Política de Justiça de Gênero da Diaconia Apresentação A Política de Justiça de Gênero é um documento institucional que fundamenta a atuação da Diaconia, organização não governamental cristã formada por 11 igrejas evangélicas1. Esta Política é resultado de um processo de análise sobre a prática da instituição e as relações estabelecidas com organizações e o público envolvidos no trabalho de Diaconia. A temática Justiça de Gênero foi assumida no Plano Decenal - 2010-2019, sendo abordada na primeira linha estratégica da missão, que trata dos DHESCAS - Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais - e está presente também de forma transversal nas demais linhas estratégicas institucionais. Reconhecendo as desigualdades existentes nas relações de poder, a Diaconia vem atuando para estimular as reflexões e mudanças de práticas que interfiram positivamente na transformação
das
relações
entre
as
pessoas.
Desta
experiência,
surgiram
questionamentos que estimularam a organização sobre os parâmetros balizadores da sua intervenção e sobre a necessidade de aprimorar a sua atuação e a sua concepção metodológica. No aprofundamento das análises temáticas sobre os DHESCAS, decidiu-se construir uma Política de Justiça de Gênero que tem como objetivos “promover, internamente, o estudo e o debate da temática justiça de gênero; contribuir para fomentar a justiça de gênero nas mais variadas instâncias da Diaconia; e fomentar a abordagem do tema com as parcerias para que estas atuem na promoção da justiça de gênero”. A relevância da abordagem da Justiça de Gênero em âmbito institucional parte de uma fundamentação bíblico-teológica. O documento apresenta princípios estratégicos a serem adotados pela Diaconia para garantir que a Justiça de Gênero seja vivenciada na organização e contribua para que outros grupos e entidades parceiras se comprometam e estabeleçam relações justas de gênero.
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Associação das Igrejas do Cristianismo Decidido; Confederação das Uniões Brasileiras da Igreja Adventista do 7º Dia; Exército de Salvação; Igreja de Cristo no Brasil; Igreja Episcopal Anglicana do Brasil; Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil; Igreja Evangélica Luterana do Brasil; Igreja Metodista; Igreja Presbiteriana do Brasil; Igreja Presbiteriana Independente do Brasil; e União das Igrejas Evangélicas Congregacionais do Brasil.
Marcos na caminhada - Histórico Em sua história de intervenções políticas e educativas, a Diaconia vivenciou diferentes momentos de experiências relacionadas à Justiça de Gênero. A priori, de forma recortada, foi dada ênfase em aspectos relacionados à violência doméstica contra a mulher, promoção de uma cultura de paz e passos na divulgação e apropriação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a incidência nas políticas públicas. A Diaconia, enquanto organização cristã de natureza interdenominacional, inovou ao assumir o compromisso de construir Justiça de Gênero, num contexto onde muitas igrejas cristãs não abordam tal temática. Para tanto, vem investindo em processos sistemáticos de formação do seu corpo funcional e diretivo e implementando estratégias políticas e educativas em alguns dos seus principais processos de intervenção. A decisão de trabalhar a temática junto às igrejas vem a partir da percepção clara do potencial mobilizador, formador e transformador latente nas igrejas. Nossos propósitos são que igrejas e grupos se apropriem do tema, reconhecendo a partir dele as violações de direitos humanos de mulheres; compreendam, que como comunidades religiosas, comentem violência de gênero, tanto por omissão quanto por práticas discriminatórias de gênero legitimadas por hermenêuticas descontextualizadas; e percebam ser necessário assumir o compromisso de promover ações efetivas e contínuas para transformação dessa realidade. Alguns marcos relevantes neste processo são: No final dos anos 90, o Programa de Apoio à Agricultura Familiar iniciou um trabalho de empoderamento econômico de mulheres por meio do fortalecimento de grupos produtivos. Com a reestruturação da Diaconia, o Programa de Apoio à Ação Diaconal de Igrejas define, em 1999, trabalhar a temática da violência doméstica, com recorte na violência contra a mulher, e direitos sexuais e reprodutivos, com recorte em HIV/AIDS. O processo foi com membros e lideranças de igrejas, nas regiões metropolitanas de Recife, Fortaleza e Natal. Sistematização e publicação das experiências vividas no período de 1999 a 2008, que resultou nos roteiros de oficinas para igrejas: superando a violência familiar
