FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
A Suspensão do Espaço e do Tempo. Abstracção e essência na cultura portuguesa
INVESTIGADOR: DEMETRIO SCOPELLITI
INTRODUÇÃO: EM BUSCA DE UMA ALTERNATIVA. Numa época irrequieta, ocultada pelo caos em todas as suas expressões, sob diversos disfarces e formas, torna-se imperativa a necessidade de destaque e desvio da contingência da realidade, como instrumento que recusa a tendência para o aparatoso da vida. Um facto comum permeia a intenção deste trabalho: o reconhecimento, no meio artístico e na sua difusão cultural, um elemento de introspecção, de contemplação de uma realidade abstracta; dada essa sua natureza, é portanto livre e depurada da transfiguração imposta por cada filtro mediático. “Eu diria que a arte talvez se coloque num outro campo, ou seja, no campo em que se confere por intuição, em que a natureza do que se sabe è igual ao próprio estatuto da alma. Sabe-se por dentro, vê-se a partir de dentro. O real torna-se verdade quando concorda com a consciência da individualidade.” (Pedro Cabrita Reis Expresso. Cartaz. N°1125, Lisboa, 28.05.1994; pp. 20-21.) Apesar de desestabilizante, o caos torna-se mais real a cada dia que passa, fruto de uma crise perceptual evidenciada pelo acentuo da perda de "visão poética", necessária para a reconstrução de um possível bem-estar natural, cujo entendimento parece tão evidente quanto perdido. A fragmentação do viver, transformado num ideal esquizofrénico de uma contínua, egoísta e superficial mutação, anda de mãos dadas ao conceito ocidental de desenvolvimento frenético e insustentável, hoje finalmente colocado em questão pela sua própria crise. A estreita ligação com o contingente assume dimensões cada vez mais graves. A ansiedade vivida provém da extrapolação de todo e qualquer valor, a favor de uma proliferação massiva de desvios sociais, políticos, culturais, e artísticos.1 O cenário e pano de fundo desta crise de percepção é a cidade, artefacto urbano por excelência, expressão física, e como tal, mais inteligível da decadência em acção. Teorizada como delirante e genérica pelo arquitecto Holandês Rem Koohlaas2, durante o último vinténio do século passado, interpreta esta crise na cidade chamando-a de penúria de realidade, determinando na verdade uma realidade carente causada pela densidade metropolitana, um processo cada vez mais veloz de consumo da realidade natural e artificial, para a realização do qual estaria já tudo identificado, catalogado e categorizado previamente. Uma possível solução é individuada: uma contínua reciclagem conceptual interpretativa de falsos eventos, de realidades artificiais. “Reproduzir experiências e sensações; sustentar ilimitadas representações rituais que exorcizam os flagelos apocalípticos da condição metropolitana".3 Uma visão decadente onde a figura do arquitecto - mais generalizadamente do artista - veste de modo apressado e furioso o próprio papel social de destruidor intelectual, de utópico, sucumbido ao poder das massas. Despido de todas as responsabilidades, aligeira e simplifica o próprio papel, reduzindo-o ao de inventor de novas realidades excepcionais, criador de mundos fictícios fundados sobre uma urbanidade hedonística e de inovações da tecnologia do fantástico.
Para além de qualquer exagero literário, o seu argumento assumirá uma dimensão realista desconcertante, que se vai aproximando do perigo, de modo particular no campo arquitectónico. "A arquitectura moderna está-se reduzindo a 1
VIDLER, Anthony, Il perturbante dell'architettura. Saggi sul disagio dell'età contemporanea , Einaudi, Torino, 2006.
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Rem Koohlaas, nascido em Roterdão a 17 de Novembro de 1944, é um dos mais conhecidos arquitectos e teóricos da arquitectura da actualidade. Membro co-fundador do OMA -Office for Metropolitan Architecture, sua obra é habitualmente tida como controversa, reflexo de uma visão generalista da arquitectura e da cidade. 3
KOOLHAAS, Rem, Delirious New York. Electa, Milano, 1978.
uma pequena chama para atrair toda a atenção possível e esforçar-se por criar diversões. O fenómeno conduz à sobreposição de aspectos de importância fundamental de um lado, e de caprichos arquitectónicos de outro."4 O "Manhattanism", sobre o qual Koolhaas se empenha em escrever o interessado manifesto retroactivo, é a própria teoria de uma cultura urbana metropolitana, de um mundo criado inteiramente de e para a fantasia dos homens, "a capital do Ego, como na ciência, arte, poesia e formas de loucura competem para inventar, destruir, restaurar o mundo da realidade fenomenológica"5. Koolhaas sente necessidade de libertar a cidade de todo e qualquer conteúdo, impondo-lhe uma condição fundamentalmente insubstancial, imaterial, que permita a máxima exasperação especulativa, da qual ele mesmo é magnífico intérprete. É a Cidade Genérica: a par de uma necessária libertação global de cada recordação ligada à identidade, e vítima do crescimento demográfico exponencial, a cidade pode finalmente produzir aquele processo de homogeneização intencional que parece ser a única e constante preocupação rumo a um transe de experiências estéticas - ou violências estéticas - que induza à alucinação da normal percepção.6 “Gran parte della nostra architettura […] continua a compiacersi nella triste e facile avventura della forma per la forma, del successo garantito dalle immagini, del piacere prodotto dalle facili sensazioni. Ignora l'essenziale e coltiva l'accessorio, sceglie la fama individuale a scapito della difesa dei valori umani, sociali e spirituali.” (Fernando Távora7, Omaggio a Siza, Porto 1992) Se estas teorias, difundidas ao longo de todo o fim do século passado e frequentemente dominantes, olham estreitamente para a arquitectura, mas envolvem cada expressão do viver, podemos dizer toda a cultura; por contraste, uma maneira autónoma, ligada por um desejo e uma necessidade de abstracção como instrumento de redescoberta da essência, estava-se a desenvolver em Portugal. Através do desenvolvimento daquela que é agora uma reconhecida escola, um grupo restrito de arquitectos trouxe à ribalta uma poética que é expressão de toda uma esfera cultural, diametralmente oposta, em sentido e significado, àquela citada. Que perseguiu e ainda hoje persegue, o silêncio, condição e lugar de redescoberta do significado. "Acreditamos que se experimente neste pequeno enclave cultural, uma das respostas mais convincentes e fecundas sobre a crise do moderno." 8 Num país imerso no seu próprio ocidentalismo, no entanto vivo de relações e história, advém de facto qualquer coisa de incrível. Distante do academismo teórico-nostálgico que permeou Itália, mas também influenciado pelo mesmo, e até mesmo dependente, a arquitectura portuguesa criou uma escola, uma identidade geral de uma maneira de fazer arquitectura que se realiza através de princípios que aparentam ser básicos, no entanto pouco óbvios. Chamaram-na "Escola do Porto", mas trata de qualquer coisa que de algum modo pertence, que parece implícita, ao ser português: "Trata-se de uma descendência de arquitectos, que se ramifica em famílias e subgrupos, atravessando na vertical todas as gerações, dos pais históricos aos neo-licenciados. De qualquer modo, todos ainda fazem referência a uma mesma formação, reconhecível nos comportamentos projectuais. O seu trabalho constitui ainda uma espécie de procura colectiva..."9 4
ROBBRECHT, Paul, in AA. VV., Città, Architettura e Società. vol. I e II. Marsilio Editori, Venezia, 2006
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KOOLHAAS, Rem, The Generic City. Domus 791, Milano, 1997.
