Karen rose - A Morte Chama-te

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Sinopse Tess é dedicada aos seus pacientes. Os anos de terapia ensinaramna a ouvir, compreender e a guardar segredo. O que se partilha num consultório de psiquiatria é confidencial. Quando os seus pacientes se começam a suicidar a polícia logo estabelece um elo entre todas essas mortes: todos eram pacientes de Tess. Será ela a assassina? Ou a vítima? Quem quer destruir a sua carreira, a sua vida pessoal? Um intenso e apaixonante thriller romântico. Tess segue um estrito código de ética. O juramento que fez enquanto médica, impede-a de revelar seja o que for sobre os seus pacientes, mesmo quando a sua vida parece depender disso. A forma como os seus pacientes aparecem mortos sugere que alguém sabe exactamente como os manipular, o que fazer ou dizer para os levar ao desespero. O detective Aidan Reagan exige as fichas dos seus pacientes, mas Tess recusa. Apesar de exasperado, acredita na decidida psiquiatra e percebe que alguém aplica um meticuloso plano de vingança.


Autor: Karen Rose; Título: A Morte Chama-te; Título Original: You Can't Hide; Dados da Edição: Círculo de Leitores; Género: Romance Policial; Digitalização: Fátima Tomás; Correcção: Fátima Tomás; Estado da Obra: Corrigida. Numeração de página: Cabeçalho; Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. A Morte Chama-te Karen Rose Círculo de leitores Título original: You Can't Hide Autora: Karen Rose © 2006 by Karen Rose Hafer Tradução: Ana Isabel Silveira Revisão: Fernanda Alves Design da capa: Tiago Cunha Pré-impressão: Fotocompográfica, Lda. Impressão: Printer Portuguesa - Ind. Gráfica, Lda. Casais de Mem Martins - Rio de Mouro em Maio de 2009 Número de edição: 7452 Depósito legal número 292 713/09 ISBN 978-972-42-4453-2 9 789724 244532 Círculo de Leitores, SA Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1, 1500-499 Lisboa www.circuloleitores.pt Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.


PRÓLOGO Chicago, Sábado, 11 de Março, 23.45 ― Cynthia. Foi quase um murmúrio, mas mesmo assim ela ouviu. Não. Cynthia Adams fechou os olhos com determinação e enterrou mais a cabeça na almofada. A sua suavidade parecia troçar do corpo tenso de Cynthia. Os seus dedos agarraram os lençóis, torcendo-os até lhe doer. Outra vez não. Um soluço subiu no seu peito, selvagem e desesperado. Por favor. Outra vez não aguento. ― Vai-te embora ― disse em voz baixa mas agressiva. ― Por favor, vai-te embora. Deixa-me em paz. Mas Cynthia sabia que estava a falar sozinha. Se abrisse os olhos, tudo o que veria seria a escuridão do seu quarto. Não estava ali mais ninguém. Mas a verdade é que o odioso sussurro continuava a desafiála, há semanas a fio. Todas as noites ia para a cama à espera de o ouvir. De ouvir a voz que era o seu pior pesadelo. Por vezes, ela falava. Outras noites, Cynthia limitava-se a ficar deitada no escuro, tensa, à espera. Era feita de ar, de sombras. Era nada. Mas era real. Tinha a certeza que era real. ― Cynthia? Ajuda-me. Era a voz de uma criança, que, no meio da noite, pedia que a reconfortassem. Uma menina pequena. Que já morrera. Ela morreu. Tenho a certeza que morreu. Ela própria visitava a campa de Melanie todos os domingos e enfeitava-a com lírios. Melanie tinha morrido. Mas ela ainda ali estava. Ela veio buscar-me. Às cegas, pegou na garrafa de água que estava na mesa-de-cabeceira e engoliu dois comprimidos para dormir. Vai-te embora. Porfavor, vaite embora. ― Cynthia. Era real. Tão real... Meu Deus, ajuda-me, por favor. Estou a enlouquecer. ― Porque fizeste uma coisa daquelas? ― continuou o sussurro. ― Preciso de saber porquê.


Porquê? Isso gostaria ela de saber. O pior é que não fazia a menor ideia. Voltou-se na cama e enterrou a cabeça na almofada, num esforço para que o seu corpo ocupasse o menor espaço possível. Susteve a respiração. E esperou. O quarto estava calmo. Melanie fora-se embora. Cynthia permitiu-se respirar, mas quando o cheiro alcançou os seus sentidos saltou da cama. Lírios. ― Não ― protestou. Recuou, incapaz de tirar os olhos da almofada, onde se encontrava um fragmento de uma única pétala de lírio. ― Devias ter sido tu, Cynthia. ― O sussurro tornara-se mais audível. ― E devia ser eu a pôr lírios na tua campa. Cynthia inspirou profundamente e forçou-se a repetir o que a sua psiquiatra lhe dissera que repetisse em voz alta quando estivesse assustada. ― Isto não é real. Isto não é real. ― É real, Cynthia. Eu sou real. ― Melanie deixara de ser uma criança. A sua voz tornara-se a de uma mulher adulta e colérica. O som fê-la estremecer. Fui uma cobarde. ― Já fugiste uma vez, Cyn. Escondestete. Mas não vais voltar a esconder-te. Nunca mais me vais deixar sozinha. Cynthia recuou pouco a pouco até que deu com as costas com força na porta do quarto. Fechou os olhos o mais que pôde quando sentiu o contacto duro e tranquilizadoramente real do puxador. ― Tu não és real. Não és real! ― Devias ter sido tu. Porque me deixaste? Porque te foste embora sem mim? Como foste capaz de o fazer? Tinhas-me dito que gostavas de mim, mas deixaste-me sozinha. Com ele. Na verdade nunca gostaste de mim. A voz de Melanie apagou-se num soluço e Cynthia deixou as lágrimas queimarem-lhe os olhos. Isso é mentira. Eu adorava-te ― sussurrou, desesperada. ― Nem imaginas a que ponto. Nunca gostaste de mim. ― Melanie voltara a ser uma criança. Uma criança inocente. ― Ele fez-me mal, Cyn. E tu deixaste. Deixasteo fazer-me mal... e não foi só uma vez. Porquê? Cynthia rodou o puxador e atirou-se de costas para o átrio do apartamento, onde ardia uma vela. E parou de repente. Mais lírios. Estavam por toda a parte. Voltou-se devagar e olhou a medo. Estavam a troçar dela. A troçar da sua saúde mental. ― Vem ter comigo, Cyn ― disse Melanie numa voz distorcida. ― Vem. Não é tão mau como imaginas. Podemos estar juntas. Podias tomar conta de mim. Como tinhas prometido.


