Na Fronteira da História: Um País Armado - Pelas Fortalezas do Algarve

Page 1

SCL

desporto cultura lazer

Algarve

Na Fronteira da HistĂłria: Um paĂ­s armado


ficha técnica

04

08

12

2 ...by Descla | Na fronteira da história : Um país armado


Caros leitores, Em Setembro escrevemos, finalmente, sobre um tema que já há muito tempo andava nas nossas cabeças: geoparques. O conceito é relativamente frequente mas nem sempre devidamente compreendido. Muitos olham para o prefixo geo e pensam que se trata de um parque com importância geológica. É verdade, mas não se resume a isso: para ser assim classificado, o território em questão tem que possuir não apenas um forte património natural mas também cultural, e a gestão dessa área tem que procurar o desenvolvimento sustentável. Ou seja, tem que se apostar no turismo, na criação de riqueza, mas sempre respeitando os

modos de vida das populações que vivem no geoparque e protegendo os geossítios, as espécies de fauna e flora e os seus habitats. Em Portugal existem quatro geoparques e um aspirante a esse título. Nesta revista vamos de Trás-os-Montes às ilhas açorianas para lhe dar a conhecer vulcões, lagoas e cascatas mágicas, praias selvagens, fósseis com milhões de anos, vales glaciares, muralhas imponentes, tradições reinventadas. É uma viagem por paisagens grandiosas, histórias milenares e infindáveis segredos da natureza. Vem connosco?

Boas leituras!

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 3


Alcoutim, o falcão real D. Dinis mandou construir o Castelo de Alcoutim no século XIV. Texto: Lino Ramos Fotografias: Vítor Teixeira / Câmara Municipal de Alcoutim

4 ...by Descla | Na fronteira da história : Um país armado


Segundo Adalberto Alves, no seu Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, a origem do topónimo Alcoutim é a expressão árabe al-quṭamî, que significa “o falcão real”. Esta terra teve, de facto, um papel importante de defesa, não do império muçulmano, mas do território português, como pro-

va o castelo da vila, que o rei D. Dinis mandou construir no século XIV para proteger a fronteira e controlar o comércio no rio Guadiana. O edifício tinha uma ampla cintura de muralhas, rasgadas por três portas, a do Guadiana, a de Tavira e a de Mértola, dispostas segundo a orienta-

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 5


ção geográfica correspondente. Na vila há um castelo mais antigo, o “Castelo Velho”, construído pelos árabes entre os séculos VIII e IX, onde um grupo familiar de um muçulmano, talvez da tribo berbere dos Kutama, controlaria o tráfego mercantil do Guadiana e teria o domínio sobre a exploração dos recursos económicos locais, designadamente a actividade mineira. Os muçulmanos andaram por aqui 500 anos, deixando um vasto legado na toponímia. Foram eles que acrescentaram o nome Uádi ao Ana ou Anas, como os romanos chamavam a este importante rio ligado às rotas do Mediterrâneo – ficou conhecido, então, por Odiana, e por ele circulavam, ao longo de quase dois mil anos, ouro, prata, cobre, trigo, couro, azeite, mel, sal e pescado, entre outros produtos. O Cais Velho era o porto receptor, mas não só. Era aqui que se encontravam, também, almocreves, guardas, médicos, padres e contraban-

6 ...by Descla | Na fronteira da história : Um país armado


distas que serviam em Alcoutim e em Sanlúcar de Guadiana, do outro lado da fronteira. Durante as Guerras da Restauração, Alcoutim foi palco de confrontos e escaramuças militares, como o duelo de artilharia travado com o território castelhano de Sanlucar del Guadiana. Mais tarde, liberais e miguelistas disputaram aqui o domínio do rio Guadiana. Veio o século XX e com ele o isolamento de uma terra onde faltavam vias de comunicação modernas, electricidade e telefone. Saiu gente, o que mutilou a actividade agrícola e pastoril. A vila sobreviveu, e hoje atrai pela história e beleza da sua paisagem. Do miradouro do Pontal, temos uma vista privilegiada para o rio Guadiana e suas margens de vegetação luxuriante. E há a bela Praia Fluvial do Pego Fundo, de areia dourada e com um vasto leque de infra-estruturas e serviços, incluindo acessos adaptados a pessoas com mobilidade reduzida.

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 7


Forte de Castro Marim

8 ...by Descla | Na fronteira da histĂłria : Um paĂ­s armado


Castro

Marim: uma

defesa contra castelhanos e corsários

A vila raiana foi uma importante praça de guerra do Algarve. Texto: Lino Ramos Fotografias: Município de Castro Marim

Continuamos a seguir o Guadiana e eis que chegamos a Castro Marim, que durante séculos foi uma importante praça de guerra do Algarve. Desde cedo os povos que ocuparam este território sentiram necessidade de se defenderem. A primeira fortaleza terá sido um castro familiar ou

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 9


de povoamento, construído no período neolítico no cimo de um monte, o mesmo onde D. Afonso III mandou erguer um castelo no século XIII, após a conquista do Algarve aos mouros. Começava uma nova era em Castro Marim. Em 1277, o rei concedeu Carta de Foral à vila, com grandes privilégios, tentando com isso atrair população. O sucessor, D. Dinis, ordenou a construção da cerca medieval, que reforçava a defesa desta terra perante o domínio de Castela. Os reis sabiam bem a importância da vila pela sua localização estratégica: era a única em todo o extremo sudeste português, que vai até à foz do rio Guadiana. A importância era tal que Castro Marim acolheu mesmo a Ordem de Santiago, que ocupou o castelo entre 1319 e 1356, ano em que foi transferida para Tomar, devido ao fim das lutas contra os mouros e de um progressivo desprestígio da zona. A partir de então, a vila começou a despovoar-se, apesar dos privilégios atribuídos pelos monarcas. Castro Marim recuperou prestígio no século XV, com os Descobrimentos, pela proximidade ao Norte de África, tornando-se numa das prin-

