DEDS em Revista – 2017

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APRESENTAÇÃO DEDS EM REVISTA, em seu segundo número, privilegia o projeto Conversações Afirmativas, ação de extensão nascida em 2010, inspirada no anseio pelo encontro com os estudantes cotistas que, desde 2008, trazem para a UFRGS outras vozes, cores, sons, linguagens, pensamentos, histórias, formas de ensinar e aprender. Esse projeto nasce também do envolvimento do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) com o processo de implementação e acompanhamento da Política de Ações Afirmativas em nossa instituição, através do assento na Comissão de Elaboração da Proposta de Ações Afirmativas, em 2007, e na Comissão de Acompanhamento dos Alunos do Programa de Ações Afirmativas, em 2008 e 2009. Posteriormente, o Departamento passou a ter contínua representação no Conselho Consultivo da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas e, mais recentemente, na Comissão Permanente de Verificação das Autodeclarações Étnico-raciais. Impulsionado pela expectativa de potencializar sua atuação extensionista, no sentido de colaborar com a consolidação da política, a partir do encontro entre os próprios estudantes cotistas, seus referenciais afetivos, históricos e culturais e demais membros da comunidade acadêmica, o

DEDS iniciou a primeira ação do projeto Conversações Afirmativas em 2010. Desde então, muitos foram os encontros que trouxeram para as rodas de conversa múltiplas questões que envolvem as políticas de ações afirmativas, consolidando o Conversações, como é carinhosamente conhecida essa ação, como um espaço potente de articulação, aprendizagem e reflexão, tanto quanto de acolhimento aos estudantes ingressantes na Universidade a partir da reserva de vagas. Conversar é o verbo que norteia todos os encontros. As reuniões preparatórias de cada um deles definem a escolha do tema, a busca de parceiros, a escolha de mediadores, a ambientação do espaço e o elemento provocador de questões que podem dinamizar a conversa. Os mediadores, gente da academia, ativistas de movimentos sociais, mestres de conhecimento tradicional ou popular, acomodados em círculo, conduzem os olhares e sentidos dos participantes para sujeitos e temas, através da troca de experiências, conhecimentos e vivências culturais novas, ora para uns, ora para outros, favorecendo um olhar para si mesmo. A cada ano, a avaliação dos envolvidos apontou para o reoferecimento da ação. Assim, estamos já na sétima edição do projeto e, para facilitar a visualização do que vivenciamos nesse tempo, podemos organizá-lo em três eixos: Ações Afirmativas, Memória e Patrimônio, e

Cultura Negra e Indígena. O eixo das Ações Afirmativas foi o mais intensamente abordado nos primeiros anos, em razão da incipiente experiência na UFRGS e pela necessidade de observar o vivido, ouvir estudantes, técnicos e docentes sobre o novo momento na vida acadêmica, a fim de melhor avaliar e ajustar as ações institucionais, em seus diferentes setores, para adequarem-se à política recém-aprovada. A temática abriu também um espaço de relação com escolas públicas, com o objetivo de tornar conhecida e compreendida a Decisão 134 do Conselho Universitário (Consun) – documento que instituiu o Programa de Ações Afirmativas na UFRGS, em 2007. Em 2010, foram temas de nossas conversas a Educação na Diversidade e Excelência Acadêmica, com o intuito de evidenciar a relação entre a qualificação acadêmica e a diversidade no âmbito da Universidade; Povos Indígenas e Universidade: diálogos interculturais, conversando sobre as contribuições que esse encontro traria para a Academia e para os Povos Indígenas. Foi também um momento de itinerância em nossa Instituição de Ensino, em pequenas reuniões de apresentação do projeto e de engajamento da comunidade universitária nas atividades. Participaram em todas as rodas desse ano estudantes e professores do Instituto de Artes, através da realização de croquis inspirados no momento e da


pintura de um painel artístico no Câmpus Centro que, ainda hoje, registra o Conversações. Em 2011 e 2012, as rodas de conversa foram tornando-se mais contínuas e os participantes mais assíduos e íntimos com os assuntos em questão. O Conversações trouxe para a roda os temas: Indígenas no Ensino Superior, a partir do qual foram relatados e discutidos os desafios do ingresso e da permanência para esses estudantes e para a Universidade e apontadas as perspectivas de acesso ao mercado de trabalho aos finalizantes de cursos de graduação; Experiências Indígenas e Políticas Públicas no Brasil, com reflexões sobre as reivindicações do movimento indígena em relação às políticas públicas, a partir do relato das lideranças indígenas Davi Kopenawa e Maurício Ye’kuana; Pré-Vestibulares de Educação Popular, encontro mediado por quatro cursos pré-vestibulares populares protagonizados por estudantes da UFRGS, no qual a conversa versou sobre ações afirmativas e educação popular; Construindo as Políticas de Ações Afirmativas, espaço de análise crítica sobre demandas correntes para a permanência dos estudantes cotistas na Universidade e apresentação da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas, órgão criado em 2012 com o objetivo de realizar o acompanhamento dos estudantes ingressantes por esse Programa, junto à Pró-Reitoria da Graduação (PROGRAD) e às Comissões de Graduação

(COMGRADs) de cada curso da UFRGS, e de buscar o atendimento de suas necessidades acadêmicas. Já nos recentes anos de 2016 e 2017, acompanhando os movimentos de controle social da política na UFRGS e as alterações da Lei de Cotas (Lei 12.711/12), o Conversações traz à cena os desafios da permanência na Universidade e a temática da acessibilidade. Em 2016, a Pró-Reitoria de Graduação elaborou o Parecer 239, propondo mudanças significativas na política vigente que, caso aprovado, impactaria negativamente no percentual de ingresso de estudantes cotistas em nossa Instituição de Ensino. O fato gerou intensa mobilização social reativa ao Parecer, culminando com a ocupação da Reitoria por estudantes e ativistas sociais, o que possibilitou a abertura de uma agenda de negociação entre as partes e a posterior aprovação, pelo Consun, de emenda ao Parecer, mantendo inalterada a forma de concorrência de candidatos, principal ponto de desacordo na proposta do documento. Na perspectiva de manter viva a atenção sobre aspectos relevantes para as ações afirmativas, o Conversações reuniu alunos da UFRGS e demais interessados para, a partir de um Slam Poesia, realizado por alguns desses estudantes, provocar a troca de experiências e reflexão sobre os Desafios da Permanência na Universidade, sintetizados nos verbos “ser”, “estar”, “resistir”

e “concluir”. Nessa ocasião, foram vários os relatos de estudantes sobre suas expectativas ao chegar na academia, sobre experiências de discriminação, de acolhimento, de encontro com seus pares e sobre formas de vencer os desafios cotidianos até a conclusão do curso. Já em 2017, o projeto reuniu os primeiros Programas de Pós-Graduação a implementarem ações afirmativas em seus cursos de mestrado e doutorado na expectativa de colaborar para o melhoramento e a ampliação dessa política, a partir de relatos sobre o formato da reserva em cada espaço, das questões relevantes no processo de implementação e de acompanhamento dos estudantes e sobre os desafios encontrados nessa caminhada. A participação de estudantes de mestrado e doutorado e de servidores (técnico-administrativos e docentes) vinculados aos Programas de Pós-Graduação enriqueceu sobremaneira o diálogo e trouxe algumas sugestões bastante relevantes para a reedição dos editais. Foi também em 2017 que a temática da acessibilidade para pessoas com deficiência entrou na roda do Conversações. Os encontros Acessibilidade: o que você sabe sobre isso? e Acessibilidade: as pessoas e suas diferenças tiveram como perspectiva provocar a comunidade acadêmica para repensar-se em relação às necessidades de adequação atitudinal, bem como refletir sobre adequações arquitetônicas, curriculares e pedagógi-


cas, entre outras, necessárias diante da crescente presença de pessoas com deficiência na Universidade. Esses encontros foram protagonizados por estudantes, ex-estudantes, técnicos e docentes com deficiência e oportunizaram uma profícua interação entre o DEDS e o Núcleo Incluir, já colocando em prática uma das propostas do evento: tornar mais acessíveis as atividades dessa Instituição. O eixo Memória e Patrimônio foi o fio condutor dos encontros de 2014 e 2015, com o propósito de, a partir de uma abordagem conceitual sobre Memória e Patrimônio, desencadear uma série de encontros sobre aspectos culturais de comunidades negras e indígenas, tendo como protagonistas das conversas os próprios atores sociais que vivenciam essas experiências, cada vez mais presentes na Universidade nos corpos dos estudantes negros, indígenas e de classes populares. No centro da roda, dessa vez, tambores, ervas, funk, samba, arte negra, religiosidade, em Conversações chamados Memória e patrimônio: perspectivas e conceitos; Patrimônio cultural de comunidades quilombolas urbanas; Patrimônio cultural de comunidades quilombolas rurais; Patrimônio cultural de comunidades indígenas; Memória do carnaval de rua de Porto Alegre; e Acervo de artistas, intelectuais e militantes negros como patrimônio da comunidade negra. O eixo Cultura Negra e Indígena esteve sempre presen-

te nas rodas de conversa. Por vezes, um elemento foi destacado, a exemplo dos encontros em que o tema da capoeira e do samba do sul embalaram a prosa. Por outras, o mesmo elemento foi visto de ângulos diferentes, trazido por lideranças ou mestres de conhecimento indígenas e negros, em belíssimos encontros, como o que vivenciamos durante a roda A Tradição de Benzedeiras e Rezadeiras, que ocorreu em 2015, com a participação do Kujã Jorge Kagnãg Garcia, do Território Indígena de Nonoai, de Mãe Maria de Oxum e de Bábà Diba de Iyemonja. Além desses, nos quais a escolha temática destacava o elemento cultural, a presença contínua dos cotistas, independentemente da questão em pauta, carregada de seus corpos, traços, vozes, pontos de vista, demarca a importância desse eixo como transversal a toda a proposta do Conversações. Cabe destacar que o projeto é marcado pela intenção de manter uma relação profunda entre a academia e a sociedade, repensando o lugar da Universidade nos processos inclusivos e impactar, através da ação dialógica estabelecida em todos os momentos dessa ação extensionista, a vida acadêmica e social. Assim, alimentaram a discussão sobre esses e outros temas levantados pelo Conversações gestores, servidores docentes e técnicos da UFRGS, pesquisadores, estudantes cotistas, convidados externos,

a exemplo do professor Valter Silvério, professor da Universidade de São Carlos, lideranças indígenas nacionais, como Marcos Terena, Davi Kopenawa e Maurício Ye’kuana, lideranças negras, mestres de conhecimento tradicional, entre tantos outros colaboradores. A dinâmica estabelecida nos momentos de conversa, a não distinção entre o saber científico e outros saberes e a forma de produzir conhecimento escolhida no Conversações estabelecem o que Boaventura Santos chamou de conhecimento pluriversitário, produzido coletivamente, desafiando a própria forma de produzir conhecimento. Este segundo número da DEDS EM REVISTA convida a uma breve aproximação com o projeto Conversações Afirmativas. Os textos que compõem a publicação, organizados nos eixos do programa, foram gestados no contexto das rodas de conversa, por sujeitos que propuseram temas, conceituaram questões, ilustraram as conversas com poemas e canções, emocionaram, apontaram caminhos. Sem a pretensão de espelhar tudo o que esse projeto proporcionou em termos de conhecimento, engajamento, articulação e afetividade, desejamos uma provocativa e agradável leitura.

Rita Camisolão Diretora DEDS/PROREXT/UFRGS


SUMÁRIO MEMÓRIA E PATRIMÔNIO 08

As memórias são constantemente construídas e ressignificadas por meio de novos posicionamentos estéticos e políticos Iosvaldyr C. Bittencourt Jr.

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O Inhã – Tambor cerimonial Renato Oliveira Soares e Teresa Lucena

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A chegada do tambor na terra Yorùbá Ìdòwú Akínrúlí

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BATUQUE Oliveira Silveira

AÇÕES AFIRMATIVAS 34

REDISCUTINDO RESERVA DE VAGAS NAS UNIVERSIDADES: PARA QUEM? PARA QUÊ? COMO? José Carlos Gomes dos Anjos e Rita de Cássia Camisolão

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Um olhar sobre a presença indígena na UFRGS Patrícia Oliveira Brito

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GOTA DO QUE NÃO SE ESGOTA Cuti


CULTURA NEGRA 56

Palavras que se guardam (e outros presentes para a casa de Momo): experiências e recordações sobre os carnavais de Porto Alegre Marcus Vinícius de Freitas Rosa

66

Nunca fomos periferia: o Funk como expressão cultural negra Pedro Fernando Acosta da Rosa

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Escrita negra: recepção convencional e transformação Ronald Augusto

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PORTO ALEGRE É O CANSAÇO DE SI Marcelo Martins Silva


Deds em Revista:

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO A preocupação preservacionista relacionada à memória e ao patrimônio no Brasil, que se dirigia apenas aos “bens de pedra e cal” (prédios e monumentos históricos), na virada do século XXI, passou a valorizar também o intangível ou imaterial. Esse acervo, que é composto de músicas, danças, rituais, lendas, saberes e fazeres, foi mantido ao longo do tempo por pessoas que sabiam o valor daquilo que estavam preservando. A (co)relação entre memória e patrimônio faz parte do entendimento de todos e todas nós. Ambos os conceitos, aqui entendidos na sua expressão coletiva, embora diferentes, se complementam nas expressões gestuais, de oralidade, como projeto e documento edificado ou não.

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RAMON MOSER / DEDS

Pai Antônio Carlos de Xangô 7 Conversações Afirmativas 2016 – “Conversa de Tambor”


Memória e Patrimônio As memórias são constantemente construídas e ressignificadas por meio de novos posicionamentos estéticos e políticos Iosvaldyr C. Bittencourt Jr. – Antropólogo

Conversações Afirmativas 2014 – “Memória e Patrimônio: perspectivas e conceitos” Atividade com “objetos de memória” RAMON MOSER / DEDS

Iosvaldyr Bittencourt Jr.

As reflexões filosóficas, culturais, históricas e políticas associadas ao fenômeno cognitivo e sociocultural da memória estão atualmente, e cada vez mais, situadas no campo nodal de várias áreas disciplinares como História, Patrimônio, Literatura, Psicanálise, Cinema, Psicologia, Antropologia, Comunicação e Museologia. Entretanto, quando nos referimos às questões ligadas à memória, obviamente elas estão relacionadas a uma série de ideias que vêm à mente. Somos provocados pelas memórias de nossas infâncias, memórias de um pe-


ríodo histórico; memórias de aspectos míticos e rituais corporificados; memórias como capacidade cognitiva; memórias étnico-raciais e memórias

declaração:“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória” (SARAMAGO, 2011). ACERVO DEDS

evocadas pela literatura, enfim, por eventos cotidianos ou amplamente significativos do curso de nossas vidas. Deve ser por essas razões referidas acima que concordamos com o escritor português José Saramago, ao dar a seguinte

Como exercício cultural, a memória ganhou um destaque especial junto aos povos gregos, na antiguidade, considerada primordial nas relações e na produção do conhecimento. Desde então, tem acompanhado a

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trajetória humana, assumindo feições diversas, conforme o contexto cultural e as relações estabelecidas em diferentes sociedades e períodos históricos, de acordo com Bergamaschi (2002). Na Grécia arcaica, a memória constituía-se numa entidade mítica: Mnemosyne, sendo a responsável pelas Musas, as quais, pelo seu canto, inspiravam o poeta, conferindo-lhe a graça da vidência. Seu culto, praticado no interior de confrarias, no exercício de recitações poéticas, constituía atividade restrita e dava ocasiões a que fosse exaltado o poder, reservado à memória, de conceder a certos homens um dom eletivo (VERNANT, 1990, p. 29). Para tanto, o ofício dos aedos era ter o papel de comporem e conhecerem o passado, o presente e o futuro, e, antes de “cantar a verdade”, clamavam pela presença das Musas, quando iniciavam a transmitir as mensagens divinas, com entusiasmo; portanto, era o próprio deus que falava através do poeta. Sabemos que atualmente, conforme o antropólogo francês Joel Candau (2002), especialista em Antropologia da Memória, não pode haver identidade sem memória, bem como a lembrança e o


esquecimento, porque somente ela permite a autoconsciência da duração. Desse modo, não pode haver memória sem identidade, uma vez que o estabelecimento de relações entre estados sucessivos do sujeito é impossível se este não tem, a priori, um conhecimento de que essa cadeia de sequências temporais pode ter significado para ele. Contudo, a memória sabe mais que as próprias pessoas, já que ela preserva o que tem significado extensamente simbólico e afetivo, como escreveu o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1979): “A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim, mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.”

da memória adquiriu dimensões tais que, na “febre e na angústia” mobilizam as pessoas, a fim de agilizá-las na busca de uma memória que delimite identidades e subjetividades (sociais, nacionais, étnicas e culturais), cada vez mais deslocadas e fragmentadas. Nos povos africanos, ao falar da tradição em relação à história, eles referem-se à tradição oral, mas que esta terá validade somente se, ao menos, apoiar-se numa gama imensa da herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Contudo, essa herança ainda não se perdeu e “reside na memória da última geração de grandes depositários, de que se pode dizer são a memória viva da África” (HAMPÂTÉ BÂ, 2010, p. 167). Para o escritor e etnólogo malinês, nas sociedades orais não apenas a importância da função da memória é desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a palavra é mais forte.

maneira de preservar a sabedoria da ancestralidade. Por isso a importância do griot, “contador de histórias”, conforme a atribuição dada pelos franceses aos diélis (sangue, força vital), entre os Bambaras. Desse modo, a palavra transmitida na oralidade conduz a herança ancestral tão valorizada por essa cultura. Nas comunidades africanas e afrodescendentes, as memórias mediadas por narrativas acerca de eventos míticos, de acontecimentos históricos e de eventos sociais significativos, promovidas pelos griots, após serem ouvidas de seus antepassados, depois serão repassadas, a partir do presente, apontando para o futuro. Ressalte-se que, na tradição oral, a palavra tem um poder e um significado divino, tem um compromisso com a verdade e com os ancestrais. Não obstante, os griots não são os únicos guardiões da memória, considerados conservadores e transmissores qualificados dos saberes e das memórias sociais, em África, tanto quanto em diversos contextos socioculturais e territoriais decorrentes da diáspora africana.

Nas questões ligadas ao identitário, para Zilá Bernd, seja de modo individual ou coletivo, a memória torna-se essencial. Ela indaga-se acerca de como afirmar-se como indivíduo ou como cidadão, isto é, como trabalhar a identidade individual e nacional, acrescentando ainda a étnico-racial, “sem conhecer a trajetória de seus ancestrais ou mitos, lendas e narrativas da A valorização da tradicomunidade em que se está ção oral, na África, longe de inserido?” (BERND, 2013, p. De acordo com Hampâté 25). Para Le Goff (1984, p, significar apenas um meio Bâ (2010), considerando-se 46), atualmente, a temática de comunicação, reluz uma as línguas e dialetos da região

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do sul do Saara, no noroeste da África; a tradição oral dos grupos étnicos Bambaras e Fulas, na região do Mali (de onde se originaram os griots, que possuem diversos nomes e funções: dyéli ou diali/dielis, cujo significado é sangue, uma analogia com o organismo vivo), tais como os Doma ou Soma, entre os Bambaras e Mandingas; os Donikeba, “fazedores de conhecimento”, em Fulani, segundo as regiões de Silatigui, Gando ou Tchiorinke, detentores de conhecimento total; os guésséré, entre os Saracolâs; wambabé, entre os Peúles; aouloubé, entre os Tucolores; e guéwel (do árabe qawwal), entre os Uolofes, todos eles são genealogistas, contadores de histórias, músicos, poetas populares, enfim agentes de culturas e de memórias. São conhecidos e venerados, obrigavam-se a respeitar a verdade, sendo a mentira não um simples defeito moral, mas sobretudo uma interdição ritual. Compromisso incondicional do “tradicionalista” é o de discernir, aceitar e saber dizer a verdade. São considerados os herdeiros das palavras sagradas e encantatórias transmitidas pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar às primeiras vibrações sagradas emitidas por Maa, o primeiro

Eduardo Taborda, bolsista do Projeto “Conta Mais”, do Museu da UFRGS, em intervenção artística na roda de conversa sobre memória e patrimônio

homem. Nesse sentido, as práticas sociais reinvestem inteligências imemoriais, astúcias milenares, que remontam aos primeiros instintos animais.