― Não ― gritou, ao mesmo tempo que cobria os ouvidos e corria para a porta. ― Não! ― Não tens onde esconder-te, Cyn. Vem ter comigo. Sabes bem que no fundo é isso que queres. ― A sua voz era doce, tão doce... Melanie fora tão doce. Naquela altura. Mas nesse momento estava morta. A. culpa é minha. Cynthia abriu a porta da rua de repente. E abafou um grito. Depois, devagar, pegou na fotografia que estava aos seus pés. Olhou horrorizada para a figura sem vida na ponta da corda e recordou o dia em que a encontrara. Melanie estava simplesmente... a balançar ali. De um lado para o outro... ― Foste tu que me obrigaste a fazer aquilo ― disse Melanie com frieza. ― Não mereces viver. As suas mãos tremiam quando olhou. ― Não, não mereço. ― Então vem ter comigo, Cyn. Por favor. Cynthia recuou outra vez e agarrou no telefone. ― Liga à Dr.a Chick. Liga ― murmurou. ― Ela vai dizer-me que não estou louca. ― Mas o telefone tocou e sobressaltou-a. Deixou-o cair. Olhou para ele como se estivesse vivo. Ficou à espera que ele deixasse ver os dentes e silvasse. Mas ele limitou-se a tocar. ― Atende, Cynthia ― disse Melanie, friamente. ― Agora. Com as mãos a tremer, Cynthia inclinou-se e pegou no auscultador. ― Es... está? ― Cynthia? Fala a Dr.a Ciccotelli. Aliviada ao ouvir a voz sólida, familiar, viva, Cynthia deixou o corpo descontrair-se. ― Estou a ouvi-la, Dr.a Chick. É Melanie. Está aqui. Estou a ouvi-la. ― Claro que está. Está a chamá-la, Cynthia: É o que a Cynthia merece. Vá ter com ela. Faça o que já devia ter feito há anos. Ponha fim a isso. Ponha fim a isso neste preciso momento. ― Mas... ― As lágrimas correram-lhe dos olhos. ― Mas... ― sussurrou. ― Faça-o, Cynthia. Ela morreu e a culpa foi sua. Vá ter com ela. Cumpra por fim a sua obrigação e tome conta dela. Cynthia deixou cair o telefone e recuou, desta vez abatida pelo desânimo. istou cansada. Estou tão cansada... ― Deixa-me dormir ― murmurou. ― Por favor, deixa-me dormir. ― Vem ter comigo ― respondeu Melanie igualmente num murmúrio. ― Depois deixo-te dormir. Melanie prometera-lhe tantas vezes... Tantas noites... Cynthia voltouse e olhou para a janela. Do outro lado do vidro estava a noite escura.


E que mais? O sono. A paz. ApaZ. Não se via ninguém na sala de estar. Cynthia Adams já não se encontrava no ângulo de visão da câmara. O ecrã do portátil já não mostrava a mulher frenética a caminhar em todas as direcções. Ia saltar. A excitação subia a cada instante que passava. Ao fim de quatro semanas, Cynthia Adams ia fazê-lo por fim. Ao fim de quatro semanas de esforços intensos, fora levada ao limiar da loucura. Um pequeno piparote e até voaria. Literalmente. Se tudo corresse bem, de facto literalmente. ― Está à janela. ― A mulher sentada no lugar do passageiro estava pálida quando murmurou estas palavras. Quando pousou devagar o microfone as mãos tremiam-lhe. ― Não sou capaz de continuar a fazer isto. ― Vais continuar até eu dizer que chega. Ela recuou com um gesto instintivo. ― Ela vai saltar. Deixe-me dizer-lhe que não salte. Que não saltasse? Aquela miúda era tão maluca como Cynthia Adams. ― Diz-lhe que venha. ― A rapariga não se mexeu. Por dentro, sentiuse a ferver. ― Diz-lhe que venha ou o teu irmão morre. Já estava na altura de teres percebido que não estou a brincar. Diz-lhe que venha. Diz-lhe que precisas dela, que sentes a falta dela, que ela está em dívida contigo. Diz-lhe que tudo correrá melhor quando estiverem juntas. Diz-lhe já. E de maneira sentida. ― Apesar do que lhe dizia, ela não se mexeu. ― Agora. A rapariga pegou no microfone com as mãos a tremer. ― Cyn ― sussurrou. ― Preciso de ti. Estou cheia de medo. ― E estava. Não há nada como a realidade para alimentar um grande drama. ― Por favor, vem. ― A voz dela perdeu a firmeza. ― É melhor assim. Por favor ― terminou, num breve sussurro. Vista do lugar do condutor, a varanda de Cynthia Adams era muito elegante. A porta deslizou ligeiramente e Cynthia apareceu, com a camisa de noite transparente a voar ao vento frio de Março. Daria um bonito cadáver. Muito à Gloria Swanson. Que filme magnífico, Sunset Boulevard. Hollywood já não fazia filmes daqueles. Seria uma bela maneira de celebrar. Pipocas e um velho filme. No entanto, a celebração nunca teria lugar se Adams se limitasse a deixar-se ficar assim na sua varanda. Salta, maldita! ― Diz-lhe que venha. Leva-a a saltar. Mostra-me do que és capaz, querida. Ela engoliu em seco quando ouviu o tratamento ironicamente carinhoso, mas mesmo assim obedeceu. ― Só mais um passo, Cynthia. Só um. Estou à tua espera.


― Agora como uma criança. Como uma menina pequena. ― Por favor, Cynthia. Estou assustada. ― A rapariga tinha um bom domínio da voz. Conseguia ir de adulta a criança, da Melanie morta à psiquiatra Ciccotelli num abrir e fechar de olhos. ― Por favor, vem. ― Inspirou profundamente. ― Preciso de ti. E depois... o sucesso. Um grito de horror saiu da garganta da rapariga quando Cynthia Adams se atirou. Vinte e dois andares. Apesar de as janelas do carro estarem fechadas ouviram claramente o baque do corpo no pavimento. Afinal talvez não desse um cadáver assim tão bonito. Mas a beleza estava nos olhos de quem via, e Cynthia Adams morta no meio do passeio era de cortar a respiração. A rapariga no lugar do passageiro chorava como uma histérica. ― Vê se te acalmas. Temos de fazer outra chamada. ― Oh, meu Deus! Meu Deus. ― Voltou a cabeça quando viu um carro aproximar-se e passar a poucos centímetros do corpo de Cynthia Adams. ― Não posso acreditar... Meu Deus, acho que vou vomitar. ― No meu carro não. Pega no telefone. Pega! A tremer, ela pegou-lhe. ― Não sou capaz. ― Vais ver que és. A tecla um da marcação rápida. É o telefone de casa da Ciccotelli. Quando ela atender diz-lhe que és vizinha de Cynthia Adams e estás preocupada porque ela está na varanda a dizer que vai saltar. Liga. A rapariga ligou e ficou à espera. ― Não atende. Deve estar a dormir. ― Então liga outra vez. Continua a ligar até a princesa atender. E põe em altifalante. Quero ouvir a conversa. À terceira alguém atendeu. ― Está? Devia estar a dormir. Sozinha em casa num sábado à noite. Era bom saber que esse aspecto da vida de Ciccotelli também estava controlado. Deu um encontrão à rapariga, que disse o que tinha a dizer. ― Dr.a Ciccotelli? Dr.a Tess Ciccotelli? ― Quem fala? ― Uma... vizinha de uma das suas doentes, de Cynthia Adams. Aconteceu alguma coisa. Ela está na varanda e diz que se vai atirar. ― De olhos fechados, a rapariga desligou o telefone e deixou-o cair no colo. ― Já está. ― Por hoje. ― Mas... ― Boquiaberta, a rapariga quase saltou no lugar. ― Tinha-me dito... ― Eu disse que mantinha o teu irmão vivo se me ajudasses. E


