Reitora, se perguntam se vale a pena colocar tempo e força no enfrentamento diário, recebendo uma energia negativa que, muitas vezes, reduz a nossa coragem e gasta nossa disposição. Faço referência às universidades por ser o lugar desde onde falo, mas é bem provável que mulheres negras ocupando espaços de poder, em qualquer segmento da sociedade, tenham o mesmo sentimento, passem pelas mesmas situações. Entendo, no entanto, que a nós não é permitido aceitar de forma cordata o comportamento de uma sociedade preconceituosa que impõe, como se fosse regra natural da vida, a exclusão de negros e, muito especialmente, de mulheres negras.
pena, como se o fato de ser negra me fizesse portadora de algum vírus contagioso. O número de professoras negras na UFRGS, até o momento (iniciando 2015), é limitado, mesmo em um universo docente feminino. Somos poucas mulheres também na gestão da Universidade. O que desafia qualquer gestor na universidade brasileira é ter um olhar alargado e corajoso para combater o preconceito e reconhecer a competência e o talento de mulheres negras que só não chegam a postos de comando, porque são barradas por serem “de cor”.
O que me cabe, diante de uma realidade cada vez mais preconceituosa e cruel, é – parafraseando o poeta – avisar às outras o quanto é injusto, falso e pesado o fardo que ainda carregamos e que nos é Tive a honra e o feliz imposto como se fosse naaprendizado de presidir tural, imperceptível e sem o Fórum Nacional de Pró- sofrimentos. O que me -Reitores de Extensão das impulsiona é saber que, Universidades Públicas das escravas que fomos, Brasileiras em um universo trazemos em nossos cormasculino de raros negros pos não só a cor que nos e negras. Em determina- ilumina, mas a certeza de das situações, o precon- que nada nos é dado; que, ceito é tão velado que per- pelos caminhos que trilhacebo olhares cheios de mos, acumulamos a cora-
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gem para denunciar, e não para continuar servindo aos senhores da atualidade; que nossos espaços não são concessões, mas, sim, conquistas de raça, de gênero, de cor e de coragem.
SARAU Sopapo Poético | MAMAU DE CASTRO | Professor, poeta, compositor, autor de sambas enredos
Minha raiz A ferro e fogo invadiram a senzala Desdenharam minha raiz Quebraram minhas oferendas Proibiram o meu ritual impuseram o catolicismo como religião Tentaram por minha cultura no chão Mas não conseguiram me fazer infeliz Meu tambor não silencia Minha voz não cala Pois a crença nos orixás Nasce da alma e fortalece o coração Com lagrima e suor Cicatriz e ferida Sempre foi assim minha luta na vida Na guerra santa pela paz São Jorge é Ogum Senhor do Bom Fim, Oxalá Nossa Senhora da Conceição é Oxum Rainha das águas, Iemanjá Na igreja ou no terreiro Escravo ou Rei Deus é a fé, Xangô a lei
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Ronald Augusto
Poeta, mĂşsico, editor e crĂtico de poesia
Desde 1995, mais exatamente a partir da publicação do ensaio “Transnegressão”², momento em que comecei a escrever de maneira mais persistente e crítica a respeito de poesia e coisas afins, o percurso textual de Oliveira Silveira tem sido objeto do meu interesse e da minha fruição. Cabe lembrar que mantivemos um diálogo fraterno durante mais de 25 anos. Portanto, esse ensaio, espécie de encômio, representa mais a continuação de processo interpretativo do que uma homenagem retardatária e póstuma ao poeta. Antes de prosseguir com o presente texto gostaria de dizer algo mais difuso sobre sua poesia. Entre outras coisas, posso adiantar ao leitor que Oliveira Silveira, ao longo de seu percurso poético, soube desprezar sem nenhum rancor a complexidade do “literário” convencido e convencional em benefício de outra espécie de complexidade, a saber, ele creditava suas forças numa secura antes espartana do que cabralina. Oliveira era capaz de
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Ronald Augusto | Acervo: DEDS
de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República.
Oliveira Silveira | Acervo: Irene Santos
1 Refiro-me aqui ao conceito de Umberto Eco segundo o qual o autor empírico indica o sujeito civil escritor, com nome e identidade, cujos dados biográficos às vezes são usados como meio de acesso aos significados de sua obra. 2 SEFFNER, Fernando. (Org.). Presença negra no Rio Grande do Sul. Cadernos Porto & Vírgula. Porto Alegre, n. 11, 1995.
O “autor empírico”¹ Oliveira Silveira (19412009), nasceu em Touro Passo (RS). De sua persona civil pode-se dizer que se graduou em Letras pela UFRGS. Foi poeta, ensaísta, músico e ativista do Movimento Negro. Estudou a data e sugeriu a evocação do 20 de Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, lançada e implantada no Brasil pelo Grupo Palmares, a contar de 1971. Publicou, entre outros, Germinou, 1968; Banzo, Saudade Negra, 1970; Pêlo Escuro, 1977; Roteiro dos Tantãs, 1981; Anotações à Margem, 1994; Bandone do Caverá, 2009. Todos os livros que publicou (sempre às suas expensas) foram de poesia. Alguns dos seus poemas também foram traduzidos, entre outras línguas, para o inglês e o alemão, e essas traduções apareceram, respectivamente, na revista Callaloo, The Johns Hopkins University Press (1995), e na antologia Schwarz Poesie, EditionDiá, 1988. Entre os anos de 2004 e 2006, foi conselheiro da Secretaria Especial de Políticas
uma contensão e de uma elegância que só me permito associá-las à sempiterna e serpentina vanguarda da velha-guarda de todos os sambas. A metalinguagem do samba - que se dá a ver na mais ligeira recordação de alguns exemplos do seu cancioneiro - desmente a concepção defendida por alguns de que o uso da metalinguagem seria uma prerrogativa viciosa e restrita à erudição de cunho elitista e aristocratizante. Isso não é toda a verdade. Tal como acontece na arte dos grandes sambistas, a nota metalinguística também comparece na obra de Oliveira Silveira, mas de maneira não exibicionista. Oliveira, então, falava, sim, de poesia no poema, mas como se reconhecesse um discreto fardo contido nessa sorte de felicidade “arte-feita”. O nome de Oliveira Silveira já incorpora conotações cívicas. Como o grande responsável pela invenção do Dia Nacional da Consciência Negra, ele se presta à imagem daquela espécie de poeta que ajuda a fundar culturas inteiras. Às vezes temo que seu nome seja lembrado “apenas” por esse fato,
que não é de modo algum irrelevante, mas que, por outro lado, pode deixar na coxia sua importância como poeta, aliás, isso vem acontecendo, por exemplo, com a figura de Luis Gama, cuja obra poética aparece como uma espécie de bônus na biografia do “grande abolicionista”, como é apresentado à exaustão. Outro dado a destacar em sua figura é a faceta do poeta que se atreveu a exercitar, em nossos dias, o que nos restou do eco épico sem cair em erro: refiro-me à obra Poema sobre Palmares, de 1987, onde Oliveira tematizou e recriou a experiência histórica e hoje canonizada do mais importante quilombo das Américas. De outra parte, mesmo não tendo se dedicado por inteiro a uma franca experimentação poética, Oliveira, em alguns dos seus livros, colaborou – dentro dos seus limites e na perspectiva de uma antitradição do poema de vanguarda – com inteligentes exemplos de poemas diagramados visualmente na página. Em suma, o poeta alcança nessas soluções poemáticas todo um arranjo não convencional de linguagem, concorren-
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do para subverter a linearidade discursiva. Não tenho receio de afirmar que estes peregrinos poemas visivos desdobram consideravelmente as possibilidades de leitura da obra de Oliveira Silveira; configuram-se como índices de sua apetência pela forma. Numa época em que a prática da autopromoção faculta a muito poeta de segunda categoria um lugar de destaque no florilégio medíocre das letras “locais”, o silêncio vil e incivil em torno do nome de Oliveira Silveira — sem esquecer que para isso contribuiu a sua orgulhosa e solitária modéstia — pode ser interpretado como um sinal de distinção. Enfim, quem não leu ainda a poesia de Oliveira, seja por imperícia, seja por má-fé, que não atrapalhe. Por pouco Anotações à margem (1994) não se tornou o último livro individual que Oliveira Silveira viu publicado e incorporado ao conjunto de sua obra. Isso só não aconteceu por causa de duas pequenas publicações. Em 1995 Oliveira Silveira lança, em parceria com o músico e artista plástico Pedro Homero, a brochura Orixás. Anos de-
3 Orixás reúne a expressão pictórica de Homero e poemas inéditos ou já publicados de Silveira, onde ambos exercitam e recriam representações das divindades e da religiosidade afro-brasileira. Bandone do caverá(2009) trata-se de um cerrado conjunto de poemas de cunho fortemente regional com que o poeta empreende uma imersão memorialístico-musical no interior de alguns dos seus biografemas de infância e de família com o intuito de recriá-los.