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Por sua vez, Myriam Sepúlveda dos Santos (2013) considera a diferenciação entre a “memória cotidiana ou comunicativa”, diretamente formada por grupos sociais, conforme o estabelecido pelo sociólogo Maurice Halbwachs,


e a “memória cultural”, que seria a relação entre a memória individual e do grupo como um ponto fixo, sendo esta última transmitida ao longo dos séculos, ou seja, a partir da noção de que a cultura pode transmitir aspectos menmônicos por até milhares de anos. Essa segunda perspectiva, por um lado, pode assegurar um lócus geopolítico e histórico-continental em torno de memórias africanas, asiáticas, europeias, latino-americanas etc. Entretanto, a pesquisadora considera que tais aspectos possam vir a colaborar para uma história de longa duração, porém corre o risco de neutralizar o agente social em seus modos de intervenção a fim de modificar sentidos e criar novas formas de representações culturais, sobretudo se permanecer preso às memórias e historicidades imobilizadas no passado. Não obstante, importante tal distinção, a memória é, antes de tudo, um devir humano, um processo, que se apresenta em movimento constante de construção e desconstrução. Como processo, a memória não seria um objetivo a ser atingido, nem uma totalidade a ser alcançada, mas “algo que se persegue e se atinge sempre de forma fragmentá-

ria, inacabada, algo que se situa entre um espaço intervalar entre memória e esquecimento” (BERND, 2013, p. 26). Da mesma forma sugere Homi K. Bhabha (2002), para quem o escombro é a criação de uma forma cuja ausência virtual levanta a questão do que quer dizer começar de novo, no mesmo lugar, como se fosse noutro lugar, sítio adjacente ao desastre histórico ou trauma pessoal. O resto da ruína que sobrevive carrega, igualmente, a memória das torres caídas. Para ele, não temos opções, exceto a de nos interessarmos por construir edifícios; ao mesmo tempo, não temos alternativa, senão situar, em visão panorâmica a partir de nossos edifícios, a visão do Escombro – a fundação de possíveis edifícios, outras fundações, outras palavras outras. (BHABHA, 2002, p, 79)

A memória se faz, também, entre história e esquecimento. Esquecer para Lembrar (1979), obra que trata do último volume das memórias poéticas de Carlos Drummond de Andrade, por meio da qual o escritor reflete acerca do exercício da rememoração, demonstra que, para lembrar, é preciso esquecer, de modo que a lembrança atualize-se em percepção, conforme posto em Matéria e Memória (1999), por Henri Bergson. So-

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bre tais questões é que Paul Ricoeur tem abordado o tema da memória e esquecimento, enquanto intermediários entre tempo e narrativa, em suas obras Tempo e narrativa (1983), O si-mesmo com um outro (1990) e A memória, a história, o esquecimento (2007), sob a perspectiva do estudo da narrativa e da autobiografia. A partir dos anos 90, Ricoeur ocupa-se com a questão do problema da memória, cujas preocupações primordiais dão-se em torno do excesso de memória, por um lado, e, por outro, do esquecimento, sem deixar de ressaltar o que ele denomina de “erros de memória e de esquecimento”. Nesse sentido, Ricoeur contribui para a construção de uma ideia política de uma “justa memória”. Considerando os atos de barbárie perpetrados por segmentos da humanidade (Holocausto judeu; Apartheid, na África do Sul, bem como massacre de Argelinos; massacre de Srebrenica, na antiga Iugoslávia e outros), ele reflete sobre a dificuldade do ato de perdoar, uma vez que “o perdão constitui o horizonte comum da memória, da história e do esquecimento”, sendo esses os três eixos fundamentais de sua obra. Preocupa-se, também, com determinada


mo os jovens, sempre passa a de dos homens vivenciarem a discorrer sobre histórias suas, memória coletivamente. de seus familiares, e de locais De acordo com Zumthor, e de amplas redes de famílias negras associadas aos a palavra pronunciada não territórios negros urbanos. E existe (como o faz a palavra escrita) num contexto purarecordando excessivamente mente verbal; ela participa fatos e eventos do passado, necessariamente de um processo mais amplo, operando A memória, por isso e por acaba por produzir novos sobre uma situação existenoutras razões, é, muitas ve- acontecimentos e novas sincial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os zes, seletiva; e essa seleção gularidades culturais em um corpos dos participantes. viabiliza a própria vida, confor- constante devir criativo. Em (ZUMTHOR, 1993, p. 244) me Meneses apud Bergamas- verdade os acontecimentos chi (2002). Nesse sentido, do passado, quando comparDesse modo, a memória podemos nos apoiar na obra tilhados, têm particular impor- circula entre mentes e corpos Ficções, do escritor argenti- tância nas ações do presente, no âmbito das referidas comuno Jorge Luís Borges (2007), sejam eles reais ou imaginá- nidades tradicionais, uma vez referindo-se ao personagem rios. Dessa maneira, os Funes que seus contextos sociais e Funes, o Memorioso, com sua e os Silvinhos, conforme Leite universos simbólicos são plememória cumulativa e indis- (2002, p. 170), nos trazem as nos em memórias. Parafracriminada, que “lembra tudo” recordações mais relevantes e seando um antigo provérbio e, por isso, fica impossibilita- que são partilhadas por todos, africano, quando falece um do de criar o presente, pois o desdobrando-se em uma “ver- griot afro-brasileiro, como Nilo já vivido passa a ser rememo- são acordada do passado”. Feijó, Giba Giba, José Alves Birado em toda a sua plenitude tencourt (Nego Lua), Adão AlPor isso, em comunidades ves de Oliveira (Lelé), Profª Zee detalhamento. Esse personagem literário permite refletir tradicionais, como as indíge- nóbia de Deus, Walter Calixto sobre um personagem urbano nas, quilombolas, ribeirinhas, Ferreira (Borel), Maria Helena de Porto Alegre, morador por carnavalescas, jongadeiras, Vargas, Oliveira Silveira, denmuitos anos na Baronesa do irmandades religiosas, conga- tre outros; ou muitos dos mesGravataí, considerada antigo dos e outras, os muitos Funes tres de capoeira, carnavalesterritório negro, chamado Sil- e Silvinhos são imprescindí- cos, sambistas, congadeiros, vio Aquino (Silvinho), 76 anos, veis, enquanto guardiões da agentes religiosos de religião dono de ampla memória acer- memória, griots urbanos ou ru- afro-brasileira ou intelectuais ca da cultura negra e das ge- rais, homens e mulheres que negros, temos como consenealogias de famílias negras auxiliam na preservação da quência imediata a perda de de Porto Alegre. Este, ao par- memória por meios de vetores saberes e de memórias, tais ticipar de eventos da comuni- orais e performáticos. Os cha- quais bibliotecas humanas dade negra, quando encontra mados, por Pierre Nora (1993, que se vão, certamente enuma que outra pessoa adulta p.18), “homens-memória”, ne- cantadas. ou da terceira idade, e mes- cessários diante da dificuldaprática historiográfica e com o frenesi “contemporâneo das celebrações memorialísticas que usam e abusam da instrumentalização da lembrança e do esquecimento” (SILVA, 2015, p. 208).

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Como ocorre nas referidas comunidades tradicionais, elas não prescindem da música, da dança, do ritmo, das cores, dos instrumentos de percussão, da palavra viva, a fim de reafirmar e preservar suas memórias. Estes homens e mulheres detentores de saberes e fazeres imemoriais são importantes mediadores entre o passado e o presente, enquanto portadores da memória e, no sentido colocado por Gilles Deleuze, “o passado da memória é, pois, duplamente relativo: relativo ao presente que foi, mas tam-

bém relativo ao presente com referência ao que é passado”, de maneira a ser uma memória que é recomposta com os presentes – crianças, jovens, adultos e velhos. A memória não está dentro deles, antes são eles que se movem dentro de uma memória-mundo (DELEUZE, 1985). Em termos moderno-contemporâneos, são diversas as teorias relacionadas à memória, com diversos entendimentos e conceitos. Nesse sentido, é importante também refletir e reter sobre as propos-

tas conceituais de determinados autores, como o sociólogo francês Maurice Halbwachs, que foi o primeiro a cunhar o termo “Memória Coletiva” e, ao mesmo tempo, deu a ele um peso teórico, embora muitos autores já trabalhassem com o termo memória. Tal perspectiva retira o peso dos processos psíquicos para a compreensão da memória e traz os processos e construções sociais como alicerces para a formação e perpetuação da memória. Diferentemente,

o

filó-

ACERVO DEDS

Alunas da disciplina Educação Patrimonial, do curso de Licenciatura em História

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sofo francês Henri Bergson desenvolveu uma teoria da memória que se alicerçava nas percepções e imagens da consciência, evacuando os fatores sociais desse processo, ao mesmo tempo em que defendeu a intuição da experiência imediata contra as teorias deterministas do conhecimento. Ao contrário, a tese central da obra póstuma de Halbawchs, Memória Coletiva, consiste em afirmar ser impossível conceber o problema da evocação e lembrança sem considerar os quadros sociais como pontos de referências para a memória. Portanto, mais do que faculdade humana interior, a memória era marcada por um funcionamento coletivo. Para o sociólogo Maurice Halbwachs apud Graeff (2010), os quadros sociais são “instrumentos utilizados pela memória coletiva para reconstruir uma imagem do passado, a qual está de acordo em cada época com a mentalidade predominante da sociedade”. Nesse sentido, as construções de pessoas e grupos relacionadas a um passado, lugares, datas, palavras, espaços e formas de linguagens seriam representações partilhadas por todos aqueles que têm lembranças. Para ele, a memória social não seria o que aconteceu no passado,

mas uma construção coletiva do passado realizada pelos indivíduos de determinadas coletividades. Como bem expressa, tais experiências, um provérbio nicongo, em África, “MáKwenda!, MáKwisa!, isto é, “Aquilo que se passa no agora, retornará depois!” Walter Benjamin, judeu-alemão, escritor, filósofo e crítico de ideias, é outro pensador que se debruçou sobre as questões ligadas à memória. A memória, para o filósofo, não é simplesmente a faculdade de reter conhecimentos e fatos vividos no passado, mas a capacidade de reconhecer as impressões deixadas por eles e as (re)ssignificar no presente, produzindo sobre elas um novo sentido e com elas estabelecendo uma nova relação (VIEIRA, 2007), a partir da ênfase do resgate de vestígios (resíduos, rastros, fragmentos, traços) que permitem iluminar nosso presente. A distinção feita por Walter Benjamin entre memória voluntária e a memória involuntária tem sua inspiração em Marcel Proust (2008), autor francês da obra Em Busca do Tempo Perdido, na qual o narrador relata suas lembranças de infância, como o episódio em que aceita uma xícara de chá com biscoito Madeleine,

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oferecido por sua mãe. Ao prová-lo, o herói tem um sobressalto e sente “um prazer delicioso” invadi-lo. Ocorre, então, um despertar por uma experiência sensorial semelhante à que tinha quando sua tia-avó lhe oferecia as mesmas iguarias nas manhãs de domingo antes da missa, em Combray. Tal experiência nos oferece uma dimensão poética, a partir das emoções e recordações suscitadas por sensações evocadas por objetos, alimentos, prazeres gastronômicos, odores, sons, hábitos perdidos do passado com a evidência do presente, assim operando uma fusão entre um tempo e outro. Por memória voluntária, compreende toda a sorte de vivências passadas que poderiam ser acessíveis arbitrariamente pelo intelecto, desse modo estaria mais relacionada com a capacidade de desagregação. Por sua vez, a memória involuntária, conforme Benjamin, remete o indivíduo a outra dimensão temporal, ampla e indeterminada, na qual o espaço e o tempo são contemplados pela passagem da tradição. Nela, os conteúdos poderiam ser acessados espontaneamente, valendo-se de um fluxo ininterrupto de pensamentos não contamina-


dos pelo aparente discurso da memória oficial. Por isso, o escritor propõe a ressignificação da História, ou seja, de uma história a contrapelo, à luz das reminiscências. Nesse sentido, evocar sobre aquilo que não tem nome, acerca do anônimo, sobre aquilo que não deixa rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste. Por consequência, os narradores e os historiadores deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Transmitir o inenarrável, em uma fidelidade ao passado e aos mortos, sobretudo quando desconhecemos seu nome e seu sentido. Nesse sentido, Leda Martins (2003) demonstra como nos congados brasileiros são recriadas as cosmologias e rituais mágico-religiosos, assim como são evocadas experiências diversas subjacentes à história oficial nos países de destino. Essa recriação e reminiscências de uma ancestral organização remete-nos ao papel e função do poder real nas sociedades africanas transplantadas para as Américas, nas quais os reis, em sua suprema autoridade, representavam segundo Thompson

(1984, p. 109), “o elo maior de mediação entre povo, os ancestrais e as divindades”. (MARTINS, 2003, p. 71)

Esses processos assemelham-se aos que ocorrem com os carnavalescos, quilombolas, imigrantes, agentes religiosos nos cultos afro-brasileiros, refugiados e outros. Para Gagnebin, esse conceito enfático acerca da experiência permite, assim, a escritura de uma anti-história, porque, ao invés de encerrar o passado numa interpretação definitiva, reafirma a abertura de seu sentido, ou caráter inacabado. No entanto, articula-se a estruturas sociais atualmente extintas, o que torna uma reconstrução voluntária de suas condições de possibilidade (GAGNEBIN, 1982, p. 61).

o texto da história e da narrativa mitopoética”. Desse modo, seguem fundando os logos e gnoses comuns e, ao mesmo tempo, distintos universos sociais, religiosos e culturais vinculados ao batuque, maracatu, candomblé, jongo, tambor de mina, capoeira, congadas, samba e demais manifestações negras. Universos sociais e culturais considerados rizomas negros que reterritorializam e transcriam as culturas africanas na cartografia da nação brasileira (MARTINS, 1997, p. 21).

E, por sua vez, Pierre Nora, historiador francês, nascido em Paris, em 1931, passou a refletir acerca da memória sob muitos aspectos, dentre eles a problemática dos “Lugares da memória”. Para o autor, no Da mesma forma, em contexto da sociedade pósprocessos denominados de -industrial e dominada pelos afrografias da memória, como mass-media, os lugares de ocorrem nos contextos mito- memória surgem e vivem do poéticos, históricos, sociais sentimento que não há mee culturais associados às di- mória espontânea, e faz-se versas comunidades negras necessário criar arquivos, acubrasileiras e suas respectivas mular vestígios, testemunhos, práticas culturais performá- memoriais, manter aniversáticas, de acordo com Leda rios, organizar celebrações, Martins (1997), em que se notariar atas, sendo que tais desenvolvem tapeçarias dis- operações não são naturais. O cursivas, se entrelaçam a dic- lugar de memória supõe uma ção da oralidade sublinhada realidade tangível e apreenpela memória curvilínea e a sível, inscrita no espaço, no letra da escritura, “trançando tempo, na linguagem e na

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tradição; e uma realidade pu- boração e em um constante ramente simbólica, portadora devir. É mediante a memória, de acordo com Roland Walter, de história. que se cria um local de cultura O Lugar de memória, en- com suas raízes e suas rotas, tão, caracteriza-se por toda “local este que contém a posunidade significativa, de modo sibilidade de substituir o desematerial ou ideal, que a vonta- jo alienador, pelo outro, pelo de dos homens ou o trabalho seu próprio” (WALTER, 2009, do tempo converteu em ele- p. 110), de modo que o premento simbólico do patrimô- sente não seja simplesmennio, memorial de uma comuni- te uma memória saudosista dade qualquer (NORA, 1997). nem uma repetição piegas do Entretanto, o historiador reco- passado, mas sua retomada nhece que a memória é a vida transformadora. sempre carregada por grupos Por isso, Paul Gilroy vivos, em permanente evolução e abertos à dialética da (2001) associa as identidades lembrança e do esquecimen- e culturas negras à experiênto, suscetível a manipulações cia e à memória da escravidão e repentinas revitalizações; ao passo que a história trata da “reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais” (NORA, 1993, p. 9). Por outro lado, Nora adverte que nem todas as sociedades confinam seus saberes apenas em livros, arquivos, museus e bibliotecas (lieux de mémoire), mas resguardam, nutrem e veiculam seus repertórios em outros ambientes de memória (milieux de mémoire), suas práticas performáticas. A memória, por tudo que se tem pensado e dito, é sempre resultado de dinâmicas culturais diversas em ela-

tos nodais importantes em sua história comum e sua memória social, por meio de diferentes práticas religiosas, musicais, cognitivas, imaginárias, culturais, performativas, políticas e estéticas que, de algum modo, são necessárias para inventar, manter e renovar as identidades afro-brasileiras.

São memórias-posicionadas do ponto de vista político, de acordo com suas demandas contemporâneas, vinculadas à ancestralidade afro-brasileira, aos saberes e fazeres, e à hermenêutica histórica acerca de seus eventos e sujeitos sociais. As memóna diáspora africana no Novo rias, portanto, são construíMundo e aos processos de das a partir de universos soracialização dela decorrente ciais e simbólicos singulares, e, contudo, por meio de for- constantemente alimentadas mas sociais descentradas, por símbolos, representações fragmentadas e, por certo, em e interpretações advindas do uma pluralidade de espaços passado histórico, tanto quande memória ou de etnotextos to são ressignificadas, a parquilombolas, carnavalescos tir das inúmeras e variadas ou sambistas, dos clubes relações sociais coetâneas. negros, de capoeiristas, mu- É possível concluir que a melheres negras, movimentos mória é um dos elementos sociais negros, congadeiros, fundamentais na constituição religiosos afro-brasileiros, do sentimento de identidade, funk, hip-hop e outros. Nesse em termos contemporâneos, caso, trata-se de uma “me- seja ela individual ou coletiva, mória viva de um mesmo que bem como na conformação da é mutável”, conforme Gilroy política, da estética e da cons(2001, p. 370). Esses grupos ciência acerca do um pertencidirigem a consciência dos mento étnico-racial. seus membros de volta a pon-

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De forma adequada, inovadora e singular a escritora mineira Conceição Evaristo ressalta os atos e as experiências negras mediadas pela corporeidade e pelas condições ontológicas negro-brasileiras; em suas enunciações narrativas de negros e de negras acerca de suas experiências, por meio das quais são incorporadas diversas falas que mantêm muitas estórias, enquanto outras são inventadas ou reinventadas. Somos produtos e agentes destes falares, lugares, memórias e narrativas, sejam eles de outrora ou contemporâneos, e que ocorrem entre o vivido e o narrado das possibilidades de emergência das “escrevivências”, uma vez que entre o que permanece existem elementos que se perdem, enquanto outros se acrescentam, além daqueles que são inventados. Conforme Conceição Evaristo,

viver se con(fundem), e com ela prosseguimos nos diversos atos das nossas “escrevivências”, em geral, sempre partindo das estórias, narrativas e memórias tradicionais. Essas “escrevivências” também invadem as narrativas na modernidade, interpondo-se ao agir comunicativo, performativo e político dos negros na contemporaneidade. As memórias, portanto, são construídas, inventadas, ressignificadas e performaticamente atualizadas na vida e na escrita, que são vivências e, ao mesmo tempo, são escritas nas quais algo se perde, algo se inventa e algo se acrescenta. Com isso, sempre ganhamos outros e novos sentidos, revitalizações, engajamentos, recomposições coetâneas e novos posicionamentos políticos.

Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência (EVARISTO, 2016, P. 7).

Assim, segundo a escritora mineira, a escrita e o

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Memória e Patrimônio O INHÃ – TAMBOR CERIMONIAL Renato Beabá – Mestre de Tradição Teresa Lucena – Artista Visual e Arte Educadora

Conversações Afirmativas 2016 – “Conversa de Tambor” RAMON MOSER / DEDS

Mestre Renato Beabá

A Tradição do Tambor foi o tema da roda de conversa do projeto de extensão “Conversações Afirmativas” que ocorreu no dia 21 de outubro de 2016. O objetivo era partilhar conhecimentos e saberes de tradições complementares – africana e afro-gaúcha – sobre manufaturas e usos dos tambores Inhã e Batá. O evento contou com a participação de Renato Beabá, Noé do Bará, Xaninho do Bará, Antônio Carlos de Xangô, Oná Abyàse e do músico nigeriano Ìdòwú Akínrúlí. Eles compartilharam com o público suas trajetórias familiares e religiosas no


RAMON MOSER / DEDS

vizados e hoje ainda mantêm-se vivos pelas mãos de hábeis artesãos e tamboreiros. Segundo Renato Oliveira Soares (Mestre Renato Beabá), um dos últimos mestres na construção de tambores 1 Yorùbá:

artesanais no Rio Grande do Sul, e um dos poucos do Brasil, o Inhã é um tambor cerimonial. Podemos conhecer mais sobre a história desse tambor, e do próprio Mestre Renato, através de suas palavras, que transcrevemos a seguir: Acredito que o tambor é o maior dicionário implícito da Tradição Africana, ligado diretamente ao coletivo imaginário de suas expressões culturais. É a ferramenta chave para desvendarmos ações e comportamentos de cada grupo, pois, assim como o seu formato demarca sua procedência, seu ritmo é construído através de vocábulos, dando-lhe vida própria.

O tambor de dois lados, de nome Inhã ou Batacotô, define sua função com o uso de uma das extremidades: o lado de boca maior, relacionado com o mundo real, material; o lado de boca menor, relacionado com o mundo espiritual, imaginário. Reforçando a interpretação africana da Criação através dos quatro elementos, que multiplicados entre si dão origem a outro elemento vital, e ainda utilizando o exemplo do tambor para dar uma explicação a tais fatos, pode-se dizer que a união de potencialidades diferentes (o couro da pele do animal e o tronco de árvore, vegetal) possibilita que uma terceira potencialidade manifeste-se através do som, ocorrendo um diálogo entre o

um dos grupos étnicos do continente africano

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ARQUIVO PESSOAL

aprendizado dos tambores. De origem Yorùbá1 , os tambores chegaram ao Rio Grande do Sul como conhecimento trazido pelos africanos escra-

Teresa Lucena

mundo real e o imaginário. O tambor é um instrumento de seriedade e de respeito, utilizado como forma de comunicação, que faz despertar sensações de prazer, podendo remeter-nos à nossa ancestralidade. O imaginário influencia os comportamentos socioantropológicos dos envolvidos. No entanto, essa representação está explícita em símbolos e sinais comuns a esses grupos, expressando informações sobre os indivíduos e de como eles lidam com o meio ambiente. O tambor é a ferramenta utilizada na socialização de costumes e tradições dos grupos étnicos de origem africana, e essa forma de ensinamento “informal” é utilizada para transmitir valores étnicos e sociais por gerações.