continuo a precisar da tua ajuda. Continua a praticar a voz da Dr.a Ciccotelli. Vou precisar que voltes a fazer a voz dela daqui a uns dias. Por hoje, não preciso mais de ti. Se disseres uma palavra disto a alguém, mato o teu irmão e mato-te a ti. A Ciccotelli estava a chegar. Estão abertas as festividades. CAPÍTULO 1 Domingo, 12 de Março, 12.30 Em geral os suicídios atraíam mais pessoas, mesmo num bairro fino como aquele, pensou sombriamente o detective Aidan Reagan quando bateu com a porta do carro e sentiu um arrepio com o ar gelado que soprava do lago. Mas a maior parte das pessoas sensatas não sairia de casa com um tempo daqueles. Aidan não podia dar-se a esse luxo. Tinham ligado da central e ele e o parceiro eram os seguintes na lista. Por causa da porcaria de um suicídio. Aquele caso ia afastá-lo um pouco do homicídio de uma criança em que andava a trabalhar há dois dias. Detestava homicídios que envolvessem crianças, mas se calhar detestava ainda mais os suicídios. Só queria correr com aquele de cima da sua secretária o mais depressa possível para poder concentrar-se em descobrir quem teria partido o pescoço de um rapazinho de seis anos como se fosse um ramo seco. As pessoas que o observavam no passeio pareciam sobretudo jovens de vinte e poucos anos que voltavam para casa naquela altura, depois de uma saída à noite. Esperavam em silêncio, com os olhos pregados ao corpo numa estranha mistura de horror, fascínio e simpatia. Aidan conseguia perceber o horror. Um cadáver nunca era bonito de se ver, mas depois de um mergulho de vinte e dois andares não era de facto o espectáculo sórdido de todos os dias. Quanto à simpatia, Aidan guardava-a para as verdadeiras vítimas. Era evidente que quem achava que o suicídio era um crime sem vítima nunca tinha notificado uma família. E ele tinha. Se ao menos os espectadores que procuravam satisfazer a sua curiosidade mórbida conseguissem ver essa parte da coisa, talvez não achassem 16 a cena tão fascinante. Pelo menos eram bem-comportados. Ficaram em silêncio por trás das fitas amarelas que os primeiros polícias a chegar ao local tinham estendido entre dois candeeiros. De vez em quando, dois pés a baterem no chão para combater o frio rompiam o silêncio pouco natural. Um dos dois polícias de uniforme estava junto da fita amarela e o outro no passeio, de costas para o corpo.


Aidan aproximou-se, com o distintivo na mão. Ao fim de apenas quatro meses continuava a parecer-lhe estranho não usar também um uniforme. ― Reagan, dos Homicídios ― disse com brusquidão, e deteve-se de repente, primeiro por causa do cheiro e depois do espectáculo. O seu estômago, que ele juraria estar preparado para tudo ao fim de doze anos de polícia, deu uma volta suspeita. ― Meu Deus... O polícia de uniforme concordou, de rosto tenso. ― Foi o que nós dissemos. Os olhos de Aidan divagaram pela parede com outras varandas semelhantes e depois voltaram-se outra vez para o espigão de ferro espetado no que em tempos fora um peito de mulher. Naquele momento a sua caixa torácica estava aberta, revelando ossos esmagados e vísceras. Olhou-a por um momento, recordando a única vez que tinha visto um espectáculo semelhante. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Aquele caso era muito diferente do outro. A primeira vítima estava inocente. A mulher que naquele momento se encontrava à frente dele morrera pela sua própria mão. "Nada de simpatia", disse a si mesmo. Aquela mulher tinha-se atirado à rua ― e a um espigão de ferro fundido trabalhado ― de uma altura de vinte e dois andares. Havia uma espécie de protecção lateral do passeio, a maior parte constituída por "U" invertidos, mas de metro a metro havia um daqueles espigões trabalhados. A força do impacto no espigão tinha-a literalmente rasgado em duas, com um repuxo de sangue que sujara a neve a mais de meio metro de distância. ― Foi tiro e queda ― murmurou. ― Por assim dizer ― disse o guarda de uniforme. Aidan voltou-se para o rosto pálido do polícia. ― O senhor é...? ― Chamo-me Forbes e aquele é o meu parceiro, DiBello, que está ali a guardar o local ― respondeu Forbes, que acrescentou com um esgar: ― Já chegámos depois da queda. 17 Aidan percorreu com o olhar os rostos da multidão silenciosa, que não precisava de ser contida. De qualquer maneira, que diabo, um suicídio era um suicídio. ― Alguém viu alguma coisa? Há dois miúdos de dezassete anos que dizem que ela saltou do vigésimo segundo andar por volta da meia-noite. ― Forbes apontou para cima com um dedo metido numa luva preta. ― E aquela varanda ali em cima, que tem cortinas a esvoaçar, a terceira a contar da esquerda. ― Ninguém a empurrou?


― Os miúdos não viram nada. Dizem que ela como que deslizou sobre o gradeamento da varanda. ― Deslizou? Como um fantasma? ― perguntou Aidan, de sobrolho franzido. Forbes encolheu os ombros. ― Pelo menos é o que eles dizem. Não paravam de dizer o mesmo. Meti-os no banco de trás do carro da patrulha até vocês poderem falar com eles. Parecem um bocado transtornados. ― Pobres miúdos. ― Esses mereciam que fossem compreensivos com eles. Durante muito tempo não conseguiriam pensar noutra coisa. Tinham só dezassete anos, um ano a mais que a sua irmã. A simples ideia de Rachel ver uma coisa daquelas fê-lo estremecer. Com a cabeça, apontou na direcção dos observadores e perguntou: ― Alguma daquelas pessoas a conhecia? ― O DiBello perguntou, mas ninguém a conhecia. Aidan olhou o rosto da mulher, os seus traços esponjosos e macilentos devido à queda. O sangue espirrara-lhe dos ouvidos, do nariz e da boca aberta. O espigão de ferro amortecera a força com que chegara ao chão, mas qualquer queda daquela altura esmagava o crânio e era no escalpe, sobretudo, que se concentrava o que restava do cérebro. Os traços do rosto pareciam liquefeitos, o que lhe dava o aspecto de uma máscara de cera que começasse a desfazer-se. ― Mesmo que a conhecessem não iam reconhecê-la neste estado. Vamos ter de entrar no apartamento de onde ela saltou. O porteiro está por aí? ― Já toquei à campainha dele, mas não está em casa. Um vizinho diz que ele foi a um jogo dos Bulis. ― O jogo já acabou há mais de duas horas. Onde estará ele agora? ― Já lhe mandei uma mensagem. Vou ver se consigo descobrir por onde anda. 18 ― Obrigado. Acha que é possível levar esta gente para o outro lado da rua? E veja se consegue que ninguém tire fotografias. Diga ao seu colega que esteja atento às câmaras dos telemóveis. Aidan pegou no seu próprio telemóvel e ligou para pedir um mandado e os técnicos do gabinete médico-legal. Depois baixou-se para olhar melhor para o corpo. A mulher usava camisa de dormir de seda preta e renda, o que o fez perguntar a si mesmo se se teria vestido de propósito para a ocasião. Se tinha, o efeito fora estragado pelo espigão de ferro. E pelas tripas espalhadas no cimento. Engoliu em seco. Ia ser uma porcaria de um trabalho limpar aquilo. Era o pior dos suicídios, pensou com amargura. Queriam morrer num gesto dramático, mas nunca pensavam nas consequências para os outros, para as pessoas que deixavam para trás. Para as pessoas que tinham de limpar.