pois, e já às vésperas de sua morte, Oliveira publica como que em segredo outra brochura hors de comércio intitulada Bandone do caverá (2009)³. É impressionante que seu desaparecimento quase tenha fechado um ciclo de quinze anos sem que mais nenhum livro seu viesse à luz. E isto é de espantar, ainda mais se levarmos em consideração, por um lado, a qualidade de sua produção poética — referida e solicitada mais além do que aqui — e, por outro, a facilidade e a regularidade com que poetas e prosadores ruins publicam suas obras sem que quaisquer obstáculos lhes sejam ofertados. Suspeito que, hoje, qualquer um consegue reunir, num arco de tempo parecido, no mínimo uns sete ou oito títulos, porém, se tudo correr bem, ninguém os guardará na memória. Anotações à margem é um livro pensado sob o signo da reescritura e da reconsideração, a um tempo caprichosa e à vontade, das perspectivas estéticas com que se debate um artista ao longo de sua vida. Oliveira Silveira submete um trecho do seu percur-
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so textual (1967-1994) a um ponto de vista sincrônico: recupera para o seu presente os esboços neográficos que pôde rastrear no passado do seu acervo intelectual-vivencial, e que se foram depositando nas fraturas e nos prazeres do corpo a corpo com a linguagem. Biografemas e fotogramas reencarnados através do fortuito e do forçoso das anotações de punho: leitor de lápis em punho no sigiloso desenho da imagem-pensamento: “Que é uma foto da pessoa morta/ para quem a conheceu/ em vida?/ Em geral coisa opaca e estática/ e pouco diz de quem foi.// Mas quando menos se espera/ pode mudar-se em cor, em movimento,/ sorriso, voz, braços que vêm e cingem/ e nós ressuscitamos” (“A foto”). No entanto, o poeta ordenou os poemas de maneira cronológica: do mais remoto ao mais recente. Cada peça aparece identificada com uma espécie de subscrito onde constam lugar e ano de realização. Muitas levam dois registros, um assinalando (ao que tudo indica) o momento em que o processo de composição foi iniciado, e
outro, onde o poeta estabeleceu um ponto final ou uma interrupção no trabalho de criação. Assim, ficamos sabendo que alguns pequenos poemas custaram ao poeta — sem exclusão de outras realizações significativas, inclusive do ponto de vista extraliterário — cerca de dez anos de oficina ansiosa e ociosa para alcançar sua forma-fundo necessária; outros, ainda, vinte anos e um pouco mais. Portanto, Oliveira Silveira, em sintonia com a visão de Ezra Pound, também entende a poesia como essa condensação discursiva onde o vivido e o imaginado comburem transes de tempo por meio da palavra. Há, grosso modo, uma invariante de cunho estético-informacional a atravessar toda a obra poética de Oliveira Silveira. Refiro-me, naturalmente, àquilo que muitos dos estudiosos de sua poesia chamariam talvez de “o compromisso com as causas negras”. Não entrarei no mérito da questão que aqui vai implícita, isto é, se a poesia teria outras motivações que não as suas próprias, ou se sua “legitimidade” se pautaria fora dela mesma.
Digamos, para todos os efeitos, que não conceder atenção ao fato de que a poesia de Oliveira se projeta além das definições e marcos pré-estabelecidos – não importa por que tipo de embate político – não a torna menos pertinente, inclusive para os interesses da causa negra. Por outro lado, desconhecer essa pulsão radicada na estrutura significante da linguagem do autor de Roteiro dos tantãs (1981) seria um falsear crítico, ou um purismo retrô. O ponto não é esse. Para o bem ou para o mal, esse aspecto de sua obra há muito se tornou como que um fait accompli. Isto está dado. Mas o próprio Oliveira resolvia a coisa para si do seguinte modo, citava o episódio em que Murilo Mendes (1901-1975) uma vez se manifestara sobre seus primeiros livros, marcados por um nítido e “participante” catolicismo. O poeta mineiro, em resposta aos que objetavam, às vezes veladamente e outras frontalmente, o posicionamento estético que resolvera trilhar, se afirmava um “poeta, católico”, mas prontamente complementava, dizendo: “a ênfa-
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se está na vírgula”. Assim, Oliveira Silveira não tinha trauma nenhum em se manifestar ou em se deixar reconhecer como um “poeta, negro”, desde que ninguém desprezasse essa vírgula — irritantemente indecidível para uns e outros — imiscuída entre os dois termos. O qualificativo que vem após a vírgula, católico, negro, não é, de modo algum, irrelevante, mas, antes, e tal como o
papel da significação no poema, apenas secundário. Ou melhor, trata-se de uma vereda por meio da qual podemos empreender uma leitura possível, provável. O foco da pergunta, relativamente ao modo de abordagem da obra poética, não é no sentido de sabermos qual o significado “último” do poema, mas, sim e tão só, o que ele nos sugere. E, no tocante a essas questões, Anotações à margem representa tam-
bém um feliz desvio. Vale dizer, talvez seja sua obra menos negra ou, quem sabe, a experiência mais intrínseca e desanuviada que Oliveira teve com o seu “compromisso histórico” e étnico. Mas o livro não é melhor nem pior por causa disso. Tal situação apenas o singulariza. Mas, se ainda for preciso, mesmo que provisoriamente – e para aplacar a nostalgia da “mensagem” em alguns leitores –, enquadrar Oliveira Silveira na moldura do poeta participante, ele só o será, no meu entender, segundo a acepção que Mário Faustino (19301962) empresta ao qualificativo, a saber, seu apetite de linguagem será “participante como a poesia deve ser participante, i. é., em todos os sentidos: cultural, social, existencial, político, estético. Participação nos destinos do homem e nos destinos da poesia”. Em Anotações à margem o poeta se percebe no inverno da sua idade. Oliveira haure algumas gotas de niilina para poder enfrentar as perdas e a “perspectiva do fim”, e fica um pouco mais rude e dado a filosofemas enfeixados numa dicção que alude a
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“quadras ao gosto popular”: “Quando eu morrer/ não vou pro céu, vou prà terra./ Apaga-se a chama da vela/ e se extingue o calor que ficou nela./ O resto é com os outros.// Céu ou céu, Terra ou terra,/ tanto faz./ Ou tanto fez” (“Notas soltas”). Em outro poema, Oliveira Silveira saúda a saudade simulando uma melopeia quase naïf que diz: “Dei ô de casa na frente,/ bati na porta, ninguém abria./ Dei a volta pelos fundos,/ entrei na casa, vazia.”. Modelo de redondilha maior. Notar o uso funcional da anáfora: “Dei ô de casa...”, “Dei a volta...”; do ponto de vista da acentuação não há nenhuma palavra com mais de três sílabas, fato esteticamente significante num poema que encarece a figura da oralidade e do coloquial feito fala que apela ao canto; e, finalmente, em “entrei na casa, vazia”, a presença dessa“vírgulágrima” (sirvo-me do compósito verbal criado por Décio Pignatari) incrustada na ostra do texto, iconização do profundo silêncio, tristeza átona, elipse a deslocar para mais além o que poderia ter sido; passo malogrado em direção à origem.
Uma ou duas aproximações intertextuais. A primeira. Em 1985, Haroldo Campos lançou o livro A educação dos cinco sentidos. Nesta obra há o seguinte poema-divisa no qual o poeta revela: “já fiz de tudo com as palavras/ agora quero fazer de nada”. De um jeitão meio despojado e tentando tirar o peso a tanta polêmica em que se envolvera no período áureo de instauração da poesia concreta, Haroldo de Campos esboça com esse metapoema um acerto de contas, primeiro consigo mesmo, e depois com os seus pares, no que diz respeito ao conflito das visões poéticas em jogo. Pois bem, de certa maneira, em Anotações à margem, Oliveira Silveira pretendeu também um “fazer de nada” com a linguagem e com alguns índices do seu próprio percurso textual, tanto no que se refere à sua condição de poeta, quanto à sua situação de intelectual negro. A propósito, chamo atenção do leitor, por exemplo, para este epigrama quase brossiano: “Agora é tarde, o policial foi preso/ e o vendedor de guarda-chuva/ está todo molhado na rua” (“Deu pra bola”). Em seu derradeiro
livro, Oliveira desborda o limiar do identitariamente tolerável. É poeta, e o melhor de nós todos. E a segunda. O poeta Alexandre Brito tem um poema estampado em seu livro Metalíngua que admiro muito. Faço essa menção – aparentemente fora do lugar – pela seguinte razão. Uma imagem possível que, por assim dizer, guardo para mim desse breve e vasto Anotações à margem, teria um acréscimo apenas: como epígrafe virtual e chave léxica ao livro de Oliveira Silveira eu estamparia em suas páginas o poema de Alexandre, que diz assim: “no dia seguinte/ decifrando os sulcos da caneta/ na página em branco/ ao resgatar o poema posto fora/ encontrei a minha arte”. Com efeito, e felizmente para nós, Oliveira, em Anotações à margem, encontrou mais uma vez a sua arte.
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SARAU Sopapo Poético | Jorge ‘‘Onifade’’ Artur de souza | Compositor e poeta
Senhora Aparecida Mãe dos brasileiros Desse pequeno e grande mundo globalizado Colocai no nosso dia-a-dia Pão e palavras de sabedoria Permita-nos que nossas críticas Sejam sempre construtivas E se assim não for... Dai-nos a dádiva do silêncio. Dai ao artista inspiração para que seu instrumento de trabalho seja sinônimo de alegria Uma ferramenta de inclusão Diga aos governantes, eleitos pelo povo que eles também são povo E um dia serão pó! Zelai para que a palavra "modelo" signifique bom exemplo e não um padrão de beleza Que o nome do seu filho não seja motivo de disputa pela hegemonia religiosa Diga que ele continua o mesmo de dois mil anos atrás: Vivendo e morrendo por justiça,direitos iguais, liberdade,fraternidade Que a justiça não seja confundida com vingança Que autoridade não seja símbolo de prepotência. Mãe de todas as torcidas e bandeiras Ajudai-nos a fazer do esporte momentos de beleza plástica talento, lazer e zero a zero para violência Dai-nos inteligência para cultivar a terra, sem violentá-la. Utilizar o água sem polui-la, Absorver o ar sem contamina-lo. Mãe desse povo heterogêneo, alegre, lutador Mostrai aos intolerantes a riqueza de diversidade E se não for pedir demais... Perdão para todos nós.