Educação através dos tam- co onde os ventos de inverno quase me arremessavam de bores – por Renato Beabá seu dorso. O tambor é uma caixa Eu e meus irmãos amarde mistérios que mantém, na sua consistência (construção rávamos a rede de dormir no e finalização), a informação seu tronco para nos balançar, necessária para dar continui- em uma de suas forquilhas dade à cosmovisão africana, montávamos a nossa casa ou iniciação e transformação da árvore. Minhas irmãs trado novo mundo, devido à sua ziam ovos fritos, gemadas das relação de doação e troca com galinhas e patos criados no terreno, fazíamos verdadeiros o meio ambiente. piqueniques sob suas somA minha iniciação nos bras, comendo laranjas, limas tambores, não lembro com e uvas plantadas ali. detalhes como foi, pois, desde Escondíamo-nos atrás muito cedo, já vivia em contato com os mestres da arte. do tronco do abacateiro para Lembro-me de Mestre Paulo caçar passarinhos e, de vez dizendo: “Tu sabes o tempo em quando, víamos passar de uma árvore sair de uma um lagarto despreocupado semente, crescer, dar frutos e pelo pátio. Eu e meu irmão depois morrer? Essa é a dura- Vanderlei éramos muito arteição do teu aprendizado.” ros na nossa meninice, então Na tradição africana, todo essa árvore era instrumento e mundo é iniciado, ninguém é espectador do nosso aprenditerminado. O aprendizado não zado. termina nunca. Termina um Minha avó Siza, mãe de aprendizado e começa outro. minha mãe, chamava nossa Aquele velho tambor atenção nos demonstrando do tronco do abacateiro era hábitos naquele frágil pé de minha ferramenta para trans- abacateiro. Devido às nossas mitir ensinamentos de meus constantes proezas em cima ancestrais para as futuras dele, nos dizia: “Tá vendo esta gerações. Envolvido em misté- arvorezinha que está com o rios e misticismo, eu vi crescer galho torto? É que nem gente, aquela árvore, até mesmo dar tem que arrumá-lo enquanto é os primeiros frutos. Eu a esca- pequeno, porque depois não lava nos seus oito metros de tem jeito, cresce torto.” Então altura, à beira de um barran- amarrava uma varetinha na

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pequena árvore e cuidava das nossas artes. Quando esse abacateiro já era grande o bastante para nos fazer sombra, minha mãe me botava com meu irmão de castigo embaixo dele, um de frente para o outro, refletindo sobre nossos atos, para que aprendêssemos a brincar juntos ou esperar que os abacates amadurecessem, caindo sobre nossas cabeças, abrindo-as e assim, quem sabe, entrasse algum juízo. Esse abacateiro envelheceu antes de mim e um temporal o derrubou. Como naquele tempo tudo tinha utilidade, peguei aquele tronco para fazer um tambor, porém, mesmo adulto, nunca era tarde para aprender os ensinamentos de meu pai e mestre, que me dizia: “Tá vendo este tronco que carrega as marcas das cordas e pregos que ficaram encravados nele durante anos, fazendo parte da árvore? São iguais às pessoas que você fez alguma desfeita e que ficam marcas profundas gravadas em seu peito, que você deve procurá-las para desfazer o mal. E saiba que, assim como o tronco que você esculpe, lixa ou remenda, a marca fica ali gravada, podendo até diminuir de tamanho ou formato, mas não desaparece, às vezes rea-


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Oná Abyàse Rodrigo, Alabê

parecendo com o tempo, é assim que ela fica nas pessoas que te desculpam, bem pequena, quase desaparecendo, mas nunca mais sai. Outras se transformam em feridas que, às vezes, crescem, machucando as outras à sua volta e nunca mais se curam.” Mestre Paulo ensinou-me a educar através da música, dando axé de fala2 a esse tronco de abacateiro que levo a todos os lugares, para que ele conte a nossa história. Esse tambor agora é a ferramenta para passar valores da minha educação para meus filhos e discípulos, que ensinarão aos filhos dos filhos de meus filhos, conforme dizia 2 Axé

meu pai e os pais de meus pais, como foi desde o início, e vendo a forma que encontramos de comunicarmo-nos em essência. Por isso, esse caminho é um compromisso firmado antes mesmo de nascermos e, se não o fizermos, envergonharemos nossos ancestrais. O tambor tem o poder de advertir, prever situações, ligando um ente do passado longínquo, da iniciação da humanidade, ao nosso cotidiano. Os mestres desses saberes contam suas vivências para seus aprendizes para que eles possam cumprir seu papel dentro do grupo e na vida, seja social, cultural, po-

de fala: permissão para que o Orixá se manifeste

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lítica ou religiosa. Essa prática passa a ser sua, a partir desse ensinamento. O conhecimento é um conceito do saber. Porém, o saber é a prática de vivências e transmissões do indivíduo e seus antepassados. A participação de todos os integrantes do grupo é importante para o processo de produção. Quando participantes do grupo encontram-se concentrados em realizar diversas atividades direcionadas para a confecção de uma peça, o tambor, já está iniciado o ritual sagrado.


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Tambores utilizados na ambientação da roda de conversa

O Tambor Inhã O Inhã é um instrumento de percussão, feito em tronco, com extremidades de tamanhos diferentes, em formato de cone, sendo que cada uma das extremidades é revestida em couro, que, por sua vez, é preso com aros de couro ou ferro, esticando as cordas de couro ou nylon. O toque ou ritmo do tambor possui o elemento invocatório e é tocado com ambas as mãos ou com agadavis (varetas), colocado no sentido horizontal sobre o colo. Atualmente, o mais comum é colocá-lo entre as pernas e tocar 3

somente o lado maior. Antiga- uma família de três tambores, mente, tocavam-se ambos os e essa família ganha o nome lados ao mesmo tempo. de Batá. Quando é tocado para o sagrado, ganha o nome O Inhã é a representação de Inhã. No Rio Grande do Sul, do sagrado, sendo que cada ele é conhecido somente pelo tambor possui um elemento nome de Inhã, devido à sua espiritual, no qual o tambor utilização somente no cerimoserá a veste de um Orixá. Na nial, seguindo uma série de mitologia africana, o tambor preceitos religiosos. Inhã é um presente do Divino ao Orixá Xangô, em especial. Nos rituais de matriz afriDesse tambor originam-se cana nas Américas, cada um todos os outros, explicando a dos três tambores dessa famírealidade e os fundamentos lia ganha um nome e um soda tradição africana de forma brenome, de acordo com cada filosófica. Ilê3 , em geral, sendo o seguinte: o primeiro tambor que perConhecimento trazido de gunta e direciona o ritmo em África, o tambor Inhã surge em uma batida de marcação gavários países da América. Em nha o nome de Yan; o segundo alguns lugares é tocado em tambor, que intermedia o diá-

Ilê – casa de Santo

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logo, ganha o nome de Melé e preenche os espaços vários da marcação; e o terceiro tambor, de resposta e de variação, ganha o nome de Oncó. Acredito que a perseguição ao culto de matriz africana e ao ritual do tambor pelo estado racista e escravocrata do Rio Grande do Sul provocou um processo de readaptação na sua confecção, modificando-se em muitos sentidos, sem perder a sua essência, mas levando ao esquecimento de algumas práticas.

Não são raras as vezes que, em terreiros de comunidades populares, o número de tamboreiros na volta dos tambores ou do pagodô4 é grande, aguardando a permissão do Ogã-Ilu ou alabê5 responsável, para que possam pegar o axé do tambor. O contato que se faz com indivíduos que tem uma visão

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Pela falta de tamboreiro e pelo fato de ser o maior compromisso do fazer sagrado, o culto resume-se a dois tambo-

res, ou um tambor na sua dupla utilização, cada vez mais acontecendo a substituição do tambor Inhã pelo irmão Ilu, que faz parte da família, mas ganha esse nome no estado. A diferença entre o Inhã e o Ilu é que este tem as duas extremidades do mesmo tamanho.

Pai Xaninho do Bará com o Inhã. 4 Pagodô: 5 Ogã-Ilu

local mais elevado, uma espécie de palco, onde ficam os alabês ou alabê: chefe dos tocadores de atabaque

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teocêntrica do mundo tem provocado uma desestruturação espiritual, intervindo na tradição hereditária e provocando a perda de sua identidade étnica, inclusive levando à extinção de certos rituais que antecedem a sua utilização. Há muitos anos atrás visualizei o tambor Inhã, em uma terreira da Zona Norte da capital, que era um tacho de latão. Eu comecei a confeccioná-lo, então, a partir da oralidade de velhos guardiões que o tinham na memória. Passei a conhecer histórias e mitologias a partir de minhas vivências e aprendi que elas completavam-se com o que eu ouvia nos terreiros de Nação, o que foi constituindo-se em um grande livro de


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Pai Antônio Carlos de Xangô, Ogã de Porto Alegre, saudando os orixás durante a roda de conversa

saberes orais. Estavam aí pre- milação de novos conceitos sentes os saberes de Jejes, influenciados pela cultura exJeje-Ijexás, Cabindas, Oiós e terna. Grefes6. Os rituais iniciam com uma Na fala de alguns mestres, preparação e pedido de peresse aprendizado baseia-se missão aos guardiões, abertuem saber a mitologia do tam- ra de caminhos e harmonizabor, em várias passagens, ex- ção com a natureza. Faz parte plicando e dando significado à desse ritual escolher e colher realidade centrada em valores o tronco, preparando-o dentro humanos. É difícil definir a da água, ocando-o e prepaprocedência do tambor Inhã rando sua parte externa em e seus rituais de confecção, um processo de extrema paporém o relato de seus guar- ciência, malhando o ferro, fordiões afirma que esse tam- mando os anéis, as etapas de bor fazia-se presente nessas trabalho do couro, conectando diversas nações religiosas. os elementos vegetal, animal Com o passar do tempo, a sua e mineral, as amarrações de transformação foi conjunta, corda para esticar o couro. levando ao desaparecimento Muitos mestres dizem que de muitas práticas e à assi6

existe uma madeira específica para fazer o tambor, como, por exemplo, o cedro, de cor avermelhada ou rosa. É encantada e nobre. Ou, uma árvore africana sagrada, de nome Iroco. Outros dizem que deve ser de madeira de qualidade, pois a sacralização dá-se no quarto de Santo, quando o tambor ganha vida com o axé de fala nas mãos do tamboreiro, que unifica e torna-se vivo no mundo dos Orixás, numa ligação de vida e morte. Na fala de muitos mestres, o tambor Inhã consagrado não sai do Ilê, e quando um guardião faz a sua passagem, o seu tambor deve ser despachado em ritual fúnebre (Eresum), devolvendo aos Orixás as energias

Jejes, Jeje-Ijexás, Cabindas, Oiós e Grefes: tradições da religiosidade afro-brasileira

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ça do porto fluvial em Porto Alegre, percebeu um fenômeno: muitas mercadorias que chegavam de navio eram transportadas em barricas (tonéis de madeira) que começaram a ser transformadas em tambores pelos batuqueiA ausência desse tambor ros. Muitos dos estivadores e de sua prática leva com ela eram negros das comunida-

da natureza. Por tal motivo, esse tambor deve ser tocado somente pelo seu dono e, ao menos, uma vez no ano, em uma celebração, sendo servido um amalá7 aos convidados.

fundamentos educacionais da tradição e da religiosidade afro-gaúcha. O tambor é um elemento de ligação cósmica, de percepção do movimento transitório e circular da Terra: a essência, o cheiro de Mieró (banho de ervas), o corte da madeira, o transcender da roda, movimentando a vida, a presença da Mãe Obá, na circularidade do Batuque.

O tambor, independentemente da manifestação, é o responsável pela harmonia presente, tornando-se um grande captador e transmissor de energias, conduzindo tudo através da fala de seu ritmo. O tambor torna-se um mensageiro e tradutor do diálogo entre os Orixás e os seres humanos. O Ogã (tamboreiro de religião) tem uma conexão direta com os Orixás através das rezas.

des populares, nesse trabalho braçal. A maioria também era de religião de matriz africana. Muitas dessas barricas eram descartadas no porto e logo começaram a ser ocupadas nos terreiros, devido ao seu feitio e à facilidade de obtenção e, de certa forma, até à sua estética. Com isso, alguns rituais começaram a ser abandonados devido à dificuldade de obtenção do tronco e, sem perceber o perigo que se tem em queimar etapas, acabou provocando-se o esquecimento de fundamentos tradicionais e o desaparecimento do tambor Inhã.

Com a afirmação do tambor Ilu e de rituais mais simples, e a permissão do uso em outros cultos brasileiros que surgiam, assim como a substituição dos barris nos navios, logo surgem novas alternativas de confecção, como o laBabá Ivanoé do Bará re- tão e o PVC de cano. Cada vez lata que ainda viu tambores mais o negro da tradição do feitos em tronco na década de tambor torna-se inconsciente 1980. Porém, com a presen7 Amalá:

comida oferecida a um Orixá

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da sua identidade, sofrendo um processo de aculturamento. Frente a tudo isso, atualmente é necessária a afirmação dessa educação, em parceria com a universidade, que hoje tem setores comprometidos com a afirmação de valores hereditários importantes para a manutenção da nossa identidade negra. A confecção do tambor Inhã em tronco é parte e um dos últimos registros dessa nossa história no estado do Rio Grande do Sul.


Memória e Patrimônio A chegada do tambor na terra Yorùbá Ìdòwú Akínrúlí – Dançarino, Músico e Compositor

Conversações Afirmativas 2016 – “Conversa de Tambor” Ìdòwú Akínrúlí apresenta o toque do batá conforme tradição nigeriana

RAMON MOSER / DEDS

Pelas histórias contadas pelos mais velhos da nossa aldeia, antigamente o nosso meio de comunicação era através do agogô ifá1. Um dia, Olódùmarè2 chamou todos os reis das aldeias (que naquela época eram os orixás) e informou que iria chegar, em três meses, alguém trazendo uma coisa muito importante para o mundo e que deveria ser muito bem recebido. Eles voltaram para a terra, ansiosos para receberem essa visita. Passou o primeiro mês e ninguém apareceu. Passou o segundo mês e novamente ninguém apareceu, fazendo com que alguns reis desistissem de esperar. Nos últimos dias do terceiro mês, um dos mensageiros da aldeia de Ṣàngó3 entrou

Ìdòwú Akínrúlí


no palácio do rei dizendo que um bêbado estava entrando na aldeia e perguntando o que deveria fazer com ele. Na cultura Yorùbá4, quando chega alguma visita de fora, independentemente da missão, há famílias que recebem e cuidam desses estrangeiros que chegam. O mensageiro pensou que o rei mandaria levar o bêbado para os cuidados de uma dessas famílias, mas se surpreendeu quando o rei mandou trazer o bêbado para o palácio para falar com ele. O rei conversou com o bêbado e ordenou que dessem comida e banho e tudo que ele queria.

árvore e a pele de antílope. O Olódùmarè havia dito sobre a visita que traria algo importanrei tentou interromper: – Olá irmão, queria falar comi- te para o mundo e ficou feliz go... sabe que está no palácio porque soube receber essa e isso que está fazendo não é pessoa na aldeia dele. O rei permitido… comemorou a tocar o tambor Mas não adiantou. O mensabem alto e as pessoas do lado geiro só parou quando termide fora da aldeia começaram a nou o que estava fazendo, e, ouvir e, curiosos, foram entranao terminar, entregou um tamdo devagarinho no palácio : bor para o rei dizendo: – Esse é o Bàtá, o primeiro tambor do mundo. Kábiyèsi o5!, esse é um presente para você.

O rei olhou e não entendeu o que era, pois, naquela época, não havia nada parecido com tambor, e o tambor não ficou nada atrativo por causa da estrutura e da cor.

O bêbado ficou hospedado no palácio durante três dias. O visitante pegou de volta, No terceiro dia, o visitante passou anil no corpo do tamanunciou que já estava de par- bor, fazendo ele ficar todo azul tida. O rei fez as rezas para ele e muito mais bonito, chamanseguir a viagem em proteção do a atenção do rei. Em seguido Olódùmarè e o presenteou da, mostrou como tocar o tamcom uma pele de antílope, bor e ensinou as palavras dos caso ele sentisse frio durante toques. O rei ficou muito feliz sua viagem, e um tronco de tocando e dançando na aldeia. árvore, caso precisasse fazer Para mostrar gratidão pelo prefogo. Ao receber esses presen- sente recebido, o rei quis pretes, o visitante pediu para falar sentear o visitante com o seu a sós com o rei, pedindo que os machado, mas, ao se virar, o serviçais saíssem. O rei orde- visitante já não estava mais ali. nou que todos saíssem e, em Havia desaparecido. seguida, o visitante começou a Então o rei lembrou do que sujar a aldeia com o tronco de 1 Instrumento musical utilizado no culto do ifá 2 Deus superior, aquele que criou o mundo para a cultura Yorubá

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Orixá que viveu na terra Yorubá

Um dos grupos étnicos que existem na Nigéria 4

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Saudação ao rei

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– Kábiyèsi o! Kábiyèsi o!! Ki Adé Pé̩ lori o! Ki Bàtà Pé̩ Lé̩sẹ6, festejando junto com o rei.

Quando os outros orixás ficaram sabendo do tambor, foram até a aldeia comemorar junto e pediram para que o rei ensinasse como fazer um tambor, pois todos queriam para suas aldeias. Ṣàngó disse: – Vou mostrar como fazer, porém o Bàtá será meu tambor.

Por isso, em qualquer lugar que Ṣàngó vai, sempre tem um Ayàn7 com o Bàtá seguindo ele. Surgiram assim outros tipos de tambores através do tambor Bàtá. Foi assim que chegou o tambor no mundo, através do povo Yorùbá.

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Saudações

Família que faz e toca tambor na terra Yorùbá 7


Memória e Patrimônio BATUQUE Oliveira Silveira – Livro “Roteiro dos Tantãs” - 1981

Batuque tuque tuque todo o muque no tambor.

Puxaram o corpo cá pra longe mas a alma espichou e as raízes crisparam-se lá e o caule é este tambor e a seiva, este som de cratera que a gente vai fundo buscar.

Batuque tuque tuque todo o muque no tambor.

Esses negros loucos batendo já com a cor de Exu-Bará nos dedos, couro contra couro, mas couro de inhã é mais forte, lá vai seu ronco de trovoada e a terra vai rachar em fendas


- toque de Xangô.

Batuque tuque tuque todo o muque no tambor.

IRENE SANTOS

Oliveira Silveira

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Deds em Revista:

AÇÕES AFIRMATIVAS

A preocupação dos movimentos sociais organizados com a necessidade da distribuição igualitária dos bens produzidos na nossa sociedade, finalmente, chegou até o Estado brasileiro. Em 2012, foi sancionada a Lei que definiu metade das vagas para estudantes de escolas públicas, de baixa renda, negros e indígenas nas universidades e institutos federais de educação. O acesso à educação superior de grupos historicamente deixados ao largo do processo de desenvolvimento nacional deu os primeiros passos, mas precisamos que se ampliem e aprofundem as políticas de ações afirmativas em nosso país.

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RAMON MOSER / DEDS

Samara Ayres Conversações Afirmativas 2016 – “Os Desafios da Permanência33na Universidade: Ser, Estar, Resistir e Concluir”


Ações Afirmativas REDISCUTINDO RESERVA DE VAGAS NAS UNIVERSIDADES: PARA QUEM? PARA QUÊ? COMO? José Carlos Gomes dos Anjos – Sociólogo Rita de Cássia Camisolão – Mestranda em Educação (UFRGS)

Conversações Afirmativas 2016 – “Os Desafios da Permanência na Universidade: Ser, Estar, Resistir e Concluir” Samara Ayres, Duan “Kissonde” Barcelos e Pâmela Amaro, estudantes de graduação e pós-graduação da UFRGS, realizam intervenção artística RAMON MOSER / DEDS

José Carlos Gomes dos Anjos

Propomo-nos, neste artigo, a contrastar as dimensões exacerbadas de violência que se abatem sobre a população negra e as fragilidades das políticas que poderiam coibir o caráter da extrapolação racial dessa violência. Dedicamos a primeira parte do artigo a expor a disparidade de tendências entre o modo como a corporalidade negra é ostensivamente exposta à violência e as dificuldades para legitimarem-se políticas de ações afirmativas que visem proteger de modo estrutural essa parcela do público. Na segunda parte, com base em um conjunto de falas de alunos cotistas da UFRGS, tecemos considerações a respeito da dissociação entre as expectativas dos públicos-alvo de políticas afirmativas e a forma como a po-


çadas até o presente.

RAMON MOSER / DEDS

Ações afirmativas para quê? Entre 1980 e 2013 foram assassinadas 106.093 mulheres no Brasil, 4.762 só em 2013. O país tem uma taxa de 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres, a quinta maior

do mundo, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). A condição racial pesa como agravante: o assassinato de mulheres negras cresceu 54% no Brasil; negras entre 16 e 24 anos têm três vezes mais probabilidade de serem estupradas que mulheres brancas (WAISELFISZ, 2015). O Comitê para o Direito das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU) denunciou o “elevado número de execuções extrajudiciais de crianças”. Segundo o organismo da ONU, o Rio de Janeiro é o Estado “que apresenta uma das maiores taxas de homicídio de crianças no mundo,

MARIA ANA KRACK

lítica institucionaliza-se. Finalizamos com a reflexão sobre a necessidade permanente da defesa das conquistas alcan-

Rita de Cássia Camisolão

por brancos, com 27,5%; amarelos e indígenas, somados, com 0,6%. Esses dados acompanham estudos mais amplos sobre violência no Brasil, que apontam a população de pretos e pardos como a mais vitimada pela violência (BRASIL, com a maioria das vítimas 2016, p.17). sendo afro-brasileiros” (ONU, Na literatura sobre a ten2015, p.6). são entre Estado de direito e O Brasil é o país que mais Estado de exceção tem-se exmata travestis e transexuais plorado pouco a hipótese de no mundo. O fenômeno vem que se possa ter terrorismo ganhando envergadura catas- de Estado contra as minorias trófica na faixa de idade entre racializadas como a forma 19 e 30 anos. Em 2005 foram oficiosa de um Estado plenamortos 15 indivíduos nessa mente eficiente, em simultâfaixa, e, já em 2012, o núme- neo ao funcionamento mais ro havia explodido para 127, ou menos deficitário do Estaquase nove vezes mais. Aqui do de direito para a população também não restam dúvidas branca. E em que a dimensão de que a condição racial agra- deficitária é o efeito colateral va o processo de exposição à da guerra interior. A literatumorte das consideradas mino- ra que discute o terrorismo rias. Pretos e pardos totalizam de Estado na sequência de 39,9% das vítimas; seguidos Agamben tem ainda o desafio

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de explicar por que a violência que massacra minorias não provém majoritariamente de forças estatais. Mas a violência civil que estupra mulheres negras e assassina por homofobia só pode ser diagramada como extensão para além dos aparelhos de Estado pela profunda incorporação civil da violenta desqualificação humana dos corpos que não se apresentam segundo os parâmetros estéticos e morais dominantes.

formados que pudessem mudar a face racista do Estado brasileiro, condição para alterações significativas na sociedade civil.

rante-se que autodeclarados pretos, pardos e indígenas tenham uma reserva dentro da reserva maior de vagas.