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KOOLHAAS,, Rem, Delirious New York. Electa, Milano, 1978.
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Fernando Luís Cardoso de Meneses e Tavares de Távora, natural da cidade do Porto, nasceu a 25 de Agosto de 1923. Foi um respeitado e conceituado arquitecto e crítico de arquitectura português, grande responsável pela consolidação da agora conhecida como “Escola de Arquitectura do Porto”, fundada a partir de pressupostos modernistas, e de um profundo estudo da arquitectura popular portuguesa. Faleceu a 3 de Setembro de 2005. 8
ESPOSITO, Antonio; LEONI, Giovanni,, Architetti a Porto: una "scuola"?, Casabella n°700, Electa, Milano, 2002
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ESPOSITO, Antonio; LEONI, Giovanni, Architetti a Porto: una "scuola"?, Casabella n°700, Electa, Milano, 2002
No entanto esta pesquisa não é exclusiva da arquitectura, mas inerente, como parte da educação cultural do país. Provavelmente devido a uma predisposição para a reflexão, ligada ao território, à separação ou destaque político e ao isolamento geográfico vivido, desde a segunda metade do século passado, o desenvolvimento artístico de uma espécie de estado de irrequietismo selado na paz absoluta dos sentidos perceptivos, torna-se carácter comum a muitos níveis na obra de vários artistas de variados campos da produção cultural. Tais pressupostos desvendam o interesse na possibilidade de perceber quais as relações que decorrem entre cultura e arquitectura portuguesas, quais os aspectos comuns a nível interdisciplinar e quais as relações pessoais de cada artista com a causa comum, de modo tal que possibilite a imaginação de definir a existência de uma prática identitária, enraizada, que veja nos argumentos da minha publicação os seus caracteres fundadores.
OBJECTO: A SUSPENSÃO DO ESPAÇO E DO TEMPO. “De uma maneira geral não gosto das obras que ostentam as suas complicações. Prefiro as obras depuradas mas que deixam pressentir, adivinhar, ao longe, a complexidade das coisas do mundo.”
(Maria Helena Vieira da Silva, Vieira da Silva. Monographie. Catalogue Raisonne, 1993) A ideia é a de individuar uma linha comum, uma espécie de traçado que ligue a obra de um grupo de artistas, não tanto segundo uma lógica consequencial de eventos, ou focalizando-se no desenvolvimento de uma dada disciplina; mas pela individuação de temas e instrumentos que permitam aproximar os resultados, que determinam a pertença a uma determinada expressão cultural. A um estilo, se quisermos, não como aplicação efémera, como repetição de uma prática pré-determinada, mas restituindo o significado à palavra, inclinada para definição de um objectivo comum de identificação da arte como instrumento essencial de conhecimento e interpretação da realidade. “A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida … compreende? … a nossa vida apresenta-se ali como algo … como um acontecimento excessivo … Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é a maneira subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação”.
(Herberto Helder, Enigma, Os passos em volta, 1963) Contextualizando o tema como resposta à confusão e violência da percepção, que caracteriza a penúria de realidade mediática e espectacular, a individuação de uma procura colectiva, de uma unidade de significado, pretende colocarse como reflexão geral sobre o sentido e sobre a ética da arte e da cultura. Na redescoberta de uma identidade cultural - a não confundir com a restrição ao mero localismo - de um sentido de pertença a um território, a uma tradição, encontra aplicação numa alternativa clara e determinada, à genérica desestruturação do pensamento. A procura de uma ordem suspensa por Herberto Helder, de uma relação com o vazio pelos irmãos Aires Mateus, da composição essencial por João Luís Carrilho da Graça, da simplicidade da matéria por Pedro Cabrita Reis, da variação mínima, do silêncio, da pureza. A memória e a fixação do momento. A ausência de gravidade e o peso das coisas graves. Álvaro Siza, Maria Helena Vieira da Silva. Rui Chafes. De novo as relações, ainda as ausências. As linhas e as perspectivas. A abstracção como forma de inovação, a tradição como raiz. É precisamente quando tradição e abstracção se encontram nos limites extremos das suas aparentes antíteses significantes que resulta qualquer coisa de mágico. Qualquer coisa que pára o tempo, suspende o espaço e o deixa ao encanto, ao espanto. Ao silêncio do qual é feira a essência. É desta capacidade de criação, que quero falar. Gostaria de o fazer através da obra de quem, levando ao extremo os próprios instrumentos compositivos, experimentando-os ao limite da obsessão, mais do que qualquer outro consegue, com o intuito de obter o tal
resultado de ausência, quase de renúncia. De harmonia, no entanto de dramática emoção. A linha, a esquina, o muro, o ar, e o vazio. O branco, ainda o silêncio. Cada instrumento tem o seu padrão e cada um a sua própria familiaridade. Indagar as origens e o mecanismo de cada um destes instrumentos ta composição, é objecto deste texto. Para mostrar de um lado o método, vários métodos de aplicação compositiva magistral, várias sensibilidades e concepções do abstracto, da essência. De outro para reportar as obras à própria condição artística de monumentos e obras de arte, enquanto incapazes de encontrar uma colocação, que não seja absoluta, no tempo histórico e no espaço lógico da cidade, da paisagem, da cultura. A suspensão torna-se resultado de indagação dos campos de acção da dimensão artística. A identificação do estilo, o significado comum. O tempo e o espaço instrumentos compositivos e temas de análises. Destes pressupostos nasce a ideia de elaborar o texto como uma reconstrução por fragmentos de uma linha contínua que percorra, desde meados do século XX até hoje, sob várias formas artísticas, este aspecto da cultura portuguesa; sem alguma pretensão de reconstruir uma história, ou de indagar de maneira completa e totalitária a obra de cada artista, mas focalizando por conceitos a atenção aos aspectos inerentes à lógica de um pensamento comum, daqueles individuados. O objectivo não é outro senão aquele de se colocar em auxílio da reconstrução de um discurso colectivo, feito de palavras, imagens, citações, que reportem sobretudo a individualização de um método artístico de recusa ao contingente, intrinsecamente ligado à ausência.