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contra mulher e o roteiro de oficinas para igrejas: AIDS e Igrejas, um convite à ação2. Em 2008, a Diaconia, em parceria com Associação Menonita de Ação Social, viabilizou a pesquisa Perspectivas e Experiências Referentes à Violência Íntima contra a Mulher – ouvindo pastores, pastoras, líderes no universo de igrejas evangélicas na Região Metropolitana do Recife, que resultou no livro: Até Quando? O cuidado pastoral em contexto de violência contra a mulher praticada por parceiro íntimo3. A construção do Plano Decenal com ênfase em direitos humanos (2010 – 2019), onde se incluiu na 1ª Linha de Missão ligada aos DHESCAs, relações de gênero como uma temática a ser trabalhada em todos os territórios de atuação da Diaconia. Elaboração do primeiro projeto com enfoque na temática justiça de gênero (2014 – 2016), apoiado por Igreja da Suécia, cujo título é Justiça de Gênero: mulheres e homens unidos na promoção da equidade, dignidade e inclusividade. Surgem as campanhas educativas direcionadas a igrejas: Sou uma Mulher de Coragem, com enfoque na superação da violência contra a mulher; e Proclamando Justiça de Gênero, que tem como público a juventude cristã. O acúmulo com esta experiência revelou para a instituição a importância de construir a política institucional de justiça de gênero e, por isso, trouxe consigo a necessidade da preparação técnica para elaboração do documento. Formação sobre Gênero e Religião, desenvolvida entre os anos de 2014 e 2016, em parceria com a Escola Superior de Teologia - São Leopoldo/RS e Faculdade Unida - Vitória/ES, para coordenações, assessoria político-pedagógica e integrantes das Câmaras Temáticas de Gênero nos territórios de atuação de Diaconia. Em 2015, elaboração do Termo de Referência e aprovação pelo Conselho Diretor para construção da Política de Justiça de Gênero da Diaconia. Formação, em 2016, do Grupo de Trabalho para estudo e construção da Política de Justiça de Gênero da Diaconia.
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http://www.diaconia.org.br/novosite/biblioteca/?page=2 http://www.diaconia.org.br/novosite/biblioteca/?page=2
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Justiça de Gênero: Fundamentos bíblico-teológicos “Corra porém o juízo com as águas, e a justiça como um rio impetuoso.” (Amós 5.24)
Na tradição bíblica há testemunhos de defesa da vida, principalmente da vida em condições de vulnerabilidade. A Bíblia afirma que o projeto de Deus para o mundo é a vida, não somente da mulher e do homem, mas de toda a criação: Deus não é somente o Criador, mas também aquele que garante as condições para que a vida possa ocorrer (Gênesis 1 e 2). Esta mensagem de vida é assegurada nas palavras e ações de Jesus, cujo ensino sobre o reino de Deus indica a presença de Deus na história e conduz à superação de todas as barreiras que impedem ao ser humano a sua plena realização. O reino de Deus proclamado por Jesus anuncia vida boa, digna e justa para toda a criação. Sua proclamação lembra tanto a soberania criadora e sustentadora de Deus sobre o mundo e a responsabilidade de cada ser humano diante do Senhor da criação quanto um chamado ao cumprimento do propósito divino de igualdade para toda a criação. Deus, autor e sustentador da vida, sempre se manifesta na forma de novas experiências com novos horizontes. Dessa forma, formulou-se a sua manifestação como aquele que ouve o clamor do seu povo e desce para libertá-lo: “‘EU SOU AQUELE QUE SOU’. Ele disse: ‘Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU enviou-me a vós!’” (Êxodo 3.14). Por esta razão, a memória histórica de Israel sobre sua origem, o êxodo, fundamenta a construção de uma nova sociedade e sua consciência como povo afirma-se em torno desta experiência que trouxe consequências sobre a formação da sua religião. Suas