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Marilise Luiza Martins dos Reis SayĂŁo
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC
Marilise Luiza Martins dos Reis Sayão | Acervo: DEDS
Na conjuntura atual, discutir o movimento de mulheres negras e as diversas experiências existentes na América Latina é primordial. Vivemos, desde finais do século XX e primeiras décadas do século XXI, um período singular no qual mobilizações se estenderam ao longo desse território e diversificaram-se em formas virtuais e de rua, marcadas pela pulverização de uma diversidade de lideranças, organizações e estéticas políticas protagonizadas por mulheres negras. O Brasil tem sido um bom retrato disso, quando, nos últimos meses, iniciati-
vas e ações empreendidas por lideranças femininas foram mobilizadas para fazer frente a episódios de racismo, como nos casos do “levante” contra o seriado Sexo e as Nega, da Rede Globo, do programa #As Nega Real, feito pelas Blogueiras Negras, da resposta dada ao jogador Neymar afirmando que não, #nãosomostodosmacacos, e do desmascaramento do racismo institucional e estrutural por detrás do episódio contra o goleiro Aranha, no estádio do Grêmio, em Porto Alegre, que quiseram transformar em “apenas mais uma” questão comportamental e individual. Esses são apenas alguns dos casos ocorridos nos últimos tempos que destaco para começar a ilustrar o lugar protagonista que as mulheres negras têm assumido no campo de ações do movimento negro, gerando novas articulações. Entretanto, ressalto que grande parte dessas novas articulações, para as quais essas mulheres
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tomam lugar de destaque e nos saltam aos olhos, não são de hoje e estão espalhadas por toda a América Latina. Por isso também é importante remontar aos anos 1990. Este período foi um marco para o surgimento de redes de mulheres negras. Dois aspectos sócio-históricos podem ajudar a ilustrar este período: primeiro, os impactos causados pelas políticas de ajuste estrutural perpetradas pelos EUA, que implicaram no aprofundamento das desigualdades entre as populações latino-americanas e caribenhas; segundo, o conjunto de países da região que saíam de regimes ditatoriais. Esse contexto, que demandava combater desigualdades e, ao mesmo tempo, a tarefa de reconstruir a sociedade civil que havia sido destruída, serviu de base para a reorganização social e para o surgimento de novas vozes no âmbito dos movimentos sociais.
O Movimento Negro, como um dos movimentos sociais mais preponderantes desse período, não esteve alheio a essas mudanças. Vimos surgir na América Latina um movimento repaginado pelo protagonismo das mulheres negras que deram um importante passo para a articulação de questões que envolviam tanto o movimento negro, quanto o feminista: as articulações entre gênero e raça. Sem dúvida, os novos corpos de análise daquele momento, denominado por inúmeros pensadores sociais como Boaventura de Sousa Santos e Valter Mignolo de “epistemologias do sul ou pensamento crítico de fronteira”, foram fundamentais para a renovação crítica de ambos os movimentos. Esses novos corpos de análise deram suporte para se reconhecer o binômio gênero/raça como um postulado que precisava ser igualmente considerado no combate mais profundo das desigualdades sociais,
raciais e de gênero. Essas questões, por sua vez, conformaram novas agendas políticas, mais tarde incorporadas às discussões da Conferência de Durban, em 2001. Como um aporte fundamental desse processo, redes de mulheres afro-latinas e afro-caribenhas iniciaram seus processos de articulação e instalação de novas demandas que emergiam dos coletivos de mulheres negras e que, em muitos países latino-americanos e caribenhos, redundaram na conquista de postos em órgãos decisórios, principalmente em organizações multilaterais, nas quais os níveis de incidência e participação se tornaram mais variados e assimétricos. As conferências internacionais, sobretudo Durban, são exemplos de como estes organismos se converteram em espaços de forte posicionamento das mulheres negras no que tange à reinvindicação e à
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implementação de direitos (Carneiro, 2002). A Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la diáspora (RMAAD) ilustra essa conjuntura. Fundada em 1992, na Nicarágua, essa rede de movimento social dedica-se à construção e à consolidação de um movimento amplo de mulheres afro-caribenhas, afro-latino-americanas e da diáspora que incorpore as perspectivas étnicas, raciais e de gênero do continente, dando visibilidade à realidade de discriminação e violação dos direitos humanos nos âmbitos socioeconômico, político e cultural. Ou seja, reivindicam modelos de desenvolvimento sustentado no reconhecimento e respeito das identificações étnicas, raciais e de gênero, assim como nas problemáticas comuns a toda a região, entre as quais se destacam a pobreza, a migração, a violência e a AIDS.
É importante que seja também destacado o raio de ação que busca atingir a RMAAD, por meio das inúmeras organizações a ela afiliadas. Segundo o relatório de 2009 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre a organização dos afrodescendentes nas Américas, das 161 organizações investigadas 14% delas estavam afiliadas à RMAAD. Ainda segundo o relatório, ela seria a rede com maior número de afiliados na região nesse tema. Constituída por mais de 500 líderes, a RMAAD atua em mais de 25 países das Américas. O maior espectro de ação dessa rede é a luta em favor do cumprimento de convênios e acordos internacionais, com ênfase nos direitos à educação e à saúde, incluindo o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos, a demarcação e regularização das terras indígenas, além de censos que registrem informações mais precisas sobre as condições de habitação, acesso à saúde, conformação familiar dos negros e das negras, baseados em dados desagregados pelas variáveis raça/ etnia/gênero.
Quanto às principais metas da agenda política da RMAAD podemos sintetizá-las em alguns importantes temas que, por sua vez, conformam a agenda política de outras inúmeras organizações a ela articuladas, em âmbito local e regional. Estão entre esses temas a indicação de pautas a serem implementadas pelos Estados Nacionais, através de políticas públicas que promovam: a autonomia econômica dos negros e o acesso e proteção aos recursos econômicos e naturais; a integração das mulheres negras no mercado de trabalho; as políticas de ação afirmativa e a criação e o acesso a programas de empreendedorismo de mulheres negras na economia; a segurança social justa e sem discriminação racial, étnica e de gênero; a proteção à saúde geral, sexual e reprodutiva; a multiplicação e sistematização de experiências bem sucedidas de capacitação econômica para as mulheres nas áreas da segurança alimentar e do combate à pobreza e os estudos e pesquisas que forneçam dados discriminados por idade, etnia, sexo/gênero e origem geográfica.
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Outra pauta é a garantia de acesso aos meios de comunicação de massa, tema atualíssimo no Brasil de hoje. Requer-se, por exemplo, a criação de mecanismos midiáticos que incorporem as línguas próprias e as identidades culturais em espaços comunitários de rádio e audiovisuais e que eliminem mensagens e imagens racistas, estereotipadas e degradantes. Temos ainda a pauta que tange a religiosidade de matriz africana. Historicamente, segundo a RMAAD, a adesão às religiões de matriz africana tem servido de pretexto para perpetuar e justificar a discriminação de mulheres negras por parte de agências públicas e privadas, inclusive, pelos serviços de saúde. Requer-se então que as tradições e preceitos religiosos, históricos e culturais sejam respeitados e alvo de políticas públicas. Atualmente a RMAAD enfrenta dificuldades para implementar sua agenda política devido ao direcionamento que o contexto pós-Durban tomou: o da perda de prioridades resultante de uma agenda global que se voltou para o combate do terrorismo. Para a rede, essa perda de prioridade
No caso específico da América Latina, a luta dessa rede se volta para a mobilização e fortalecimento dos espaços, redes e articulações de movimentos sociais que foram os atores-chave no processo organizativo da Conferência de Durban, assim como para a ampliação da capacidade de monitorar e manter o controle social sobre o andamento dos Programas de Ação na região. Por isso sua preocupação crescente em implementar práticas e ações que façam frente ao recrudescimento do racismo e da discriminação racial, assim como contra homossexuais, lésbicas ou pessoas portadoras de HIV, e em avaliar avanços e limi-
tações da Declaração e do Plano de Ação de Durban de 2001, principalmente após as divergências e controvérsias ocorridas na Conferência de Durban de 2009. Ademais todos esses problemas, a ação política da RMAAD está construindo importantes caminhos na luta contra o racismo nas Américas, consequência dos seus processos de intensificação das interconexões regionais, das práticas do movimento e dos seus discursos culturais e políticos. Cada vez mais as militantes se voltam para seus países, inspiradas pelas novas estratégias organizacionais e pelas novas formas de enquadrar e encaminhar suas questões e reivindicações, principalmente com a ocupação de cargos nos órgãos decisórios, o que tem ampliado seu empoderamento. De outra parte, com o ativismo midiático, travam uma luta no espaço virtual, lançando mão das novas tecnologias e interconectando uma gama variada de mulheres em torno da luta contra o racismo e contra a discriminação. Fato que nos leva a concluir que são hoje as mulheres negras, organizadas em rede ou
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em coletivos, as grandes protagonistas na luta contra o racismo nas mais variadas frentes e formas de ação política.
REFERÊNCIAS
possibilitou a reabilitação e o incremento do ódio racial e da intolerância, assim como a adoção internacional e regional de agendas de corte racista e xenofóbicos. Entretanto, a despeito de todas essas dificuldades, segue pressionando nos variados espaços internacionais e transnacionais dos quais participa pelo reconhecimento das múltiplas formas de expressão do racismo e da discriminação, entrecruzadas com outras expressões como o gênero, o sexo e a geração.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados [online], 2003, vol.17, n.49, p. 117-133. _______. A batalha de Durban. Revista Estudos Feministas. CFH/CCE/UFSC, 2002, vol. 10, nº1. DECLARACIÓN DE LA RED DE MUJERES AFROLATINOAMERICANAS, AFROCARIBEÑAS Y DE LA DIÁSPORA, 2010. Disponível em: http://www.mujeresafro. org/(publicaciones). DOCUMENTO CONCEPTUAL RETOS Y OPORTUNIDADES DEL EMPODERAMIENTO ECONÓMICO DE LAS MUJERES AFRODESCENDIENTES. 2010. Disponível em: http:// www.mujeresafro.org/ (publicaciones). PNUD. Relatório atualidade afrodescendente na iberoamérica: estudo sobre organizações civis e políticas de ação afirmativa. Cuadernos SEGIB-PNUD, 2009, nº 1. Disponível em: http://www.afrodescendientesundp.org/FCKeditor_files/File/ CUADERNOPNUDSEGIB_ PORT.pdf SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
seleção poética | DELMA GONÇALVES | Compositora e poetisa
CABEÇAS ILUMINADAS Negras cabeças iluminadas Desses deuses afros De nobre linhagem Brio, dignidade nas acirradas lutas Divindades que não foram extintos Em seus intelectos distintos Há uma aura dourada Em labirinto Revelando a boa nova no sorriso do céu O dom da arte Trunfo da liberdade Suado troféu!