Egoístas. E tudo aquilo podia ser evitado. "Merda." Percebeu que tinha os punhos cerrados e abriu-os deliberadamente. "Vê se te dominas, Reagan." Inspirou profundamente e os seus sentidos foram dominados pelo cheiro metálico do sangue quente e pelo odor nauseabundo dos intestinos espalhados na neve, mas sentiu também um aroma subtil a canela e ouviu os passos do parceiro esmagarem a neve e aproximarem-se por trás. ― Raio de maneira de morrer ― disse Murphy com a sua maneira tranquila de falar. Aidan atirou-lhe um olhar frio por cima do ombro. ― Raio de coisa para fazer à família. Estou mortinho por fazer esta visita. ― Uma coisa de cada vez, Aidan ― disse Murphy num tom pausado. Contudo, os seus olhos eram delicados e compreensivos, e isso fez Aidan sentir-se mesquinho. ― Que sabemos do que aconteceu aqui? ― Só que ela saltou do vigésimo segundo andar. Há duas testemunhas a dizer que deslizou por cima do varandim. Sabe Deus o que isso quer dizer. Ainda não falei com os rapazes. Quanto a ela, era nova. Os braços parecem lisos. ― Concentrou-se nos braços e nas pernas, as únicas partes do corpo que tinham permanecido mais ou menos intactas. ― Talvez a chegar aos trinta, ou com trinta e poucos. ― Apontou para uma das mãos do cadáver, encostada aos "U" invertidos da vedação decorativa. ― Um anel com uma pedra grande na mão direita e nenhum sinal de anéis na esquerda, o que significa que, provavelmente, não é 19 casada. Parece ter dinheiro. Aquele anel custa uma pipa de massa. Não parece haver feridas defensivas nem nos braços nem nas pernas, Murphy acocorou-se junto dele. ― Cores vistosas. As longas unhas da mulher estavam pintadas com um verniz vermelho-vivo. ― Já tinha reparado. O vermelho sobre a renda negra não passa despercebido. Murphy encolheu os ombros. ― Não seria a primeira vez que um suicida procura deixar uma impressão duradoura. Ninguém a conhece? Aidan pôs-se de pé. ― Espero que o apartamento de onde saltou fosse dela. Telefonei para pedir um mandado e o médico-legista já vem a caminho. Vamos falar com os miúdos que... ― Deixe-me passar. ― A voz pareceu cortar a noite, suave, mas com


um tom de autoridade. ― Não pode passar, minha senhora. Por favor, não passe da fita amarela. Aidan olhou a tempo de ver o braço de DiBello levantar-se para cortar o caminho a uma mulher com um casaco de lã amarelo-torrado, o cabelo escuro a esvoaçar e a cobrir-lhe parcialmente o rosto. Ela voltou a falar, com uma voz calma mas em que o tom de comando não tinha desaparecido. ― Eu sou a médica dela. Deixe-me passar, por favor. ― Deixe-a passar ― disse Murphy, num eco do que ela dissera, e DiBello assim fez, mas Aidan cortou-lhe uma vez mais o caminho, antes que a médica contaminasse o local do crime. Ela pôs-se em bicos de pés, mas nem assim era tão alta que pudesse ver por cima do ombro dele. Aidan pousou-lhe a mão no ombro e, com delicadeza, obrigou-a a recuar. Embora tensa, ela obedeceu. ― Minha senhora, estamos à espera do médico-legista. De momento não há nada que possa fazer. Ela deu um passo atrás e ficou muito quieta. ― Atirou-se? Aidan acenou afirmativamente. ― Lamento muito. Talvez nos possa dizer... ― A frase não se completou na sua boca porque, quando ela afastou o cabelo do rosto, reconheceu-a e isso bastou para lhe fazer ferver o sangue. 20 ― Você é a Ciccotelli... A Dr.a Ciccotelli. Não era bem uma médica, era uma psiquiatra. Só isso já seria mau, mas além disso Mis Chick tinha uma reputação e pêras. A Dr.a Ciccotelli não era uma variedade doméstica da psiquiatra a quem os doentes pudessem confessar que no fundo odiavam a mãezinha. Era daquelas que não se importam de deitar fora várias semanas de trabalho policial competente e de se sentar no banco das testemunhas e afirmar, sem sequer estremecer, que um assassino conhecido e confesso de três crianças e de um polícia não estava em condições de responder perante um tribunal. Fora negada justiça a quatro famílias enlutadas apenas porque uma "médica" decidira dizer que um assassino era louco. E claro que o filho-da-mãe era louco. Tinha confessado que assassinara brutalmente quatro meninas pequenas. Praticamente crianças de colo. Com as próprias mãos estrangulara um polícia experiente que estava a tentar apanhá-lo. Lá por ser louco não era nem um bocadinho menos culpado. E por causa de tudo aquilo passava o dia confortavelmente sentado num hospital psiquiátrico de Chicago a fazer suportes para vasos, em vez de numa cela de dois metros por um à espera de levar uma injecção. Não era justo. Não


estava bem. Mas fora o que acontecera, e aquela mulher contribuíra para isso. Aidan estivera na sala de audiências, juntamente com os outros polícias, na esperança vã de que a Ciccotelli mudasse de ideias, cumprisse a sua obrigação. Lembrava-se de como os pais das meninas tinham chorado em silêncio no tribunal, conscientes de que não seria feita justiça. De como a mulher do polícia se sentara na primeira fila, ao meio, rodeada por um mar de uniformes. Ciccotelli nem sequer pestanejara. Limitara-se a olhar em frente com os seus olhos castanhos e frios. Exactamente como olhava para ele naquele preciso momento. ― E quem é o senhor? ― perguntou ela. ― O detective Aidan Reagan. Este é o meu parceiro, o detective Todd Murphy. Os olhos dela pareceram tornar-se ligeiramente mais pequenos quando estudou o rosto dele. Com esforço, sustentou o olhar. No seu lugar na sala de audiências parecera-lhe elegante, sofisticada. Inalcançável. De perto percebeu a beleza selvagem dos seus traços, mas continuava inalcançável. Os seus próprios olhos estreitaram quando ela se voltou para Murphy. ― Todd, peça ao seu parceiro que me deixe passar. Eu pelo menos posso identificá-la. 21 Murphy agarrou-a delicadamente pelo braço e disse-lhe: ― Tess, acho melhor não fazer isso. Ela... Ela ficou realmente desfeita. Aidan recuou um passo e estendeu a mão num gesto de cavalheirismo trocista. ― Se ela quer ver, deixa-a ver. Murphy atirou-lhe um olhar de aviso: ― Aidan! ― Não tem importância, Todd ― murmurou ela e avançou sem pestanejar. Observou o corpo durante mais de um minuto antes de se voltar para eles, com o rosto impassível e olhos que não tinham deixado de ser frios. ― Chamava-se Cynthia Adams. Não tem família. ― Tirou um cartão do bolso e entregou-o a Murphy sem que as mãos lhe tremessem. ― Ligue-me se quiser perguntar-me alguma coisa ― disse. ― Eu respondo ao que puder. Dito isto, voltou costas e caminhou para um Mercedes prateado estacionado atrás do Ford vulgar de Murphy. A irritação de Aidan extravasou. ― E mais nada...?! ― Aidan ― avisou Murphy. ― Agora não. ― E se não for agora quando é? ― disse Aidan, que, olhando em volta, acabou por baixar a voz, consciente de que era observado pelas pessoas agrupadas no local. ― Chega aqui e identifica a vítima, fria


