Cidades: um conceito vital para o capitalismo

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julho/2014

CIDADES: UM CONCEITO VITAL PARA O CAPITALISMO Em tempos de crise ecológica, questionamento da democracia enquanto sistema político coerente e emergência de experiências políticas anti-hierárquicas e coletivistas não é suficiente pensar um projeto de cidade sem dar prioridade ao protagonismo político das pessoas e principalmente, sem se comprometer com a garantia de necessidades básicas com autonomia e liberdade, livres das imposições de mercado e das regulações do poder público. Alimentação, Saúde e Moradia são campos básicos e elementares. Comunidades que convivem com crise alimentar, epidemias de patologias ou que estão em situação de rua e desabrigadas, voltam suas lutas em torno destas questões, pois elas estão diretamente ligadas à sua sobrevivência. A luta pela moradia nas cidades é equivalente a luta pelo direito a terra no campo, pois ambas almejam projetos políticos de caráter comunitário e coletivistas e são brutalmente reprimidas pelas armas do Estado e invisibilizadas pelo fetiche da vida consumista urbana. A crítica a partir do conceito de classes, neste momento, objetiva visibilizar a urgência das pessoas que vivem de modos indignos e inimagináveis para pessoas que sempre tiveram acesso à moradia, alimentação garantidos. Solidariedade, apoio mútuo e construção coletiva não são possíveis sem reconhecimento de privilégios. Um projeto politicamente justo, que considere as pessoas em toda sua diversidade de classe, étnica, sexual e cultural deve priorizar pautas básicas e urgentes como acesso à moradia e alimentação, bem como pensar sua execução fundamentadas a partir de iniciativas ecológicas e não predatórias como a permacultura e a bioconstrução, além de conter ações que viabilizem a autonomia alimentar, através de hortas urbanas, beneficiamento de alimentos e cooperativas de consumo, promover uma educação que colabore com as demandas da agricultura familiar urbana e organização artesanal e visem a utilização e geração de tecnologias limpas como a eólica e solar para obter energia. As discussões urbanísticas sobre a cidade, infelizmente, ainda são elogios ao concreto e uma exaltação à vida urbana capitalista segregadora. Pensar um espaço geográfico como cidade e não considerar os preâmbulos que


configuram este conceito é absolutamente incompatível com um discurso que diz ser voltado para as pessoas. A discussão sobre reforma urbana não aborda a hostilidade com os que não atendem a normatização estética capitalista e aos que não a legitimam. Lutar por uma cidade para as pessoas, é inevitavelmente, lutar pelas pessoas que compartilham de uma ideia elistista e segregadora e por um modo de vida análogo a escravidão. NOSSOS SONHOS NÃO CABEM EM SUAS URBES Isto está longe se ser uma apologia à vida no meio rural, seja em sua forma positivada – idílica e romantizada – ou na forma “realista” – por efeito das forças políticas dominantes que definem o que é o “real”. O que chamamos de “rural” é apenas o resultado da formatação, da redução das paisagens, relevos e biomas pela política espacial urbanocentrica capitalista, em áreas de extração de recursos e alimentos. O ruralismo é uma política que serve à urbanicidade. Esta política se coloca de forma que tudo (e todos) que não é urbano seja reduzido a simples reserva de matéria prima (e mão de obra) a ser (constante e eternamente) explorada em favor da vida nas cidades. Se posicionar contra o urbanocentrismo não implica também em uma refutação a tudo quanto exista no meio urbano. Mas passa por entender que as cidades se tornaram locais estratégicos para relações e práticas que sequestram as necessidades de seres humanos em nome do progresso das corporações. Este entendimento implica em reconhecer o caráter de dependência das pessoas nos campos da moradia, saúde e alimentação, que dentro no meio urbano são impedidas de terem o controle autônomo a nível individual e comunitário, ou seja, para garantir boas condições de moradia, saúde e alimentação, alguém precisa lucrar muito isto. Com a divisão urbano/rural sendo incontestável, a ideologia da cidade alcançou a pretensão de englobar (e se sobrepor a) todas as diferenças. É justamente no meio urbano guiado pelo princípio dogmático do crescimento econômico infinito, o contexto em que o capitalismo se mostra mais “desenvolvido”. A naturalização da urbe é constantemente produzida e reforçada pela máquina capitalista de administração de desejos. Seu poder é tão grande que, atualmente, poucas pessoas conseguem perceber as formas mais ostensivas de controle e dependência

a

que

estão

submetidos

nas

grandes

cidades.


