Workshop S E MANA DE CE L E BR AÇÃO DO DI A DA F UN ÇÃO P ÚBLI CA AF R I CA NA 22 E 23 DE JUNHO
Tópico 6: Desafios para Gestão Municipal e Descentralização
Dr. Salomão Furtado
Estrutura da Apresentação I.
Descentralização: Conceptualização e dimensões II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde III. Descentralização: Vantagens, méritos e limites IV. Concretização da descentralização territorial V. Modelos de descentralização: Opções, constrangimentos e desafios à gestão Municipal VI. Considerações finais
I. Descentralização: Conceptualização e dimensões
Etimologicamente, descentralizar significa tirar do centro para a periferia. Aplicado à organização estatal, traduz o processo através do qual atribuições administrativas do Estado, enquanto pessoa colectiva de âmbito nacional e com fins gerais, são distribuídas para pessoas colectivas distintas e de âmbito territorial ou institucional mais limitado;
O conceito de descentralização serviu Inicialmente apenas para caracterizar o posicionamento das autarquias ou colectividades territoriais locais face ao Estado.
Entende-se por Autarquias Locais – “pessoas colectivas públicas territoriais dotadas de órgãos representativos das respectivas populações, que prosseguem interesses próprios destas. ( art. 230, n. 2, CRCV).
I. Descentralização: Conceptualização e dimensões
Paralelamente ao reconhecimento das autarquias locais, o próprio Estado - cada vez mais assoberbado com tarefas novas e diversificadas - rendeu-se às vantagens da autonomização de alguns dos seus próprios serviços;
Tentava-se, desse modo, tirar proveito da eficiência gerada pela especialização e também contornar os condicionamentos, sobretudo financeiros, próprios do regime administrativo comum: assim surgem os estabelecimentos, empresas e institutos públicos e a chamada administração indirecta do Estado;
I. Descentralização: Conceptualização e dimensões
Por outro lado e por impulso do crescente reconhecimento do principio da participação dos particulares nas funções administrativas, o Estado passou, também, a entregar certas tarefas e assuntos da administração à gestão dos próprios interessados, designadamente através das chamadas corporações ou associações públicas;
Hoje a unidade da administração pública é, pois, uma ficção, substituída pelo princípio do pluralismo administrativo ou da pluralidade de administrações públicas;
I. Descentralização: Conceptualização e dimensões
O conceito de descentralização acabou por englobar todas as situações em que, formalmente, existem outras pessoas colectivas públicas a exercer funções administrativas, abrangendo além do caso das autarquias locais, também o de entes de base não territorial, como as associações públicas, as universidades ou as instituições particulares de interesse público (descentralização corporativa, associativa, institucional e funcional) ;
Com efeito, a descentralização, enquanto processo e critério de repartição de competências e atribuições entre o Estado e outros entes distintos pode ser, e tem sido, concebida, antes de mais, como um instrumento de democracia participativa, isto é, de participação dos interessados no exercício das funções do Estado;
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
Descentralização é então assumida em termos constitucionais como vector essencial da organização do Estado, e elemento charneira para a construção de Estado de responsabilidades partilhadas assentes em princípios de complementaridade e da subsidiariedade ( Art. 2º, n. 2 e 230º da CRCV);
Nos termos Constitucionais, “ a República de Cabo Verde passa a organizase em Estado de direito democrático assente nos princípios da soberania popular …” e
“ … reconhece e respeita, na organização do poder político, a natureza unitária do Estado, a forma republicana de governo, a democracia pluralista, a separação e a interdependência dos poderes, …”
“.. e a existência e a autonomia do poder local e a descentralização democrática da Administração Pública”. (art. 2º , n 2 da CRCV)
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
Ao definir o Estado de Direito Democrático, a Constituição coloca, deste modo, como princípio superior de organização do poder político, a descentralização democrática da Administração Pública.