como um gelado de natas, e depois vai-se simplesmente embora? E o que é que a fez saltar de um vigésimo segundo andar, senhora doutora? Devia saber, ou não? "E devias ralar-te, filha-da-mãe", pensou com raiva. "Devias ralar-te com alguma coisa." ― Que raio de médica pensa ela que é? ― concluiu, quase num sopro, e viu-a deterse, com as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos. Tess Ciccotelli tirou uma luva do bolso e calçou-a, ajustando-a bem aos dedos. ― Se precisar de mim, telefone-me, Todd ― foi tudo o que disse antes de se ir embora. Os olhos de Murphy pareciam lançar chispas. ― Aidan, eu tinha dito que agora não. Aidan voltou costas com um encolher de ombros. ― Que importância tem isso? Não me parece que esteja muito ralada. ― Não fazes ideia do que estás a dizer. Não a conheces. 22 Aidan olhou o parceiro por cima do ombro. Murphy estava a ver a Ciccotelli atravessar a rua. O rosto dela continuava a parecer uma máscara impassível. ― E tu conheces? ― Não era coisa que ele esperasse do parceiro. O venerável Todd Murphy, presa dos encantos de uma cabra fria como Mi Chick. "Pois bem, eu não vou conhecer." Murphy bufou de irritação e o ar que saiu da sua boca transformou-se em vapor, que por instantes pareceu uma barreira entre os dois. Depois a barreira desapareceu, bem como a irritação, e Murphy ficou apenas a olhar Aidan com uma tristeza que deixou o parceiro surpreendido. ― Sim, por acaso conheço. Vai falar com os adolescentes, Aidan. Eu volto já. Aidan fez por esquecer a sua insegurança. Murphy que aturasse o pedaço de gelo. Ele tinha mais que fazer, por exemplo estudar o local do crime para a equipa do gabinete médico-legal poder observar o que restava de Cynthia Adams e eles poderem ir todos para casa. "Mais um minuto. Só mais um minuto." Tess Ciccotelli ia cantarolando as palavras na sua mente, um mantra para a ajudar a manter a compostura até voltar a encontrar-se sozinha. Cynthia morrera. Meu Deus. Caída no meio da rua, o corpo dilacerado... "Não penses nela. Não penses nela morta e desfigurada. Limita-te a fugir daqui. Foge a correr. Só mais um minuto. Depois podes chorar, Tess. Mas agora ainda não." Meteu a chave na fechadura, consciente de que atrás dela Todd Murphy e o parceiro a observavam. Todd e o seu parceiro enfurecido, fosse ele quem fosse. Tinha dito que se chamava Aidan Reagan, recordou, quando por fim abriu a porta do carro. Forçou-se a recordar


os olhos azuis frios do homem. Estava tão zangado! Zangado não, furioso. "É só mais um..." ― Tess... "Merda." Tess atrapalhou-se com as chaves e deixou-as cair na rua escura, onde rebolaram para baixo do carro. Respirou fundo. Estava tão perto... ― Eu estou bem, Todd. Vá-se embora, vá fazer o seu trabalho. ― É o que estou a fazer. Tess, está a tremer. ― Todd, por favor. ― Falou num tom suplicante e sentiu-se humilhada. ― Tenho de me ir embora daqui. Ele pegou-lhe num braço e empurrou-a com delicadeza para o lugar do condutor. 23 ― A Tess não devia conduzir. Deixe-me telefonar a alguém que a leve a casa. ― Não tenho ninguém a quem telefonar ― respondeu ela num tom indiferente. ― Foi por isso que demorei tanto tempo a chegar aqui. Telefonei aos meus colegas, aos meus amigos. Nunca venho sozinha a casa dos meus doentes. Não se faz. Não é ético. ― Depois de ter começado parecia não ser capaz de parar. ― Não encontrei ninguém em casa, de maneira que vim sozinha. ― Fechou os olhos, mas quando percebeu que isso só servia para voltar a ver Cynthia, desfeita pelo espigão, voltou a abri-los. ― E cheguei tarde de mais. ― A culpa não foi sua, Tess ― consolou-a Murphy. ― Sabe muito bem que não foi. Tess sentiu um soluço preparar-se para a embaraçar e conteve-o firmemente. ― Ela morreu, Todd. Que coisa estúpida, dizer aquilo! Cynthia Adams estava esventrada no meio da rua, o crânio feito em gelatina e as tripas espalhadas à vista de toda a gente. Sim, estava bem morta. Disso não havia dúvida. ― Eu sei. ― Murphy pegou-lhe na mão e apertou-a docemente. ― Como sabia que devia vir? Ela telefonou-lhe? Tess abanou a cabeça negativamente. ― Não. Recebi uma chamada anónima de uma das vizinhas dela. ― Porque é que ela se atirou? A voz dele era calma, delicada, mas parecia tentar demolir o dique que a impedia de chorar. ― Caramba, Todd. Deixe-me ir embora. Por favor. Amanhã falo consigo, prometo. ― Não a deixo ir-se embora sem ter a certeza que está bem. Tess voltou a inspirar profundamente e depois esvaziou os pulmões aos poucos. Com as duas mãos no volante, olhou por cima do ombro de Murphy para o lugar onde estava o seu parceiro, ao lado do carro da brigada, com o rosto iluminado pelas luzes intermitentes. Estava a


olhar para eles. Para ela. Mesmo àquela distância conseguia sentir o olhar penetrante dele. A animosidade dele. Os seus olhos azuis intensos estavam semicerrados e os dentes fechados com força. ― Tem um parceiro novo ― murmurou ela, sem desviar o olhar, tal como Reagan. ― Sim, o Aidan Reagan. Aidan Reagan. 24 ― É alguma coisa ao Abe? Tess conhecia Abe Reagan e confiava nele. E também na mulher, Kristen. Eram boas pessoas. ― O Aidan é irmão do Abe. ― Agora percebo. ― Aidan era bem-parecido, moreno e um pouco ameaçador, como o irmão. Ambos tinham cabelo escuro, olhos de um azul semelhante, embora os de Aidan fossem mais duros e penetrantes que os do irmão. O seu rosto era mais agressivo e o queixo um pouco mais quadrado. Os lábios eram... mais macios, pelo menos antes de ele ter percebido quem ela era. Tinha a capacidade de se compadecer. "Mas não de se compadecer de mim." ― Tess, ele ― a voz de Murphy deteve-se com brusquidão. ― Não gosta de mim ― disse ela com tranquilidade. ― Não faz mal, Todd. Não é o único. O suspiro de Murphy foi profundo e triste. ― Ele esteve lá, no tribunal, naquele dia. Não foi preciso Murphy explicar em que tribunal. Ambos sabiam do que se tratava. Harold Green tinha assassinado brutalmente três meninas pequenas. Só que o sem-abrigo não vira três meninas de seis anos com sorrisos desdentados e tranças louras. Tinha visto demónios com dentes ensanguentados que iam atacá-lo para o devorar. Ao princípio não tinha acreditado, mas ao fim de muitas horas de observação e de conversas com vários médicos particulares que tinham acompanhado a sua esquizofrenia ao longo de muitos anos, acabou por achar que era verdade. O homem era sem dúvida louco. E fora isso que ela dissera em tribunal, embora tivesse feito um esforço sobre-humano para manter a voz firme e o olhar impessoal, apesar das dezenas de pessoas que a olhavam com desprezo. Todos tinham pensado que ela era fria, pelo menos todos os polícias que naquele dia enchiam a sala de audiências. Pensavam que ela tinha sido enganada por um assassino. Pensavam que tinha ficado indiferente às mães daquelas crianças, que choravam desconsoladas enquanto a ouviam. Mas estavam todos completamente errados. O facto de o detective Aidan Reagan ter estado entre eles explicava muito. Do outro lado da rua, ele continuava parado, de pé, a olhá-la com um desdém que nem sequer procurava esconder. Tess foi a