Obrigados a consumir bens, serviços e comodidades produzidas por corporações, submetidos a instituições estatais que sobretaxam cada aspecto de suas vidas, muitos estão condenados a uma vida de dependência do trabalho assalariado. Positivado e cultuado (e não apenas entre os “burgueses”) o trabalho assalariado nada mais é do que uma forma sofisticada de escravidão por dívida. A maior parte das funções assalariadas são tediosas e desgastantes. Boa parte se dá em ambientes quase totalitários, uma vez que no capitalismo a ilusão democrática jamais deu o ar de sua graça na organização dos grandes meios de produção. GENTRIFICAÇÃO Cabe

aqui

pensar

nos

aspectos

políticos

do

que

reproduzimos

inconscientemente, apenas por estarmos em locais políticos pré-determinados. Não podemos ser ingênuos e não acreditar que uma experiência de classe, por exemplo, pode moldar nossas visões e nos cegar para questões que são mais latentes em classes distintas. A segregação social imposta brutalmente pelo sistema capitalista e pelo Estado almeja isso: distância política como elemento fundamental para não sensibilizar as pessoas, fazendo com que os setores sociais não solidarizem-se entre si. Entende-se por gentrificação o fenômeno que revitaliza uma região ou bairro valorizando-a economicamente e afetando ou excluindo a população de baixa renda local. As formas de gentrificação agregam, comumente, a inclusão de novos pontos comerciais, construção de edifícios e espaços culturais. O reordenamento urbano traz consigo um aumento dos custos de bens e serviços dificultando a permanência de antigos moradores de renda insuficiente para sua manutenção no local, cuja realidade foi alterada. Este processo interessa sobretudo aos políticos em geral, às grandes corporações, aos promotores culturais, artistas e aos planejadores urbanos. Esse modelo de mão única, realiza uma limpeza social e cultural nas áreas urbanas "degradadas" para torná-las novamente atraentes ao mercado através de mega-equipamentos culturais. A gentrificação passou a constituir-se como estratégia urbana crucial aos interesses do desenvolvimento capitalista, tendo se generalizado por cidades de todo

o

mundo.

É

certo

que

essa

evolução

evidencia-se

de


diferentes formas, em diferentes bairros e cidades, contudo, em termos gerais, podemos dizer que para que haja gentrificação é necessário: 1) uma reorganização da geografia social urbana, com substituição, nas áreas centrais da cidade, de um grupo social por outro, de estatuto mais elevado, seja pelo viés da habitação ou da circulação; 2) um reagrupamento espacial de indivíduos com estilos de vida e características culturais similares; 3) uma transformação do ambiente construído e da paisagem urbana, com a criação de novos serviços e uma requalificação residencial que prevê importantes melhorias arquitetônicas; 4) por último, uma mudança da ordem fundiária, que, na maioria dos casos, determina a elevação dos valores fundiários e um aumento da quota das habitações em propriedade. Em Recife, as comunidades de Brasília Teimosa, Bode e Encanta Moça, no entorno do Cais José Estelita, passam por este processo de maneira mais acelerada, impulsionadas sobretudo, pelos empreendimentos financiados por João Carlos Pães Mendonça. No Rio de Janeiro, o Porto Maravilha, na região portuária da cidade, desencadeia ações gentrificadoras de revitalização e desalojo a partir da construção de espaços voltados para o turismo e o consumo cultural midiatizado, ambos ligados às indústrias culturais, às artes, à publicidade, ao design, à moda, à cultura, imagem e marketing, arquitetura e decoração, entre outras, sob justificativa da preservação histórica e material da cidade. O consumo ou apreciação das atrações e espetáculos trazidos por estes espaços pressupõe uma educação mais globalizada e uma vivência cosmopolita não acessível a setores que tem urgências básicas como moradia, alimentação e saúde por exemplo. Os chamados projetos mistos que prevê à adesão de moradias populares e espaços culturais, coloca a população marginalizada em loco distinto dos


consumidores de cultura, pois estes, em síntese, reivindicam o acesso a uma cultura urbana propagada pela convergência das múltiplas informações midiáticas (TV a cabo, smartphones, internet, cinema e revistas especializadas), pelo desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e pelas novas tendências produzidas por uma elite artística que não necessariamente se interessa pelo o cotidiano, dinâmicas, narrativas e produção de cultura dos setores mais populares. CULTURA, AUTONOMIA E HORIZONTALIDADE Recife, como importante polo turístico no Brasil, possuí uma grandiosa gama de espaços culturais geridos por bancos e órgãos públicos, instituições, que por sinal, lucram muito com todo processo de higienização e gentrificação das cidades. Estes espaços se definem como públicos e oferecem à sociedade atrações na maioria das vezes gratuitas ou a preços acessíveis. Contudo, o caráter público destes espaços não necessariamente transforma-os em populares, na realidade, acabam não sendo atraentes para as pessoas que estão fora dos nichos universitários e artísticos. Ainda na cidade, existem espaços culturais e pontos de cultura populares que por sua vez não atraem, com suas significativas exceções, a classe média. Espaços culturais consumidos pelos setores não populares na periferia comumente são os que agregam valor a partir da tradição e remontam à uma identidade regional local construídas a partir dos processos de espetaculização e bairrismo fomentados pelo Estado. Considerando esta premissa é importante pensar a direção dos projetos referentes ao Cais José Estelita levando em prioridade a troca e a vivência cultural a partir da construção de moradias populares autônomas e sustentáveis, que foquem na soberania e autonomia alimentar com hortas urbanas agroecológicas, cooperativas de beneficiamento de alimentos e de consumo; construções elaboradas com técnicas de permacultura e bioconstrução, onde as pessoas poderiam protagonizar o levantamento de suas residências, espaços coletivos, centros produtivos e sistemas sanitários possibilitando não só a apropriação de conhecimentos técnicos e filosóficos mas sobretudo a propagação de formas alternativas de ocupar o espaço urbano ecologicamente coerente e contrárias a indústria da construção civil, mentora estrutural do Projeto Novo Recife.