leis constitutivas repudiam a injustiça, o estar sob o domínio do outro, injustiça da qual Deus os libertou. Tais leis dispensam atenção especial aos grupos vulneráveis – grupos com direitos sociais reduzidos -, protegendo-os e procurando restabelecer a igualdade: prescrevem um “dízimo para o pobre” a ser recolhido ao fim de cada três anos, dá permissão para saciar a fome em seara alheia e estabelecem o “ano da remissão”: de sete em sete anos, todas as dívidas deveriam ser perdoadas e a liberdade deveria ser devolvida aos que, porventura, tivessem sido escravizados (Deuteronômio 15.1-11). A preocupação com a fome dos necessitados é clara: o dízimo da colheita e a parte que ficava no campo destinavam-se ao órfão, à viúva, ao levita e ao estrangeiro (Deuteronômio 14.22-29). POLÍTICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO DA DIACONIA
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Ademais, o que envolvia estes grupos ou a perversão do direito era acentuado no tocante ao estrangeiro: “Não oprimirás o estrangeiro: conheceis a vida do estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito” (Êxodo 23.9). “Eu sou compassivo” é o princípio teológico que serve de base para o direito. O direito nasce da vontade de Deus e o grito dos vulneráveis provocaria a sua intervenção. Neste sentido, entende-se porque profetisas e profetas, num novo momento histórico, reinterpretam o acontecimento libertador que serve de base às instituições de Israel. Sua pregação coincide com o período da monarquia israelita, que criou novos grupos e acentuou as distinções sociais. Os profetas referem-se ao passado, às origens de Israel, para rejeitar a injustiça. Lá buscam a inspiração para a construção de uma sociedade mais justa. Aceitar a injustiça é recair na situação de servidão anterior à libertação do Egito. Conhecer a Deus é “fazer justiça” (Deuteronômio 10.16-19; Jeremias 22.13-19; Oséias 6.4-16). Eles acusam a monarquia de provocar a morte de lavradores como Nabote (1 Reis 21), condenam os reis por serem idólatras (1 Reis 14.1,19). Defendem os “pobres”, isto é, os camponeses empobrecidos, não totalmente livres, mas que ainda não haviam se tornado escravos. Mostram como era a vida do camponês que era expulso de suas terras por pessoas que tinham “o poder em suas mãos” (Miqueias 2.1), explorado de modo radical, até os ossos, e forçado a trabalhar em Jerusalém, uma cidade feita com o sangue dos camponeses (Miqueias 3.1-4). Denunciam as violências contra o povo (Oseias 4.1) e os corruptos, exigindo uma nova prática: “Atendei o direito do órfão e pleiteai a causa das viúvas” (Isaías 1.17). Acusam diretamente o estado de cumplicidade com injustiça junto aos tribunais (Isaías 1.23). A monarquia há muito esquecera a defesa dos pequenos: buscava recompensas, aceitava subornos e encobria os desmandos dos poderosos (Isaías 10.1-2). A corrupção da justiça protegia os que planejavam abusos, os que necessitavam da lei tornavam-se desprotegidos, e o culto era usado para encobrir a injustiça (Jeremias 7). Da mesma forma, Jesus Cristo, o filho de Deus, dá atenção especial justamente às pessoas que viviam à margem da ordem vigente na sua época: mulheres, crianças, ignorantes da Lei, em suma, os que eram considerados pecadores e impuros. Sua mensagem sobre o reino de Deus, interpeladora e cheia de esperança, significa uma mudança nas suas condições reais de vida. Ele chama de felizes os pobres, os que choram, sofrem e são perseguidos por causa da justiça, pessoas que estavam excluídas do bem viver. Jesus denuncia também o uso ideológico da Lei que legitimava a separação entre POLÍTICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO DA DIACONIA