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Maria Conceição Lopes Fontoura
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Coordenadora técnica de Maria Mulher - Organização de Mulheres Negras
O movimento social negro tomou vulto no Brasil na década de 1970, tendo como influências as independências das colônias europeias na África, o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e a luta contra o regime militar, que estimularam os ativistas negros a buscarem a valorização da população brasileira de descendência africana. Nesse período, cresceram de formas vigorosas as organizações do movimento social identificadas com a luta da população negra buscando o pleno exercício da cidadania. No começo, as entidades do movimento social negro abrangiam mulheres e homens. Um segundo momento da história recente do movimento social negro acontece a partir da década de 1980, período em que as ideias do movimento feminista se fortalecem no Brasil, envolvendo, inicialmente, mulheres brancas de classe média. Ao mesmo tempo, mulheres negras brasileiras trazem para o cenário do feminismo suas próprias demandas. O movimento social das mulheres negras apontou a necessidade de serem
tratados temas de seu interesse particular, e passaram a se organizar de forma independente.
A despeito dos pontos em comum entre os anseios das mulheres brancas e mulheres negras, as lutas desse segmento adquiriram diferentes perfis em nossa história das diferenças de inserções sociais determinadas pelas origens raciais e étnicas das mulheres brasileiras. O desejo de liberdade desponta como o objetivo comum que engendrou encaminhamentos particulares: para as mulheres brancas a luta contra o jugo patriarcal, para as negras a luta contra o jugo colonial, a escravidão e o racismo que lhe correspondeu (Carneiro, 2004, p. 289).
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Em 2003, em João Pessoa, Paraíba, aconteceu o XIII Encontro Nacional Feminista. Nos anais do encontro, Benedita da Silva, então senadora da República pelo Rio de Janeiro, escreve o texto As Mulheres Negras no Processo de Colonização e sua Reação Durante Este Período, do qual destaco o fragmento a seguir:
Maria Conceição Lopes Fontoura | Acervo: DEDS
A cara da mulher negra em todo esse processo. A trajetória da mulher afro-brasileira, em especial, me estimula pela busca de um futuro sem desigualdade de gênero e de etnia. Ela chegou ao Brasil como mercadoria pra todo tipo de ação e de diversão: lutou para conservar sua dignidade e para manter o núcleo familiar, dentro de um sistema escravista, machista e excludente ao máximo (SILVA, 2003, p. 19).
Para realizar o enfrentamento às iniquidades de gênero que se conjugam com o racismo e a exploração de classe e para assumir a sua identidade, as mulheres negras precisam enfrentar quotidianamente a invisibilidade que tentam lhes impingir. Atente-se para o que afirma a ativista pelos direitos civis nos Estados Unidos, Ângela Davis, quando participou da I
Jornada Cultural Lélia Gonzalez, em 1997, em São Luís, capital do Maranhão:
Eu sei que, com essa conferência, vocês pretendem abordar a questão da invisibilidade forçada das mulheres negras. O fato de, por um lado, a imagem da mulher negra representar a mãe da cultura brasileira enquanto que, por outro lado, as mulheres negras em geral são social, política e economicamente invisíveis. Como vocês sabem, nos Estados Unidos, as mulheres negras estão lutando há décadas pela erradicação dessa mesma invisibilidade (p. 12).
africanas para fomentar o enriquecimento de países europeus e para delinear social e culturalmente as Américas. As mulheres negras escravizadas tiveram papel relevante na formação socioeconômica e cultural do novo mundo.
A expressão Diáspora Africana, ou Diáspora Negra, utilizada nos estudos realizados sobre a escravidão africana, serve para designar a dispersão de povos africanos pelas Américas, fruto do processo de escravização a que foram submetidos. Às mulheres negras da diáspora, desde 25 de julho de 1992, há um dia especial que lhes é dedicado. Essa data foi criada durante a realização do I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, na cidade de Santo Domingo, na República Dominicana. Na ocasião, ficou estabeleciAs diferentes jornadas do que aquele dia indicaria empreendidas pelas mu- o início internacional da lheres negras, extraídas do luta e da resistência das continente africano e es- mulheres negras. A partir palhadas diasporicamente dessa data, a sociedade em várias partes do plane- civil e os diferentes níveis ta, dão contornos próprios de governo são instados a ao feminismo negro. A his- visibilizar esse dia para dar tória universal registra o conta da opressão de gêsequestro de milhões de nero, de raça e de classe
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social vivida pelas mulheres negras nos diferentes setores da sociedade. A celebração do dia 25 de julho tem por finalidade a ampliação e o fortalecimento das organizações de mulheres negras e a elaboração de estratégias que levem à construção e à implementação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento ao racismo, ao sexismo, à discriminação racial, ao preconceito e às demais desigualdades presentes na sociedade. A data se reveste de importância e serve para visibilizar o enfrentamento feito às iniquidades por que passam as mulheres negras em diversas partes do mundo.
herdeiras de milhões de mulheres que foram, durante séculos, submetidas ao processo de escravização. Tomando-se como exemplo o Brasil, durante boa parte de sua história, mulheres africanas e suas descendentes nascidas no país viveram sob o regime de escravização. Período longo em que eram tidas como objetos, sendo compradas, vendidas, trocadas, além de serem vítimas de toda sorte de violências e abusos. Vale retratar o pensamento de Gonzalez (1982), conforme quadro ao lado:
A participação decisiva das mulheres negras brasileiras na construção das riquezas econômicas e culturais dão ao feminismo vivenciado por mulheres negras outros contornos. A entrada de mulheres negras originárias do continente africano no novo mundo foi para realizar as diferentes atividades existentes à época. As mulheres negras das Américas possuem em comum a história de terem sido
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E a mulher negra, qual a sua situação enquanto escrava? Em termos populacionais, sabe-se que o elemento masculino, sobretudo na região das minas, foi predominante entre a escravaria. Entretanto, o sistema não suavizou o trabalho dessa mulher. Encontramo-la também nas duas categorias [...]: a trabalhadora do eito e a mucama. E o que percebemos é que, em ambas as situações, coube-lhe a tarefa de doação de força moral para seu homem, seus filhos ou seus irmãos de cativeiro. É certo que existiram exceções que, apenas confirmam a regra (p. 92).
O período da história brasileira, que inicia com o fim formal do regime de escravidão, e que remonta a cento e vinte e seis anos, representa pouco tempo para que sejam consagradas todas as mudanças necessárias para a real valorização das mulheres negras. Há no país manifestas situações indicando ainda a presença de resíduos concretos do longo período escravista e que parecem não dar mostras efetivas de mudança. Mesmo que a sociedade brasileira ainda não ofereça às mulheres negras toda a consideração que merecem, é impossível admitir a existência do país sem essas mulheres. É enorme a dívida contraída pelo Brasil com suas construtoras históricas. Tome-se como exemplo vívido a dificuldade que o Congresso Nacional tem demonstrado para a aprovação da PEC do Trabalho Doméstico, considerando que a maioria de integrantes dessa categoria é composta por mulheres negras. O exercício do trabalho doméstico é uma decorrência das tarefas realizadas pelas mulheres escravizadas, sendo, portanto, um dos trabalhos mais antigos em execução no país.
Estudos oficiais de órgãos como o IBGE, IPEA, PNAD e OIT explicam que o maior contingente de mulheres negras estão distribuídas em duas categorias: no trabalho informal e no trabalho doméstico. O emprego doméstico no Brasil [...] pode ser visualizado como um indicador para demonstrar o nível de segregação vertical e horizontal no que diz respeito à desigualdade de gênero e de raça no mundo do trabalho. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho – OIT, 90% dos empregos domésticos são ocupados por mulheres, deste percentual mais de 82,5% são mulheres negras. Mesmo levando em conta a redução deste tipo de trabalho, e a maior incorporação das mulheres no mundo do trabalho
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em inúmeras funções, a maior oportunidade de qualificação, o índice de escolarização, as mulheres negras encontram um alto índice de dificuldades – barreiras para acessarem melhores profissões e postos sociais e economicamente mais valorizados (Mulheres Negras e o Trabalho Doméstico, 2012, p. 20).
Os enfrentamentos feitos pelas mulheres negras têm apontado para a agudização da violência contra as mulheres negras. O estudo do feminismo proposto e vivenciado pelas mulheres negras serve para dar visibilidade às diferentes formas de violência que ainda recaem sobre as mulheres negras brasileiras. Mireya Suárez (1998), no artigo Autenticidade de Gênero e Cor, aborda o tema do estupro da seguinte forma:
A dimensão educativa da Marcha das Mulheres Negras Brasileiras A Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver! foi oficializada durante a realização da III Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), promovida pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), ocorrida
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em novembro de 2013. A ideia proposta pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) tomou vulto durante o evento, tendo seu lançamento ocorrido no dia 7 de novembro de 2013, data de encerramento da Conferência. Fazem parte da Coordenação Geral da Marcha representantes das seguintes organizações: Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB); Fórum de Mulheres Negras Brasileiras; Agentes de Pastoral Negr@s (APNs); Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ); Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD); Movimento Negro Unificado (MNU). A Marcha ocorreu em Brasília, em 18 de novembro de 2015, com a finalidade de tornar visível toda a dimensão da vida das mulheres negras brasileiras e de denunciar o racismo e a violência existentes na sociedade, que obstaculizam o pleno exercício de seus direitos sociais e políticos.
1 Música de autoria de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellete.
A ideia de que as mulheres – de qualquer cor – são estupradas porque são desejadas sexualmente é, desafortunadamente, bastante compartilhada. Fundamentados nessa ideia, muitos poderiam pensar que as mulheres brancas são estupradas com maior frequência porque são mais desejáveis do que as negras. Porém a explicação, na sua totalidade, não se sustenta perante as evidencias de que o femicídio tanto quanto o estupro são crimes motivados pela aversão mórbida contra as mulheres em vez da procura por uma experiência sexual e, muito menos, estética [...] A chamada violência sexual tem, em realidade, o mínimo imaginável de sexualidade e o máximo possível de violência ou, mais precisamente de agressividade (p. 107-108).
Ela desvela que, ao contrário do que o senso comum aponta, a violência sexual é marcada sobremaneira pela agressividade física contra a mulher negra. Vale atentar para a referência feita pela autora sobre a beleza. Os signos que identificam a beleza ou estética apropriadas se referem às mulheres não-negras. Sobre o corpo negro, como refere a letra da música: “[...] a carne mais barata do mercado é a carne negra [...]”¹, é que recai o estereótipo da coisificação, como acontecia no período escravista, remetendo aos quadros de maior violência sexual.