O maior defeito desse dePolíticas afirmativas para senho é que prevê um perfil quem? de trajetória para o estudante negro a ser beneficiado que igNos variados modelos nora as experiências de lutas adotados pelas universida- das famílias negras para sudes públicas, o que acabou perar obstáculos à mobilidade fixando-se, de modo geral, social ascendente. Uma boa é uma política de reserva de parte das famílias, que aspiuma parcela das vagas para ram um membro no ensino estudantes oriundos do ensi- superior, concentra recursos É sob a consideração de no médio da rede pública de numa trajetória longa de um um Estado que precisa des- ensino, mesmo considerando único filho que realisticamenmilitarizar-se diante da popu- critérios raciais e sociais. te deve “escapar” das escolas lação negra e de uma sociepúblicas para ter chances. Esse é o sentido da polítidade civil que deve ainda ser Na medida em que as reeducada para um contexto ca que acabou consolidando-se com a lei nº 12.711, de múltiplas precariedades das de reconhecimento às difeagosto de 2012. Por meio da escolas públicas pesam com renças raciais que as políticas Lei de Cotas, conjugando três especial incidência sobre as de ações afirmativas deveriam critérios – escola pública, rentrajetórias de estudantes neter sido implementadas. da familiar e pertencimento gros, cujas dificuldades ecoPor terem sido majoritaria- racial – as instituições de en- nômicas estão sempre acresmente concebidas basicamen- sino superior passaram a des- cidas pelos efeitos do racismo te como políticas de inclusão tinar metade de suas vagas cotidiano, o sistema de filtros, de segmentos populacionais nos processos seletivos para que é a reserva de vagas, acadistantes da universidade, os estudantes oriundos de esco- ba beneficiando mais os branobjetivos mais prementes da las públicas. cos pobres do que os negros política, tal como pensados igualmente pobres. A hierarquização dos criténo seio do movimento negro, Como a política de cotas estão sendo adiados. Políticas rios faz com que, em primeira instância, se garanta vagas a aparece para o público mais afirmativas visando desativar alunos oriundos integralmengeral como sendo uma política os mecanismos do genocídio te do ensino médio público, apenas de corte racial, o segracial deveriam produzir raem cursos regulares ou da mento negro acaba ficando pidamente, na interface eneducação de jovens e adultos. com o ônus da demonstração tre o Estado e seus públicos, Em segunda instância, gada justeza da política, enquanuma massa de jovens negros

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RAMON MOSER / DEDS

Duan “Kissonde” Barcelos, poeta e estudante do curso de História da UFRGS

to segmentos brancos pobres beneficiam-se de modo muito mais consistente. Desde os primeiros anos de implantação do Programa de Ações Afirmativas, os estudantes cotistas expressam esse sentimento, conforme aponta o depoimento abaixo: É que assim, ó. As cotas é direito de todos. Mas quem é que está colocando a cara pra bater? É o negro. É um direito de todos, mas só quem está lutando para ter esse direito é o negro. Me pergunta quantos negros cotistas tem dentro da universidade. Tem mais que brancos? Não tem. Nós somos a minoria dos cotistas. A maioria dos cotistas são brancos. Mas quem é que tá levando o dedão da palavra na cara? São os negros. Então é muito difícil tu ser negro

e ser cotista dentro da universidade. E defender o direito é difícil. Porque tu tem que estar provando no dia a dia pro teu professor que tu é capaz. [...] Aí como eu disse, fica uma coisa difícil, porque na hora de lutar, batalhar, aparece a minoria que são os negros. A maioria dos cotistas está na boa. (Território ações afirmativas - programa Conexões de Saberes1 da UFRGS, 2011)

Nesse sistema, é impossível que algum candidato se beneficie de uma cota somente pelo fato de ele ser preto, pardo ou indígena, pois é necessário ainda comprovar, no mínimo, ter cursado o ensino médio em escolas públicas. Além disso, o percentual final reservado aos grupos raciais incidirá somente sobre metade das vagas, evidência de que o critério racial não é o mais relevante para a lei. Tudo isso apenas corrobora a conclusão geral de que as ações afirmativas raciais brasileiras mantiveram uma relação bastante ambivalente, para não dizer distante, de princípios de justiça multiculturalistas. (FERES JR & CAMPOS, 2016)

A prevalência do critério classe sobre o critério racial perpetua o discurso ambivalente em torno do que é justiça social quando, dentre 57% das universidades que ofeComo políticas de inclusão recem cota para negro, 75% de públicos de difícil acesso, delas estão combinadas com a política de reserva de vagas exigência de estudos em escotende ainda a projetar seus la pública e renda baixa. efeitos no longo prazo, no que

Transcrição de depoimento de aluno do Programa Conexões de Saberes – Programa Federal que incentivava o protagonismo de estudantes de graduação de origem popular. 1

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tange às possibilidades de contenção do racismo e na redução da violência contra a população negra. Ações afirmativas como? Na medida em que as universidades, ao adotar políticas de reservas de vagas, não abriram espaços suficientemente duradouros de debate sobre as potencialidades da política, parte de seus quadros de professores foram mal informados, mantendo opiniões rasteiramente próximas de um senso comum racista. Os efeitos das disposições racistas dos professores são ressentidos pelos alunos cotistas negros da UFRGS, ain-

da hoje, e manifestados em pesquisas desde, pelo menos, 2008, quando as políticas estavam ainda em fase inicial de implantação. O desencontro de expectativas entre professores e alunos está subjetivamente incorporado nas disposições e esquemas perceptivos dos professores que tendem a subestimar o aluno negro em estratégias de condescendência ou rejeição nas primeiras manifestações de dificuldades. Desenhos de políticas para tornar sustentável e rápida a passagem do aluno cotista pela graduação, como é o caso do Programa de Apoio à Graduação (PAG), foram implementados com pouca

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consistência e passaram por modificação de formato que igualmente não responde às necessidades dos estudantes. Depoimentos de estudantes cotistas para o Território Ações Afirmativas do programa Conexões de Saberes da Universidade Federal do Rio Grande Do Sul, em 2011, ratificavam a afirmação acima: [...] o que eu realmente senti é que os professores não estavam preparados para nos receber. Eu acho que quando se fala dos docentes eles estão muito mal preparados, porque vamos pensar assim: que essas alternativas como o PAG não é para a gente ter facilidade. Ninguém quer moleza, queremos a melhor educação possível. Só que se tu teve um buraco... A visão deles é assim:


agora vou ter que atrasar a minha matéria por quê? O aluno que vá correr atrás por outras alternativas.-(Território ações afirmativas - programa Conexões de Saberes da UFRGS, 2011)

Objetivamente, o aluno cotista tende a entrar em desvantagem pela maior distância em relação à cultura escolar e pelo menor domínio de matérias, que são pré-requisitos para o bom desempenho no ensino superior. Mas não são lacunas insuperáveis. Segundo depoimentos de cotistas, para a maioria dos professores não há alternativas, além do esforço dos próprios estudantes.

a universidade 24 horas por dia. (Território ações afirmativas - programa Conexões de Saberes da UFRGS, 2011)

Quando, diante do perfil do aluno cotista, o professor revela absoluta incapacidade de engajamento em busca de soluções, e a Instituição omite-se, a situação do cotista pode ser mais perversa do que antes da sua entrada na universidade. Essa é a perplexidade de uma aluna cotista diante de declarações do tipo: Uma professora falou, no primeiro dia de aula, que a reprovação dela é muito alta, 70% dos alunos rodam com ela. E ela fala: “sinto muito se trabalham o dia inteiro e têm que fazer cadeira. Então nem tem que estar aqui na universidade, se não tem como estudar”. E eu me pergunto o que eu estou fazendo aqui então? (Território ações afirmativas - programa Conexões de Saberes da UFRGS, 2011)

O que deveria sair do âmbito das respostas pessoais (permeadas por múltiplas modalidades de relações racistas) e ganhar uma moldura -institucional, permanece à deAlém de uma interface riva, sob políticas ambíguas, inadequada de relações entre pouco consistentes, cujo efei- professores e alunos cotistas to mais claro é ampliação da negros, os recursos de que se sensação de estar à margem mune a política são assustado estudante cotista negro, doramente pobres para os decom suas especificidades: safios de uma política que poO professor nem se lembra deria contribuir decisivamente de que tem aluno que traba- para desativar o genocídio dos lha, que tem aluno que tem família, que tem filho. Ele está jovens negros. Sob essa neglisimplesmente doutrinado gência sistemática, os jovens para os alunos que só vem para a universidade, que não negros cotistas tendem a evafazem nada da vida. É essa dir ou permanecer mais tema dificuldade que eu senti. O professor está ali para dar po na graduação do que seria aula para quem pode viver desejável.

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Então encaremos o desafio: a formação humanística precisa dotar os corredores da Instituição de um senso da diferença étnico-racial que vá além das imagens midiáticas de uma universidade de classe mundial. A infraestrutura da UFRGS precisa crescer de modo a adequar-se a estudantes pobres que, com frequência, trabalham durante o dia. As estruturas de acolhimento, orientação curricular e de apoio pedagógico precisam ser intensificadas nessa universidade, para uma universalidade mais pública porque mais aberta à multiplicidade dos públicos. Não podendo injetar na vida pública a quantidade e qualidade desejável de profissionais negros para os desafios a que a política deveria responder, os efeitos pedagógicos das ações afirmativas nas universidades brasileiras tendem a ser miseráveis, como as demais ações do estado brasileiro destinadas a combater o racismo. Defesa e ampliação da política Cabe aos cotistas negros estar à frente na articulação de defesa da política, sempre que esta corre algum ris-


RAMON MOSER / DEDS

Mariana Pedroso, aluna do curso de Administração e Paulo Dalpian, docente da UERGS, na roda de conversa Cotas nos Programas de Pós-Graduação

co. Em setembro de 2016, a tica, fizeram discussões e ne- reserva de vagas se dará nos UFRGS propôs alteração na gociações que resultaram na dois semestres, em cursos Decisão 268/2012, relativa à aprovação, pelo Conselho Uni- que possuem duplo ingresso; implantação do Programa de versitário da UFRGS, da emen- e

candidatos

classificados

Ações Afirmativas na Univer- da ao parecer 239/2016, de para o segundo semestre lesidade. A proposta apresen- forma bastante positiva. Des- tivo não serão remanejados tava pontos polêmicos, sendo se modo, não houve alteração para o primeiro em caso de o principal deles a impossibili- na forma de concorrência de desistência de vaga por outro dade de que os candidatos ao candidatos no Concurso Ves- candidato. vestibular concorressem por tibular, ou seja: todo candidaacesso universal e também to continua concorrendo por

Ainda

em

defesa

das

pela reserva de vagas, desse acesso universal (ampla con- Ações Afirmativas na UFRGS, modo, reduzindo drasticamen- corrência), e aquele que de- há um crescente no aumento te o ingresso de cotistas. sejar concorrer também às va- de denúncias de fraude no gas destinadas ao sistema de ingresso por cotas raciais na Mais uma vez, estudan- ingresso por reserva de vagas Instituição. A mais expressiva tes cotistas, articulados em tem garantida essa possibili- delas foi realizada pelo grupo

coletivos, juntamente com o dade. Além disso, a partir do de estudantes do Movimento movimento negro, ocuparam Vestibular 2017, o ingresso de Balanta, apontando cerca de a Reitoria em defesa da polí- estudantes beneficiados pela 400 fraudes na autodecla-

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ração para ingresso na Uni- quem a reserva é destinada versidade, o que provocou a não sejam prejudicados. designação de Comissão Especial de Verificação da Auto-

Concomitantemente a es-

declaração Racial na UFRGS, ses fatos, desde o segundo cujo trabalho de verificação de semestre de 2016, tem se infraudes iniciou no mês de no- tensificado na Universidade a vembro e já aponta que, do to- publicação de editais de sele-

tal de estudantes que compa- ção para cursos de mestrado receram diante da Comissão, e doutorado com reserva de 239 não têm características vagas ou com criação de vafenotípicas que os permitiam gas suplementares para autoser enquadrados como negros declarados negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deou pardos. ficiência, candidatos refugia-

Esses movimentos de pro- dos, solicitantes de refúgio ou teção e controle social são portadores de visto humanitáfundamentais para que a Uni- rio e pessoas trans em vários versidade desencadeie ações programas de pós-graduação, administrativas de acompa- desse modo, ampliando o pronhamento e ajuste da políti- grama de Ações Afirmativas. ca, garantindo que aqueles a

Referências: BRASIL. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Relatório de Violência Homofóbica no Brasil: ano 2013. Brasília, DF, 2016. ______. Secretaria de Direitos Humanos. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2011. Brasília, DF, 2012. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/dados-estatisticos/Relatorio2013.pdf>. Acesso em: 17 Jun. 2017. FERES JR, J.: CAMPOS, L. A. Ação afirmativa no Brasil: Multiculturalismo ou justiça social? Lua Nova: Revista de Cultura e Política, Dez. 2016, m. 99, p.257–293. Disponível em: <http://doi.org/10.1590/0102-6445257293/99>. Acesso em: 17 jun. 2017 ONU. Convention relative aux droits de l’enfant. CRC/C/BRA/CO/2-4, 30 October 2015. Disponível em <http:// documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G15/248/33/PDF/G1524833.pdf?OpenElement> Acesso em: 17 jun. 2017. WAISELFISZ, J.J. Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2015.

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Ações Afirmativas Um olhar sobre a presença indígena na UFRGS Patrícia Oliveira Brito – Assistente Social ACERVO DEDS

Conversações Afirmativas 2014 - “Memória e Patrimônio dos Povos Indígenas”

RAMON MOSER / DEDS

A vivência como assistente social ligada à assistência estudantil, bem como a aproximação das questões relacionadas à presença indígena na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) me convidaram a buscar compreender as origens étnicas e familiares desses indígenas universitários, suas histórias de vida, as trajetórias até a universidade e que aspectos institucionais e comunitários têm tocado esses homens e mulheres que, não raro, saem pela primeira vez de suas terras com o objetivo do acesso ao ensino superior, reconhecido como uma importante ferramenta de luta. Presenciar o ingresso significativo de mulheres indígenas a

Patrícia de Oliveira Brito


cada ano através do processo seletivo específico; conviver com tantos desses ventres gestando ou já com seu ciclo concluído; atender essas jovens mulheres mães engajadas com a luta de seus povos, utilizando como uma potente arma a inserção no ensino superior; observar seus diferentes movimentos para conciliar o ser mãe e universitária; presenciar algumas dessas mulheres deixando seus cursos ou enfrentando muitas dificuldades em mantê-los, também por descompassos que a instituição não conseguia mediar: tudo isso me tocou profundamente e me fez querer compreender ainda mais o estar-sendo1 dessas indígenas, mulheres, mães, universitárias na sua relação com a UFRGS. Assim, em 2016, nasceu a dissertação de mestrado INDÍGENA-MULHER-MÃE-UNIVERSITÁRIA: o estar-sendo estudante na UFRGS, que se dedicou a escutar tais estudantes, especialmente elas, as mulheres. Acredito que compreender como se dá a presença indígena na UFRGS a partir da política de ações afirmativas, bem como conhecer esses estudantes, mulheres e homens, nas suas origens e na relação com a universidade, possivelmente nos despertará à reflexão e à

colaboração na construção de uma universidade que se enxergue como um espaço de possibilidades interculturais e onde é possível fazer, inclusive, interciência.

do o seu Programa de Ações Afirmativas. Através da Decisão 134/2007, aprovavam-se trinta por cento das vagas da universidade para estudantes de escolas públicas e para estudantes negros provenientes Assim, este artigo propõede escolas públicas, além da -se a apresentar um pouco do criação de dez vagas supleprocesso de acesso e permamentares anuais para ingresso nência indígena na UFRGS. de pessoas indígenas (BRITO e DOEBBER, 2015, p. 2). Luta: o começo, o meio e toApós tal conquista, não hados os dias via dúvidas de que muito precisava ainda ser construído. A Se houver uma palavra que UFRGS, não diferentemente mereça estar em destaque ao longo de todo esse texto, essa das demais universidades do palavra é luta. Naquele 2005, Brasil, que se formou numa coletivos de movimentos so- base em que o popular não ciais, dos membros do movi- era uma presença real, ainda mento negro e representações mostrava-se como um lugar indígenas, juntamente com para poucos. Suas estruturas, os parceiros da comunidade acadêmica, reuniam-se nos arredores da reitoria reivindicando a adesão da UFRGS à Política de Cotas. Mas foi apenas em 2007, num clima de celebração em que ecoavam os sons dos tambores e apitos, misturando-se aos movimentos dos artistas de Hip Hop da periferia, de lideranças e famílias Guarani e Kaingang, de militantes do Movimento Negro e religiosos de matriz africana (LÓPEZ, 2009), que o Conselho Universitário da UFRGS (CONSUN) concluía seu processo de votação instituin-

suas salas de aula, seus pátios ainda tinham uma cor, uma forma, uma atmosfera que não se aproximava das periferias, das aldeias, dos guetos. Assim, o advento da política de cotas impunha e impõe a essa universidade repensar-se, reorganizar suas estruturas, mas, principalmente, rever sua cultura; contudo, isso não ocorre sem tensionamentos, sem lutas, portanto. Segundo a fala da pesquisadora Maria Aparecida Bergamaschi, no evento “II Semana dos Povos Indígenas na UFRGS” (2012), verifica-se que

1 Expressão usada por Rodolfo Kusch (2000). Refere-se à composição do ser europeu com o estar indígena, os quais, fagocitados, resultaram no estar-sendo ameríndio. Na dissertação, o estar-sendo tem a compreensão do fenômeno da presença, do estar no mundo envolvido por suas tramas, que também são tecidas por nós.

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a presença dos povos indíge- de ensino deu-se através de do processo de democratizanas na universidade resulta no que ela chama de “harmonia conflitual”, uma vez que essa convivência intercultural traz uma gama de desafios – tanto para a universidade como para estudantes indígenas que nela estão – que ainda precisam ser enfrentados e superados, a fim de que as práticas institucionais não se baseiem em reproduções etnocêntricas e de hierarquização de culturas.

Devidas apresentações Antes de situar as bases de ingresso e permanência para indígenas na UFRGS, acredito ser importante situar o panorama nacional da presença indígena no nível superior, especialmente nas universidades públicas. Destaca-se que, desde o início dos anos 2000, o aumento do ingresso dos povos indígenas no nível superior

um conjunto de ações, principalmente governamentais, sejam elas Leis Estaduais (exemplo das Estaduais do Paraná); Programa de Licenciaturas Interculturais Indígenas, com total de 26 cursos espalhados pelas universidades públicas brasileiras (PALADINO, 2013, p. 101); Programa Universidade para Todos – PROUNI, do Governo Federal, em vigor desde 2004 (nas instituições privadas esse foi o principal meio de acesso); além da manutenção de vagas suplementares e especiais por iniciativa das próprias universidades; até a Lei Federal 12.711/2012, que vincula a obrigatoriedade de todas as universidades e institutos federais de implantar a política de cotas. Assim, até 2003, estimava-se que apenas 1.300 indígenas acessavam tal modalidade de ensino. Atualmente, a partir do chama-

ção ao ensino superior, esse número passa de 13.000. Considerando uma população de 817.963 autodeclarados indígenas, compondo aproximadamente 0,4% do número total de brasileiros, distribuída em 230 povos, falando 180 línguas distintas (Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE). Estima-se que 1,22% dos indígenas distribuídos no território nacional acessem o ensino superior (LIMA, 2012). Na UFRGS, além da modalidade determinada pela Lei de 2012, vigora o modelo de criação de vagas suplementares, através de Vestibular Específico e Diferenciado para os povos indígenas. O quadro seguinte dedica-se a demonstrar como ocorre o processo de ingresso pelo Vestibular Específico anual:

Quadro 1: Modelo da política de acesso e permanência indígena na UFRGS Cursos

Vagas

Processo seletivo

Afirmação étnica

Escolhidos pelas lideranças através de assembleias promovidas pela UFRGS.

Criação de 10 vagas suplementares, sendo uma para cada curso escolhido pelas lideranças.

Diferenciado, através da aplicação de provas de Português e redação.

Declaração assinada pelas lideranças da aldeia, com anuência do CEPI2 e/ou da FUNAI3.

Fonte: Criado pela autora a partir do Relatório da Comissão de Acesso e Permanência do Estudante Indígena – UFRGS, 2012.