Analisado através da obra do escritor Herberto Helder10, o estado de suspensão individua a tomada da distância da cristalização e da completude da obra, identificando na essência do silêncio a única expressão poética definitiva. "É com o silêncio que se faz as vozes"11 No seu próprio silêncio, na sua personalidade esquiva a todas as formas de representação que não sejam a sua poesia, Helder individua a própria recusa à condição mediática do presente. A suspensão torna-se instrumento de oposição à realidade, às regras do mundo tal como hoje entendido, assim como na dimensão espacial se põe ao limite da negação da gravidade. “[...] così come noi ci rendiamo conto del nostro respiro solo quando l'aria ci viene a mancare (come a scritto il nostro maestro, Fernando Pessoa), allo stesso modo prendiamo coscienza della gravità nel momento in cui scompare.”
(Fernando Távora, Omaggio ad Álvaro Siza) A extrema manifestação da ausência de gravidade, evidencia a existência. Através da produção de uma energia tensional entre o peso da massa e da ligeireza do seu ser a meio ar, a suspensão situa-se naquele ponto de equilíbrio perfeito, o único possível até que o corpo não pareça fixo, e ainda assim não caia. Exactamente como para o silêncio de Helder, o equilíbrio torna-se âmbito de pesquisa determinante, ao mesmo tempo problema e extrema solução 10
Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira nasceu no Funchal a 23 de Novembro de 1930. É um poeta português, autor de uma extensa obra literária, considerado um dos mais originais da actualidade. Carrega um semblante misterioso e enigmático, bem expresso nos seus próprios escritos, explicado pela reserva em que vive, numa recusa contínua em ceder entrevistas e receber condecorações. 11
HELDER, Herberto, in Souto de Moura, Eduardo: Relaçao do projecto para o “Museo del '900” a Venezia, 2010
Rui Chafes, Durante o sono, 2002 © Rui Chafes Steel, 1000 x 1000 x 50, Jardim da Sereia, Coimbra, Portugal. www.cam.gulbenkian.pt Copyright ©, Todo od direitos reservados
Rui Chafes, The world become silent, 2004 © Rui Chafes Steel, 1000 x 1000 x 50, Jardim da Sereia, Coimbra, Portugal. www.ruichafes.net/ Copyright ©, Todo od direitos reservados
espacial, compositiva. Nas esculturas de Rui Chafes12, a questão resulta exemplificativa. A pressão que os seus corpos frios, puros, negros e por isso, ainda mais pesados, exercem no ar, contém qualquer coisa de "grave", de absoluto. A procura da suspensão transforma-se em tema duplo, tanto a nível físico como conceptual. A suspensão introduz o tema do vazio que gera, que evidencia, que denuncia. “O Vazio é absoluto e só poderá ser preenchido com a Verdade, a Beleza, a Identidade, a consciência do Nada e do próprio Vazio. Só o Vazio e a Forma são Universais. O resto é pó.” (Rui Chafes, João Trabulo, Durante a fim, 2003) Na relação com a paisagem, Chafes descobre a natureza e o desejo de recriar o silêncio. As suas esculturas nos jardins de Sintra parecem aparições, por vezes enormes, leves, outras graves e cheias de dramatização. Contemporaneamente dentro e fora do mundo. O mundo torna-se silêncio, o tempo torna-se matéria. Nas suas variações de percepção, o artista estuda a possível alteração. “O anel [...] poderá ser um catalisador de silêncios […] o mundo ficará em silêncio e será possível compreender a linguagem dos pássaros. Esta enorme e levíssima aparição é uma imagem simultaneamente dentro e fora do mundo, um espaço em que o tempo é a matéria mais visível. O tempo é o nosso único amigo.” (Rui Chafes, Diário dos Açores, 15 de Outubro de 2009) Se a suspensão resulta em tema focal na concepção espacial de Chafes, o silêncio determina a abstracção temporal. As suas estruturas esbeltas exaltam a renúncia à gravidade, assim como o inacabado de Helder determinava a recusa do mundo. A potência e expressividade das suas formas acentuam o surrealismo verídico do poeta. Mesmo assim é o silêncio, em ambos, o ponto de chegada, o objectivo da poética a um nível absoluto, determinável somente pelo destaque da aparente realidade, tanto física como emotiva. No processo artístico abstracto, a forma torna-se universal como o vazio, liberta-se da contingência. "No momento em que falamos da vida das formas na matéria...é para mostrar o carácter constante, indissolúvel, irredutível de um acordo de facto. Assim a forma não age como um princípio superior que modela uma massa passiva, já que se pode até mesmo suster que a matéria imponha a própria forma à forma."13 É este pressuposto que nos permite de falar em individuar um traço comum, que se destaque do tangível para encontrar e afrontar as obras na sua ausência.