Reafirmamos a importância de enfrentar a situação de desfavorecimento em que se encontram milhões de mulheres negras brasileiras, face à persistência do pensamento machista, colonial e patriarcal instalado em nosso país. A contínua resistência e organização das mulheres negras ao longo das últimas décadas indica o caminho a seguir. A Marcha das Mulheres Negras 2015 Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver! teve como um dos objetivos o diálogo com o máximo possível de mulheres negras, sobretudo aquelas que, até aqui, por força da necessidade de responder pelo sustento da família, trabalham horas a fio, não conseguindo tempo para se reunir com outras mulheres para discutir a sua situação de opressão. Atingimos o maior número possível de mulheres, e fomos aos mais profundos confins desse país para levantar as suas demandas. Foi fundamental a participação de todas para que os documentos elaborados contemplassem a diversidade das opiniões, questões e problemas que atingem as mulheres negras.
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A Marcha buscou também recuperar e valorizar a trajetória de protagonismo de milhões de mulheres negras anônimas que, de forma silenciosa, contínua e participante, foram e são responsáveis pela manutenção e sustento dos núcleos familiares, considerando que, em muitos casos, a família negra tem a forma alargada, indo além do tripé tradicional - pai, mãe e filho. Muitas vezes nesse tipo de família inexiste a figura do homem negro mantenedor. Segundo documento da Marcha das Mulheres Negras: Somos 49 milhões de mulheres negras, isto é, 25% da população brasileira. Vivenciamos a face mais perversa do racismo e do sexismo por sermos negras e mulheres. No decurso diário de nossas vidas, a forjada superioridade do componente racial branco, do patriarcado e do sexismo, que fundamenta e dinamiza um sistema de opressões que impõe, a cada mulher negra, a luta pela própria sobrevivência e de sua comunidade. Enfrentamos todas as injustiças e negações de nossa existência, enquanto reivindicamos inclusão
2 http://www.marchadasmulheresnegras.com/#!manifesto/c15t1
Finalizo reforçando as ideias-força presentes no documento de lançamento da Marcha das Mulheres Negras 2015 Contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver!, conforme segue: A despeito da nossa contribuição, somos alvo de discriminações de toda ordem, as quais não nos permitem, por gerações e gerações de mulheres negras, desfrutarmos daquilo que produzimos. Fomos e continuamos sendo a base para o desenvolvimento econômico e político do Brasil sem que a distribuição dos ativos do nosso trabalho seja revertida para o nosso próprio benefício. Consideramos que, mesmo diante de um quadro de mobilidade social pela via do consumo, percebido nos últimos anos, as estruturas de desigualdade de raça e de gênero mantêm-se por meio da concentração de poder racial, patriarcal e sexista, alijando a nós, mulheres negras, das possibilidades de desenvolvimento e disputa de espaços como deveria ser a máxima de uma sociedade justa, democrática e solidária.
REFERÊNCIAS
a cada momento em que a nossa exclusão ganha novas formas².
ANAIS XIII ENCONTRO NACIONAL FEMINISTA. O feminismo nos 500 anos de dominação: resistência, conquistas, perspectivas. João Pessoa, Paraíba, 2003. ARTICULAÇÃO DE ORGANIZAÇÕES DE MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS. Mulheres negras e o trabalho doméstico no Brasil. Porto Alegre, 2012. CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade brasileira: o papel do movimento feminista na luta antirracista. In: MUNANGA, Kabengele. (Org.). História do negro no Brasil. O negro na sociedade brasileira: resistência, participação, contribuição. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2004. Comitê Impulsor da Marcha das Mulheres Negras 2015 Contra o Racismo a Violência e Pelo Bem Viver. Disponível em: https://www. google.com.br/search?q= Comite+impulsor+da+Mar cha+das+Mulheres+Negr as+2015&ie=utf-8&oe=utf8&aq=t&rls=org.mozilla:ptBR:official&client=firefox-
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a&channel=sb&gfe_rd=cr&ei =QJrcU7LAIc3Y8gfyzYDYDA. Acesso em: 01 ago. 2014. DAVIS, Ângela. Revelando as forças ocultas. In: Revista Palmares. Brasília, Ministério da Cultura, n. 3, 2000. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora; Ed. UFJF, 2005. GOMES, Nilma Lino. O movimento negro no Brasil: ausências, emergências e a produção dos saberes. Dossiê. Política e Sociedade. Volume 10, n. 18, abril 2011. GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira. (Uma abordagem políticoeconômica). In: LUZ, Madel T. (Org.). O lugar da mulher: estudos sobre a condição feminina na sociedade atual. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982. MOLINA, Helder. Racismo e exclusão negra contemporânea tem origem na escravidão colonial. Disponível em: http://www. sintetufu.org/2012/antiracismo. php?id=10. Acesso em: 01 ago. 2014. SUÁREZ, Mireya. Autenticidade de gênero e cor. In: A cor do medo: homicídios e relações raciais no Brasil. Brasília: Editora UnB; Goiânia: Editora da UFG, 1998.
Marlete Andrize de Oliveira
Geanine Vargas Escobar
Arianne Teixeira de Lima
Integrante da JuNF, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Integrante da JuNF, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Integrante da JuNF, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Amanda RosiĂŠli Fiuza e Silva
Integrante da JuNF, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Adriana da Silva Alves
Integrante da JuNF, Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
1 Site do Museu Comunitário Treze de Maio. Disponível em: <http://museutrezedemaio.com.br/>. Acessado em: 30 ago. 2014.
Juventude Negra Feminina de Santa Maria - RS (JuNF) é um coletivo formado exclusivamente por mulheres negras, por questão de empoderamento e fortalecimento da identidade negra. A JuNF foi criada em abril de 2013, de forma virtual, através do facebook, pela mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural Geanine Escobar. O coletivo possui pouco mais de um ano de existência e conta com mais de cem integrantes de forma virtual, que trocam informações sobre negritude, toda a semana, na página fechada da JuNF, na rede social facebook. O primeiro encontro presencial do grupo aconteceu no dia 13 de Julho de 2013 (Figura 1). Compareceram no Museu Comunitário Treze de Maio de Santa Maria¹, o museu negro da cidade, 12 jovens negras, o que foi motivo de muita alegria, pois, até então, muitas se conheciam apenas virtualmente, por fotos e troca de informações online. O intuito do coletivo é reunir meninas negras das periferias da cidade, estudantes de ensino fundamental, médio, técnico,
pré-vestibulandas e universitárias, integrantes de diferentes movimentos sociais, dos grupos de dança afro e de rua, as jovens mães negras, e todas as demais mulheres negras que enfrentam todos os dias as mais diferentes formas de opressão, seja devido ao gênero, à cor, ou à classe social a que pertencem. Percebemos que, dentro dos movimentos sociais dos quais participamos, as lutas femininas e/ou negras são seguidamente colocadas em segundo plano, o que acaba por silenciar as pautas que são específicas das mulheres negras. Esse fato gera opressões dentro de classes já oprimidas. E isso ocorre, infelizmente, dentro do movimento feminista universal, que é o feminismo branco, e dentro do movimento negro, que também reproduz o machismo. Dessa forma, surge a necessidade de criar espaços de debate específicos sobre mulheres negras. A metodologia utilizada pela JunF é bastante diversificada. As reuniões acontecem quinzenalmente, exceto quando ocorre a necessidade do debate de
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alguma pauta extra, especialmente quando surgem convites para participação em eventos, seminários, congressos e atividades em que seja importante escolher uma integrante da JuNF para representar do Coletivo. Nas reuniões presenciais, as atividades variam entre a leitura e debates de textos, debates sobre assuntos que estão em voga na sociedade, leitura de poesias, sessões de filmes, construção das dinâmicas das atividades que idealizamos e organização do nosso calendário para participação nas atividades para as quais somos convidadas ou estamos ajudando a construir. A JuNF trabalha com as demandas sociais em geral, nossa luta é por equidade social. Assim, o coletivo não atua apenas nas causas feministas, ainda que as causas relacionadas principalmente às mulheres negras tenham maior prioridade pelo fato de o grupo ser composto integralmente por mulheres negras. Nesse sentido, todo tipo de preconceitos e discriminações sociais são trabalhados no coletivo, ou seja, as lutas dos movimentos sociais são as nossas lutas – desde que
O coletivo trabalha com a questão do empoderamento, de ocupar os espaços que são nossos por direito, de mostrar nossa cultura e aprender a valo-
rizar nossa negritude através do desenvolvimento do pensamento crítico e do questionamento sobre as representações sociais de negras e negros, principalmente na grande mídia hegemônica que só contribui para reforçar o racismo e o
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A JuNF, além do debate e da reflexão crítica sobre os assuntos relacionados ao racismo e a todo tipo de preconceito, busca concretizar ações para dar maior visibilidade às lutas sociais. Dessa forma, com o objetivo de criar um histórico da Juventude Negra Feminina de Santa Maria – RS, com foco na minibiografia de cada membro do coletivo, e com o intuito de desmascarar o racismo, mostrando que, ao contrário do que muitos costumam afirmar, existe, sim, muito preconceito racial, que se apresenta de formas variadas, foi realizado um questionário que teve sua estrutura idealizada pelas próprias integrantes, em reunião presencial no dia 20 de outubro de 2013, no Parque Itaimbé. Esta ação foi nomeada como “Ohùn”², que significa “voz” na língua yorubá. As respostas divulgadas visam auxiliar o grupo a se
2 OHÙN: A FACE DA JUVENTUDE NEGRA FEMININA DE SANTA MARIA – RS. Disponível em: http://junfsmrs.blogspot.com.br/p/ohum.html. Acessado em: 30 ago. 2014.