primeira a afastar o olhar, para se voltar para o rosto inquieto de Murphy. ― Estou a ver. 25 ― Não, não está. Não está bem a ver. É que foi ele que encontrou a terceira miúda. Ela agarrou o volante com mais força. Ele tinha dito que a criança estava viva, mas quando fora encontrada já não estava. Tess nunca soubera quem a tinha encontrado. Na verdade, preferira não saber. Já fora suficientemente duro saber que para aquela menina tinha sido tarde de mais. Para o homem que havia encontrado o corpo sem vida da pequena garota devia ter sido ainda mais duro. ― Isso explica muito. Tem direito a estar furioso. ― Ele é um bom tipo, Tess. E um bom polícia. Ela acenou afirmativamente. ― Está bem, Todd. Eu percebo. Acredite que percebo. ― E percebia. Melhor do que se poderia imaginar. ― Importa-se de me apanhar as chaves? Caíram para debaixo do carro. Murphy suspirou. ― Está bem. Eu telefono-lhe amanhã. Vou precisar de ver o processo de Cynthia Adams. Procurou o porta-chaves debaixo do carro e apanhou-o. Tess agradeceu com um gesto de cabeça. Quando sentiu o motor do carro a trabalhar sentiu-se aliviada e segura. Começou a fechar a porta, mas parou a meio. ― Diga ao seu parceiro... ― Mas o que ela pudesse dizer não teria qualquer importância. ― Não tem importância... Obrigada, Todd. Como sempre. Quando se afastou da berma tinha as mãos a tremer. Ao fim de três quarteirões encostou de novo, apoiou a testa no volante e deixou as lágrimas caírem à vontade. "Caramba, Cynthia! Porque é que não me telefonaste? Porque diabo fizeste uma coisa destas?" Mas ela sabia porquê. E também sabia que não poderia ter feito nada para a impedir de se atirar daquela varanda. O seu trabalho era ajudar os doentes que queriam ser ajudados. Os outros faziam o que queriam fazer. Tinha consciência disso. Mas saber nunca impedira ninguém de ficar desesperado. A vida de Cynthia Adams fora dominada por um sofrimento terrível e por uma dor atroz provocados por acontecimentos sobre os quais ela não tivera qualquer domínio. Mas tivera domínio sobre a própria morte. Isso era o mais irónico de tudo aquilo. 26


Esgotada, Tess voltou a arrancar e dirigiu-se para o seu apartamento, mas não para dormir. Nessa noite não conseguiria. O processo de Cynthia tinha centenas de páginas. Precisaria de várias horas só para recolher os dados relevantes para Todd Murphy e para o parceiro. Era o mínimo que podia fazer por Aidan Reagan e por Cynthia Adams. E talvez por si mesma. Domingo, 12 de Março, 1.15 Aidan viu Murphy ficar a olhar um bom bocado na direcção em que a Ciccotelli partira antes de voltar para o trabalho que tinha em mãos, de novo com uma atitude profissional. Murphy tinha falado com o técnico do gabinete médico-legal e a unidade de análise do local enquanto Aidan falava com os adolescentes. Os miúdos não disseram nada de novo. Só que Cynthia Adams tinha deslizado para o varandim, ficara aí imóvel por um minuto, mais ou menos, e depois voltara-se de costas e atirara-se, de braços abertos. Mandou os adolescentes para casa com os pais, consciente de que depois de terem visto aquela cena nunca mais seriam os mesmos. Nesse momento, ele e Murphy estavam à porta do apartamento de Cynthia Adams, a observar as tentativas ébrias do porteiro para enfiar a chave-mestra na fechadura. Jim McNulty parecia ter festejado a vitória dos Bulis embebedando-se, até mal se aguentar de pé, no seu bar preferido. Já tinham desistido de esperar por ele essa noite quando ele por fim apareceu, de chave-mestra na mão, enquanto os técnicos do gabinete médico-legal estavam a deitar o corpo de Cynthia Adams numa maca. Como não tinham conseguido separá-la do espigão, tinham acabado por levar 30 centímetros de ferro com eles. O porteiro já ia lançado a refilar por causa da falta do espigão quando os seus olhos caíram sobre o corpo de Cynthia. Desde então ainda não dissera uma única palavra. ― Há quanto tempo conhecia Ms. Cynthia Adams? ― perguntou-lhe Aidan, ao mesmo tempo que torcia o nariz ao bafo do homem. Ainda bem que não estavam perto de fogo. McNulty estava completamente entornado. ― Há três anos. Ela mudou-se para aqui há três anos. Houve duas coisas que chamaram imediatamente a atenção de Aidan. Primeiro, o apartamento estava gelado, o que ele já esperava. 27 A porta da varanda estava aberta há mais de uma hora. Mas a segunda, o cheiro enjoativo a flores, apanhou-o de surpresa. A sala de estar de Cynthia Adams estava cheia a transbordar de flores, quase como uma florista. Murphy franziu o sobrolho. ― Que é isto?! Lírios. ― Aidan entrou no apartamento de Cynthia e agarrou numa das


flores que estavam espalhadas pelo chão. ― As flores da morte. ― Meu Deus ― murmurou Murphy, percorrendo a sala com os olhos. ― Deve ter aqui mais de cem dólares em flores. Aidan ergueu o sobrolho: ― No mínimo três vezes mais. ― Quando Murphy olhou para ele com ar interrogador, Aidan encolheu os ombros: ― Fiz uma cadeira de Horticultura quando andava no curso. ― Pegou num envelope de cima de uma pilha de uns dez centímetros de correio amontoado por abrir que se encontrava sobre a mesa da sala de entrada. ― Que grande monte de correio. ― Voltando-se para o porteiro, perguntou: ― Ela esteve fora há pouco tempo? O porteiro abanou negativamente a cabeça. Tinha o rosto transpirado e os seus olhos não paravam quietos. ― Não, mas tinha a renda atrasada um mês. Foi a primeira vez que se atrasou nos dois anos que aqui viveu. O senhorio avisou-me que estivesse de olhos abertos não fosse ela tentar escapulir-se sem pagar. Aidan dirigiu-se à varanda procurando não pisar os lírios. ― Está aqui um escadote de três degraus ― disse para dentro, para Murphy. ― Os adolescentes disseram que ela deslizou, mas na verdade subiu os degraus do escadote. ― Muito prático. O porteiro avançou aos tropeções até à porta envidraçada. ― Isto não estava aqui. Estive no apartamento há uma semana a reparar uma torneira que pingava e esse escadote não estava aqui. ― Se esteve a reparar uma torneira, como conseguiu ver o que havia na varanda? ― perguntou Murphy com voz suave. O porteiro ficou pálido. ― Vim aqui fumar um cigarro. ― Deve tê-lo posto ali de propósito para o grande acontecimento -― murmurou Murphy. Depois, num tom mais agudo, chamou: ― Aidan! 28 Aidan voltou rapidamente. Murphy tinha uma folha impressa entre dois dedos enluvados e olhava-o com um esgar sinistro. Era uma fotografia, impressa em papel fotográfico numa impressora de jacto de tinta. Era o retrato de uma mulher, pendurada de uma corda, com os pés a dois palmos do chão. O rosto da mulher era grotesco, com os olhos esbugalhados e a boca aberta, como se procurasse respirar. ― Quem é esta? ― perguntou Murphy ao porteiro. O porteiro recuou um passo, ainda mais pálido que antes. ― Não sei. Nunca vi essa mulher. Agora tenho de ir. ― Já vai, Mr. McNulty ― disse Aidan, que se atravessou no caminho do homem impedindo-o de passar. ― Viu quem trouxe todas estas flores? Foi Miss Adams?