Através desse modelo, efetivo de 95 estudantes indí- Quéchua, do Peru (01); Fulni-ô, pode-se garantir, entre os anos genas pertencentes ao povo do estado de Pernambuco de 2008 a 2017, o ingresso Kaingang (79); Guarani (14); (01); e Juruna, do Pará (01). 2 3

Conselho Estadual dos Povos Indígenas Fundação Nacional do Índio

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RAMON MOSER / DEDS

Luana Kaingang da Silva, aluna do curso de Odontologia da UFRGS, no curso de capacitação do programa Por Dentro da UFRGS

No que tange às suas origens, a Terra Indígena (TI) que mais inseriu representantes nas graduações foi a Guarita (13); seguida da TI Fag Nhin – Lomba do Pinheiro, representada pelos Kaingang (12); bem como pela TI Cacique Doble, que teve representantes classificados nas quatro primeiras edições do vestibular. O maior número de aprovados Guaranis é oriundo da Tekoa Nhundy – Estiva (7), em Viamão. No que concerne às idades de ingresso, conforme já mencionado, é possível verificar que o número de estudantes jovens é bastante significativo: entre 16 e 18 anos são 22 estudantes; entre 19 e 21 são 26; entre 22 e 25 são 23; e entre 26

e 42 são 23. Verifica-se que, ao longo desses 10 anos, os “clássicos” da área da saúde (Medicina, Odontologia e Enfermagem) são escolhidos em todas as edições. A exceção foi em 2016 e 2017, quando o curso de Odontologia foi preterido e houve mais procura por áreas da Educação e Jurídica, tais como, Pedagogia e Direito (8) e História (7). Isso mostra uma preocupação desses povos em suprir a demanda por profissionais que atuem em áreas estratégicas do Estado em suas TIs, bem como o fortalecimento do próprio movimento indígena. Cursos como Serviço Social (7) também têm sido buscados com frequência desde 2010. O curso de Agro-

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nomia, que foi uma grande expectativa institucional e também das lideranças indígenas, foi escolhido nas três primeiras edições. Porém, nenhum dos três ingressantes mantiveram-se. Interessante a fala de um deles ao decidir pela troca de instituição para fazer um curso ligado ao manejo da terra, num enfoque sustentável: “Não estou indo muito bem no curso, não tenho dificuldades de entender o conteúdo das aulas, só não acho que essa forma voltada para o agronegócio seja importante para o jeito indígena”. Seguindo, as escolhas menos frequentes alternam-se: Nutrição, Fisioterapia e Psico-


logia (4); Letras, Educação Física, Saúde Coletiva e Ciências Biológicas (3); Ciências Sociais e Matemática (2); Comunicação Social, Farmácia, Medicina Veterinária, Engenharia Mecânica, Engenharia Ambiental, Geografia, Artes Visuais, Políticas Públicas, Administração, Administração Pública e Música (1); perfazendo um total de 29 cursos. Nesse período, já houve seis diplomações nos cursos de: Enfermagem, em 2012; Direito, em 2013; Pedagogia, em 2014 e em 2015/2; Medicina, em 2015/1; e Serviço Social, em 2016/1. Até o final de 2017 há previsão de mais duas formaturas.

Permanência: um desafio que atinge principalmente as mulheres mães Falar de permanência é tratar das expectativas que a política propõe, é buscar compreender como tem sido realizado o posicionamento institucional acerca da presença desses diferentes grupos étnicos, que vai além dos trâmites formalizados nas Decisões dos Conselhos – principalmente nas ações e inércias que podem indicar suas intencionalidades. É refletir sobre que mecanismos e tensionamentos têm ocorrido, tanto numa macrodimensão como num mi-

cromovimento, para que a presença de pretos, pardos e indígenas na UFRGS seja afirmada e, sobretudo, respeitada em todos os seus aspectos. Para tanto, precisa ser verificada a partir de algumas variáveis que são inseparáveis: a reorganização de estruturas administrativas e acadêmicas; a predisposição para as mudanças na cultura organizacional; a capacitação sensível e permanente dos seus servidores; a garantia material; a flexibilidade pedagógica para outras possibilidades de aprender e ensinar; a abertura para compartilhamento de espaços políticos e culturais; o respeito às diferenças e especificidades, dentre outras. Dialogar com tais demandas no processo de permanência é, de fato, desafiador, contudo não é algo difuso ou intangível, que não possa ser enfrentado concretamente. No que concerne ao aspecto material, a partir de 2008, pelo menos nas Universidades Federais, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) trouxe para esses estudantes algumas possibilidades de permanência em seus cursos. Ainda que esse plano não seja exclusivamente voltado a estudantes indígenas, tem sido um relevante suporte para proporcionar-lhes alguns elementos essenciais à sua manutenção

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nas respectivas instituições de ensino, quais sejam: transporte, alimentação, moradia, material de ensino, saúde, auxílio creche, entre outros. Desde 2013, através do Programa de Bolsas Permanência, o MEC aplica uma política diferenciada de permanência a estudantes indígenas e quilombolas matriculados nas Universidades e Institutos Federais do país, não excluindo o acesso PNAES. Os benefícios e bolsas dispensados aos estudantes indígenas na UFRGS são: professor orientador; monitor; bolsa permanência de R$ 900,00 financiada pelo MEC, por força da portaria 389 de 9 de maio de 2013; isenção no Restaurante Universitário (RU); moradia na Casa do Estudante Universitário, sem comprovação de renda, ou auxílio moradia; auxílio creche para os filhos até seis anos incompletos; auxílio transporte; auxílio material de ensino; monitoria de informática; acesso aos programas de reforço em disciplinas como Português, Cálculo, Física, Química e Matemática; participação em Programas de Educação Tutorial com direito à bolsa; acesso a monitorias específicas; e auxílio para participação e organização de eventos. Acredito que tais benefícios


ACERVO DEDS

proporcionados a estudantes indígenas têm contribuído para sua permanência na universidade. Contudo, percebo que persiste a necessidade de pensar numa política que vá além das ações universais e que se detenha também nas demandas específicas trazidas por esses povos e demais grupos que se inserem na UFRGS. O sucesso institucional acerca da política de ações afirmativas para ingresso indígena passa por escutar e compreender o que dizem esses povos sobre suas formas de estar no mundo, suas cosmologias e suas reais necessidades, principalmente as mulheres, que têm em sua realidade cultural e social o preparo para a maternidade e o casamento, ainda na adolescência. Nesse sentido, já é possível escutar suas vozes ecoando suas especificidades, o que querem e o que precisam para conseguirem manter-se em condições favoráveis a uma vivência acadêmica qualificada. Vozes indígenas: Indígenas estão acostumados a viver em grupo e eles se complementam com o outro [...] é necessário superar o olhar ultrapassado do indígena pelo não indígena e é importante estar nessa universidade para isso. (Bruno Ferreira, 2015 – Kaingang, Mestre e Doutorando em Educação pelo PPGEDU/UFRGS, por ocasião do Seminário Universidade e Educação Intercultural Indíge-

Lucíola Maria Inácio Belfort, primeira aluna indígena do curso de Medicina da UFRGS, no Conversações Afirmativas 2014 - “Memória e Patrimônio dos Povos Indígenas”

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na: Experiência em diálogo, desafios para uma inclusão de qualidade e construção de espaços para produção e trocas de saberes diversos, ocorrido em 2015, na UFSC). A comunidade espera que a mulher nasça com a expectativa de casar cedo, 16, 17 anos, no máximo 20 anos, e tenha filhos. Elas ficavam mais com os filhos, o marido vai trabalhar fora para sustentar. Hoje está mudando um pouco, têm filhos mais tarde, pois querem estudar, mas assim mesmo não pensam em não ter família. Ainda é forte a mulher ser cobrada para ser mãe ainda cedo. Começar a ter filhos com 30 anos ou mais é uma exceção. (Pafej, 2015 – estudante indígena em encontro de pesquisa). Costume é quando vem a primeira menstruação é que já está pronta para casar e os homens quando começam a engrossar a voz. As crianças vão junto com as mães para a sala de aula [caso de duas estudantes guarani que levavam seus filhos junto para as aulas

na escola da Estiva, onde completaram o 2º grau e já eram mães]. [...] Importância grande para a sociedade Guarani casar cedo e desde pequeninha já é criada aprendendo a fazer o que a mãe faz. (Cacique da Aldeia Guarani, Karaí Nhe’e, 2015, ocasião de encontro de pesquisa). Seria bom que tivesse uma casa só para os indígenas com seus filhos, isso melhoraria a permanência e a própria convivência na UFRGS (Liderança Indígena, 2016, ocasião de encontro para escolha de curso).

Verifico que a condição de ser mãe, indígena e universitária ainda precisa ser mais bem compreendida pela universidade. Até 2017 o número de mulheres ingressantes (49) supera o dos homens (46), sendo que 29 guardam relação com a maternidade

antes e durante a graduação. Talvez esse percentual de 59% de mulheres mães indígenas supere a média das demais estudantes ingressantes por outras modalidades. Levando em consideração que mais de 50% das mães indígenas são oriundas de regiões distantes de Porto Alegre, e que a convivência com seus filhos não se separa da condição de estudante, é imprescindível que as políticas de permanência na UFRGS aproximem-se dessas questões e não colaborem para a produção da evasão. Dados da pesquisa que fomenta o presente artigo revelam a seguinte situação sobre as mães indígenas matriculadas em 2016/01:

Quadro 2: Situação das indígenas mães em relação à UFRGS Matriculadas

Não matriculadas

Abandonos

Transferência

Diplomados

17

2

5

1

1

Fonte: Criado pela autora – Dados da PRAE e da pesquisa

Dos cinco casos de mulheres mães que constam em situação de “abandono”, três ocorreram pela falta de condições de conciliar as duas funções: estudante e mãe. Todas elas eram oriundas de cidades fora da região metropolitana de Porto Alegre, onde

residiam seus familiares. As não matriculadas são mães de crianças com idades de até um ano e meio. A busca da transferência de uma das mulheres para continuar seu curso de Pedagogia em outra instituição deu-se pela necessidade de estar próxima de

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seus filhos, ainda muito pequenos. Quando ainda estava na UFRGS, para manter a convivência com suas crianças, passou a cursar apenas uma disciplina, pois assim conseguia conciliar o curso com as mais de quatro horas de ônibus do trajeto de casa à universida-


RAMON MOSER / DEDS

Estudantes indígenas realizando pintura corporal durante o Salão de Extensão UFRGS 2013

de – uma vez que era inviável a viagem diária, não só pela distância, como também pelo alto custo financeiro do deslocamento. Das estudantes que se mantêm em seus cursos, cinco conseguiram organizar-se para conviver no mesmo espaço que suas crianças, mesmo não sendo oriundas de Porto Alegre. Algumas encontraram abrigo em aldeias indígenas próximas a Porto Alegre; outras, conforme já mencionado, buscam a moradia alugada e ainda outras convivem com viagens relativamente longas a municípios mais próximos de Porto Alegre. Há ainda situações de algumas mães que, por necessitarem permanecer

concentrar direito, mas eu não na moradia estudantil oferecivou desistir, eu botei na minha da pela universidade, precisam cabeça se eu largar tudo para ficar lá com ela, que futuro eu enfrentar a distância física de darei a ela? Mesmo ficando suas crianças, deixando-as bem deprimida, tinha noites que eu chorava. Por mais difísob cuidados de outros memcil que seja eu não vou desisbros de suas comunidades – o tir, por ela mesma. (2015) que gera muito sofrimento, afetando inclusive o desempenho Já nos primeiros anos acadêmico. Conforme nos fala da política de cotas, a maior Kafej, no nosso encontro de demanda dos estudantes inpesquisa: dígenas é por uma moradia No primeiro ano eu viajava muito, quase todo fim de se- estudantil própria que oferemana, para ver minha filha. ça, especialmente às mães Tinha vezes que ficava quase sem dinheiro. Eu preferia ficar graduandas, a possibilidade sem dinheiro aqui a ficar sem de conviverem com seus filhos ir lá vê-la. Esse ano, as aulas exigem bem mais, eu estou e familiares que possam coindo menos, mas eu continuo laborar nos seus cuidados. A viajando. No 1º ano eu chorava muito por estar longe, mes- Casa do Estudante Universitámo sabendo que a mãe cuidario (CEU) revela não apresentar va dela. [...] O curso ficou prejudicado, não conseguia me condições de receber crianças.

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Parece-me que também não é esse o maior desejo dessas mães, já que essa estrutura ainda é um lugar de estranhamento e de poucas possibilidades de práticas comuns a esses povos. Hoje o que se tem em vigor enquanto política de assistência à moradia dessas mulheres é um auxílio financeiro para que elas possam alugar um espaço. Ocorre que tal medida ainda precisa de importantes aprimoramentos e, através do tensionamento desses estudantes e suas lideranças, já se verifica a construção de espaços de diálogos nesse sentido. Conforme trazido nas conclusões da minha pesquisa, reitero: ignorar os indícios de que a Política de Ações Afirmativas para indígenas na UFRGS seja um sucesso é também não reconhecer as lutas desses povos, reivindicando seus espaços no ensino superior, culminando em leis federais, estaduais e processos seletivos específicos e diferenciados em algumas das instituições públicas. É ainda não perceber a presença desses estudantes nos pátios, nas salas de aulas, nos espaços administrativos, nos salões de atos recebendo seus merecidos diplomas de educadores, enfermeiros, médicos, assistentes sociais e bacharéis em Direito e todos

os outros cursos que desejem e considerem ser importante para a autonomia de seus povos. E, por fim, é ser insensível, racional e soberbo a ponto de não acolher as oportunidades e potencialidades que a presença dessas mulheres e homens trouxeram para oxigenar as relações e construções da academia, assim como da própria condição de existir. Contudo, mesmo acompanhando os avanços na melhoria e consolidação do acesso e permanência indígena em suas salas de aula e demais espaços acadêmicos da UFRGS, ainda presencio uma considerável vagareza no atendimento, de fato, às demandas desses estudantes. Acredito que esse vagar se dê muito pelas incompreensões da universidade, que afirma pautar-se numa lógica da razão, resistindo ao compartilhamento da convivência com outras cosmologias e maneiras de estar no mundo, como é o caso dos povos indígenas. Há que se compreender num espaço, agora notoriamente heterogêneo, que demanda fazeres igualmente diferentes e acolhedores. Assim, poderemos ser, também, excelência em Ações Afirmativas.

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Referências BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Educação e convívio indígena. In: II SEMANA DOS POVOS INDÍGENAS NA UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2012. BRASIL. Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil - PNAES. Poder Executivo, Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2010/Decreto/D7234.htm>. Acesso em: 25 mai. 2014. BRITO, Patrícia Oliveira. INDÍGENA-MULHER-MÃE-UNIVERSITÁRIA o estar-sendo estudante na UFRGS. Dissertação (Mestrado em educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. DOEBBER; Michele Barcelos; BRITO, Patrícia Oliveira. Estudantes indígenas nas universidades públicas brasileiras: análise a partir das produções de dissertações e teses. In: IX SEMINÁRIO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO SUL - IX ANPED SUL, 2014, Florianópolis. Anais eletrônicos. Florianópolis: ANPED SUL. Disponível em: <http://xanpedsul.faed.udesc.br/arq_pdf/1202-0.pdf>. Acesso em: 06.2015. IBGE. Os indígenas no Censo Demográfico 2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Disponível em: <http://indigenas.ibge.gov.br/images/indigenas/estudos/indigena_censo2010.pdf>. Acesso em 05 abr. 201 KUSCH, Rodolfo. El Pensamiento Indígena y Popular en América. Rosario: Fundación Ross, 2000, Tomo 2. 4. LIMA, Antônio Carlos de Souza. Povos indígenas e ações afirmativas: as cotas bastam? Opinião N5. Rio de Janeiro, setembro de 2012. LÓPEZ, Laura Cecília. “Que América Latina se sincere”: Uma análise antropológica das políticas e poéticas do ativismo negro em face às ações afirmativas e às reparações no Cone Sul. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. PALADINO, Mariana. Um mapeamento das ações afirmativas voltadas aos povos indígenas no ensino superior. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; NABARRO, Edilson; BENITES, Andréa (Orgs.). Estudantes Indígenas no Ensino Superior uma abordagem a partir da experiência na UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2013. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Decisão nº 134, de 2007. Disponível em: <http://www. ufrgs.br/consun/leis/Dec134-07.htm>. Acesso em: 06 de jun. 2014 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Decisão 268, de 2012. Disponível em: http://www.ufrgs. br/consun/legislacao/documentos/decisao-no-268-2012-modificada. Acesso em: 06 de jun. 2014. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório CAPEIn 2008-2012. Disponível em: http://www. ufrgs.br/acoesafirmativas/relatorio/relatorio-2012. Acesso em: 06 abr. 2014.

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Ações Afirmativas GOTA DO QUE NÃO SE ESGOTA Cuti – Livro “Negroesia”, 2007

cota é só a gota a derramar o copo não a mágoa do corpo mas energia represada que agora se permite e voa em secular esforço de superar-se coisa e se fazer pessoa cota é só a gota apenas nota de longa pauta a ser tocada com o fino arco em mãos calosas cota é só a gota a explodir o espanto de se enxugar no riso a imensidão do pranto ela é só a gota ruindo pela base a torre de narciso é só a gota entusiasmo na rota afirmativa que ameniza as dores da saga suas chagas de desigualdade amarga


meta de quem pagou e paga desmedido preço de viver imposto

CAMILA SOUZA / GOVBA

cota é só a gota

e agora exige seu direito a voto na partição do bolo é só a gota de um mar de dívidas contraídas pelos que sempre tornaram gorda a sua cota cota é só a gota afrouxando botas de um exército para o exercício da eqüidade cota não reforça derrota equilibra entre ponto de partida e ponto de chegada a vitória coletiva reinventada.

Luiz Silva “Cuti”

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Deds em Revista:

CULTURA

NEGRA

Falar de cultura negra no Brasil é estar atento para o trânsito continuado de africanos no oceano Atlântico. É pensar em tudo o que nos chegou da África e naquilo que aqui recriamos. É aguçar os sentidos para os sons, os sabores, as cores, os movimentos. A cultura negra é a maior expressão do que se entende como povo brasileiro.

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RAMON MOSER / DEDS

Em destaque, Lilian Rocha, musicista e poeta 55 Conversações Afirmativas 2016 – “Escrita e Identidade”


Cultura Negra Palavras que se guardam (e outros presentes para a casa de Momo): experiências e recordações sobre os carnavais de Porto Alegre Marcus Vinícius de Freitas Rosa – Doutor em História Social (UNICAMP)

Conversações Afirmativas 2014 – “Memória e Patrimônio do Carnaval de Rua de Porto Alegre” No destaque, Renato Borba, poeta e carnavalesco do Bloco Fora da Área de Cobertura e Vitor Hugo Amaro, ex-presidente da Associação de Carnavalescos de Porto Alegre RAMON MOSER / DEDS

São coisas assim que a gente guarda na memória e são recordações muito gratas, [...] a gente tem que escrever isso. Isso vai embora, acaba se perdendo como tantas outras coisas da nossa cultura [...]. Eu tô aqui falando, mas eu mesma não escrevo nada, tenho um monte de coisa pra falar, pra escrever. [...] Acho que tá na hora de aproveitar esse pessoal, já que estamos dentro da Universidade [...], já que vocês nos chamaram pra nos provocar, agora a gente vai provocar um pouquinho [...]. Quem sabe a gente não tira essas histórias e coloca num registro mais permanente? (Para Nilo Feijó, in memoriam)

Essas palavras foram sabiamente pronunciadas por Iara Deodoro (uma das fundadoras do bloco Afro Sul Odomodê), durante uma roda de conversa que reuniu, na Universidade Marcus Vinícius de Freitas Rosa


Federal do Rio Grande do Sul, em novembro de 2014, várias pessoas com experiências e recordações fundamentais para a história da cultura popular. O evento, intitulado Conversações Afirmativas: carnaval de

vio Moreira Aquino), Vitor Hugo tre Nilo Feijó: Amaro, que na ocasião era Eu nasci na Rua Mariante, na Colônia Africana, e me lembro presidente da Associação das ainda que, tinha sete ou oito Entidades Carnavalescas de anos, já existia o salão, não me lembro se era Modelo ou Porto Alegre, e outros amantes Salão do Rui (“do Rui”, voz ao dos festejos de rua. fundo) e era interessante por-

ACERVO DEDS

Também estiveram presentes alguns representantes das gerações mais recentes de foliões. O Chico (José Francisco de Souza Santos da Silva), do bloco Do Jeito Que Tá Vai; o Giovanni Mesquita, do Fora da Área de Cobertura; a Thaís Gonzales, do Turucutá Batucada Coletiva Independente, entre outros. Todos eles, dos mais jovens foliões aos mais experientes festeiros, aceitaram falar de suas experiências e lembranças. As suas memórias foram cristalizadas em palavras, na tentativa de concretizar o que Iara Deodoro chamou de “um registro mais permanente”. O artigo traz a público pequenos fragmentos daquela roda de conversa e foi dedicado à memória de Nilo Feijó. A transcrição das narrativas somou mais de 30 laudas e não seria possível contemplar todas as falas, com sua riqueza de emoções e esperanças a respeito do futuro do carnaval. Os resultados daquele encontro, as folionas e foliões encontrarão nas próximas linhas.

rua de Porto Alegre, contou com a participação de verdadeiros mestres e maestrinas da folia. Além da já referida Iara Deodoro, contribuíram para as conversações Nilo Feijó, Pernambuco (Valdemar Moura Um dos primeiros a tomar Lima), Paraquedas (Eugênio a palavra foi justamente o Mesda Silva Alencar), Silvinho (Síl-

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que eu morava na Mariante bem próximo da Protásio Alves e os cordões carnavalescos, porque na época não tinha escola de samba, eram os Turunas, os Prediletos, os Tesouras... Eles subiam a Mariante fazendo, na época de pré-carnaval, o que nós chamamos até hoje de Muamba.