Tenhamos o exemplo da obra de Pedro Cabrita Reis14. A distância que o separa de Chafes é aquela que distingue o branco do preto, o gesso do ferro. Ainda assim o estudo do espaço, do qual Reis chega a apropriar-se, a aspiração ao silêncio, como som a atingir, possam identificar uma procura comum de pensamento, portanto declinado através da subjectividade da ideia. 12
Rui Chafes é um escultor português, nascido em 1966 na cidade de Lisboa. As suas obras ostentam temas que incidem fortemente no trabalho com o espaço, possuindo a capacidade de evocar o lado mais romântico e nostálgico dos fruidores dos seus trabalhos. 13 14
FOCILLON, Henri, Vita delle forme, Einaudi, Torino, 2002
Pedro Cabrita Reis é um artista plástico português, nascido na cidade de Lisboa no ano de 1959. A sua actividade artística passa pela pintura, escultura, cenografia, desenho, e instalação. Desenvolve um trabalho que explora a matéria e a luz, manipulando o espaço, transformando-o e atribuindo-lhe novas qualidades.
Por sua vez abstracta do resultado formal final, pode tornar-se património colectivo, procura de um significado, de um estilo, de uma identidade. Em Portugal esta coincide com a pertença a um território preciso, não tanto a nível de confins, quanto de tecido cultural, intrínseco também a quem, como Reis, Vieira da Silva, talvez mesmo Siza, extraiu do estrangeiro condições determinantes de desenvolvimento e influência imprescindíveis do resultado da sua obra. Mas na viagem rumo ao cumprimento, a realização, a obra não pode não revelar o cunho pessoal, a intuição, a sensibilidade. O preto metalizado, o branco do gesso. O gesso é matéria silenciosa, que absorve a água com a qual é misturado. Seco, sem sinais nem de vida nem de água, assume a própria condição eterna, mais uma vez da ausência. O branco reporta à procura do primordial, à estrutura elementar das coisas, numa palavra, à abstracção. “O branco é a cegueira de Deus, é o excesso de luz. Há dois tipos de conhecimento, o conhecimento por sombras que a ciência propõe, que é o ir descortinando através de um emaranhado de possibilidades aquilo que seria um ponto de referência que se vai cosendo a outros pontos de referência. Não me interessa isso. Interessa-me a cegueira absoluta em que os olhos vêm para dentro. Gostaria de poder ver a alma. A luz absoluta da revelação. O branco é a ausência de matizes, a inutilidade da sistematização que as cores poderiam propor como forma de fazer uma cartografia do saber. Não é uma pureza, é uma cegueira, é a luz excessiva como revelação absoluta” (Pedro Cabrita Reis, Expresso. Cartaz, n°1125, Lisboa, 28.05.1994, pp. 20-21) Na série de casas, Pedro Cabrita Reis fala de construções elementares, que remetem ao arquétipo do género. Ao tratar o desejo de marcar um território refere-se à filosofia, ao conhecimento, ao saber, à experiência humana de ocupação do espaço. Através da presença de elementos quotidianos - uma cadeira, um banco, uma mesa, uma casa - evidencia a ausência do homem, como metáfora ao isolamento contemporâneo, denuncia a alienação trazida pela globalização mediática. Aqui define uma união tão forte entre as próprias instalações e o espaço expositivo, que determina a criação de um novo espaço, de outro modo impossível. 15 O uso de materiais simples, que encontra influência na arte pobre, a par com o essencialismo visivo das suas obras estabelece uma estranheza temporal, convidando o espectador à procura de memórias de uma cotidianidade nunca antes vivida, como testemunho da ausência humana. O espaço, por isso, não é um conceito mas uma superfície vivida. As obras de Reis evocam espaços habitados, habitados não pelo homem mas pelos traços do homem, das recordações e dos pensamentos, em geral da memória." “Os artistas querem recriar o mundo como se fossem pequenos Deuses, e fazem uma série, um constante repensar sobre a história, sobre a vida, sobre as coisas que se vão passando pelo mundo, que a gente crê que se passaram, mas porque acreditamos, sim, porque afinal acreditamos na memória, porque tudo passou. Quem nos garante que isso que imaginamos que se passou, se passou realmente? A quem devemos perguntar este mundo, esta suposição então é uma ilusão. A única coisa verdadeira é a memória. Mas a memória é uma invenção.”
(Manoel de Oliveira, Lisbon Story, 1994) Pensar o espaço é algo que se vai aperfeiçoando com o tempo, uma atitude humana primordial que nos é possível desenvolver graças à memória e capacidade de abstracção. Os espaços pintados por Maria Helena Vieira da
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REIS, Pedro Cabrita, Buscando lo esencial, Lapiz A. XI, n°92, Madrid, Marzo- Aprile 1993, pp. 46-52.
Pedro Cabrita Reis, A Casa do Esquecimento, 1990 Š Pedro Cabrita Reis Escultura, Gesso, jarro de vidro com azeite e madeira www.cam.gulbenkian.pt Copyright Š, Todo od direitos reservados
Pedro Cabrita Reis, It's never a question of balance, 2006 © Pedro Cabrita Reis HEB 200 steel, travertino stone, 742 x 170 x 40 cm. Copyright of the artist, courtesy Magazzino d'Arte Moderna www.artnews.org Copyright ©, Todo od direitos reservados Pedro Cabrita Reis,, Les dormeurs, 2009 © Pedro Cabrita Reis, Photo: Blaise Adilon, 10e Biennale de Lyon 2009, Lyon www.re-title.typepad.com Copyright ©, Todo od direitos reservados
Maria Helena Vieira da Silva, New Amsterdam II, 1970 © Fundaçao Arpad Szenes-Vieira da Silva www.fasvs.pt Copyright 2010 ©, Todo od direitos reservados
Silva16 são posse unicamente sua, na dimensão em que representam fragmentos do espaço de uma vida. 17 Os lugares da sua representação são aqueles íntimos da cidade vivida, numa espécie de subjectividade espacial que caracteriza cada fase da sua obra. Nos seus quadros, o desejo de pintar o ausente leva-a a reflectir sobre o conceito de vazio, a concebê-lo não como meio inexpressivo enquanto resultado entre as coisas, mas como realidade a conquistar. O espaço então fragmenta-se, como num espelho partido, a individualizar a dimensão temporal: a aceleração do instrumento perspéctico, a sua exasperação, gera a multiplicação de planos visuais, quase a querer dissolver a unidade espacial do quadro.18 Trazê-la ao movimento. Nas suas cidades, a dissolução leva a uma representação tão densa de sinais quanto pura de significado. Os planos que se encontram criam formas urbanas suspensas, em tensão, num equilíbrio frágil de linhas. De geometrias impossíveis. “Uma arquitectura de grandes linhas, de paredes compridas, buscava um encontro com os rochedos no lugar adequado. O objectivo consistia em delinear, naquela imagem orgânica, uma geometria: descobrir aquilo que estava disponível e pronto para receber a geometricidade. Arquitectura é geometrizar.”