E, de uma forma mais impressiva, volta, ainda, a realçar que a descentralização deve ser tida pela Administração Pública como o processo, por excelência, que assegura a realização do interesse colectivo;
Na organização do poder politico, um titulo próprio é reservado ao Poder Local, nele se regulando, sintética mas extensivamente, o regime das autarquias locais, das quais o município é a referência, mas se prevê, também, a possibilidade da existência de outras infra e supra municipais (arts 230° a 239° da CRCV);
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
No art. 238° estatui, para o legislador ordinário, que as atribuições e organização das autarquias locais devem ser estabelecidas “com respeito pelo principio da autonomia e da descentralização”, permitindo o no 2, a delegação, em organizações comunitárias, de tarefas administrativas que não envolvam exercício de poderes de autoridade;
A eleição dos órgãos das autarquias locais por sufrágio democrático e a autonomia do poder local constituem limites materiais da revisão constitucional (cfr art. 290° 1 c) e e); - não podem ser objeto de revisão.
O facto de a Constituição garantir tão rigidamente e regular com relativo pormenor as autarquias locais, mostra que ela as considera — e portanto, à descentralização territorial - o vector fundamental da descentralização administrativa;
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
A razão de uma tal preferência deve ser encontrada na convicção de que esse é o processo que melhor assegura e exprime o “pluralismo na organização politica democrática” que o legislador constituinte propugna como elemento fundamental do Estado de direito democrático;
Todavia, o facto da Constituição, também garantir, paralela e diferenciadamente, a “descentralização democrática da Administração Pública” e determinar que o próprio desenho da organização das autarquias locais se paute não só pela autonomia, mas também pela “descentralização” só pode significar que o conceito constitucional de descentralização administrativa extravasa a descentralização territorial e integra também a descentralização não territorial;
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
Tendo em conta o desenho que a lei fundamental faz da administração pública no seu art. 240° e trazendo à colação que, dos princípios organizativos evidenciados no seu n° 2, apenas dois — descentralização e participação dos interessados — se encontram estreitamente imbricados com o conceito de democracia e que, por outro lado, o artigo faz referência expressa às associações públicas que são consideradas exemplo paradigmático dessa participação, será legítimo concluir-se que o conceito de descentralização democrática da Administração Pública se refere aos casos de auto administração;
Para a nossa Constituição, a descentralização abrangerá, assim e claramente, também a descentralização associativa ou corporativa. Mas, também não repugna que abranja a descentralização funcional ou por serviços, nos casos em que nesta ocorra, em algum grau, a participação dos interessados, como ex a segurança social (art. 70°, n 2 al. a) e para a gestão das escolas (art.78°, n 3 al. k);
II. Descentralização: Tratamento em sede da Constituição da República de Cabo Verde
A descentralização administrativa, para além de ser um princípio de estruturação da administração pública, é também simultaneamente um principio fundamental caracterizador da República de Cabo Verde;
É assim que, contrariamente à desconcentração que encontra assento constitucional exclusivamente em sede de princípios gerais da administração pública, a descentralização tem tríplice assento constitucional: em sede dos princípios fundamentais do Estado (artigo 2°); em sede dos princípios fundamentais da administração pública (art 240, n. 2) e, finalmente, em sede de organização do poder local (artigo 230° a 239º da CRCV)
III. Descentralização: Vantagens, méritos e limites No plano politico e administrativo a descentralização apresenta várias vantagens e méritos:
A primeira vantagem consiste na fragmentação e dispersão do poder politico e na criação e manutenção de um sistema de contra-poderes;
Uma segunda vantagem traduz-se no impulso que a descentralização dá ao desenvolvimento e ao enraizamento da democracia, através da criação de um espaço cívico suplementar ocupado por organizações da sociedade civil que a descentralização ajuda a nascer;
III. Descentralização: Vantagens, méritos e limites
Um terceiro mérito da descentralização é que ela constitui um motor da vida democrática local, tornando cada autarquia numa escola de democracia politica;
O quarto mérito da descentralização é que ela cria oportunidades para a afirmação de partidos de oposição , contribuindo para a emergência a nível local de lideres que aí ganham influência politica nacional;
A quinta vantagem da descentralização consiste na maleabilidade e a adaptabilidade da governação, permitindo combinar a uniformidade legislativa própria de um estado unitário, com a diversidade de problemas e dos interesses das comunidades locais;
Finalmente a descentralização tem ainda o mérito de possibilitar, promover e desenvolver o desenvolvimento local, em todas as suas dimensões (económica, social, cultural .. )
III. Descentralização: Vantagens, méritos e limites
Em Cabo Verde, o primeiro limite à descentralização é imposta pela estrutura do Estado. A Constituição define a República de Cabo Verde como estado unitário, cuja soberania é una e indivisível;
A estrutura unitária do estado não admite que outros órgãos, que não órgãos do estado , exerçam funções próprias de soberania.