Usando este espaço para priorizar pessoas em situação de vulnerabilidade social, que têm urgência por moradia, pela perspectiva da autonomia e da agroecológica, inevitavelmente abraçaríamos propostas de vivências culturais horizontalizadas e um ambiente de sociabilidade que permitiria a troca de experiências e de conhecimento pelas ações práticas. Uma realidade onde uma comunidade produz seu próprio alimento e beneficia o excedente, domina práticas de construções ecológicas, produz materiais e tecnologia a partir de inciativas artesanais, garante às pessoas de fora da comunidade a apropriação dos espaços coletivos para a realização de atividades e organiza cooperativas de consumo fundamentadas na produção interna, e aberta para produções artesanais externas, baseado num sistema de organização coletiva que garanta a equidade entre os seres, certamente virá acompanhada de inúmeras performances culturais, artísticas, poéticas e cinematográficas para celebrar e exaltar a liberdade vivida e para serem compartilhadas e apreciadas em público.


“A principal problemática inerente ao sucesso do Loft Living, enquanto produto para consumo no mercado imobiliário, em Nova Iorque, traduz-se na especulação imobiliária visível na inflação de rendas. A emergência do mercado Loft living traz consigo o fenômeno de gentrificação, que consiste na requalificação de espaço de forma a atrair classes sociais mais elevadas à existente, culminando na valorização do solo e consequente segregação dos habitantes. As primeiras vítimas deste fenômeno de gentrificação são, primeiramente, os donos dessas manufacturas e seus trabalhadores, seguindo-se da primeira geração de artistas, entre eles: pintores, fotógrafos, performers, escultores e artesãos, que são substituídos pela classe média e alta. Os números conferem tanto o sucesso do mercado como o da gentrificação deste bairro. Se no início dos anos 1960, se estima que o número de artistas a viver e trabalhar em lofts estaria entre os 3.000 a 5.000, no final dos anos 70, infere-se que esse número tenha ultrapassado os 50.000 artistas e “não artistas” a habitarem em lofts convertidos em habitação. Além disso, em 1975, as rendas do loft subiram de tal modo, que começaram a competir com as rendas de apartamentos em nova construções do resto da ilha de Manhattan. Em 1976, um artigo no New York Times apresentava a seguinte premonição “By 1985, the fashionable and artistic projects and complexes that will emerge will make this area [of Lower Manhattan] some of the most valuable real estate in New York City”. Claro que frases como esta amplificam a vontade de investimento naquela zona, assim como a valorizam na sua contemporaneidade. Conclusão, a grande maioria dos artistas, sem possibilidades econômicas, teve de sair. A emergência e sucesso do mercado do Loft Living, sugere o modo como esta nova sensibilidade, desencadeadora do movimento de preservação de edifícios antigos pode ser explorada comercialmente, Como justifica Zukin “Their growing identification with fine-arts production and fine old buildings led them first to try to protect space for artists and historic preservation and then to appropriate the space - which was in loft buildings - for themselves. In this process, art and historic preservation took a broader meaning. They became both more commercial and less elitist.” Como mostra Zukin, a alteração de zona industrial para zona artística não representa a vitória da cultura face ao capital, mas sim a preferência do consumidor. A história do mercado do loft living exemplifica-o.” Recycling Manhattan Joana Lúcia Bem-Haja De Almeida Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra


REFERÊNCIAS: Genocídio e Espetáculo: Algumas palavras sobre os processos vividos no Rio de Janeiro dentro de uma perspectiva anarquista. Publicado no Contrainfo Cidade pós-moderna, gentrificação e a produção social do espaço fragmentado, Luis Mendes. Publicado na revista Cadernos Metrópole Forjando os anéis: a paisagem imobiliária pré-Olímpica no Rio de Janeiro, Christopher Gaffney. Publicado na revista E-metrópolis Maravilha para quem?: ocupações na Zona Portuária carioca lutam pelo direito à cidade, em meio à chamada revitalização da região. Publicado na revista Democracia Viva Nossos sonhos não cabem em suas Urbes, Agpk e Alt. Publicado no Portal Protopia Ocupe Estelita: Entre a necessidade de ocupar e o medo da resistência, Frente Urbana Autônoma. Publicado no We RiseUp Recycling Manhattan, Joana Lúcia Bem-Haja De Almeida. Publicado no repositório digital da Universidade de Coimbra


COLETIVA VEGETARIANA ARTESANAL

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RESISTÊNCIA

AGROTÓXICO

MATA

VEGAN

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