― Não sei. Desculpe ― conseguiu responder o porteiro. ― Não tem importância. Podemos ir buscar as cassetes das câmaras de segurança. ― Mal as portas do elevador se tinham aberto, reparara na câmara que apontava para elas. McNulty abanou a cabeça e disse: ― Não pode ser, a câmara está avariada. ― Vem mesmo a jeito ― resmungou Murphy. ― Há quanto tempo? McNulty remexeu os pés: ― Há umas semanas. Olhando-o nos olhos, Aidan insistiu: ― Semanas? McNulty desviou os olhos. O seu rosto estava corado, às manchas. ― Pronto, há uns meses... Aidan tinha a certeza que McNulty sabia muito mais do que estava a dizer. ― Esteve aqui alguém há pouco tempo a visitar Miss Adams? ― Ela tem muitas visitas ― respondeu McNulty com ar profundamente infeliz. De ouvidos alerta, Aidan perguntou: ― Que tipo de visitas? Pelo canto do olho viu que Murphy também estava atento. A tentativa de McNulty de responder descontraidamente não resultou. ― Havia muita gente que gostava de Cynthia. ― Quer dizer que havia muitos homens que gostavam dela? ― perguntou Aidan com brusquidão. 29 McNulty fechou os olhos, numa atitude claramente culpada. Se estivesse sóbrio, Aidan tinha a certeza que não se teria deixado apanhar com tanta facilidade. Nem ajudado tanto. Força Bulis... ― Alguns, sim. ― Alguns ou sim? McNulty abriu os olhos, em pânico. ― Ouça, se a minha mulher descobrir, mata-me! Murphy pestanejou. ― Quer dizer que tinha uma relação com Miss Adams? ― Não ― negou McNulty violentamente com um gesto de cabeça. -― Uma relação não. Foi só uma vez. Aidan ergueu uma sobrancelha e repetiu: ― Só uma vez? McNulty recuou mais um passo. ― Duas vezes. Três, no máximo. ― Ela... cobrava-lhe, Mr. McNulty? ― perguntou Murphy com segurança. Aidan duvidou que a expressão de puro horror no rosto do homem pudesse ser falsa. ― Não, meu Deus, nunca! Ela estava... agradecida. Era só isso. As


coisas pareciam estar a tornar-se interessantes, pensou Aidan. ― Agradecida? Porquê? ― Eu desliguei a câmara neste andar. Alguns amigos dela não queriam ser vistos. Não sei nomes nenhuns. Nunca quis saber. Ela fazia o que entendia e eu fazia de conta que não via nada, juro por Deus! Por favor, deixe-me ir embora! Aidan olhou de relance para Murphy. ― Achas que podemos deixá-lo ir? ― Por agora ― disse Murphy, tranquilamente, e ambos viram McNulty avançar aos tropeções pelo meio das flores, ansioso por se afastar o mais possível daquele sítio. ― Nós ligamos-lhe, Mr. McNulty ― acrescentou. McNulty acenou uma última vez e foi-se embora. Aidan fechou a porta da rua. ― Muito gostava eu de saber que tipo de amigos tinha ela. ― E eu se algum deles lhe terá dado isto ― acrescentou Murphy com a fotografia da mulher enforcada na mão. ― Asfixia autoerótica? Não faço ideia ― respondeu Aidan com um trejeito de repugnância. ― Nunca tive nenhum contacto pessoal com tal coisa. 30 ― Pois eu tive ― disse Murphy, avançando para o quarto. ― Quando alguma coisa corre mal não é bonito de se ver. Vê se ao menos encontras uma fotografia da Adams para ficarmos com uma ideia do aspecto dela. Eu procuro deste lado. Aidan ouvia Murphy a abrir gavetas no quarto enquanto ele próprio procurava na mala, até que encontrou a carta de condução da morta. Sentiu um impulso involuntário de compaixão pelo rosto sombrio que o olhava da fotografia da carta. Aquela mulher parecia equilibrada. Muito apresentável. Respeitável. E naquele momento estava deitada no passeio, vinte e dois andares abaixo do sítio onde vivera. Morta e bem morta. Porque teria feito uma coisa daquelas? Que acontecera no último mês que a fizera atrasar o pagamento da renda e a deprimira de tal maneira que acabara por se convencer de que a única solução era acabar com a própria vida? Mas a verdade é que era esse o problema com os suicidas, pensou com amargura. Não ficavam tempo suficiente para as pessoas que os amavam obterem respostas- a estas perguntas. ― Tinha trinta e quatro anos, Murphy. Usava lentes de contacto e tinha doado os órgãos. Murphy apareceu à porta do quarto com algemas numa mão e um pequeno chicote de pele na outra. ― Além disso também andava metida numas merdas muito esquisitas. Há uma roldana num dos cantos do quarto. Parece-me que de vez em quando se pendurava ali.


Aidan olhou para a parafernália que Murphy trazia nas mãos e depois voltou a olhar para a mulher solene na fotografia da carta de condução. ― Ninguém diria... ― Nem sempre se percebe. O que é que ela tinha na mala? A pressa, Aidan tirou o que encontrou na mala. ― Quatro cartões de crédito, um telemóvel, meia dúzia de batons berrantes e um porta-chaves. ― Levantou-o à altura dos olhos. ― A chave de um Honda, uma chave de casa e outra muito pequena. ― De um cofre? Aidan fez chocalhar as chaves, enquanto Murphy brincava com as algemas e o chicote. ― Talvez. Há algum extracto bancário nessa pilha de correio? Murphy voltou para junto da mesa da entrada e vasculhou no correio. 31 ― Não me parece que ela tenha aberto nada disto. Aqui está uma carta do banco. Podemos ver... Caramba! ― Murphy franziu o sobrolho quando olhou para uma outra carta, essa aberta. ― Esta já foi aberta. Não tem selo nem remetente. ― Com ar sombrio, tirou uma fotografia do envelope. ― Outra mulher morta. Esta está metida num caixão. ― Passou-a a Aidan. ― Olha para as mãos dela. Um arrepio percorreu as costas de Aidan. ― Um lírio. Parece a mesma que estava enforcada na outra fotografia. ― Pegou em metade da pilha de cartas e começou a escolhê-las. Em poucos minutos encontrou dez imagens do mesmo tipo, todas igualmente horríveis. Sempre da mesma mulher. Todas perturbadoras. Nenhuma das cartas tinha remetente nem carimbo de correio. ― Alguém andava a brincar com a Cynthia. Murphy pegou numa fotografia emoldurada que estava na secretária da morta. Era de uma rapariga com uma franja a tapar os olhos e um ar triste, atrás de uma janela. ― É esta. Ela conhecia-a, sem dúvida. ― Tirou a fotografia da moldura. ― Não há nenhum nome por trás. ― Aí parece mais nova que nestas fotografias. Talvez dezasseis anos? Parece-me uma fotografia tirada na escola. As da Rachel, a minha irmã, têm o mesmo fundo cinzento. ― Inclinou-se e pegou numa caixa estreita e fina que estava debaixo da mesa. Era do tamanho das que costumam mandar as floristas com doze rosas, mas por alguma razão não era isso que ele esperava encontrar lá dentro. ― Abre-a ― disse Murphy, com voz tensa. Com cuidado, Aidan levantou a tampa. ― Merda! ― Lá dentro estava uma corda enrolada com um nó corredio numa das pontas, muito bem ajeitada sobre papel fino, branco. Do lado do nó havia uma etiqueta dourada. ― "Vem ter comigo. Vais