Figura 1, 1º Encontro da Juventude Negra Feminina de Santa Maria - RS | Acervo: Arquivo da JuNF Figura 2, Reunião da JuNF e Pique-nique no Parque Itaimbé | Acervo: Arquivo da JuNF
exista uma identificação com a causa.
preconceito. É nesse viés de resistência que nossas atividades são desenvolvidas: construindo, primeiramente, nossa própria formação enquanto membros do coletivo, para que todas sejam capazes de dialogar e representar a JuNF em vários espaços.
3 Fan page da Juventude Negra Feminina de Santa Maria. Disponível em: https://www.facebook.com/JuventudeNegraFemininaDeSantaMariaRs. Acessado em: 30 ago. 2014.
conhecer melhor, além de tornar públicas histórias e vivencias pessoais de cada mulher negra que compõe esse movimento que, dentre tantos objetivos, luta por um feminismo negro. A JuNF participou ativamente das atividades relacionadas ao mês em que é comemorado o Dia Nacional da Consciência Negra. No dia 23 de novembro de 2013, organizamos uma atividade para valorizar a cultura negra, o 1º Sarau de Poesia Negra da JuNF (Figura 3). A proposta da atividade foi visibilizar a cultura negra através da poesia negra. Neste sarau, todo organizado pela JuNF com apoio do Museu Treze de Maio que cedeu o espaço, ocorreram várias atividades, dentre elas: o varal de poesias negras, a roda de poesia, cantos, musicalidade negra, dança negra, toque do berimbau e dos atabaques por Paulo Simões (Mestre Panthera), homenagem à escritora e educadora
Maria Rita Py Dutra, juntamente com a exposição da coleção de livros “História da Vó Preta” da poetisa, e venda de bottons da JuNF. Foi um evento aberto à população e as dinâmicas foram interativas, o público pode entrar em contato com a poesia e ter participação no Sarau através da declamação ou leitura das mesmas. Em janeiro de 2014, a JuNF lançou a campanha virtual intitulada “SOMOS ZUMBI E DANDARA TODOS OS DIAS” com a ideia de destacar conquistas das lutas sociais negras no Brasil e no mundo, além de mostrar personalidades negras que foram importantes em suas áreas de atuação. Tivemos como suporte o Calendário da Cultura Negra da Fundação Cultural Palmares do Governo Federal. Os cartazes com as frases sobre as personalidades negras foram postado na página virtual da JuNF no facebook³ e serviram como forma de evidenciar as conquistas e acontecimentos marcantes para a negritude. O intuito foi atingir, principalmente, professores, a comunidade de artistas, educares e pesquisadores, especialmente os que trabalham em esco-
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las e universidades em cursos de licenciatura, para a implementação da Lei Federal nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Essa é a lei que rege a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira na rede oficial de ensino público e particular. A JuNF, mais uma vez à frente dos embates sociais e reivindicatórios, ajudou a construir o Movimento Pró-Cotas Raciais UFSM. Este foi um movimento de vários grupos, entidades, coletivos, ativistas sociais, organizações negras de dentro e de fora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que se
Figura 3, 1º Sessão de Filme - Cinema e Mulher Negra e leitura do artigo sobre o filme “Antonia”. Acervo: Arquivo da JuNF.
mobilizaram para levar o tema das cotas raciais e sociais para dentro das escolas públicas de ensino médio da cidade através da proposta de diálogo. E também com a intenção de pressionar a Universidade Federal de Santa Maria a aderir, já no ano de 2014, à Lei nº 12.711/2012 sancionada em agosto de 2012 que prevê a reserva de 50% de cotas nas instituições federais. A JuNF ajudou a construir e participou da I Jornada de Lutas das Mulheres com o slogan “para além das flores, queremos respeito”. A jornada contou com atividades durante
todo o mês de março de 2014, mas a proposta foi a de resgatar o sentido original da criação do Dia Internacional da Mulher, celebrado no dia 8 de Março. Dessa forma, as atividades visavam conscientizar e fazer a sociedade refletir sobre os direitos e todos os tipos de opressão que as mulheres ainda sofrem em uma sociedade machista. A JuNF, além de ajudar a construir a jornada, participou de um debate, através da representante Geanine Escobar, membro do coletivo, que ocorreu em espaço público da cidade, intitulado “Hipersexualização da Mulher Negra”. Esse debate foi responsável por afirmar a luta das mulheres negras no país, desde a diáspora africana, levando o grito de consciência negra para rua através da sensibilização, do compartilhamento de experiências enegrecedoras, disseminando a nossa visão negra sobre nós mesmas. Foi um encontro bastante expressivo, pois nesse dia se iniciava o carnaval em Santa Maria, momento em que a hipersexualização e objetificação do corpo da mulher negra são ainda mais marcantes.
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4 A referência às mulheres negras é a todas as mulheres negras que se identificam desta forma, isto é, a todas as pessoas negras que têm sua identidade de gênero feminina. Neste sentido, a luta pela visibilidade e por pautas específicas englobam as mulheres negras transgêneras.
Resistimos e lutamos por mais profissionais negras com ensino superior, sejam elas médicas, enfermeiras, servidoras sociais, professoras – tanto na educação básica quanto nas instituições de ensino superior. Queremos melhores condições, respeito, igualdade de oportunidades, políticas públicas que contemplem demandas específicas das mulheres negras, levando em consideração que o Brasil, possui uma população de mais de 53% de pretos e pardos, somando mais de 50 milhões de mulheres negras. Em todas as partes do mundo, a nossa luta continua. Juntas somos mais fortes!
1º Sarau de Poesia Negra da Juventude Negra Feminina da Santa Maria | Acervo: Arquivo da JuNF.
A JuNF busca enegrecer os espaços que são nossos por direito, lutamos por uma maior representatividade da mulher negra em todos os setores da sociedade. O nosso discurso vai contra a secundarização das pautas específicas das mulheres negras4. Basta de esquecimento e invisibilidade, basta de negligência às causas negras e femininas. Não aceitamos a imposição racista que coloca a mulher negra sempre em posições inferiores, como eternas escravas.
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
José Antônio dos Santos
O presente artigo é uma tentativa introdutória de superação dos lugares de enunciação da história do Brasil, geralmente restritos a indivíduos da elite, masculinos, de origem europeia e residentes nos grandes centros industriais e econômicos. Ainda vivemos um tempo necessário de enfrentamento epistemológico do lugar hegemônico do “homem branco universal” na construção da nossa história. Nesse sentido, apresento o exemplo de algumas mulheres negras a partir de produções intelectuais orgânicas dessa população.
A presença e a atuação das mulheres negras junto à imprensa, embora com poucos casos de artigos assinados com nome e sobrenome, foram fundamentais no processo de criação e manutenção dos jornais negros no Estado. Segundo Bahia (2012), no jornal O Exemplo, de 1902 a 1905, apareceram três casos de mulheres que assinaram artigos no semanário. Em 1904, Carmem D’Aguiar assina o artigo “Por uma idéa” (sic), onde defende a necessidade das associações negras de Porto Alegre se organizarem para criar uma escola noturna para alfabetizar as suas crianças. Ela faz um apelo veemente em defesa de sua “idéa” e se prepara para as críticas ao registrar a sua opinião:
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José Antônio dos Santos | Acervo: DEDS
1 Desde as pesquisas para o mestrado (UFF, 2000), doutorado (PUC-RS, 2011), e em disciplina da Pós-Graduação em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana da Faculdade Porto-Alegrense – FAPA, desenvolvi temáticas e discussões específicas sobre a história das mulheres negras no Brasil.
As temáticas relativas à participação política das mulheres negras no Brasil ainda têm sido pouco abordadas pelos historiadores. Como homem negro, professor e historiador do Brasil republicano, não tive como deixar de registrar a presença fundamental das mulheres negras em nossa história. Embora apareçam pouco em documentos do imediato pós-abolição e quase não tenham artigos assinados em jornais, elas tiveram papéis de destaque em todos os âmbitos sociais ocupados pela população negra no Rio Grande do Sul¹.
Carmem parece ter justa noção do lugar que deveria ocupar naquela sociedade, ou seja, seria o espaço privativo da casa e o envolvimento com os afazeres domésticos. No entanto, ela se mostrava preocupada com um problema público – a educação das crianças da sua comunidade. Nem a “crítica dos rigoristas do preconceito” demoveu-a da convicção que a animava a emitir opiniões em defesa dos seus ideais. Pelo contrário, ela até ironizava a “grandiosa [note que a palavra está em itálico no tex-
Desde 1827, as meninas brancas podiam frequentar apenas escolas de nível elementar, sendo-lhes vedadas as instituições de formação superior. No final do século XIX, quando Carmem D’Aguiar, provavelmente, começou a estudar, o acesso ao ensino era privilégio de poucos, a grande maioria da população era analfabeta. Eram muito reduzidos os espaços de alfabetização pública e, quando foram criadas as escolas normais, o objetivo passou a ser formar meninas para se tornarem professoras primárias. Elas eram tidas como dóceis e compreensivas, e foram vistas como o modelo ideal para ocupar o papel social de educadoras. As possíveis mães não seriam educadoras apenas dos seus filhos, mas também dos
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seus alunos. Enquanto os homens tinham o privilégio para atuar no espaço público, as mulheres deveriam se manter no mundo privado das escolas, igrejas e afazeres domésticos². Portanto, embora inicialmente pudéssemos visualizar Carmem como uma mulher além do seu tempo, era compreensível, numa sociedade que se modernizava e necessitava da mão de obra feminina, que algumas mulheres, muitas delas professoras, viessem a público para defender a construção de escolas e a necessidade da educação naquela sociedade. Ela não apenas estava defendendo a ampliação de um nicho de mercado majoritariamente feminino, mas também visualizava a educação como uma forma de superar as condições em que se encontrava a maioria delas. As mulheres negras, em geral, ocupavam os postos de trabalho marginais ao processo de urbanização e industrialização. Eram lavadeiras, engomadeiras, cozinheiras, domésticas, doceiras, vendedoras ambulantes, algumas trabalharam nas indústrias têxteis ou manufaturas de alimentos, mas
2 Cf. FRANCO, Sebastião P. Do privado ao público:o papel da escolarização na ampliação de espaços sociais para a mulher na Primeira República. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2001.