Deste modo, não podem ser descentralizadas nas autarquias locais matérias compreendidas nas funções de soberania do Estado, exercidos pelos seus órgãos, tais como a aprovação dos actos legislativos , a aprovação dos tratados e acordos internacionais, a administração da justiça, a representação externa ,a defesa nacional, o controle das fronteiras etc
III. Descentralização: Vantagens, méritos e limites
O segundo limite à descentralização é o que decorre do principio da igualdade dos cidadãos . Como garantia deste principio, o Estado deve manter para si os poderes que permitem ao governo promover o desenvolvimento estrutural do país no seu conjunto, isto é, os poderes que viabilizam a colocação de todos os cidadãos em plano de igualdade tendencial nos domínios económico, social e cultural;
É também o principio da subsidiariedade , que assim o impõe. Há necessidades públicas que, pela sua natureza e âmbito, não podem ser satisfeitas a nível local sem quebra dos princípios da igualdade, da eficácia e da economia da acção pública
IV. Concretização da descentralização territorial Primeiras Eleições Autárquicas
Com as primeiras eleições autárquicas em 91, surgiu o desafio de construção de um poder local forte, actuante e prestigiado, capaz de mobilizar o desenvolvimento local e assumiu-se , pela primeira vez no espaço jurídico-politico nacional, de modo claro e inequívoco, a problemática do Poder Local;
A legislação autárquica original foi revista e consolidada na forma de Estatuto dos Municípios ( Lei nº 134/IV/95, de 03 de Julho), e adaptando-a ao quadro democrático do país, fixou as atribuições e competências dos municípios;
IV. Concretização da descentralização territorial
O Estatuto de 94 fixa para os municípios importantes atribuições no que respeita a administração de bens, planeamento, saneamento básico, saúde, urbanismo e habitação, transportes rodoviários, educação, promoção social, cultura, desporto, turismo, ambiente, comércio interno, protecção civil, emprego e formação profissional;
Optou-se por um sistema de cláusula geral de fixação das atribuições municipais, ou seja, o principio da competência genérica segundo o qual os municípios prosseguem todos os interesses próprios, comuns e especificas das respectivas populações;
IV. Concretização da descentralização territorial
Ao abrigo deste sistema, cabe aos órgãos municipais preencher, em cada momento, a norma aberta de competência plena, avaliando se esta ou aquela matéria respeita ou não aos interesses próprios, comuns e específicos da sua população e, em caso afirmativo, intervir na sua satisfação;
Criou-se, aqui, um espaço próprio para a concretização do chamado Principio de subsidiariedade, segundo o qual as atribuições e competências devem ser exercidas pelo nível de administração melhor colocado para prosseguir com racionalidade, eficácia e proximidade dos cidadãos;
É aqui que se coloca a problemática da coexistência entre a administração Local Autárquica Administração Periférica do Estado
IV. Concretização da descentralização territorial Existem potenciais fontes de conflito entre o mandamento de descentralizar e o de desconcentrar. A transferência legal de poderes pode ser, porém, retardada pelo Poder Central por motivos artificiais, substituindo a descentralização pela desconcentração, e obrigando à ponderação entre dois princípios constitucionais de igual importância: o princípio da descentralização e o princípio da prossecução do interesse público; Não existe, porém, qualquer incompatibilidade natural entre o processo de descentralização e o processo de desconcentração. Longe disso, devem ser dois processos concomitantes, ressalvados os poderes e atribuições de cada órgão.