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as pessoas. Na sua época, as pessoas que se consideravam justas e puras diante de Deus não raramente coincidiam com os representantes dos grupos dominantes da sociedade. Os doentes, os fracos, mulheres e crianças eram classificados como pecadores e impuros, ou seja, eram vistos como pessoas que estavam numa situação irregular diante de Deus, o que resultava na sua exclusão das várias esferas da sociedade. Estas pessoas eram destinatárias e protagonistas do reino de Deus e Jesus, ao colocar-se ao seu lado e manter comunhão com elas, derruba as barreiras erguidas por uma sociedade estratificada e marginalizadora. Para libertá-las, Jesus conscientiza-as do seu valor diante de Deus, libertando-as para a sua própria identidade. Jesus é a presença do reino de Deus, uma contra realidade oposta à realidade experimentada no mundo. Sua prática do reino, enquanto interrupção da alienação dá voz àqueles que não podiam falar, ajuda para a articulação própria àqueles que haviam sido emudecidos. Nos relatos dos encontros de Jesus com as mulheres notamos também a mesma prática de misericórdia. Estes relatos foram transmitidos a partir de uma perspectiva que não é propriamente dessas mulheres, mas as suas vozes de resistência que podem ser recuperadas nas fissuras dos textos oferecem sua visão e interpretação do ministério de Jesus e do anúncio do reino que toma forma na restauração de pessoas em geral esmagadas pela dor e sofrimento. O protagonismo das mulheres no movimento de Jesus e nas novas comunidades que foram criadas é evidente. As mulheres seguiam a Jesus, foram testemunhas dos seus ensinamentos e ações (Marcos 15.40-41; Lucas 8.1-3) e integradas na nova família do povo de Deus com pleno direito. Celebra-se também sua lealdade, autenticidade e permanência, sua iniciativa e audácia, sua palavra e diaconia no novo grupo. Suas ações e palavras, expressão de pertença ao povo de Deus, simbolizam a reconfiguração do espaço cotidiano, em especial a casa, como o espaço imaginado para o novo grupo. Destaca-se também o valor pessoal das mulheres, sua luta para conseguir uma vida plena e integrada, os desejos que ultrapassam os limites impostos por uma sociedade androcêntrica e patriarcal e a memória que incomoda, pois questiona e empodera para uma liberdade maior e criatividade na vivência de um serviço mais amplo e integrador nas comunidades e fronteiras do mundo de então. A criação de novas comunidades como espaço de solidariedade, como prática de justiça, de solidariedade e de interrupção da violência ocupa um lugar importante na mensagem do apóstolo Paulo, cuja compreensão de que o reino de Deus irrompeu na morte e ressurreição de Jesus Cristo, um acontecimento que desvela o mistério da era POLÍTICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO DA DIACONIA
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vindoura e torna possível o cumprimento da promessa, conduz à declaração de que Ele é o fundamento da identidade e unidade das comunidades que surgiram a partir da pregação da “palavra da cruz” (1 Coríntios 1.18-25). Em Cristo “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3.28). Não são os critérios distintivos de raça, etnia, gênero e classe social, próprios da cultura greco-romana que definem a identidade e pertença à comunidade de fé, mas o poder da palavra da cruz: “Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é” (1 Coríntios 1.26-28). As experiências com o Deus compassivo e misericordioso manifestam-se tanto na história do povo de Israel quanto nas palavras e ações de Jesus Cristo e nas memórias dos seus primeiros seguidores. No início, o Deus compassivo e misericordioso envolve-se no mais profundo do seu ser pela dor e sofrimento de pessoas e grupos vulnerabilizados. O universo inteiro, que é obra de suas mãos e expressão de sua palavra criadora, alegra-se e fortalece-se na ação libertadora de Deus, que responde ao grito do seu povo e o liberta para uma vida de justiça e prática da solidariedade. O reino de Deus que irrompeu na vida e missão de Jesus Cristo indica a reconciliação de todas as coisas, a superação de todos os antagonismos seja entre a humanidade e a natureza, povos e nações, mulheres e homens, gerações e raças. Ao exploramos este tema, descobrimos que ele revela a fonte da missão de Jesus, o Deus a quem Jesus chama Pai, em cujo Espírito proclamava a boa nova de salvação e em cujo nome convocava os homens e mulheres ao arrependimento e à fé. O chamado de Deus ao seu povo envolve uma vida de esperança, de testemunho do reino e da justiça, onde uma vida mais plena é respeitada, onde mulheres e homens vivem uma vida comunitária mais integrada e as instituições da sociedade favorecem aos mais necessitados.