“Está Castro Marim situado na cabeça de um monte alto, de todas as partes cercado de mar senão de poente, e o sítio é bem acomodado ao lugar donde está, que é fronteira de Castela, onde tem por competidora uma grande vila, mas espalhada, chamada Aiamonte (…) (Frei João de São José. Chorographia do Reyno do Algarve. 1577)

cipais praças de guerra aquando do destacamento das nossas tropas além-mar: a fortaleza não só apoiava as conquistas ultramarinas como também vigiava possíveis ataques de corsários. Com o passar dos anos, a vila expandiu-se para fora das muralhas, começando a ganhar a forma que hoje vemos. Durante as Guerras da Restauração, D. João IV mandou reconstruir o castelo e erguer o Forte de S. Sebastião e o Revelim de S. António. O primeiro transformou a velha fortaleza na praça militar mais importante de todo o Algarve. A planta do forte,

10 ...by Descla | Na fronteira da história : Um país armado


bem adaptada à colina, criou um recinto amuralhado irregular, que integra cinco baluartes e cuja porta principal está virada a Norte, precisamente na direcção do burgo e do castelo. O revelim, mais pequeno, servia para controlar a navegação do Guadiana. No seu interior está a Ermida de Santo António, uma bela construção barroca com capela-mor quadrangular, delimitada por fortes pilares-cunhais. O castelo de Castro Marim foi muito afectado pelos sismos do século XVIII, em particular o de 1755, o que, a par das mudanças geomorfológicas do estuário do Guadiana, diminuiu o papel mercantil desta vila e levou à saída de população. Restam as memórias de um passado glorioso e, acima de tudo, uma identidade muito própria, fruto do contacto milenar com diversos povos do Mediterrâneo: ainda vemos gente à porta de casa a fazer rendas de bilros para decorar toalhas de mesa; há homens que tecem cestos com palha e cana, folhas de junco e palmeira, enquanto outros extraem o sal e a flor debaixo do sol escaldante de Verão; as habitações, essas, continuam a ser brancas, feitas de cal e telha.

Forte de Castro Marim

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 11


“A cidade ideal do iluminismo”

Não há castelo nem muralhas. Vila Real de Santo António é muito mais recente do que as vilas e cidades que vimos até aqui. Texto: Lino Ramos Fotografia: Município de Vila Real de Santo António

As praças-fortes foram conquistadas/ por seu poder e foram sitiadas/ As cidades do mar pela sua riqueza/ Porém Cacela/ Foi desejada só pela beleza. As palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen estão na parede de uma das casas da aldeia de Cacela Velha, considerada por muitos a mais bela da Ria Formosa. Situada no topo de uma colina, a povoação foi conquistada pelos cavaleiros de Santiago em 1249. Ao fundo, uma pequena fortaleza vigia a imensa costa. Ainda não estamos na fronteira, ao começar a viagem por Vila Real de Santo António, o último destino desta rota. Cacela prendeu-nos a atenção pelo encanto, claro, mas também pe-

las palavras da poetisa. Será que uma aldeia foi desejada apenas pela sua beleza? É possível. Há uma outra razão para começarmos o percurso por aqui: ao contrário das anteriores, esta cidade não tem propriamente uma história de guerras nem conflitos de fronteira, pois é muito mais recente. A foz do rio Guadiana divide o extremo sudeste português do extremo sudoeste espanhol. Durante muitos anos, Castro Marim foi a única vila portuguesa a proteger o território nacional nessa vasta zona. Em 1774, o Marquês de Pombal decidiu criar aí uma nova cidade, Vila Real de Santo António, perto da antiga vila de Santo António de Arenilha, desaparecida

12 ...by Descla | Na fronteira da história : Um país armado


no século XVII devido ao avanço do mar e a alterações do leito do rio. “A cidade ideal do iluminismo”, como foi projectada, demorou apenas dois anos a ganhar forma, com ruas e edifíciosiguais, feitos à base de peças pré-fabricadas que depois eram aplicadas no local, acelerando a construção. Uma grande marginal percorria as várias centenas de metros que separavam o aglomerado urbano do rio. E, como não podia deixar de ser, um grande largo, a Praça Marquês de Pombal, a apenas dois quarteirões do Guadiana – aqui ficava a Casa da Câmara, a cadeia e o Corpo da Guarda. Ao centro está o Obelisco e atrás dele a Igreja de Nossa Senhora da Encar-

nação. A praça, quadrangular, tem uma geometria perfeita: cada um dos lados tem precisamente 330 palmos de 22 centímetros; a altura do Obelisco (50 palmos) está para a das fachadas das casas da praça (30 palmos), assim como a altura da Igreja (80=50+30 palmos) está para a do Obelisco. Vila Real de Santo António desenvolveu-se muito no século XIX com a expansão da indústria conserveira, fruto de investimentos espanhóis, gregos e italianos. A pesca, sobretudo de atum e sardinha, continua a ser uma actividade económica fundamental, mas desde os anos 60 do século passado que o turismo assume um papel muito importante.

Na fronteira da história : Um país armado | ...by Descla 13



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.