(Álvaro Siza, Imaginar a evidência, 1998) Se o argumento partiu da arquitectura, à arquitectura deve voltar. “[...] apercebemo-nos que a arquitectura não mais representa que um aspecto de uma realidade mais complexa, de uma particular estrutura, mas no entretanto, sendo o dado último verificável desta realidade, essa constitui o ponto de vista mais concreto com o qual afrontar o problema.”19 Através de um discurso feito de espaço e de tempo, revela-se a intenção de contaminar a autonomia disciplinar para reportá-la ao seu sentido essencial; sentido este feito de formas, mas não exclusivamente. O sentido da narração é finalmente revelado. A prática arquitectónica resulta hoje destituída do seu sentido profundo, alheia pela procura de efeitos de estupefacção, pelo extremismo da procura da novidade a todo o custo; da afirmação pessoal de uma poética em contínua exasperação. “A arquitectura tornou-se a arte de projectar disfarces que não revelam a verdadeira natureza dos interiores repetitivos mas que escapam subtilmente no subconsciente para desenvolver o papel de símbolos.”20 Pelo contrário, a revelação é aquela de sublinhar o enraizamento na prática artística para combater as lacunas de significado, para demonstrar o fazer arquitectónico enquanto algo que não seja mais que instrumento de interpretação de uma realidade da qual é meio de construção. Matéria de reflexão na natureza das coisas, e não de adulteração desta. “Soffrendo il mondo, Siza si ingegna di fronteggiarne l'inospitale volgarità, la formicolante rapidità, l'inutile fretta, 16
Maria Helena Vieira da Silva, foi uma pintora portuguesa, nascida na cidade de Lisboa a 13 de Junho de 1908. Quase toda a sua vida foi passada no estrangeiro, passando por França e pelo Brasil, onde deixou grandes marcas com a sua obra de carácter abstracto, sintético e carregada de expressividade. Foi a primeira mulher a ser condecorada com o Grand Prix National des Arts, em 1966, tornando-se cavaleira da Legião de Honra francesa. Faleceu em Paris, a 6 de Março de 1992. 17
MENDES, Rita Canas, Vieira da Silva: O espaço de uma vida; in AA. VV., Longos dias têm cem anos. Vieira da Silva: Um olhar contemporâneo. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009. 18
MARQUES, Vasco, Moving pictures: O espaço e o tempo na 'cinepintura' de Voeora da Silva; in AA. VV., Longos dias têm cem anos. Vieira da Silva: Um olhar contemporâneo. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2009. 19
ROSSI, Aldo, L'architettura della città. CittàStudi, Milano, 1966.
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KOOLHAAS, Rem, Delirious New York. Electa, Milano, 1978.
Álvaro Siza, Piscina municipal da Leça de Palmeira, 1963 Fotografia do autor João Luís Carrilho da Graça, Centro de Documentação e Informação no Palácio de Belém, Lisboa, 1997-2002 Fotografia do autor Francisco e Manuel Aires Mateus, Museo do Farol de Santa Marta, Cascais, 2007 Fotografia do autor
l'arrogante bisogno di conclusioni. Le sue costruzioni richiedono tempo e attenzione; sorprendono, con i conflitti che esibiscono; soprattutto, contrappongono il tempo astratto e soggettivo degli spazi che le costituiscono allo scorrere distratto e veloce della vita nella quotidianità.” (Francesco Dal Co, Álvaro Siza e l'arte della mescolanza, 1998) Desde as suas primeiras obras, Álvaro Siza21 revela aqueles que serão e se tornarão os temas fundamentais de uma narração poética ao longo de metade de século; numa primeira fase enquanto herdeiro de um modo de fazer arquitectura, culminando, a par com o seu mentor, na distinção de progenitor da escola portuense. Tanto na Casa do Chá (1958-63) como nas Piscinas Municipais de Leça da Palmeira (1961), no litoral oceânico, a arquitectura de Siza revela, na sua relação com o contexto, uma necessidade de geometrizar o espaço numa disposição através da definição de uma espécie de tensão estridente, contrastante, entre a vocação natural do lugar e o rigor absoluto da geometria. As suas obras inserem-se na paisagem, mas mais que uma tendência para a exaltação de tal facto, procuram um confronto, quase um contraste, mediante o qual se torna clara e definida a condição artificial da construção.22 “A relação entre natureza e construção é decisiva na arquitectura. Esta relação, fonte permanente de qualquer projecto, representa para mim como que uma obsessão.” (Álvaro Siza, Imaginar a evidência, 1998) Na sua longa produção a obra de Siza poderia, e mereceria, ser exposta na sua totalidade, quase enquanto manifesto do presente texto, seja pela imprescindível relação com o território, pela consciência de uma memória colectiva da qual a construção é representante primordial, quer pela contínua procura da abstracção. Contudo, a intenção deste texto serve um outro propósito. Aquilo a que a presente investigação se propõe relativamente ao fazer arquitectónico passa por encontrar os aspectos fundamentais da sua obra por comparação com aquela dos mais jovens, João Luís Carrilho da Graça 23, Francisco e Manuel Aires Mateus24, distinguidos melhores intérpretes no panorama contemporâneo português pela capacidade de alcançar através da semântica da própria obra a, já tratada, suspensão espácio-temporal. Se bem que a procura advenha mediante métodos e experiências que parecem confluir em questões autónomas, pessoais, na sua composição substancialmente diferentes, estas, contudo, encontram correspondência na propensão pelo alcance à essência, ao silêncio. Como foi tentado demonstrar na transdisciplinaridade e unidade do produzir artístico.