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Justiça de Gênero: fundamentos teóricos “Querer-se livre é também querer livres todas as pessoas” (Simone de Beauvoir) As reflexões sobre Gênero e suas relações não são novas, mas vêm ganhando legitimidade nas análises sociais e políticas a partir das conquistas de espaço e voz pleiteadas pelos movimentos de mulheres há décadas. O que antes estava restrito aos meios acadêmicos e movimentos feministas, como foi até o início da década de 90, hoje perpassa os mais diversos contextos e lugares. A difusão do conceito se dá, sobretudo, com afirmação das lutas das mulheres nos seus cotidianos mais diversos, envoltas em relações de poder marcadas pelo patriarcado. Entender o conceito de gênero como uma categoria de análise das relações de poder ajuda a identificar os diversos problemas de relações existentes, especialmente entre mulheres e homens, que foram estabelecidas historicamente por relações de poder em espaços como família, religião, mercado e política. O contexto no qual a Diaconia atua é marcado por grande desigualdade de gênero onde a mulher enfrenta dificuldade de acesso às oportunidades de desenvolvimento da dignidade humana, realização pessoal e na vida social e pública, sofrendo as mais diversas violências. Dentro desta realidade, as relações são balizadas por relações de poder opressoras, que perpassam classes, raça/etnia, sexualidade em intersecção nas relações de gênero. Assim, corroboramos com a afirmação que a construção desigual do poder gera opressão. A raiz desse tipo de opressão não está no poder em si, mas tem origem na discriminação de gênero, na lógica da supremacia masculina construída historicamente nas sociedades patriarcais. No âmbito conceitual, trataremos Gênero, sobretudo como componente sociocultural e político construído pelas relações humanas, além dos fatores naturais e biológicos. De acordo com a teoria de Scott (2003), gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais, baseado nas diferenças que distinguem os sexos (masculino e
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feminino), como uma forma primária de relações significantes de poder” (SCOTT, 1990, 120)4. Nesse sentido, Feminilidade e Masculinidade que se constituiram em relações de poder foram forjadas a partir da ‘desculpa’ do sexo, do ser biológico fêmea e macho. As relações de Gênero, portanto, são políticas, fazem parte e são instrumentos das relações de poder. Assim, os papéis e performances sociais e culturais de cada ser humano são construídos a partir de códigos de conduta, que tem como base o pretexto do sexo biológico, sendo seres humanos aprisionados desde seu nascimento à uma ordem compulsória de masculino ou feminino. Esta construção do sujeito se dá a partir de elementos simbólicos que através da educação dos corpos e mentes engessa a humanidade. Educação simbólica que é colocada desde a cor a ser usada no enxoval de bebês (azul-masculino e rosa-feminino) aos planos de vida (vida pública-homem e vida privada-mulher). Contudo, não apenas o feminino foi aprisionado na sociedade patriarcal, mas também os homens são presos aos papéis construídos e determinados historicamente como sendo masculinos. Portanto, o patriarcado, sistema social de controle constante dos homens sobre as mulheres, aprisionou ao longo dos tempos tanto Mulheres quanto Homens em celas distintas, principalmente pelas relações de poder e hierarquia. Dessa maneira, homens e mulheres, a partir da desnaturalização das relações de compulsoriedade de gênero, podem na relação com mulheres empoderadas construir justiça e equidade de gênero. Na experiência de Diaconia no trabalho com mulheres, tanto no contexto urbano quanto no rural, percebe-se que uma nova perspectiva de relações de poder é possível quando oportunizados processos que despertam mulheres para se reconhecerem como atrizes sociais a partir da valorização dos seus próprios saberes como, por exemplo, saberes do cuidado nas relações humanas, com a terra, conhecimento comunitário e da vida social, entre outros. Os diálogos de saberes que ocorrem entre os que elas já possuem com outros
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre:
Faculdade de Educação/UFRGS, Vol.6, N° 2, jul/dez 1990.