‘‘Sei perfeitamente que a crítica dos rigoristas do preconceito virá ferir a mulher que exorbitando da grandiosa missão de dona de casa, furtando algum tempo ao cuidado das panelas e dos cerzidos, ousa elevar-se a cogitações tais como a de que me ocupo. Que importa, porém, quando me anima a convicção que ela é uma necessidade?’’
to original] missão de dona de casa”, esta deveria ser a sua ocupação cotidiana, e não exceder os justos limites que definiam o lugar e os afazeres das mulheres naquela sociedade. Ela ousava colocar-se em defesa não apenas de um ideal a ser conquistado, mas levantava uma necessidade social que era a construção de escolas.
3 A Alvorada. Pelotas, 28.05.1933. 4 “Coluna Social”. AA. 20.05.1934 Convite que anunciava: “Filhas do Depois da Chuva fazem festa no seu “papai” carnavalesco - Quem Ri de Nós Tem Paixão”. AAlvorada. 17.06.1934
raros foram os casos daquelas que atuaram como professoras. Elas aparecem nas páginas da imprensa negra principalmente nas situações que envolvem as sociabilidades do meio negro. A organização de bailes, piqueniques, quermesses, apresentações teatrais, saraus poéticos, festas e comemorações em geral tinham, na maioria das vezes, a participação feminina. São inúmeras as atividades dirigidas pelas “comissões de senhoras”, “diretorias de senhorinhas” e “departamentos femininos” dos clubes sociais, culturais, bailantes e blocos de carnavais. Atuavam nas cozinhas preparando comidas e bebidas, vendendo ingressos e encabeçando os cerimoniais de batizados, casamentos, aniversários e escolhas das rainhas. Em todos os eventos sociais, divulgados em anúncios, convites e participações nos jornais negros, se encontram as presenças femininas.
Algumas delas foram visibilizadas como “torcedoras”, frequentavam os jogos, treinos e organizavam as festas para arrecadar recursos aos times de futebol. Outras mulheres assumiam lugares de protagonistas, por exemplo, o Grêmio Esportivo Vencedor, um dos times de futebol da cidade de Pelotas, anunciava a constituição de uma nova “Diretoria de Senhoras e Senhorinhas” que era composta por 26 nomes³. É um número expressivo de mulheres elencadas numa diretoria, principalmente se considerarmos que essa prática esportiva se voltava apenas aos homens. O Vencedor era um dos times que compunham a Liga de Futebol José do Patrocínio, fundada em Pelotas, em 1919, que era formada por clubes de futebol de maioria negra. Elas participavam de todo o processo de formação e, principalmente, na manutenção dos clubes de futebol. Como torcedoras e participantes de diretorias femininas, eram sócias apaixonadas pelas cores dos times e, seguramente, por alguns jogadores, mas não deixavam de pagar mensalidade e ir aos jogos e demais confraternizações
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dos clubes. Em geral, constituíam diretorias específicas no interior das agremiações, responsáveis por angariar recursos para a compra de camisetas, bolas e chuteiras, colaboravam nas viagens e no pagamento de aluguéis dos campos de futebol. Ainda com a intenção introdutória, ou de incentivar futuras pesquisas sobre a história das mulheres negras, cito o caso da organização do “Bloco As Chovianas”. Este bloco carnavalesco foi formado inteiramente por mulheres, “as filhas do Depois da Chuva”, que estavam descontentes com a velha guarda daquele afamado Cordão Carnavalesco de Pelotas. Elas se retiram da sede do clube, levam o nome e instalam-se no concorrente - “Quem Ri de Nós Tem Paixão” -, demonstrando descontentamento e buscando a autonomia da organização do seu próprio bloco4. Como organizadoras, torcedoras, educadoras ou participantes em papéis sociais diversos de mães, irmãs ou namoradas, as mulheres negras sempre tiveram atuação destacada nas sociedades e organizações do meio negro gaúcho.
[...] o atraso da nossa raça faz culminar [...] a briga, a bebida, os maus tratos, terminando muitas vezes na delegacia. O dinheiro que lhe cai à mão, ganho em seus medíocres empregos, logo tratam de esbanjá-lo em futilidades7.
Em alguns momentos, temos alguns nomes femininos que assinam colunas dirigidas a este público nos jornais6. No início de 1934, é criada uma “Página Feminina” no semanário A Alvorada, de Pelotas, e, desta maneira, as mulheres são incentivadas a se manifestarem: “faz-se questão que sejam produzidas pelo elemento feminino”. Neste número, temos um artigo, assinado por Irene, em que ela reflete sobre a situação da mulher negra no seio de uma família pobre, da seguinte forma:
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5 No artigo “Voto feminino”, Rodolfo Xavier, se coloca de maneira favorável ao voto feminino. (A Alvorada. 20.03.1932) Outro articulista do jornal, Armando Vargas, no artigo intitulado ‘’Canção do lar”, afirma: “Eu sou contra a intromissão da mulher na vida política do país”. (AA. 21.08.1932) 6 “Que é a Sociedade?”. Antonietta Garcia Avilla. AAlvorada. 25.12.1932 7 “A Mulher Negra”. Irene. AAlvorada. 07.01.1934
Como era comum naquele período, a participação política e intelectual das mulheres era desconsiderada no meio jornalístico do Rio Grande do Sul. Inicialmente, os jornalistas e redatores negros assumiam uma posição paternalista em relação às mulheres, no sentido de que elas deveriam ser protegidas para as atividades do lar, mas, nos anos de 1930, algumas vozes mais avançadas defenderam o direito ao voto feminino5.
Significativos destes aspectos foram os vários concursos organizados pelos responsáveis do semanário intitulado “Rainha do A Alvorada”. Um deles ocorreu na Liga Operária e as candidatas, independente da idade e condição social, só concorriam ao título se
fossem identificadas como negras8. Foram divulgadas no semanário várias outras atividades de caráter étnico exclusivos dos negros, como: “Concurso de Beleza Feminina”9, “Concurso de Contos sobre Fatos da Raça Negra”10, “Miss Liga José do Patrocínio”11, e uma série de festivais musicais e teatrais, direcionados para os da “nossa raça”. Os intelectuais, homens e mulheres, que fundaram e mantiveram a imprensa negra estavam preocupados em combater o preconceito, o racismo e a discriminação reinante na sociedade gaúcha. assumiram Muitos(as) papéis de lideranças sociais e políticas e se empenharam no processo de educar e moralizar suas comunidades no pós-abolição. Alguns e algumas reproduziram mecanismos machistas, sexistas, estéticos e comportamentais da sociedade hegemônica, enquanto outros(as) ocupavam papéis fundamentais na estrutura socioeconômica junto às famílias e na manutenção/reprodução de aspectos culturais de matriz africana que chegaram até nós.
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REFERÊNCIAS
8 Anúncio de festa de aniversário do jornal e escolha da rainha. Foram vendidos mais de 4.000 cupons da candidata vencedora Flavia Gomes dos Santos (Bidú), que tinha 10 anos de idade. AA. 17.04.1932 9 Coluna “Coisas do Passado” de 26.08.1907. Reproduzida no AA. 08.08.1953 10 AAlvorada. 28.01.1934 11 AAlvorada. 08.11.1931
Este texto é característico da fase que passou o jornal A Alvorada, na década de 1930, em que os redatores se envolveram na Campanha Pró-Educação da população negra da cidade. Foi o período de 1933, em que criaram a Frente Negra Pelotense, inspirada na Frente Negra Brasileira, fundada em São Paulo dois anos antes. Educar, “socializar” e “moralizar” a comunidade negra, no sentido de criar mecanismos de reconhecimento público para a integração e ascensão social, fazia parte dos objetivos dos redatores dos jornais quando da sua criação.
BAHIA, Cristina C. Lins. A imprensa negra em Porto Alegre, 1902 a 1905: uma participação feminina e negra na redação do jornal “O Exemplo”. Monografia do Curso de Pós-Graduação em História da África e do Negro no Brasil. Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 2012. DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1989. FRANCO, Sebastião P. Do privado ao público: o papel da escolarização na ampliação de espaços sociais para a mulher na Primeira República. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, 2001. SANTOS, José Antônio dos. Raiou “A Alvorada”: intelectuais negros e imprensa, Pelotas (1907-1957). Mestrado em história. Universidade Federal Fluminense, 2000. ________. Prisioneiros da história. Trajetórias intelectuais na imprensa negra meridional. Doutorado em história. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2011. SILVA, Jacira. Vozes de mulheres negras na imprensa negra pelotense: a luta por educação através dos escritos do jornal “A Alvorada”. Pelotas: UFPEL, 2001.