V. Modelos de descentralização: Opções, constrangimentos e desafios à gestão Municipal Cabo Verde vem assistindo nestes últimos anos a muitas reflexões e debates a volta do Modelo de descentralização, com especial enfoque na Regionalização do País, com a criação de mais um nível de Autarquia Local, admitida pela CR. Estamos a falar de um processo de transição de Modelo de Descentralização Intermédio que procura conjugar, ponderar e harmonizar o processo de descentralização com o processo de desconcentração, para um Modelo de Descentralização Forte, que contemplaria, de imediato, um incremento da autonomia das autarquias locais, que poderia resultar na criação de uma esfera intermédia de Governo, de âmbito regional, e colocaria limites à presença do poder central nos municípios. A base de legitimação desta perspectiva é mais política (ou até, quiçá, histórica) do que económica ou administrativa; a diferença entre as populações, a sua cultura, a sua identidade, por outras palavras, um ethos diferenciado, justificaria o seu auto-governo e a divisão de competências com o Poder Central
V. Modelos de Descentralização : Opções, constrangimentos e desafios à gestão Municipal A descentralização vem sendo factor de afirmação do regime democrático pois, há uma crescente evolução das mentalidades quanto ao exercício da cidadania a nível local e o reforço da democracia O Poder Local tem-se revelado mais apto na promoção do acesso a equipamentos sociais nas áreas da educação, desporto e saúde, no abastecimento de água e energia, no fomento de actividades económicas locais, na infra-estruturação urbanística, na habitação social, etc., embora a exiguidade dos recursos financeiros, humanos e materiais com que os municípios se confrontam. Porém, apesar dos avanços, subsistem ainda muitos constrangimentos à plena assunção das competências e atribuições e à gouvernance local, estritamente relacionados com as insuficiências decorrentes da fraca capacidade institucional e de gestão municipal Os municípios são estruturalmente débeis em recursos, a capacidade de investimento é muito limitada, a capacidade institucional operacional é carente em instrumentos de políticas, em recursos humanos e materiais, a falta a visão e planeamento do desenvolvimento local, etc
V. Modelos de Descentralização : Opções, constrangimentos e desafios à gestão Municipal (cont.) Protagonizar uma Liderança forte, com uma visão e posicionamento claros, o desenvolvimento local, mobilizando e articulando todos os potenciais atores e arranjos institucionais locais para o desenvolvimento territorial
Adotar a cultura de planeamento Estratégico, com as opções claras e orientações quanto ao desenvolvimento local, abandonando a perspetiva de gestão corrente e em muitos casos eleitoralistas, que dificilmente impatam o desenvolvimento local Promover a reforma institucional e a modernização da administração municipal com introdução de instrumentos mais adequados de planeamento e gestão municipal e novas tecnologias, adequando-as aos desafios do novo contexto de desenvolvimento; Capacitar os seus recursos técnicos e capitalizar melhor os recursos humanos que existem nos diferentes territórios municipais, quer nas estruturas da Administração periférica do Estado, no setor privado e nas organizações não governamentais, para os desafios de desenvolvimento local
V. Modelos de Descentralização : Opções, constrangimentos e desafios à gestão Municipal (cont.) Adoptar um Estatuto próprio para o pessoal das Autarquias Locais, que mobiliza, incentiva e cria mecanismos de retenção das competências a nível local; Reforçar a descentralização financeira e a capacidade financeira dos Municípios, aumentando a sua participação nos recursos do Estado, pela via do Fundo de Financiamento Municipal e transferências de outros recursos
Explorar a via de Inter-municipalidade para a construção da eficiência e eficácia no aprovisionamento de bens e serviços às comunidades e por outro lado, apoiar as comunidades locais mais deprimidas do ponto de vista de desenvolvimento Reforçar a capacidade de controle, seguimento e avaliação da gestão municipal
Mobilizar a capacidade e competências técnicas para o apoio permanente aos municípios, nos mais diversos domínios da suas atribuições
VI. Considerações finais
Todos, porém, reconhecem que, mesmo com as suas grandes limitações e problemas, a descentralização contribuiu decisivamente para a ampliação das formas de acção administrativa e para a sua aproximação das populações.
Tem sido dito, com justiça, que o poder local democrático, constituindo uma forma de administração autónoma, à nível dos municípios , se traduziu por uma das mais promissoras realizações da nossa jovem democracia; Cabo Verde está, apesar das dificuldades que persistem (falta de recursos e de capacitação, fraqueza institucional e de gestão dos entes descentralizados), forçado a prosseguir o seu processo de descentralização territorial
.Questões para reflexão
Que Modelo de Descentralização para Cabo Verde? Quais os potenciais impatos que as Regiões podem trazer para o desenvolvimento local, regional e nacional? Que implicações para os Municípios, a criação de Regiões, enquanto categoria de Autarquia supra-municipal? Como financiar as regiões, tendo em conta, por um lado as necessidades de financiamento dos Municípios (infra) e a fraca base tributária das regiões e dos Municípios?
OBRIGADO PELA VOSSA ATENÇÃO