Foi assim, imerso em um passado que a maioria de nós não conheceu, que o saudoso Mestre Nilo inaugurou a roda de conversa sobre o carnaval de Porto Alegre e lembrou-se dos blocos, antes das escolas de samba; da Colônia Africana, antes de vir a ser bairro Rio Branco; e do Salão Modelo, antes de vir a ser Salão do Rui. “Muamba” era o nome dado às apresentações públicas dos blocos durante os dias que antecediam o carnaval. Diante da plateia formada por foliões de ontem e de hoje, a memória invejável de Nilo Feijó alcançou lugares pouco visitados pelos historiadores. A Colônia Africana era um dos territórios negros de Porto Alegre, formados logo após a abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888. Em meados do século XX, a prefeitura mudou o nome do lugar, que passou a chamar-se bairro Rio Branco. O referido Salão Modelo (depois


chamado Salão do Rui) ficava na Colônia Africana e realizava diversos bailes de carnaval. E um outro local onde a comunidade negra também fazia bailes, por incrível que pareça, era no Teatro São Pedro. O Floresta Aurora fez baile no Teatro São Pedro, o Satélite Prontidão fez baile no Teatro São Pedro e existe documentação disso, existem registros ainda hoje nos anais do Teatro São Pedro.

O referido Teatro, tido atualmente como um dos locais de expressão da cultura erudita, já abriu suas portas para as agremiações negras e populares da cidade. As recordações íntimas de Nilo Feijó alcançam o início do século XX, momento em que havia cerca de 30 clubes formados por “homens de cor” em Porto Alegre, e que costumavam oferecer festas nos salões do Teatro São Pedro. Depois que Nilo Feijó contou outras histórias de carnaval, Mestre Silvinho, igualmente preciso nos detalhes de suas recordações, lembrou os nomes dos blocos, dos integrantes e os endereços de onde partiam os foliões: Vou falar, sim, sobre o carnaval do Areal [da Baronesa], nos anos 30 e 40, onde nós tínhamos o [bloco] Ideal, que era coordenado pelo Seu Beleza, que era sargento da banda da Brigada [Militar], agora se diz 9º, na nossa época era o 3º batalhão. Ele morava na esquina da Baronesa com a Coronel Belo, do lado do bar que tinha

ali, que depois foi da irmã do Seu Acácio. Tinha o Pois Olha, saía da Avenida Oriental. Em 1934, minha mãe saiu no Pois Olha. Tinha umas músicas boas, de vez em quando ela cantava, conhecia a letra. Tinha os Turunas, que era da João Alfredo, os Tesouras, em 1935 foram campeões farroupilha.

A história do carnaval porto-alegrense é também a história dos locais em que a festa acontecia. Enquanto Nilo Feijó guardava recordações da Colônia Africana, Silvinho mantinha lembranças de outro território negro: o Areal da Baronesa, um quilombo urbano, berço do samba em Porto Alegre. Nesse espaço, próximo aos quartéis da Brigada Militar, muitos soldados e músicos escreveram canções, tocaram instrumentos de sopro, de percussão e deram origem a grupos de foliões muito bem organizados.

feita por familiares e vizinhos. No Areal da Baronesa, a cada esquina surgia um bloco: O X do Problema, na década de 40, saía dali de casa, da [Rua] Múcio Teixeira nº 79... Ali o meu tio era pandeirista, muitos e muitos anos saiu dali o X do Problema, na época a fantasia era de seda, era preta e branca.

Em outro trecho de seu depoimento, Silvinho lembrou que Paixão Côrtes – um dos fundadores do movimento tradicionalista gaúcho – desfilou no bloco X do Problema, fundado no Areal da Baronesa. Esse registro é necessário, pois o carnaval de Porto Alegre é marcado por uma disputa entre carnavalescos e tradicionalistas, que resultou na construção do Complexo do Porto Seco e no afastamento dos desfiles das escolas de samba para longe do centro da Nós tínhamos o [bloco] Nos- cidade. sos Comandos, que era verde e rosa, saía da Barão do Gravataí quase na esquina da [Travessa] Pesqueiro e do lado foi fundado os Ases do Samba, da família do Soares [...] três negros numa família que não tem curso superior, mas tem grandes lideranças, que é o Júlio Soares, que foi presidente do Floresta Aurora, o Sincinato Oliveira, que foi presidente do Prontidão, o Zeca Soares, que era presidente do Marcílio Dias; o Zeca também foi ensaiador dos Raios do Samba.

Em sua narrativa, além de enfatizar a participação negra, Mestre Silvinho lembra que a organização do carnaval era

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Na sequência, Mestre Paraquedas tomou a palavra para contar que o primeiro coreto do Areal da Baronesa foi construído com a madeira da antiga cozinha de sua casa. Com certeza, não se tratava da única contribuição do lar de Paraquedas para as festas e para os festeiros: O carnaval na minha vida começou dentro de casa, sabe? Papai era fundador do Aratimbó, minha mãe gostava de carnaval, foi uma das fundadoras das Iracemas, aliás, a primeira fantasia das Iracemas foi feita


ACERVO DEDS

Camisetas e bandeira de blocos carnavalescos de Porto Alegre

dentro da minha casa, porque a minha mãe era costureira.

Ao lembrar-se de sua própria mãe, Paraquedas destaca a atuação das mulheres no carnaval, outro tema pouco visitado pelos historiadores da cultura popular. Em Porto Alegre, as Iracemas eram um dos vários grupos fundados, mantidos, organizados e presididos exclusivamente por foliãs. Paraquedas menciona ainda

outros aspectos da festa: Eu queria falar de uma outra coisa, queria falar do índio, do carnaval do índio. A importância do carnaval do índio na cultura negra. [...] Porque, na verdade, a banda de índio era um modo do negro botar pra fora o seu lado tribal. Se você ver bem, nas fantasias não tem nada de índio, era africana mesmo, muito banto e iorubá e nagô na história. Então, o carnaval de índio tinha uma expressão muito grande em Porto Alegre.

De fato, grupos de foliões negros fantasiados de índios

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constituem uma antiga tradição dos folguedos de rua, em várias cidades do Brasil. Não se trata, portanto, de uma exclusividade porto-alegrense. A figura indígena do caboclo está presente em algumas religiões afro-brasileiras. Assim, as chamadas “tribos carnavalescas” representam diálogos e convergências entre culturas negras e indígenas. Em Porto Alegre, havia tribos que só


aceitavam sair às ruas depois de ter seu estandarte benzido por mães de santo. Atualmente, as tribos carnavalescas constituem uma tradição cada vez menos praticada: Eu que conheço os carnavais de todo o Brasil, acho que agora a tribo de índio tá morrendo. [...] Esse ano que eu não meti tema de carnaval, eu tô com 80 anos, nasci em 1934 e tô nessa luta desde os cinco anos e eu tô achando uma tristeza muito grande o rumo que o carnaval de índio tá tomando. Eram doze tribos e hoje estão em duas, resistindo, resistindo.

vam sair às ruas, conforme o relato de Renato Borba, “com um bumbo desses de banda marcial e ia todo mundo atrás, os homens todos vestidos de mulher”. Entre as características mais importantes dos blocos humorísticos estavam a sátira, o riso, o deboche e a crítica política nos dias de carnaval. Essa tradição festiva praticamente desapareceu durante a ditadura civilmilitar, a partir de 1964. Em outro trecho de sua narrativa, Renato Borba enfatiza o caráter doméstico e a evolução dos blocos:

Paraquedas narrou que, no ano de 2014, existiam apenas duas tribos carnavalescas em Era um carnaval diferente, Porto Alegre: “Os Comanches, [...] os grupos carnavalescos nasciam dentro da casa das minha tribo, que fundei, que pessoas. [...] Então, aquele ganha todos os anos” e “a ouque tinha um pátio maior, um terreno maior, é que abrigava tra”, os Guaianazes. A disputa o grupo carnavalesco. E eram entre as tribos era tão grande, grupos que começam normalmente com 100 pessoas, 80 que Paraquedas, em tom risopessoas... Aí depois iam cresnho e brincalhão, não parecia cendo 150 pessoas, até que chegaram nos anos 60 com muito disposto a admitir que a 800 pessoas. coirmã era igualmente vitoriosa. A rivalidade, enfim, é uma Esse processo de agregadas características do carna- ção de foliões, de ampliação val. do número de participantes, pressupõe certa espontaneiFoi com os olhos de menidade em procurar os grupos já no, por volta dos seis anos de existentes, em vez de fundar idade, que Renato Borba – ounovos blocos, e uma dissemitro mestre da folia – conheceu nação do desejo de participar os carnavais da década de da festa. Contudo, a disposi1950. Suas lembranças troução de as pessoas divertiremxeram à luz outras tradições -se na companhia de outras e festivas: os blocos humorístide compor um só grupo tinha cos e os travestidos. Os adeplimitações bastante sérias, tos dessas práticas costumaexpondo o carnaval como um

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momento de manutenção de certas fronteiras. Conforme Renato Borba, Existia muito forte a questão do racismo, [...] o [Bloco] Vagalumes do Amor saiu de um clube de brancos que não permitia a entrada, a participação de negros nas suas festividades. Então, a gente se encontrava na rua, tomava uma cervejinha no boteco, jogava um futebol junto, mas nessa parte social eles tinham a sociedade deles e nós tínhamos o Prediletos [...] na Auxiliadora, ali na [Rua] Felipe Neri, que era nosso espaço.

Ainda que o carnaval seja visto pelo senso comum de forma acrítica, como um momento de expressão da identidade nacional, como uma ocasião em que os brasileiros aproximam-se e igualam-se, ainda assim havia fronteiras raciais sendo reproduzidas nos dias de festa. De acordo com as lembranças de Renato Borba – e de outros foliões, como será visto a seguir –, os limites erguidos com base na cor da pele persistiram em Porto Alegre em meados do século XX. Vitor Hugo Amaro cresceu no IAPI, bairro de operários, e foi lá que conheceu os carnavais da década de 1950. Ele recorda que, em sua juventude, quando participou do Sindicato dos Metalúrgicos, percebeu certas fronteiras raciais impedindo a aproximação entre os foliões: Tô me recordando agora [...]


do racismo, que não tava só dentro da alta sociedade, não. No Sindicato dos Metalúrgicos, 99% dos associados era operários de metalúrgica e tinha uma divisão. Eles tinham lá dois grupos distintos, o dia dos brancos e o dia dos pretos, primeiro de maio dos negros e nove de abril dos brancos. Nove de abril tinha festa sábado, nem pensar em passar na frente, negro não entrava de jeito maneira. [...] Era bem assim a coisa e isso faz pouco, 50, 40 anos atrás [...]. O pior de tudo é que pra nós parecia que era normal aquilo, tudo certo, a gente faz as nossas, eles fazem as deles.

As lembranças de Renato Borba e Vitor Hugo Amaro são convergentes: ambas denunciam a existência do racismo no carnaval de Porto Alegre. Nesse trecho dos relatos, as barreiras com base na cor da pele não surgem como algo imposto de forma arbitrária por administradores públicos, mas como algo construído horizontalmente por foliões brancos, incluindo operários organizados no mesmo sindicato. Para além da crítica às divisões raciais entre trabalhadores, Vitor Amaro reflete sobre a forma como o carnaval de Porto Alegre organiza-se: O modelo de escola de samba vem do Rio de Janeiro, lá pelos anos 40, e nós seguimos o mesmo modelo do Rio de Janeiro, só que com um prejuízo muito grande [...]. O Leonel Brizola, gaúcho, fez o sambódromo no Rio de Janeiro, alavancou o carnaval do Rio de Janeiro [...]. E nós, em Porto Alegre, que temos as nossas escolas, parece que temos

que correr junto, temos que ter o mesmo gás deles [...]. É meio difícil de comparar as coisas [...] cada um é dentro de suas condições, de suas possibilidades.

O carnaval do Rio de Janeiro foi sempre o paradigma festivo almejado pelos foliões em Porto Alegre. Nas décadas de 1930 e 1940, as fantasias, as canções, as formas de organização (como as escolas de samba) chegavam aos foliões da capital gaúcha por meio do rádio, dos jornais e revistas, bem como dos filmes que retratavam o carnaval carioca, exibidos nos cinemas de bairro durante a Era Vargas. Para Vitor Amaro, contudo, comparar o carnaval dessas duas cidades não parece um bom procedimento; é preciso respeitar as condições e possibilidades da festa local. Como numa roda de samba em mesa de bar, as vozes sucediam-se, uma a uma. Chegou a vez de Waldemar Moura Lima – o Pernambuco – dar o tom, com a experiência de quem já sambou muitos carnavais: Que legal né? Repara como foi respeitada a hierarquia [...], os mais velhos e eu... É a sequência [risos]. Olha pessoal, eu acho essa roda bem legal, porque já se falou aqui coisas extremamente importantes e a primeira delas foi [...] a importância do carnaval como expressão de cultura e evidentemente o desrespeito do Estado com as culturas que têm

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origem negra.

Em outros trechos de seu depoimento, Mestre Pernambuco foi bastante explícito ao chamar de racismo a forma como os administradores públicos costumam tratar os festejos carnavalescos de Porto Alegre, cidade onde a festa possui larga participação negra. Há, contudo, outros elementos importantes em suas recordações. Os mais jovens não conheceram os folguedos realizados em um período, por assim dizer, não muito democrático da história brasileira. “Nós saíamos pela rua e a banda fazia protestos”, comentou Pernambuco ao narrar a fundação da Banda DK durante a “época da ditadura”. Como já foi dito, a crítica política estava presente no carnaval e o Estado tentava controlar a alegria das ruas por meio de homens fantasiados com botinas escuras e fardas cinzentas: Na primeira vez que saímos, a Brigada Militar nos cercou, cercou toda a banda, porque nós tínhamos definido que não íamos pedir licença. ‘Não, mas tem que pedir licença, não sei o quê’. Nós não vamos pedir licença nenhuma, nós vamos sair. ‘Mas cara isso vai dar bronca!’. Nós sabemos que vai dar bronca, mas nós vamos sair. Qual era o pensamento? Como é que eu vou pedir licença pra ser feliz? Não tem sentido isso, vamos pra rua. Saímos, andamos umas duas quadras. Dois caminhões da Brigada Militar nos cercaram, vieram com aquela história


curaram por seu pai e, quando guém melhor do que Iara Deoo encontraram, apenas lhe dis- doro para explicar as origens Resultado: todos os músi- seram: “ó, tua filha já nasceu”. do Odomodê: cos da banda tiveram de dar Nosso bloco tinha todo um diVárias escolas de samba ferencial, que era basicamenexplicações na delegacia. Essa te composto por crianças, porsurgiram a partir da ampliação experiência, entretanto, não que ele saiu de dentro de um dos blocos de carnaval. Todaprojeto social. [...] Então, a baintimidou os foliões. Alguns teria toda, todinha, era a crianvia, o contrário também podia anos depois, o incansável e çada [...]. E esse bloco tamacontecer. Iara Deodoro – também surge com uma proposta persistente Pernambuco readiferente, é um bloco afro, não bém conhecida como Tia Iara lizou uma de suas maiores um bloco afro como os blocos – é uma das fundadoras do afros baianos, um bloco afro contribuições ao carnaval de gaúcho. Então, a gente semBloco Afro Sul Odomodê. Ela Porto Alegre. Na Rua da Repúpre teve essa preocupação conta que a Escola de Samba em manter as crianças junto blica, coração da parte baixa como uma forma delas pegaGarotos da Orgia, fundada no da cidade, ele fundou a Rua rem amor não só pela questão início da década de 1980, sodo carnaval, mas pela questão do Perdão, festejo dirigido às cultural. Porque no momento freu uma espécie de processo crianças, com finalidade de que elas estão dentro da instiinverso: tuição fazendo uma oficina de perpetuar nelas o amor pelo dança ou fazendo uma oficina Eu vim acompanhando o Procarnaval. Tratava-se de mais de percussão, existe toda uma fessor Paraquedas, mas enexplicação do que é isso que fim, a gente tem alguma coisa um presente com que enfeitar eles estão fazendo. para contribuir, porque nora casa de Momo. malmente as escolas saíam dos blocos. Era um bloco que Oferecer as condições para As próximas narrativas, se tornava escola e pra nós que os pequenos se apropriem foi o contrário. A gente tinha o ainda que tenham chegado Garotos da Orgia que se trans- de tradições festivas que já a nós por meio de pequenos formou num bloco. Aí a gente eram realizadas antes mesmo já começa a atingir essa parte fragmentos de memória, ofemais atual, os dias de hoje. Em de suas mães (e avós) nascerecem grandes frestas para 99, o Garotos se torna o Odorem é uma forma de perpetuar modê. E, na época, não existia espiar os carnavais que vocês essa explosão de blocos que costumes e rituais que são, na – leitoras e leitores – provaveltem hoje. verdade, formas de expressão mente conhecem com os próMuito mais do que um blo- da cultura e da identidade neprios olhos (com exceção daco, o Afro-Sul Odomodê (que gras em Porto Alegre. Waldequelas e daqueles que não são nasceu de uma escola de sam- mar Moura Lima, o Pernambumuito chegados à folia). Antes, ba) é um centro cultural e de co, fez isso na década de 1980 contudo, vale a pena ouvir, por ação social que desenvolve ao inventar a Rua do Perdão. assim dizer, uma última histódiversas atividades: grupo de Iara Deodoro fez o mesmo, no ria a respeito dos festeiros de música e dança, tais como final dos anos 90, por meio do outrora. “Minha irmã mais veAfoxé, Jongo e Maracatu; ofici- Odomodê. Tais iniciativas cerlha nasceu em fevereiro, dia nas de percussão, de onde já tamente ainda produzem seus de carnaval”, afirmou Iara Deosaíram outros blocos, como se frutos. doro, “meu pai só foi conhecer verá mais adiante; espaço de O Bloco Do Jeito Que Tá ela dois dias depois”. Legítima valorização da cultura negra Vai, por exemplo, foi criado por herdeira de um folião incansáe de combate ao racismo. Ninamigos de infância, moradores vel, Iara conta que muito pro‘quem é o responsável?’ e vieram pra cima de mim.

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da Cidade Baixa, que frequentaram a Rua do Perdão desde que eram crianças. Chico, um dos fundadores, conta que, por volta de 2001, os amigos já se reuniam para tocar na rua: A gente fazia samba quinta e sexta-feira, na [Rua] Leão XIII esquina com a Lima e Silva, bem pertinho onde antigamente era o Floresta Aurora e logo adiante o Satélite Prontidão. [...] Quando a gente criou o bloco, a gente queria justamente fortalecer a nossa cultura negra como moradores da Cidade Baixa, como amigos de infância que somos e todos nós, de certa forma, cada um é oriundo de uma escola de samba. Eu sou ritmista com muito orgulho da Imperadores do Samba, o Queiroz também é junto comigo e o Daniel é do Bambas da Orgia.

A roda de samba evoluiu para um bloco, que desfilou oficialmente pela primeira vez no carnaval de 2010. O Do Jeito Que Tá Vai já atraiu cerca de 15 mil pessoas para a Cidade Baixa. Simpatizantes de escolas de samba rivais, os amigos Chico, Queiroz e Daniel encontraram na fundação do bloco um motivo para festejarem o carnaval juntos. Já o bloco Fora da Área de Cobertura foi fundado por volta de 2005, em um bar localizado no Areal da Baronesa. Inicialmente, a ideia era criar um bloco de amigos e de quem quisesse participar, mantendo um número baixo de adeptos. Buscando diferenciar-se em

relação aos demais foliões, um presas privadas, que passam dos objetivos do grupo é recu- a determinar como os blocos perar certa tradição musical, devem ou não se apresentar. frequentemente esquecida peNosso objetivo não é fazer um mega evento, nosso oblos mais jovens: Meu nome é Giovanni [Mesquita], sou do Fora da Área de Cobertura [...] um bloco de marcha, só de marchinhas [...]. O nosso estatuto é o samba Plataforma, do João Bosco e Aldir Blanc, essa ideia de não põe corda no meu bloco, não vem com teu carro chefe, não dá ordem ao pessoal, não traz lima nem divisa, que a gente não precisa que organizem nosso carnaval. [...] Quando perguntam pra nós ‘quem é o responsável?’, a gente diz: ‘não, aqui só tem irresponsáveis’.

jetivo não é botar zilhares e zilhares de pessoas, nós não queremos ganhar nada com isso, nós não temos objetivo comercial [...] não é que a gente não goste de dinheiro, é que isso não se trata de dinheiro, isso se trata da nossa cultura, da nossa história e da nossa tradição.

Anualmente, o bloco homenageia grandes nomes da música popular brasileira. Desde 2006, foram agraciados compositores como Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Carmen Miranda, Mário Lago, entre outros. Giovanni conta que, em 2013, o Fora da Área de Cobertura passou por momentos difíceis, por conta do falecimento de duas foliãs. A tristeza foi enorme, mas não motivou o fim do bloco. Naquele mesmo ano, a obra de Vinícius de Moraes foi tema central, ocasião em que o Fora da Área de Cobertura atraiu sete mil festeiros para dançar sambas e marchinhas no bairro Cidade Baixa.