Camila Ribeiro da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Mariana Gonรงalves da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Jovens negras e negros, motivadas(os) pela mobilização de luta em defesa do Programa de Ações Afirmativas no ano de 2012 - quando o Movimento Negro e Estudantil rearticularam-se para garantir no Conselho Universitário a ampliação e manutenção das cotas na Universidade - e sentindo a necessidade de uma organização que reunisse a juventude negra da UFRGS (e de fora dela) para denunciar o racismo institucional e fomentar a cultura negra na Universidade, dão origem ao Coletivo Negração. Tendo como marco inicial de uma trajetória de lutas a problematização acerca da comemoração da “Revolução Farroupilha”, em 20 de setembro, quando reivindicamos a errata “Povo que não tem virtude acaba por escravizar” ao hino racista do Rio Grande do Sul. A primeira ação do grupo foi uma intervenção no desfile tradicionalista em Porto Alegre, onde levamos uma faixa com a errata e distribuímos panfletos, abordando brevemente a problemática do hino racista e a contribuição dos Lanceiros Negros na tão celebrada Guerra dos Farrapos. Além disso, o Coletivo aborda a produção de conhecimento voltada às demandas do
povo negro e trabalhador; a cultura e a arte negra como forma de militância; as Ações Afirmativas, uma conquista do movimento negro organizado que ainda necessita de debate intenso e constante sobre permanência e assistência dos estudantes cotistas; e o combate ao racismo institucional. No início, o Coletivo era formado por cerca de 10 pessoas, sendo a maioria delas homens. Como em todo movimento social, algumas pessoas se afastaram e já não participam diretamente por diversos motivos, como questões da vida pessoal, profissional, acadêmica, entre outras. Com o passar do tempo, outras pessoas entraram no Negração, havendo uma maior aproximação de mulheres, impulsionadas, principalmente, pela questão da identificação na estética negra – muito presente nas(nos) integrantes do grupo. Assim, inicia-se a discussão em torno das pautas sobre a importância de nossa estética e do cabelo crespo como forma de resistência e afirmação de nossa identidade. Avançando no debate, também são incorporadas na agenda de luta as pautas e discus-
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O estereótipo e a visão estigmatizada reverberam até hoje em nossas vidas. A ideia de que a mulher negra era sempre considerada a mulher objeto, aquela que servia somente para o sexo e para satisfazer os desejos do homem branco, sem se opor, apenas
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“cedendo ao destino” que lhe era concedido, é muito comum. Nós, mulheres negras, continuamos atreladas àquela visão racista do passado que dizia que só servíamos para o sexo e nada mais. Observando o carnaval brasileiro, essencialmente sinônimo de cultura negra, nos meses que o antecedem, a mulher negra é exaltada nas mídias, reforçando os estereótipos e estigmas anteriormente citados. A exemplo, podemos citar o concurso ‘Globeleza’, da Rede Globo, onde se realiza a “escolha da melhor mulata”, para ser representada como “musa” do carnaval. Mulata, palavra esta que tem sua raiz na palavra “mula”, remetendo diretamente ao animal mestiço
Camila Ribeiro da Silva | Acervo: DEDS
Nesse sentido, é importante ressaltar que o feminismo “tradicional” era apresentado apenas com base na ideia do binarismo entre homem e mulher, com a pauta de independência feminina e o lugar da mulher no mercado de trabalho, questões que contemplavam somente as mulheres brancas. As mulheres negras sempre foram exploradas pelos senhores e suas esposas, que consideravam culpa da mulher negra ser escolhida como “preferida” do marido para satisfação sexual através do estupro. No pós-abolição, as mulheres negras continuaram, na maioria das vezes, sendo exploradas em cargos e posições desvalorizadas, cuidando dos filhos e das casas das mulheres brancas (como babás e domésticas), sendo esse quadro visível até hoje na sociedade brasileira. Por esse motivo, surge o Feminismo Negro, levando
em conta que as questões das mulheres não são únicas, mas permeadas por questões de raça, classe, sexualidade, entre tantas outras. Transpassam-se, principalmente, raça, gênero e classe, considerando a tripla opressão sofrida por nós: negras, mulheres e também pobres, uma vez que a maioria da população negra é marginalizada, mora em lugares de baixa estrutura e tem o menor índice de acesso à educação.
Mariana Gonçalves da Silva | Acervo: DEDS
sões sobre a dupla opressão sofrida pela mulher negra – machismo e racismo –, raramente discutida em espaços feministas hegemonicamente brancos e academicistas, e também no movimento negro, que secundariza a questão de gênero.
de quatro patas, resultante do cruzamento de cavalo com burro, ou seja, passou a aplicar-se à(ao) filha(o) do homem branco com a mulher negra. A Globeleza representa a nossa exploração, o controle que a mídia branca e machista detém sobre nossos corpos. Somos folclore, quase que diretamente representadas nos meios de comunicação de massa através da anulação de nossas capacidades enquanto agentes transformadoras de nossa história, sendo reduzidas a objetos, isso quando nossas características não são usadas de forma a nos menosprezar, como acontece frequentemente em programas de “humor”. Infelizmente, a carne mais barata ainda é a nossa. Somos alvo do deboche, do comércio ilegal, alvo das balas “perdidas” que, coincidentemente, têm sempre um destino certo: a carne negra. A partir destas questões, o Coletivo Negração, no início deste ano, promoveu uma campanha que problematizava a hipersexualização da mulher negra - principalmente no carnaval -, ou seja, esta ideia impregnada da “mulata” a serviço do sexo e do homem bran-
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co. Esta campanha foi realizada porque o nosso carnaval não é só festa. Ainda vivemos em um sistema que mercantiliza nossas vidas, nosso corpo e nossa sexualidade. Sendo assim, e entendendo que esse mesmo sistema vale-se do racismo, machismo e tantas outras formas de opressão existentes em nossa sociedade, não comemoramos nem um pouco ao ver os corpos de outras mulheres negras sendo expostos em uma competição em rede nacional. Importante ressaltar que não repudiamos as mulheres que participam destes concursos, mas, sim, a forma como a hegemonia midiática se utiliza deste momento simbólico para vender cada vez mais nossa imagem. A produção da campanha consistiu em fotografias, nas quais as meninas maquiaram-se lembrando o carnaval, portando cartazes com as seguintes frases de protesto: “Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria é atrair gringo turista interpretando mulata!”; “Minha carne é de carnaval, não teu objeto sexual!”; “Comer uma mulata não te faz menos racista”. Tais fotos foram difundidas através
de redes sociais, tendo alta visibilidade e contribuindo para que um grande número de mulheres negras se sentissem contempladas, identificando-se com a discussão e, com isso, buscando agregar-se à luta antirracista e contra o machismo. Entretanto, devemos lembrar que a campanha também foi alvo de inúmeras críticas de cunho racista e machista que questionavam a exposição de parte do corpo das meninas e as frases escritas nos cartazes. Aberto este canal de diálogo, as mulheres negras do Coletivo pensaram em abranger a discussão do feminismo negro dentro dos espaços feministas que são majoritariamente compostos por mulheres brancas, de classe média. Dessa forma, foram convidadas outras mulheres negras que não pertenciam ao Coletivo, para que somassem na luta. Nesse contexto, o primeiro espaço de ação coletiva foi na Marcha das Vadias, movimento este que surgiu em Toronto, no Canadá, em resposta à declaração de um policial que, ao falar sobre abusos sexuais, comentou que as mulheres deviam evitar se vestir como vadias para
não serem vítimas. O movimento, inicialmente, reivindicava o significado da palavra “vadia”, tida como pejorativa para mulheres sexualmente livres, ressignificando e apropriando-se do termo. Posteriormente, o movimento foi legitimado para a luta feminista, atingiu outros países e ampliou suas pautas, passando a abordar a laicidade do Estado, a legalização do aborto, etc. No entanto, é importante lembrar que essa marcha é composta, principalmente, por mulheres brancas. Por esse motivo, foi organizada uma intervenção onde entoávamos frases de contestação em relação à realidade das mulheres negras em especial, mas também da população negra em geral, com dados de estatísticas e trechos de músicas: “Cansei de ver minha gente nas estatísticas, de mães solteiras a diaristas!”; “Preparadas pela vida para suportar o machismo, o racismo e o eurocentrismo!”; “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro!”; entre outras. Todas as meninas estavam vestidas de preto, e a intervenção consistia em uma chamada de abertura artística onde era entoada “A carne mais barata do mercado é a car-
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ne negra!”. A repercussão deste ato se deu, também, por meio de divulgação em mídias alternativas e redes sociais. Este foi um momento muito importante para que pudéssemos nos aproximar de nossas irmãs, mostrar nossa força e colocar em cheque o enfrentamento das mulheres negras frente ao feminismo hegemônico. A nossa presença enquanto juventude negra militante dentro dos espaços onde o protagonismo não é de negras e negros, onde existe uma insistente tentativa de silenciamento e embranquecimento, torna-se fundamental, significando a inversão de valores previamente estabelecidos e contribuindo com a afirmação de nossa identidade perante a sociedade. A visibilidade acerca das questões relacionadas ao racismo e ao machismo, bem como o enfrentamento dessas opressões, é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, na qual o reconhecimento e a valorização das diferenças estejam no centro do debate, evidenciando nosso protagonismo enquanto agentes de transformação.
seleção poética | LEANDRO MACHADO | Artista plástico
..’’Durante o dia, olho o movimento das águas do prata; em noites de céu aberto, a presença das estrelas.’’
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MANCHA Nunca soube de que um negro tentasse atravessar o Canal da Mancha. Dizem que os negros nadam mal: fibra muscular pesada, falta de piscinas. São poucas as medalhas dos nadadores negros. Nem sequer ouvi falar de que um negro tentasse atravessar o Canal da Mancha. Bobagem, também nunca soube de alguém que cruzasse o Atlântico tão profundamente como um negro. Para atravessar o Atlântico é preciso muito fôlego, e até mais do que sete vidas.
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seleção poética | Jorge Fróes - Poeta e professor de Língua Portuguesa e Literatura
Deve ser duro atravessar o Canal da Mancha. Água gelada, distância – muro.
seleção poética | DELMA GONÇALVES | Compositora e poetisa
tez Alegria no gueto A menina nasceu De um ventre escuro… Sem máculas Com a ancestralidade dos pretos Ah! Esses deuses afros Dúvidas na genética Na simplicidade do ato Sua tez: marrom claro Indagações no ar por todo lado De onde vem essa cor? Sei lá! Esses mistérios étnicos… congênitos… Nato Meu Deus! Parece até pecado! Essa mistura na melanina… Cabelos… Crespos, lisos, enigmáticos De um verdejante olhar Sorriso angelical Doce recato... É de fato Nasceu um anjo mulato!
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Reitor Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor Rui Vicente Oppermann
Pró-Reitora de Extensão Sandra de Deus
Vice-Pró-Reitora de Extensão
Diretora do Departamento de Educação
e Desenvolvimento Social
Claudia Porcellis Aristimunha
Rita de Cássia Camisolão
DEDS EM REVISTA Porto Alegre, nº 1, Vol.1, março de 2016 Publicação do DEDS/ PROREXT/ UFRGS
Jornalista Responsável Sandra de Deus
Projeto Gráfico Mario Arruda e Odair Silva dos Santos
Diagramação e Capa Odair Silva dos Santos
Revisão Débora Simões da Silva Ribeiro José Antônio dos Santos Márcia Reckziegel Kucera
Conselho Editorial Daiane dos Santos Moraes Débora Simões da Silva Ribeiro José Antônio dos Santos Luciane Bello Patricia Xavier dos Santos Paulo Baldo Rita de Cássia Camisolão Tania Maria Nunes Souza e Silva