Em Siza, o estado de sublimação vem realmente alcançado através da padronização do uso da linha, geradora de tensões que encontram no ângulo, em alguns fragmentos da construção da obra – espaços por vezes secundários, quase intersticiais – uma força perturbadora que gera um sentido de estranheza ao qual é impossível escapar. O tempo entra na obra determinando uma perca de consciência do espaço. A fissura, a fresta, o ângulo mostram a cura 21
Álvaro Joaquim de Melo Siza Vieira, nasceu em Matosinhos a 25 de Junho de 1933. Considerado um dos grandes mestres do modernismo ainda vivos, é a personificação da mais sintética e complexa arquitectura portuguesa. Coleccionador de inúmeras condecorações, foi galardoado com o grande prémio da arquitectura, o Pritzker Prize em 1992, e com a Royal Gold Medal em 2009. 22
DAL CO, Francesco, Álvaro Siza e l'arte della mescolanza, in: Frampton, Kenneth, Álvaro Siza. Tutte le opere. Electa, Milano, 1999.
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João Luís Carrilho da Graça nasceu em 1955. É arquitecto e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Galardoado inúmeras vezes, o mais recente reconhecimento do seu trabalho foi a atribuição do prémio Piranesi, pelo projecto de musealização do Núcleo Arqueológico do Castelo de São Jorge, em Lisboa. 24
Manuel e Francisco Aires Mateus nasceram na cidade de Lisboa, em 1963 e 1964, respectivamente. Estudaram juntos na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, e rapidamente se tornaram conhecidos pelas suas obras de grande clareza conceptual e expressiva. De momento são dos arquitectos portugueses com maior projecção a nível internacional.
Álvaro Siza, Fundaçao Serralves, Porto, 1994 Fotografias do autor Álvaro Siza, Edificio da FAUP, Porto, 1994 Fotografia do autor
dos espaços primários; a atenção habitualmente dirigida para o centro da composição volta-se para o auge da tensão dos elementos. Nos meandros recônditos da regra geométrica. “...a ênfase que lhe põe sobre a importância das relações mais que sobre as formas […] O uso das linhas reguladoras serve para definir eixos visuais que distorcem qualquer objecto que atravessam, construindo alinhamentos cujos elementos se relacionam por inflexão. Numa estratégia que se sublinha e em conjunto se subvertem as prevalências, as perspectivas emanam de, ou convergem num único ponto de fuga…”25 “Álvaro Siza è un architetto grave, potente e portoghese.” (Fernando Távora, Omaggio ad Álvaro Siza, Porto 1992) A geometria adquire corpo, ganha volume e torna-se muro, claustro, recinto. A rectificação do ângulo gera a unidade do espaço. O seu esvaziamento, o pátio. “Carrilho da Graça explora os componentes da construção, analisa-os, levando-os ao extremo e os reduz ao seu esqueleto sem suspender a expressividade”26 O seu projectar é um contínuo confronto entre estruturas primárias, absolutas, essenciais, agregadas por uma forte ideia de união e síntese, de uma continuidade expressa pela obsessiva exploração destas figuras próprias da arquitectura mediterrânea - o recinto, o pátio, o embasamento - declinados em cada projecto através de pequenas variações, com o propósito de uma progressiva simplificação, redução ao essencial, aproximação à perfeição. “Mediante a experimentação de variações mínimas, a essencialidade do gesto plástico, controlado e animado de subtis vibrações, torna-se intensidade, lugar de acumulação de tensões desenvolvida pela contracção de elementos sempre mais escassos.”27 O muro, memória do Alentejo, tende a simplificar-se, entregando-se a uma abstracção extrema, expressão de um limite que deixa o lugar a um vazio, o pátio, circunscrito num recinto de estreita intimidade. O embasamento afirmase como elemento de enraizamento ao solo e plano artificial de descoberta do horizonte. “O universo íntimo, assim criado, gera um lapso temporal, mais que físico, introduzindo uma dimensão de suspensão.”28 Em suporte da dimensão temporal, o uso da rampa, da espiral – assim como ocorre com as perspectivas tortas de Vieira da Silva – gera um elemento dinâmico no interior da composição. A tensão é revelada da suspensão da massa, num desafio à gravidade ao modo dos corpos negros de Rui Chafes. O muro liberta-se da estrutura, branco, oferecendo-se à luz, como para Cabrita Reis. Resiste suspenso a meia altura, gera ao seu redor espaço suspenso. “Lembro-me de um pintor que me disse, um dia: Você não pode continuar a fazer coisas assim tão depuradas. Que fará depois?”
(Maria Helena Vieira da Silva, Vieira da Silva. Monographie. Catalogue Raisonne, 1993) “Citei um provérbio nasrida quando escrevi pela primeira vez sobre a arquitectura dos irmãos Aires Mateus: ‘Para fazer uma casa pega-se num punhado de ar e prende-se-lo dentro de algumas paredes’ ”
(Alberto Campo Baeza, Pensar com as mãos, 2011)
25
TESTA, Peter, The architecture of Álvaro Siza. Porto, FAUP, 1988
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ALBIERO, Roberta, Misteriose presenze; in Albiero, Roberta; Simone, Rita: João Luís Carrilho da Graça. Opere e progetti, Electa, Milano, 2006.