A história do carnaval de Porto Alegre foi caracterizada pela diversidade e riqueza de sonoridades, lembrando que a festa de rua foi construída também com outros gêneros musicais, para além do samba. As marchinhas que o bloco Fora da Área de Cobertura reproduz constituem assim uma bela tradição carnavalesca. Ao que parece, segundo o relato de Giovanni, o elemento comum às diferentes agremiações festivas é a espontaneidade e a autonomia para sair às ruas tocando instrumentos e entoanA roda de conversa sobre do canções. os carnavais de Porto Alegre já Giovanni Mesquita é bas- se aproximava do fim e ainda tante crítico em relação à inter- faltava o pronunciamento de venção estatal na organização um grupo que, assim como o dos festejos carnavalescos e Fora da Área de Cobertura, também em relação ao finan- também integra o movimento ciamento realizado por em- recente de renovação dos fes-

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Participantes da roda de conversa

tejos de rua. Surgido nas oficinas de percussão realizadas no Afro-Sul Odomodê, por volta de 2008, o bloco Turucutá Batucada Coletiva Independente tornou-se um projeto autônomo. Suas apresentações pelas ruas da Cidade Baixa têm atraído multidões. Quem conta essa história é Thais Gonzales, uma das pessoas responsáveis pelos vocais do grupo: Eu tô aqui em nome da Turucutá, tem mais três representantes aqui junto [...]. A gente ensaiava no Odomodê no sábado, [...] a gente não planejou [...], essa pergunta acho que todos nós estamos fazendo [...], ninguém planejou, não era esse o objetivo. A coisa foi crescendo, as pessoas foram

chegando.

Depois que os desfiles das escolas de samba foram centralizados no Complexo do Porto Seco, surgiram diversos blocos de carnaval em Porto Alegre. Turucutá faz parte desse mesmo movimento de renovação. Conforme Thaís, alguns participantes das oficinas de percussão do Odomodê perguntaram-se “onde é que a gente vai tocar?”. Eles mesmos deram a resposta: “A gente vai tocar no único lugar que a gente pode, vai tocar na rua”. Atualmente, o bloco Turucutá mantém a sua própria oficina

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de percussão. Thaís destacou que uma das funções importantes desenvolvidas pelo grupo é ensinar a tocar os instrumentos das escolas de samba, perpetuando seus saberes, e acrescentou: “a gente ensina, porque a gente aprendeu”. Colocando-se ao lado de diversas outras organizações carnavalescas que enfrentam o desafio de manter vivo o carnaval de rua, Thaís chama a atenção para a simplicidade e a autonomia com que o Turucutá tem atuado: O importante, o nosso recado, é muita humildade, tendo muita gratidão por todas as pes-


soas que têm nos ensinado ao longo desse caminho e dizer que nunca é nada igual, mas a gente tá na mesma barca, a gente tá pela mesma ideia das pessoas se divertirem sem pagar o ingresso, simplesmente botar a sua fantasia, tomar a sua cerveja e ir pra rua.

dos por meio dos relatos orais aqui registrados, a roda de conversa chegou ao fim. A maior parte daqueles relatos ficou de fora desta seleção, aguardando um novo momento para ser publicada. Talvez, nos sirva de consolo a lembrança de que nossas avós acumulavam vários pequenos pedaços de tecido antes de costurarem pesadas colchas de retalhos. Então,

Enfim, leitoras e leitores, depois de quase quatro horas ininterruptas de trocas de saberes, de exposição pública de memórias íntimas, capazes de trazer à luz diversos aspectos é hora de retomar as advertêndo carnaval porto-alegrense cias de Iara Deodoro: “são coique só poderiam ser conheci- sas assim que a gente guarda

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na memória e são recordações muito gratas, [...] a gente tem que escrever isso”. Pode ficar tranquila, Dona Iara; pode seguir em paz, Mestre Nilo, pois aqui estão muitas palavras que se guardam; e aqui estão igualmente várias experiências e recordações com as quais enfeitar a casa de Momo.


Cultura Negra Nunca fomos periferia: o Funk como expressão cultural negra Pedro Fernando Acosta da Rosa – Professor, Músico e Compositor ACERVO DEDS

Quem pode adivinhar se essa iniciativa, aparentemente equivocada, não se transformará num movimento de tomada de consciência e de uma afirmação original? (NASCIMENTO, 1977, p.131)

Demorou um tempo até a intelectualidade negra brasileira reconhecer o Funk, tratado inicialmente como expressão da cultura de massa e como uma forma alienada de valorização da cultura norte-americana, como parte da tradição cultural dos negros. A epígrafe acima, de Abdias do Nascimento, já mostra certa dúvida desse autor em relação à Black Music da época e, ao mesmo tempo, nos revela uma possibilidade futura de tomada de consciência desse movimento como afirmação de identidade. Abdias não estava errado: o Funk hoje é parte de nossa cultura e da identidade brasileira de nossa juventude, vem rompendo barreiras, fronteiras e se legitimando como parte da tradição musical negra. É impossível negar a importância do Funk para a juventude em Porto Alegre, ao lado do samba, do swing, do pagode e das casas de religião de matriz africana. Mas antes de entrar diretamente no tema, gostaria de contar, como um griot, um pouco da minha trajetória e como ela se cruza 1 Primeiro encontro nacional dos Pontos de Cultura do projeto Cultura Viva, do Ministério da Cultura. Reuniu lideranças culturais do Brasil todo e promoveu a troca de informações através de oficina, debates, feiras de economias solidárias, shows de danças, apresentações artísticas, e estabeleceu uma nova relação entre o estado brasileiro e a gestão da cultura.

Ponto de Cultura foi um projeto realizado dentro do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, liderado pelo Ministro Gilberto Gil, coordenada por Célio Turino. Esse projeto destinou recursos a produções culturais locais, regionais, mostrando as diversidades e multiplicidades da cultura e da identidade brasileiras, invisíveis ao mercado e às grandes mídias.Ver Ponto de Cultura: O Brasil de baixo para cima em: http://iberculturaviva.org/wp-content/ uploads/2016/02/C%C3%A9lioTurino-04-A1-Final-Baixa. pdf

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Crianças e adolescentes da AMAVTRON – Associação de Moradores da Vila Tronco – fazendo uma intervenção artística no Conversções Afirmativas - “Cultura de Periferia?”


Sou da primeira geração de jovens formados culturalmente dentro da perspectiva do Ministério da Cultura, liderado por Gilberto Gil em 2003, na primeira gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Tive o privilégio de ter participado do TEIA1 2006, em São Paulo, evento que reuniu produtores culturais, artistas, músicos, atores e gente do Brasil todo ligada aos Pontos de Cultura2. Olhando para trás, posso ver que a minha experiência com a cultura, com a música e com a luta política dos negros exerceu um papel central na minha formação acadêmica. De muitas maneiras, busquei, a partir da experiência de luta, de resistência, de busca de conhecimento, de informação, de estratégia e de negociação, o meu espaço dentro da universidade, principalmente no campo da Música. Para tanto, meu impulso inicial nesse nicho foi perceber onde estavam as lacunas da luta negra no Brasil no campo da cultura. Nesse sentido, digo que a experiência de produção musical no Ponto de Cultura 3

foi fundamental para que eu pudesse olhar para um espaço que ninguém olhava com bons olhos no sul do país. Não falo do samba, do hip-hop, do batuque, do maçambique, entre outras formas de cultura também discriminadas, mas de uma experiência negra das mais modernas: o Funk. Mesmo tendo amigos funkeiros, eu nunca tinha percebido a historicidade desse tipo de música no Brasil até começar uma especialização em uma universidade privada em 2012, um ano após concluir minha graduação em licenciatura em música. Antes disso, eu estava mais preocupado e ligado às experiências musicais do samba. O Funk tinha pouco espaço na minha vida, bem como nas instituições nas quais eu atuava. Foi justamente nesse espaço de menor valor, na academia do Sul do Brasil, que encontrei o meu espaço acadêmico. Aproveiteime do desconhecimento por parte das pessoas, dos professores e do público dito mais intelectualizado em relação ao Funk, e também da minha própria curiosidade como professor para melhor entender os jovens com quem eu estava

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com a cultura Funk.

Pedro Fernando Acosta da Rosa

trabalhando. A partir do contato com funkeiros, em uma escola da Lomba do Pinheiro, no Ponto de Cultura do Campo da Tuca e no MDCA3 que fui percebendo e desenvolvendo outro olhar, mais antropológico, educativo e musical em relação ao Funk como expressão cultural negra, na medida em que eu tinha contato com a literatura do Funk (HAIAD, 2012; MIZRAHI, 2010; MATTOS, 2006; BITTENCOURT JR, 1996; VIANNA, 1988). Então, em 2013, realizei minha monografia em um curso de especialização na Universidade Feevale com o título “A Arte da Patifagem” (ROSA, 2014), orientado pelo professor da UERGS, Eduardo

Movimento pelos Direitos da Criança e do Adolescente.

Comunidade situada na zona leste de Porto Alegre, no Bairro Vila João Pessoa, na grande Partenon. A maior parte da sua população é composta por famílias que foram expulsas do centro, Cidade Baixa e também em razão do êxodo rural de famílias do interior que vieram para Porto Alegre nas décadas de 60, 70 e 80. 4

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Jorge Onifade é escritor, poeta, músico e faz parte do Sarau Negro Sopapo Poético.

Augusto é VDJ e DJ, trabalhou no Ministério da Cultura como replicante de conhecimentos de Software Livre e também na Associação Software Livre como oficineiro de Tecnologia Digital. 6

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Jorge Onifade, poeta e integrante do Sopapo Poético

Reginaldo Gil Braga, dialogando com teóricos da identidade como Stuart Hall (2003), Abdias do Nascimento (1977), entre outros. Essas duas linhas aparentemente antagônicas acabaram oportunizando-me uma formação completamente multidisciplinar e multiteórica, o que me proporcionou diversas vantagens ao olhar a experiência musical do Funk no Um ano depois, realizei sul do país sob várias perspeca etnografia musical “Bailes, tivas. Trampos, Montagem e PatifaQuando fui convidado para gens: uma etnografia musical no Campo da Tuca4, a capi- participar do Conversações tal do Funk no sul do Brasil” Afirmativas, em 2015, sob o (ROSA, 2016), sob a orientação tema Cultura de Periferia, não do professor doutor da UFRGS, estava, de certa maneira, preGuedes Pacheco, na qual abordo minha experiência com o Funk no campo da educação no sistema prisional da FASE (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul) e em uma escola pública na Lomba do Pinheiro, a partir da Filosofia da Diferença, de Deleuze e Guattari (1995), entre outros.

parado para tamanha responsabilidade. Porém, quando cheguei ao encontro, fui invadido pelo inesperado, por pessoas com capital cultural e experiência de vida tão significativas quanto as minhas, por pessoas que foram parte de minhas referências, como Jorge Onifade5 e VDJ Augusto Santos6, na época dos Pontos de Cultura nos quais nos encontrávamos. Além disso, para onde eu olhava e escutava, percebia que ainda tinha muito a aprender. Antes de começarem as conversas, eu esperava participar de um debate acadêmico

7 Casa noturna voltada ao gênero musical Funk situada no Campo da Tuca. Ver minha entrevista ao jornal da UFRGS no programa Pesquisa em Pauta com o Glauber Cruz disponível em https://www.youtube.com/watch?v=yTXt02boMX8 8 Proposta apresentada ao Senado da República como parte do projeto Ideias Legislativas, em que as propostas que tenham mais de 20.000 assinaturas passarão a ser analisadas pelos senadores e podem tornar-se lei. Entre elas está a criminalização do Funk como crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família. Disponível em: http://www25. senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129233.

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tradicional. Na minha imaginação, eu seria interpelado em relação ao meu projeto de pesquisa e ao trabalho que eu estava empreendendo com funkeiros na cidade. Eu não estava preocupado com o conceito cultura de periferia proposto pelo evento. Era pesquisador iniciante, encantado por estar em uma das melhores universidades do Brasil. Hoje, já no doutorado e avaliando as transcrições de minhas falas e a de muitos dos colaboradores daquele evento, registrado pelo DEDS (Departamento de Educação e Desenvolvimento Social), percebi que

a responsabilidade de abrir espaços aos sujeitos negros de dentro e de fora da universidade. Naquele dia tive contato com uma multiplicidade de experiências negras de literatura vindas dos mais diversos cantos, em sua maioria sem referências acadêmicas diretas, mas que passaram a ser incorporadas à tradição negra que vai passando de boca em boca. Tal tradição é assumida não apenas pelos “negos véios”, mas também por uma juventude que se vê como parte do processo de luta através da poesia e da música, como o jovem Duan Kissonde, antigo cantor de rap que tem, ao seu modo, dado continuidade ao legado deixado pela poesia de Oliveira Silveira.

ali estava o embrião de uma nova forma de fazer academia, desconhecida para mim até aquele momento. Essa nova abordagem não passava pelos No início da minha intertradicionais cânones acadêmi- venção, eu comecei com a cos e trazia a experiência minha música “Menino da histórica daqueles historica- Tuca”: mente excluídos da universiToca seu cavaco, faz sua harmonia dade, e que conheciam, ase mostra que na Tuca também sim como eu, a universidade tem alegria... pública mais pelo lado de fora Então eu falo de um lugar, do que pelo lado de dentro. Apesar da frustração inicial, percebo hoje aquela minha primeira experiência acadêmica dentro da UFRGS como fundamental na minha trajetória acadêmica e como uma das mais potentes dos últimos anos da UFRGS, pois teve

eu falo desse lugar.

Falar de um lugar, nesse sentido, não é falar em nome dele, é falar com ele. Quando comecei o trabalho com o Funk e passei a visitar as casas dos funkeiros e dos produtores culturais de diferentes gerações, eu estava em diálogo com aquelas pessoas, muitos amigos, familiares e outros que eu admirava. Na época, eu não estava interessado na conceitualização teórica de periferia, mas na experiência vivida do conceito. É justamente desse lugar que tenho optado por falar. Sei, contudo, que os conceitos de civilizado, desenvolvido e centro têm relações epistêmicas com o processo colonial pelo qual passamos em nossa história, e periferia tem relação com o subalterno, de menor valor, desqualificado e, também, subdesenvolvido.

No entanto, se analisarmos a partir de nossa própria experiência histórica (ASANTE, 2014), veremos que somos herdeiros das musicalidades dos griots africanos, que nossa eu falo desse campo da Tuca, cultura é rica, dinâmica e exconsiderado como periferia pressiva, e que, longe de serné, mos uma cultura periférica, da cidade de Porto Alegre, somos pertencentes a um sisum lugar de uma cultura, tema cultural africano a que um lugar de produção de conhecimento, damos continuidade e que reum lugar de formação também monta a um período anterior educacional, ao processo de escravização um lugar de formação cultural,

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através do qual fomos assujei- a Porto Alegre duas das principais referências artísticas tados e descentrados. da juventude negra e não neNesse sentido, atualmente gra: o pagodeiro Mumuzinho nego o conceito de cultura da e a funkeira MC Ludmilla. A periferia, pois nunca fomos invasão por parte de policiais, periferia; sempre fomos o utilizando spray de pimenta centro da matriz cultural brae fazendo uso da força, ofensileira, e foi com base em nosdendo pessoas e impedindo sas expressões que se deram que os jovens filmassem o os conceitos de nacionalidade ocorrido, nos mostrou algo que e identidade nacional. Foram vem se renovando há décadas nossas próprias experiências no modo como a polícia opera culturais, seja no teatro, na com as expressões da arte música, na poesia, na literae da cultura negra, em seus tura, na dança ou na religião espaços territoriais. Nossa negra, que garantiram, em história de vida e relatos familimuitos casos, a nossa saniares afirmam que, na história dade psicológica, bem como da Tuca, um policial entrou na mantiveram viva a nossa casa de Santo da minha faleciluta, resistindo, buscando o da Dinda Chica e quebrou todo reconhecimento e nossos dio quarto de Santo dela. Certareitos como seres humanos. mente existem muitos relatos O Conversações Afirma- parecidos na história do Rio tivas, promovido pelo DEDS, Grande do Sul, e em um pasburlou, “patifou” o espaço sado não muito distante. acadêmico, politizou esse No caso do Funk, a justifiespaço e, ao mesmo tempo, cativa para a invasão se deu propôs um novo tipo de recomo sempre: denúncia anôniflexão epistêmica, importante ma. As reportagens da mídia para todos aqueles que parapresentaram também a visão ticiparam daquela tarde, além da polícia boazinha, que foi até de abrir-se às experiências ralá para ver o que estava aconciais, sociais e políticas negras tecendo. Os relatos de meus das mais diversas. Isso foi a amigos que foram ao evento sua principal grandeza. eram contrários ao discurso O Funk oficial da corporação militar na Recentemente, o Baile da imprensa.

da polícia, impedindo o exercício de uma arte legalmente constituída na cidade como parte de sua cultura e com leis específicas que protegem suas expressões, mostra que a cultura do Funk vem sendo e continuará sendo atacada. O funk é cultura, como prova a jurisprudência das leis nº 10.987 (PORTO ALEGRE, 2010), que reconhece o Funk como movimento cultural e musical de Porto Alegre, e a lei nº 5.543, do mesmo tema, no Rio de janeiro (RIO DE JANEIRO, 2009), bem como as leis nº 11.682, que institui o Dia do Funk em Porto Alegre (PORTO ALEGRE, 2014), e, em São Paulo, a lei nº 16.310 (SÃO PAULO, 2016) e a lei nº 7.489 no estado do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2016); então podemos perceber que essas leis são frutos do direito à liberdade de expressão presente na constituição brasileira, no artigo 5º do inciso IX, que diz: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (BRASIL, 1988) e que essa atitude da polícia, bem como a aberração de uma proposta do projeto Ideias Legislativas, que tenta criminalizar o Funk8, são,

Tuca7 foi invadido pela políO que eu gostaria de dizer cia (sexta feira, 21 de abril de é que essa atitude truculenta na verdade, inconstitucionais e racistas. 2017), no dia em que vieram

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Enquanto não agirmos da mesma forma que agimos quando um terreiro é invadido, destruído, ou um negro é espancado por um neonazista, ou vítima de racismo, estaremos, por omissão, compactuando com a permanência dessa lógica colonial que vê tudo que o negro produz como criminoso e periférico. Temos que assumir que o Funk é parte de nossa tradição cultural negra no Brasil e é nossa tarefa protegê-lo, para proteger nossos filhos, amigos e familiares que frequentam bailes Funk na cidade.

Funk é um movimento cultural que existe no Brasil há mais de quatro décadas, atravessando diversas fases da história musical brasileira (CARDOSO, 2013). Apesar de ser discriminado, esse movimento articula uma rede formada por muitas pessoas de diferentes classes, gêneros e raças. Além de gerar emprego e renda, ele valoriza as expressões culturais e musicais dos negros e afro-brasileiros, atualizando e incorporando a música negra “mais moderna” (ROSA, 2016).

cipalmente das vilas e favelas. O Funk tem uma importância estética muito grande para parte da juventude negra e favelada (LOPES, 2010), mas será o Funk da periferia? Ou uma produção cultural de toda a sociedade e da juventude negra e brasileira de diferentes

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gerações? Podemos dizer que entrar nessa discussão é entrar em um campo movediço, pois os conceitos de centro e periferia baseiam-se em visões, em grande medida, de fora de nossa experiência histórica, e a partir de concepGrande parte do público ções eurocêntricas de cultura. que escuta, canta, toca e proLonge de ser apenas um duz Funk vem das comuniNo entanto, o que pouco estilo ou gênero musical, o dades negras brasileiras, prin- temos avaliado é que o perifé-

Claudiomar Carrasco Martins, produtor e ativista cultural Segunda edição do Simpósio que discutiu literatura, música e fotografia, como temas centrais para pensar o Funk, articulado através da Direção Adjunta e de Extensão da Faculdade de Letras, PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) e da Rede da Maré, nos dias 12, 13 e 14 de maio de 2015 na Faculdades de Letras e no Centro de Artes da Maré, da Instituição Rede das Mares no Rio de Janeiro. Ver http://www.metaeventos.net/funk2015.

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DVJ Augusto Santos e Vladimir Rodrigues, ativistas culturais e integrantes do Sopapo Poético

rico, entre outras construções, é fruto de processos de racialização pelos quais passou a sociedade brasileira e baseia-se em categorias raciais nas quais estamos incluídos de uma maneira ou de outra. Gostaria de chamar a atenção para o importante fato de que muitas das nossas classificações não foram criadas por nós. Nos tornamos negros a cada vez que alguém nos lembra disso ou quando assumimos nossa condição de diferente, quando afirmamos nosso protagonismo, nossa agência no mundo e nossa identidade. Precisamos lembrar do lugar racial que ocupamos quase todo o tempo, principalmente aqui no Sul.

Nossa luta, então, de uma maneira ou de outra, reifica o lugar destinado para nós como periferia, como negro, como subalterno, como favelado, vileiro e outras categorias raciais, pois elas são parte de um sistema social racializado (BONILLA-SILVA, 1997) no qual estamos incluídos. De certa forma, isso nos traz aspectos positivos, pois nos leva a reagir contra os processos que nos oprimem, nos maltratam e que tiram a nossa humanidade (FANON, 2008). Em contrapartida, eles servem para nos prender e controlar a nossa atuação em outros espaços, na medida em que dizemos “isto é nossa cultura, e aquilo não” (HALL, 2003).