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que desnaturalizam a construção dos papéis de gênero hegemônicos normativos apontam para caminhos de libertação para o auto reconhecimento como sujeitas e protagonistas de sua própria história. Esse reconhecimento só é possível quando as mulheres, no processo de empoderamento, dão o passo de acreditar em si e em sua voz. Voz que denuncia as injustiças e violências de negação de direitos e dignidade humana e voz que anuncia um mundo mais justo onde relações de equidade de gênero sejam possíveis. Deste modo a história das mulheres é transformada e transforma a realidade da sua comunidade possibilitando a experiência do bem viver, que consiste em vivenciar e logo estabelecer relações sem assimetrias de poder na e com a comunidade e em harmonia com a natureza. Assim, acreditamos que a POLITICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO é um instrumento para transformar e garantir vivências de relações justas entre mulheres e homens, mulheres e mulheres, homens e homens, nas suas diversas dimensões.
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Princípios Relação com igrejas - Transformação de realidades Diaconia assume a política de Justiça de Gênero como tarefa Diaconal visando a transformação de realidades.
Justiça de Gênero fundamenta-se nas relações entre mulheres e homens Diaconia reconhece justiça de gênero como relações justas que envolvem mulheres e homens.
Interseccionalidade Diaconia reconhece a interseccionalidade de gênero, classe social, raça e etnia, gerações, deficiência, sexualidade e religiosidade nas construções de injustiça social que oprimem mulheres e homens, sendo as mulheres as que mais sofrem com esta desigualdade.
Valorização de saberes e experiências de vida Diaconia valoriza a diversidade de saberes e experiências de todas as pessoas, criando oportunidades para que mulheres e homens desenvolvam suas potencialidades com autonomia e dignidade.
Superação da violência de gênero Diaconia repudia qualquer ato de violência de gênero, especialmente a violência contra a mulher, nas suas muitas formas, entre elas a física, sexual, psicológica, patrimonial, moral, teológica e institucional. Por isso, assume o compromisso de desenvolver metodologias que visam coibir qualquer assédio, violência e discriminação nas relações institucionais, tanto internas quanto com quem atua.
Justiça de Gênero como eixo transversal Diaconia se compromete a incorporar em todas as suas ações programáticas e vivência institucional a Justiça de gênero. POLÍTICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO DA DIACONIA
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Feminilidades e masculinidades Diaconia assume o diálogo sobre as construções e reconstruções de feminilidades e masculinidades no contexto onde atua.
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Estratégias de implementação Linguagem Inclusiva de Gênero Diaconia assume a linguagem inclusiva como essencial para a equidade de gênero, qual seja falada ou escrita, em todas as atividades, publicações, meios de comunicação, eventos, documentos expedidos e institucionais. Esta será desenvolvida através de uso de palavras inclusivas e o uso de palavras que indicam o feminino e masculino gramatical por extenso.
Hermenêuticas contextualizadas Diaconia assume hermenêuticas bíblicas contextualizadas como instrumento para o desenvolvimento da justiça nas relações de gênero, em especial, a hermenêutica da suspeita, desenvolvida pela teologia latino-americana.
Equilíbrio de representatividade de gênero Diaconia assume o compromisso de promover o equilíbrio de representação em todas suas instâncias. Busca o equilíbrio representativo através de alternância nos cargos de coordenação e direção, com atenção especial ao empoderamento de mulheres.
Formação continuada Diaconia se compromete com a formação continuada na área de justiça de gênero e todos os seus desdobramentos, a partir das reflexões sobre as desigualdades sociais e o Bem Viver, com o conselho diretor, com a equipe institucional, com as igrejas e os demais grupos com quem atua.
Por meio da adoção destes princípios e estratégias, Diaconia pretende garantir que a justiça de gênero seja vivenciada na organização e contribua para que outros grupos e parceiros estabeleçam relações justas de gênero. “Feliz aquele e aquela que tem fome e sede de justiça” (Mateus 5.6). Recife, 26 de abril de 2017. POLÍTICA DE JUSTIÇA DE GÊNERO DA DIACONIA
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