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ibidem
28
ibidem
João Luís Carrilho da Graça, Pavilhão do Conhecimento, Lisboa, 1997 Fotografias do autor
Numa leitura tendenciosa, é como se a arquitectura, composta na sua origem por uma ordem geométrica complexa, tivesse visto as linhas assumirem espessura, tornando-se massa uniforme, ganhando volume. Agora, prepara-se para o ulterior estado de transformação física. Provavelmente o último, aquele definitivo. Dissolver-se, e tornar-se ar. Trinta anos mais novos que Siza Vieira e a sua geração contemporânea, Manuel e Francisco Aires Mateus fazem da procura do espaço e da matéria o seu particular modo de criar. Da fusão conceptual e física dos dois elementos, trazem forma os seus projectos, como saturados de profundidade e escassez de ar.29 O vazio, extraído por subtracção, por escavação, propõe-se como instrumento compositivo de individualização de relações, medidas, proporções. “il vuoto diviene materia prima dell'architettura. Si va oltre la pura contrapposizione tra pieno e vuoto: attribuire al vuoto la stessa importanza del pieno genera non una mera sommatoria, ma una terza entità, che ci porta a superare il raziocinio dialettico.”
(Gonçalo Byrne, Un rudere costruito, Casabella 700) Campo de acção que concorre às relações entre as formas, ao mesmo tempo, condição necessária à existência da forma. A exacerbada exibição das massas dos volumes que restam a evidenciar o estado físico do vazio, surge invadida por um sentido de abstracção. “Como se os pormenores não fossem necessários. Depois, ao vivo, estão repletas de pormenores “silenciosos” que mais não fazem que potenciar a operação principal.”30 As razões de fundo desta natureza votada à redução exasperada parecem afundar as próprias raízes na arqueologia. Como se a redução formal fosse obra do tempo, que liberta a forma da contingência, estruturando-a sobre o conceito de essencialidade. Eliminando o conceito de superfície. “As coberturas transformam-se em praças; interstícios de diversas amplitudes acolhem as passagens, filtram a luz, distinguem com rigor as partes; os cheios e os vazios, regulados por uma geometria na qual as linhas constitutivas se desdobram para evidenciar os volumes”31 O espaço externo penetra nos limites da arquitectura e entre eles se confundem. “O objectivo último é a conquista de um espaço evacuado, disponível, no qual restam impressos os traços do laborioso processo de subtracção e eliminação”.32 “Tentam, e conseguem, deter o tempo, permanecer, e com isso fazer com que a sua arquitectura perdure.”
(Alberto Campo Baeza, Pensar com as mãos, 2011) Mediante a análise comparativa das obras de um escritor, de dois escultores, de um realizador, de uma pintora, de três arquitectos, pôs-se em evidência o facto de diversas disciplinas, aparentemente distintas entre si, encontrarem na verdade a mesma raiz num carácter científico relativo à questão do conhecimento humano. A arte, a cultura. A procura da suspensão do espaço e do tempo, enunciada através do seu significado e sua descrição, resulta portanto num utensílio útil a definir alguns dos aspectos teóricos da composição artística, mas ao mesmo tempo a redesenhar o papel da arte, e em particular da arquitectura, na sociedade. 29
FERLENGA, Alberto, Lievi masse, Casabella n°743, Electa, Milano, 2005.
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BAEZA, Alberto Campo, Pensar com as mãos, Caleidoscopio, Casal de Cambra, 2011.
31
FERLENGA, Alberto, Lievi masse, Casabella n°743, Electa, Milano, 2005.
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MARTÍ ARÍS, Carlos, Silenzi Eloquenti. Borges, Mies van der Rohe, Ozu, Rothko, Oteiza. Marinotti Edizioni, Milano, 2002.
Francisco e Manuel Aires Mateus, Edificio da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa, 1998. Fotografia do autor
OBJECTIVO "Los intelectuales aspiramos a ser agentes morales y no meros servidores del poder.”
(Oriol Bohigas, Contra la incontinencia urbana. Reconsideraciòn moral de la arquitectura y la ciudad, 2004) O estudo proposto é formulado a partir do desejo de demonstrar a possibilidade de uma alternativa: respeito a quem escolhe ultrapassar os efeitos das mudanças globais assumindo um comportamento de renunciadora impotência - a prescindir das consequências que estes trazem - o objectivo deste argumento é o de indicar a exemplificação de outro caminho, de um comportamento diferente, que escolha a procura de significado como ponto fixo, irremovível, independente do contingente. As teorias de uma cidade genérica, ao mesmo tempo filha e vítima de uma perda total de valores, devida à mutação das condições de vida, é qualquer coisa que a ética intelectual deveria levar-nos se não a recusar, pelo menos a considerar com comportamento prudente. Ao contrário Koolhaas decide saltar a onda, de ser porta-voz desta barbarização, de a teorizar como se fosse inevitável. "Na nossa actual barbárie é operante uma teologia extinta, um sistema de referências transcendente da qual morte lenta e imperfeita produziu formas substitutas, paródias. As estruturas da decadência são tóxicas. Vivemos actualmente numa pós-cultura".33
Redescobrir os valores, se não aqueles perdidos, outros que individuem uma posição em respeito à condição de mudança34: um factor determinante na possibilidade de ganhar consciência de um presente, do qual se faz intérprete, para imaginar um futuro, que decida não se deixar à deriva de uma sociedade definida líquida e assim destinada a permanecer. Mas que pelo contrário desfrute da condição dramática da crise, para levar ao auge o autêntico significado etimológico de escolha. A cultura, escritora do próprio tempo, deve voltar a interrogar-se acerca da procura de um significado. A cultura portuguesa é proposta por antítese como paradigma da redescoberta de uma memória colectiva, de uma identidade local, que não queira negar, mas contribuir para melhorar o nível global, mediante a própria procura. "Il rifiuto dell'arte come aggressione isterica ai sensi, promossa dalla pseudo-cultura mediatica, a favore dell'arte come contemplazione, introspezione destinata a svelare il mistero del mondo.”