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O que o Funk faz é jogar com esses mundos de uma maneira muito estratégica que a experiência negra encontrou no Brasil, e que todas as nossas formas de expressão têm usado para sobreviver em meio ao racismo. Precisamos estar atentos à forma como esse fenômeno social realmente opera ao jogar com as identidades, jogar com as diferenças. Se para alguns intelectuais pode parecer alienado, para outros é agência, e é assim que o Funk tem se mantido e se renovado no Brasil, inclusive no discurso acadêmico. Isso só aconteceu, na cultura Funk, em razão de suas lideranças encontrarem caminhos pela


via da política, do debate, da negociação (SANTOS, 2001) e do encontro, que lhes possibilitaram criar uma rede que lhes proporcionava ir, aos poucos, legitimando-se e conectandose ao lado de expressões culturais negras como o samba, o pagode, o hip-hop, o carnaval, entre outras. Acredito que o Funk representa não só as comunidades negras, mas os desejos humanos de desfrutar dos benefícios advindos do desenvolvimento tecnológico mundial, bem como do bem estar, melhores condições de vida, de alimentação, de dinheiro, felicidade

ACERVO DEDS

e liberdade de expressão. Os desejos dos(as) funkeiros(as)

não são diferentes dos nossos Considerações ou de outros movimentos muSabemos que, historisicais. camente, há uma espécie É a partir das alternativas de continuidade de um deixadas pelo sistema colo- preconceito, que eu chamo nial e da exploração de suas de etnomusical, que esteve e brechas que o Funk hoje atua, está presente na história musialiando discursivamente cen- cal do Brasil e do Rio Grande tro e periferia e ocupando um do Sul. A experiência musical espaço relacional que possibi- dos negros no batuque e nas lita o encontro entre classes, religiões de matriz africana; o gêneros e raças. O Funk aco- Lundu, ritmo musical de dança pla, ainda, discursos feminis- e música do século XIX; o samtas e dos movimentos sociais ba no início do século XX; Black negros e não negros, assim music anos 70 e 80; o pagode como referencia a favela como nos anos 90; e atualmente o espaço de poder, de cultura e Funk mostram que o racismo de vida. contra essas práticas sempre estiveram presentes. Vejo como Carlos Moore, que afirma que o racismo tem se reno-

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vado e se perpetuado mesmo GS, fundado em 2014 pelo com todos os nossos esforços Prof. Dr. Reginaldo Gil Braga como mais uma força na litera(MOORE, 2007). tura acadêmica acerca das exQuando participei, em pressões sonoro-musicais dos 2015, do II Simpósio de Pesnegros no Rio Grande do Sul. quisadores do Funk Carioca, Por fim, sei que, na história na UFRJ9, no Rio de Janeiro, fiquei surpreso ao ver o quan- da UFRGS, o DEDS vem, desde to ainda estamos, aqui no Sul, 1992, a somar-se na luta antirdistantes das discussões aca- racista no sul do Brasil. Penso dêmicas em relação ao Funk. que, na conjuntura atual, o Finalizo com uma reflexão: departamento tem tido um paqual universidade daqui do Rio pel central ao assumir o comGrande do Sul, seja a UFRGS promisso com transformações ou qualquer outra, tem alguma sociais e éticas, no sentido de disciplina que trate especifica- propor novos espaços de atuamente dessas questões, tanto ção acadêmica para os negros na educação quanto nas ciên- de dentro e de fora da UFRGS e de abrir espaço para novos cias sociais e humanas? pesquisadores. Ao convidar-me Acredito que minha etnopara participar daquela roda, o grafia musical no Campo da DEDS abriu espaço também Tuca, lugar onde nasci, faz parpara o Funk. te de uma tradição acadêmica Orgulho-me de ter tido iniciada pelo GEM (Grupos de Estudos Musicais da UFRGS), como primeira experiência coordenado pela Prof.ª Dr.ª importante na minha formaMaria Elizabeth Lucas, desde ção acadêmica o Conversaos anos 90, e pelo meu grupo ções Afirmativas de 2015 e de pesquisa ETNOMUS/UFR- de ter participado, ao lado

de companheiros(as) de luta do Sopapo Poético, daquela Grande Aula. Hoje, poder negar, a partir da nossa própria experiência histórica negra, que nossa arte, música, dança e modos de expressão sejam periféricos, é afirmar, para o descontentamento de alguns intelectuais acadêmicos, e inclusive dos próprios intelectuais do Funk, que nunca fomos periferia.

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Cultura Negra Escrita negra: recepção convencional e transformação Ronald Augusto – Poeta, Músico, Letrista e Ensaísta RAMON MOSER / DEDS

Conversações Afirmativas 2016 – “Escrita e Identidade” Duan “Kissonde” Barcelos, poeta e estudante do curso de História da UFRGS

RAMON MOSER / DEDS

Ronald Augusto

Podemos distinguir, esquematicamente, dois tipos de artistas. Imaginemos, de um lado, aquele espécime cuja arte mantém-se muito rente à vida e ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte como uma transfiguração da circunstância, isto é, sua obra nos faz supor uma indisposição com relação ao real ou uma inclinação para a invenção de um mundo alternativo. O senso comum, entretanto, parece disposto a dar mais crédito ao artista do primeiro tipo, ou seja, aquele para quem não há senão o interesse na realidade imediata. Ao contrário do representante do segundo tipo, este artista, a princípio, não pode ser um fingidor. O fruidor admira o poeta que suja suas ferramentas inspecionando os transes do vivido. Assim, o objeto de arte


transforma-se num sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência existencial.

O impasse tem a ver com a recepção. E, às vezes, a recepção, mais do que desinformada, revela-se maledicente.

A recente publicação Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (DUARTE, 2011), resultado da colaboração de 61 pesquisadores de 21 universidades brasileiras e estrangeiras, reúne em seus quatro volumes um conjunto de textos literários e análises voltados à vertente negra. Tal vertente ou produção constitui-se numa forma de canto crítico e paralelo ao percurso canônico das obras estruturantes da literatura brasileira enquanto negra, o objetor, que deposita sistema. Pouco depois do lanconfiança na unidade entre çamento desse livro, Ferreira vida e arte, cai em contradição, Gullar escreve uma resenha na pois sua posição, que implica a qual afirma não ter cabimento recusa de um eu enunciador falar de literatura negra, porque se assume negro no pró- que, em sua opinião, os africaprio texto, o fará negar, em fim nos que vieram para cá não tide contas, a concepção de que nham literatura e que isso não a arte mais genuína é aquela fazia parte de sua cultura. A que confina com a vida. Em ou- polêmica foi grande e frutuosa. tras palavras, um escritor que, E Gullar foi o maior beneficiaalém de não dissimular sua do, já que, depois da afirmação condição de negro, resolve tra- preconceituosa que escreveu, tar em sua literatura de ques- recebeu informações de todos tões como o preconceito racial os lados sobre as tradições ou as nem tão veladas tensões orais e a riqueza dos discursos étnicas da sociedade brasileira formados a partir de signos não seria um espécime do pri- não verbais, presentes tanto meiro tipo de artista? Sua arte, na arte antiga, quanto nas dia bem dizer, não nos faz supor versas culturas do ocidente e um mergulho radical num as- do oriente. Gullar, nesse epipecto concreto da existência? sódio bizarro, não reconheceu Precisei desse preâmbulo pela seguinte razão: há uma percepção de que a verdadeira arte confunde-se com a vida e isso, bem ou mal, serve de critério para avaliarmos uma infinidade de manifestações criativas, porém talvez com uma exceção: a literatura negra. Explico-me. Muitos não aceitam que o qualificativo seja aplicado à noção de literatura, baseados na crença de que a arte não tem cor. Ora, mas ao não dar crédito à literatura

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a importância da cultura e do conhecimento orais, seja para o africano, seja para a sua vasta diáspora. A capacidade de produzir tanto formas de pensamento, como de discursos literários não pressupõe de maneira absoluta a tecnologia da escrita. Contra tal pano de fundo é que julgo importante discutir os limites e as virtudes da literatura negra. Uns pensam a literatura negra desde a perspectiva de lances identitários através dos quais a prática literária se efetiva como testemunho de verdade racial. Do ponto de vista da criação e da reificação de uma literatura negra, podemos afirmar que isso limita-se com um esforço coletivo e extraliterário que tem em vista, antes, redefinir um pertencimento etnopolítico, do que propor uma forma específica de linguagem. É como se a vida, mais uma vez, tomasse a dianteira, restando à arte um papel menor. Assim, é fundamental não perder de vista nessa discussão um dos termos do nosso conceito, a saber, a literatura – e aqui encareço a acepção artística contida em sua área semântica. E sendo literatura, suas determinações se apresentam por meio da linguagem como um jogo equívoco que no-


meia e transfigura o real. Vale dizer, o mundo representado é, a um só tempo, emoldurado e sacudido pela linguagem. As imagens do objeto literário são lacunares, recortes possíveis. A propósito do tópico literatura, cabe aqui um breve depoimento. Ao contrário da minha geração, muitos escritores e poetas negros mais jovens começam a sua formação tendo já como tradição um

grande número de obras de artistas que se assumem negros de modo mais ou menos alusivo em seus textos. Isto é, esses jovens escritores trabalham a partir de uma literatura negra já constituída e, ao mesmo tempo, em processo. Essa conquista precisa ser festejada, trata-se mesmo de um lugar que devíamos alcançar e alcançamos. A partir desse ponto não há mais retorno. RAMON MOSER / DEDS

Delma Gonçalves, poeta e produtora cultural

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No entanto, quando comecei, na década de 1980, havia pouca produção literária negra e o pouco que havia era tremendamente desconhecido e – por razões que o racismo naturalizado explica muito bem – negligenciado sem mais. Por outro lado, isso só se tornava um drama para quem tinha, como eu, algum interesse em buscar e discutir as condições de possibilidade de uma produção literária de autoria negra. Pois havia e há diversos autores negros que não têm interesse nesse debate. Deste modo, em razão dessa relativa carência com que à época eu me defrontava, minha formação deu-se por vias bastante canônicas, mas isso, para mim, não constituiu um problema muito grande, já que sempre entendi que eu deveria trabalhar criticamente essa tradição, isto é, analisando suas contradições, compromissos (tanto literários, quanto extraliterários) e jogos de dissimulação. Observe-se que esse trabalho crítico sobre o cânone branco-ocidental não precisa significar mera exclusão. Ainda que a formação de um repertório individual implique, em certa medida, o descarte desse ou daquele dado informacional, o esforço crítico é essencialmente um trabalho de revisão, tanto do legado, quanto dos nos-


RAMON MOSER / DEDS

Jorge Fróes, professor e poeta

sos pressupostos de escolha e, por outro lado, uma imperiosa invenção de outros modelos de sensibilidade. Se eu tivesse que apresentar alguma sugestão aos jovens escritores negros em formação, seja na perspectiva de um diálogo com a tradição, seja na perspectiva de situar-se em relação ao presente, eu diria que é importante, sim, prestigiar e radicalizar essa vertente ou literatura negra e, a par disso, experimentar uma leitura o quanto possível distante do pathos ou da fidelidade ao compromisso com a causa. Não custa lembrar que muitos escritores da minha geração, bem como os que a

precederam, precisaram enfrentar, cada qual a seu modo, essa mesma tradição que, em que pese ser bastante eurocêntrica, não deixa de ser também bastante complexa e contraditória. Eles souberam tirar proveito do que há de melhor nessa tradição, e o mesmo procedimento pode ser adotado com relação às muitas tradições e discursos que temos à disposição. Duvido que Oswaldo de Camargo, Geni Mariano Guimarães, Edimilson de Almeida Pereira ou Jônatas Conceição da Silva, não tenham lido Sousândrade, Manuel Bandeira, Drummond, Murilo, Clarice ou Cabral (para ficar apenas com

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os brasileiros). Isso quer dizer apenas que é preciso conhecer também, e a fundo, as obras desses poetas, ou melhor, conhecer a música verbal deles. E muitos devem ser lidos independentemente de gosto, de simpatia ou de ideologia. A primeira vez que li Cabral não gostei, quase desisti. Mas o problema é que o meu repertório na época não suportava aquele tipo de poesia; depois fui ampliando meu estoque de vozes e dicções poéticas e, por fim, pude entender e fruir a proposta da poesia do pernambucano. E é preciso ler tudo isso do ponto de vista do artesanato e não apenas com um apetite acadêmico. Repetir para aprender, aprender


RAMON MOSER / DEDS

para criar; essa é a sequência. Como esses escritores criam imagens? Como eles agenciam questões fônicas, visuais e espaciais? Como o som e o sentido se embaralham em seus poemas? O antigo desprezo elitista e a reativa substituição de um repertório por outro parecem encerrar a discussão nos limites apertados de uma intransigência recíproca. Assim como minha geração conquistou um monte de formas e valores inventando uma literatura negra a par de nossa formação originária mais tradicional, a geração mais nova pode ampliar o leque compositivo e de linguagens levando a cabo uma nova

transfiguração dessa tradição da qual, em boa medida, cada um de nós é um produto singular. O que de fato interessa, entretanto, é o necessário comentário crítico a uma espécie de efeito legitimador que – no respeitante a uma descrição-legitimação dessa literatura, negra – visa a transformar em paradigma aquelas obras em que se observa, em primeiro plano, à maneira de um pórtico, a afirmação da identidade, ou de um nós demasiadamente ideologizado e, de resto, difícil de verificar, mas indispensável em termos de demanda de um grupo diante de uma situação político-social conflituosa

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e/ou desfavorável. Um efeito observável nesse esforço de legitimação, de vez e voz a serem conquistadas, talvez seja o seguinte: o escritor negro que se apresenta à discussão é tolerado como útil depoente; seus escritos, ao fim e ao cabo, revelam-se como meras provas, documentos, literatura como testemunho, misto de verismo e depoimento correto. Não obstante, o que quer que o escritor realize deva ser chamado em princípio de – pausa para a palavra a seguir – arte, restam, ainda assim, aqui e ali, análises e intervenções que insistem em colocar sua criação artística a serviço de “causas e compromissos históricos”. Pode-se argumentar


que o que vem após a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”, “feminina”, é que rende assunto a essa espécie de fogo amigo. O que parece ser fundamental admitir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra só pode ser mesmo literatura, ou seja, uma forma de discurso que tem sua autonomia parcial conectada ao campo estético. A este propósito evoco uma passagem de minha convivência com o poeta Oliveira Silveira (1941-2009). Uma vez, Oliveira me disse que não tinha trauma nenhum em se deixar reconhecer como um “poeta,

RAMON MOSER / DEDS

negro”, desde que ninguém desprezasse essa vírgula imis-

cuída entre os dois termos, forçando uma breve, porém necessária, disjunção. Para Oliveira Silveira, o qualificativo – seja qual for – que vem após a vírgula não é, de modo nenhum, irrelevante, mas, apenas, secundário. Ou melhor, trata-se de uma linha por meio da qual podemos arriscar uma leitura precária, provável. Desgraçadamente, as explicações acerca da coisa acabam por substituí-la. Nesses debates purgativos tendemos a ficar com a explicação e descartamos o objeto artístico em si mesmo. Mas esses contratempos militantes, enervando de quando em quando as discussões relativas à impostura da função social da arte, estão aí

Dedy Ricardo, atriz e mestra em Educação, e Marcelo Martins Silva, poeta

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como um rumor de fundo, uma tensão; e dão, por assim dizer, certo charme retrô ao processo. Outro problema diz respeito ao seguinte: quem fala, afinal de contas, no poema ou no texto? A busca programática de um eu enunciador que se assume negro no tecido da linguagem, em substituição a um conceito de literatura negra acoplada à cor da pele do escritor ou ao assunto abordado por ele, só aparentemente indica um passo à frente nessa discussão. A indagação de Mallarmé acerca de quem fala no poema resta ainda sem desfecho – aliás, a pergunta pode permanecer


RAMON MOSER / DEDS

sem resposta. Digamos, para todos os efeitos, que quanto mais valência poética um texto contém, mais difícil torna-se denunciar quem ou o que fala através da máscara do poema. Onde predomina a função poética da linguagem, temos como resultado uma mensagem mais ambígua. Roman Jakobson (1994, p. 149) afirma: “a ambiguidade se constitui em característica intrínseca, inalienável da poesia”. Portanto, continua o linguista, não só o próprio poema, mas igualmente seu destinatário e seu remetente tornam-se ambíguos. O texto literário deve manter-se simplesmente sob a pressuposição da existência e da essência do homem-leitor. Pois quem

é o leitor? Diz-se que procurar por este receptor ideal é como atirar em um peixe com um estilingue no escuro. No poema, de maneira geral, o sujeito esse ego scriptor - vacila. De minha parte, defino-me mais por uma atitude problematizadora e metalinguística do que por uma afirmação concludente que, de resto, revela o anseio de legitimar conceitos identitários por meio do discurso literário, reduzindo-o a uma espécie de testemunho de verdade racial. Entretanto, o tópico da literatura negra é um debate que não deve ser lacrado, assim, às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista acadêmico ou do discurso militan-

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te, é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As tensões étnicas, sociais, antropológicas e políticas às quais esses textos em algum momento fazem alusão, essas, sim, podem e devem ser resolvidas. Mas um poema de verdade não admite solução. Com efeito, a arte da literatura constitui-se como um tipo de linguagem que não é nem “verdade” nem “mentira”, senão que tem um estatuto próprio. Portanto, se for preciso, mesmo que provisoriamente, encaixar nosso virtual escritor negro na moldura do artista participante, ele só o será, no meu entender, segundo a acepção que Mario Faustino (1930-1962) empresta ao qualificativo, a saber, seu ape-


tite de linguagem será “participante como a poesia deve ser participante, isto é, em todos os sentidos: cultural, social, existencial, político, estético. Participação nos destinos do homem e nos destinos da poesia” (FAUSTINO & BOAVENTURA, 2004). O percurso literário de qualquer escritor projeta o texto como uma fatura sígnica cuja existência não pode justificar-se apenas para servir às necessidades de certas interpretações, por mais bem intencionadas que sejam. Finalmente, toda essa rica controvérsia tem colaborado para que a literatura negra comece a assumir um lugar de importância no cenário cultural brasileiro. Em Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, o interessado vai encontrar um mapeamento surpreendente de poetas e prosadores negros que permaneciam à margem. A tradição segue a atualizar-se criticamente no presente. É importante lembrar, a este respeito, o grupo Quilombhoje que, há mais de três décadas, tem servido de espaço de lan-

çamento e de discussão da produção negra (em prosa e poesia) mais recente. Por outro lado, sempre que me pego refletindo mais uma vez sobre essa literatura – na perspectiva dos dilemas contemporâneos –, não deixo de mencionar alguns escritores. Não

na experimentação enquanto conquista e na intersecção entre as linguagens; Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma vigorosa recriação da episteme afro-brasileira; e, finalmente, Cidinha da Silva, prosadora refinada que situa seu texto na nervura do pre-

porque talvez representem, com suas criações, o sangue novo na corrente sanguínea e, portanto, reuniriam, digamos assim, as melhores condições para renovar a vertente negra; não. O que importa para mim é que quando me vejo diante dos textos desses autores, percebo outras questões criativas. Suas intervenções, mais do que consagrar, mantêm o espaço em construção, aberto a investigações e revisões de linguagem de toda ordem.

sente, atenta aos ardis das representações e das afecções a que são submetidos os negros contra um pano de fundo multimídia. É importante referir também a atuação do coletivo de escritores negros Ogum’s Toques, de Salvador, que vem aplicando energia na divulgação dos escritores negros da tradição e do presente e apostando no diálogo interessado sobre as formas discursivas assumidas por essa literatura. Por fim, quem está mesmo disposto a ampliar o apetite pela literatura para além do convencionalmente tolerável precisa ler esse conjunto de escritores negros.

Assim, fazendo um corte drástico no agora-agora desta produção – pois reservo, à parte, uma série de autores que, no mínimo, enriquecem o debate –, indico ao leitor, além do imenso Oliveira Silveira (19412009), os nomes de Arnaldo Xavier (1948-2004) e Ricardo Aleixo, poetas interessados

Referências: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011. FAUSTINO, Mário; BOAVENTURA, Maria Eugenia (Org.). Artesanatos de poesia: fontes correntes da poesia ocidental. São Paulo: Companhia da Letras, 2004. JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1994.

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Cultura Negra Porto Alegre é o cansaço de si Marcelo Martins Silva - 2018

Porto Alegre é repleta de lugares sem lua, é uma cela, concreto de estátuas positivistas; Porto Alegre é o desterro às margens do Rio Guaíba, por essência morada do desassossego; Porto Alegre é um gueto da África do Sul durante o Apartheid; Porto Alegre é silêncio, pretensiosa em suas aspirações burguesas é pobre e os pobres a carregam nas costas; Porto Alegre é o cansaço de si, o cansaço de tudo, é uma avenida lotada de carros, um cafundó com luzes; Porto Alegre, escute os tambores e esqueça: Você nunca foi Europa, nunca foi portenha – o Bom Fim nunca foi Berlim, nunca teve rock britânico; Esqueça essa bobagem toda, inclusive tire a bombacha E vá pra rua brincar com os outros.


Marcelo Martins Silva

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Reitor Rui Vicente Oppermann

Vice-Reitora Jane Fraga Tutikian

Pró-Reitora de Extensão Sandra de Deus

Vice-Pró-Reitora de Extensão Claudia Porcellis Aristimunha

Diretora do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social Rita de Cássia Camisolão DEDS EM REVISTA

Porto Alegre, nº 2, Vol.1, dezembro de 2017 Publicação do DEDS/ PROREXT/ UFRGS Jornalista Responsável Sandra de Deus

Projeto Gráfico e Diagramação Ramon Dorneles Moser Capa Paulo Baldo

Revisão Débora Simões da Silva Ribeiro Patrícia Xavier dos Santos

Conselho Editorial Daiane dos Santos Moraes Débora Simões da Silva Ribeiro José Antônio dos Santos Luciane Bello Maria Augusta Carvalho Teixeira Patricia Xavier dos Santos Rita de Cássia Camisolão




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