(Carlos Martì Aris, Silenzi Eloquenti, 2002) A arquitectura, campo de individuação do problema, é proposta na sua condição transdisciplinar, construída por influência com a cultura, de onde absorve o espírito do próprio tempo para libertá-lo sob forma de construção física, para além de teórica. Esta é ao mesmo tempo acontecimento e grande responsabilidade. Considerando a cidade como pano de fundo das representações humanas, a arquitectura enquanto ciência que estuda e constrói a cidade, a narração pretende desenvolver-se de maneira multi-disciplinar, a vários níveis da arte e da cultura, representando estratégias, métodos e obras que não pertencem única e exclusivamente à esfera arquitectónica, mas que através do confronto e da comparação com esta possam restituir-lhe o próprio grau de 33
STEINER, George, Nel castello di Barbablu. SE, Milano, 1971.
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MATURANA, Humberto R., La realidad: ¿objectiva o construida?. Fundamentos biologicos de la realidad. Anthropos, Barcelona, 1995
componente artística. Individuando um método para reencontrar o significado original das coisas, uma nova leitura e uma reinterpretação dos significados do viver, a abstracção revela-se hoje uma necessidade. "Abstrair" deriva etimologicamente do verbo latino trahere. Equivale a obter qualquer coisa da totalidade intrinsecamente unida; tende-se a considerar abstractas aquelas obras que participam na procura do essencial e da renúncia do particular e do contingente como condição da existência. Como se tratasse, utopicamente, da possibilidade de imaginar de fazer dialogar de veras fisicamente as obras dos artistas no cenário das construções dos arquitectos analisados, a finalidade é portanto a de definir um percurso transversal, um itinerário linear, articulado, rico de referências em cada direcção e sector da arte, um hipertexto de relações potencialmente ampliáveis até ao infinito, através das quais analisar o tema da suspensão do espaço e do tempo, entendido como aspecto específico da poética pessoal de cada autor, mas significativo para além desta, a um nível mais geral. Explorando o panorama artístico português, a intenção é a de focalizar-se em algumas personalidades de relevo dos diversos campos - a literatura, o cinema, a pintura, a escultura, e naturalmente a arquitectura - analisando o papel do silêncio, da abstracção, da essencialidade, do vazio, na sua obra. Com o fim de demonstrar como se poderá aproximar, até mesmo parecer igual, por natureza, finalidade e resultado. Que talvez possa permitir ousar falar não só de uma escola, como ocorreu no Porto, mas de um movimento, talvez mesmo de uma corrente artística de nível internacional. A ideia compositiva do projecto é tratada em "Silêncios Eloquentes. Borges, Mies van der Rohe, Ozu, Rothko, Oteiza" (2002), ensaio de arte do arquitecto - e crítico - espanhol Carlos Martì Aris 35 sobre o silêncio na obra de cinco mestres da modernidade. Na introdução do livro explicita de maneira clara qual o comportamento que uma publicação de tal carácter deve assumir: “qualsiasi tentativo di costruzione teorica […] assume un ruolo ausiliario, una condizione secondaria, subordinata alle opere, che sono le autentiche depositarie della conoscenza, […]. È come la centina che rende possibile la costruzione dell'arco: una volta compiuta la sua missione, scompare e non rientra nella percezione che abbiamo dell'opera finita, ma sappiamo che è stato un passaggio obbligato e imprescindibile, un elemento necessario a erigere quello che ora vediamo e ammiriamo”
(Carlos Martì Aris, Silenzi Eloquenti, 2002) O objectivo que motiva a publicação desta investigação, é portanto o de ampliar o horizonte da difusão de tal experiência colectiva, em tal óptica por tanto tempo negligenciada, pelo menos em Itália. O cuidado de confrontar a obra de verdadeiros mestres - justificada pela paralela necessidade de aprendizagem com os mesmos - corresponde a consciência da impossibilidade de confrontar a produção senão de maneira parcial, seleccionada. Mas para isso, provavelmente, deverá existir a força de um similar projecto. No construir uma arquitectura literária que coloca lado a lado tanto autores da bibliografia completa a nível mundial penso em Siza - contemporaneamente a outros, talvez amplamente publicados em Portugal, mas cuja obra encontra dificuldade em se difundir no estrangeiro (e em Itália) do devido modo (Herberto Helder ou Rui Chafes), obtendo um efeito de relevar ambos. A narração particularizada permite um maior grau de liberdade de aprofundamento do tema específico, ampliando as 35
Carlos Martì Arìs é um arquitecto espanhol, nascido em Barcelona no ano de 1948. Desenvolve a sua actividade profissional e didática na sua cidade natal, assumindo o cargo de professor de projecto na Escola de Arquitectura de Barcelona.
margens de investigação; a aproximação multidisciplinar reconstrói uma lógica a um nível mais amplo daquele da publicação monográfica. O objectivo de difusão é prosseguido numa visão do todo, que garante visibilidade a autores ainda pouco conhecidos para lá dos confins. O desenvolvimento de um plano de trabalho pré-estabelecido seria, portanto, fundamental. Isto consiste em três partes interligadas de igual importância. Seriam então a escolha e o estudo aprofundado de um conjunto mais extenso de referências bibliográficas, do que aquele conhecido e disponível de momento em Itália, cujo acesso me seria permitido pelas instituições de apoio e centros de investigação, referidos em anexo, obtido também nas entrevistas que se poderão vir a realizar; a necessidade de construir um espólio de conhecimentos e experiências directas com as obras a estudar, tanto arquitectónicas como de outros campos artísticos, resultado da fruição das mesmas, que se encontram dispersas pelo território e em diversos museus e colecções; a necessidade de me instalar em Portugal durante algum tempo, de modo a poder realizar exaustivamente os contactos anteriormente referidos, e também com o intuito de inserir num contexto cultural que deverá ser estudado profundamente, ao ser envolvido e tornado participante dessa realidade. “Se c'è un momento generatore della scuola, lo si identifica solitamente con l'Inquerito, la ricerca condotta sull'arquitettura popolare portoghese, architettura senza architetti, nell'intenzione di trovare, nei segni e nelle forme depositati sul territorio, una risposta alla crisi della modernità, che è crisi di legittimazione del sapere e non solo di linguaggio.”
(Antonio Esposito, Giovanni Leoni, Architetti a Porto: una "scuola"?, Casabella n°700, 2002)
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