encontrar a paz" ― leu ele, e depois olhou para o rosto sombrio de Murphy. ― Chama os tipos da polícia científica aqui acima. Murphy telefonou-lhes e, com um suspiro, meteu o telemóvel outra vez no bolso. ― Parece-me que amanhã a Tess vai ter de responder a umas perguntinhas. Só de pensar nisso, Aidan cerrou os dentes. ― Também me parece. CAPÍTULO 2 Sábado, 12 de Março, 10.30 Joanna Carmichael viu as suas fotografias serem metodicamente estudadas e o texto que revira com o maior cuidado logo pela manhã ser lido com grande atenção. Ao fim do que lhe pareceu uma eternidade, o editor executivo do Chicago Bulletin levantou a cabeça. ― Como arranjou estas fotografias? ― perguntou Reese Schmidt, apontando para elas. ― Estava no sítio certo à hora certa ― respondeu Joanna com um encolher de ombros. "Foi o meu carma", pensou, mas não lhe pareceu que Schmidt tivesse apreciado a ideia. ― A vítima morava no meu prédio e eu virei a esquina para ir para casa precisamente depois de ela ter saltado. Ouvi um grito e pus-me a correr, com mais três pessoas. Estavam lá dois adolescentes que a viram cair. ― Pôs um dedo sobre um dos cantos da primeira fotografia, uma imagem brutal de uma mulher esventrada e a sangrar com dois adolescentes ao lado, e em que o choque tinha sido captado com toda a clareza a preto e branco. ― Comecei logo a disparar. Ele pareceu céptico. ― A frente dos polícias? ― Eles ainda não tinham chegado ― respondeu ela com toda a calma. ― Quando chegaram continuei, mas dei menos nas vistas. ― Não usou flash? ― Tenho uma boa máquina, não precisei. ― Com uma sobrancelha erguida, acrescentou: ― Não gosto de perder trabalho. A boca dele esboçou um sorriso seco. ― Estou a ver. E a história? ― Fui eu que a escrevi. 33 ― Não era isso que eu estava a perguntar. Onde arranjou a informação? "Uma fonte não identificada confirmou que a polícia descobriu pistas que indicam que a vítima foi pressionada para saltar do vigésimo segundo andar do prédio onde vivia." Quem é a sua fonte não identificada? Quando ela não respondeu, os olhos dele voltaram-se para ela,


semicerrados. Não há fonte nenhuma. Ou inventou a abordagem do crime ou ouviu alguma conversa aos polícias. Qual destas aconteceu? Joana engoliu em seco, frustrada. ― A segunda. ― Era o que me parecia. ― Endireitou a cabeça, com os dedos entrelaçados sobre a secretária. ― Arranje quem confirme a história na polícia, uma pessoa que eu possa contactar para confirmar estas informações, e eu publico. "Sim." A palavra que ela esperava ouvir há dois longos anos. ― Onde? O sorriso dele foi sarcástico e um pouco trocista. ― Não seja gananciosa, Miss... Carmichael, não é? Arranje-me uma declaração que eu possa verificar e depois falamos. Era justo, acabou por pensar. Não era bem o que ela queria, mas era justo. Por momentos, chegou a pensar usar o seu segundo trunfo. O pai dela. Mas não seria justo, nem para Schmidt nem para si mesma. Juntou as fotografias, mas franziu o sobrolho quando ele pôs a mão em cima da primeira, a que mostrava os adolescentes e o corpo pouco depois do impacto. ― Não quero ser processado por difamação ― disse ele com suavidade ― mas posso usar as fotografias. Elas não mentem. ― Nem eu ― disse Joanna, a ranger os dentes. ― Eu volto. Chegou à rua e com um passo rápido dirigiu-se à esquadra. Não fazia ideia de como ia conseguir confirmar a história, mas tinha a certeza que havia de conseguir. O destino atirara-lhe uma história para o colo, por assim dizer. A ela cabia-lhe aproveitar a dádiva. Domingo, 12 de Março, 12.30 Aidan odiava a sala de autópsias. Mesmo nos dias bons, o cheiro bastava para lhe dar a volta ao estômago. E aquele dia não estava a ser dos melhores. Para nenhum dos envolvidos. 34 Parou à porta e o seu olhar deteve-se imediatamente no corpo que se encontrava na mesa de autópsias. Em particular, não estava a ser nada bom para Cynthia Adams. Se ela se tivesse matado, fora com uma ajudinha. Agora tinham a certeza. Alguém torturara sistematicamente aquela mulher com o envio de fotografias e de presentes. Tudo o que vinha assinado era com o nome "Melanie". Murphy achava que era provavelmente a mulher na fotografia da moldura e Aidan sentia-se inclinado a concordar com ele. A médica-legista não o tinha ouvido chegar, tão concentrada estava no estudo das mãos de Cynthia Adams. Felizmente havia coberto o tronco dela com um lençol. Aidan pigarreou ejulia Vanderbeck levantou a cabeça, os olhos cobertos por óculos de plástico. Não percebia como


ela conseguia suportar o cheiro, em particular tão obviamente grávida. O seu respeito por ela subiu um ou dois pontos. ― Ligaste-me? ― Liguei. Onde está o Murphy? ― A ouvir o atendedor de chamadas da vítima e a ver os vídeos de segurança do átrio do prédio dela. ― Ao que tudo indicava, o porteiro não se mostrara tão agradecido que desactivasse todas as câmaras do edifício. ― Está a tentar descobrir quem lhe levou aqueles lírios todos. Julia acenou bruscamente. ― Lembra-me esses lírios antes de saíres ― disse ela ― mas primeiro acho que deves ver as análises toxicológicas. ― Qual foi? ― perguntou Aidan, estendendo a mão para as folhas de apontamentos que ela lhe passou sobre o corpo de Cynthia Adams. Tinham encontrado dezassete frascos de medicamentos no quarto da mulher. Quatro tinham sido receitados pela Dr.a Tess Ciccotelli. Os outros treze tinham o nome de outros médicos e haviam sido receitados em diferentes alturas, ao longo dos últimos cinco anos. Julia endireitou-se com as mãos sobre os rins. ― A tua sorte é eu dever alguns favores ao Murphy, porque não vinha para aqui a meio da noite por qualquer um. ― Depois de expulsar o ar dos pulmões até ao último alento sentou-se num banco ao lado da mesa de autópsias. ― Na análise à urina não encontrámos nenhum. A última receita era de Xanax, passada pela Ciccotelli. É usado para tratar a depressão e a ansiedade. Era isso que eu devia ter encontrado na urina dela, mas o que encontrei de facto foram níveis elevados de fenciclidina. Aidan franziu o sobrolho. 35 Talvez ela consumisse. Anda cá. Quero mostrar-te uma coisa. Saiu com ele da morgue e dirigiram-se juntos ao laboratório. Aidan respirou fundo, sem se importar com a risada trocista de Julia. ― Mostra-me então. A médica deitou as cápsulas de dois frascos diferentes num pedaço de papel branco. Aidan reconheceu um dos frascos do apartamento de Cynthia Adams. O outro tinha a etiqueta da farmácia do hospital. ― À esquerda é Xanax da farmácia e à direita os comprimidos que tu trouxeste de casa da vítima ― explicou ela. Aidan olhou com atenção e disse: ― Parecem-me iguais. ― Foi o que alguém quis que ela pensasse. Alguém esvaziou as cápsulas e substituiu o conteúdo por pó-de-anjo. ― Foi alguém que se deu a muito trabalho ― disse Aidan, vendo o olhar perturbado da médica.


― Alguém que queria que ela ficasse fora de si e fosse facilmente sugestionável. Aidan lembrou-se das fotografias e do nó corredio na caixa das rosas, debaixo da mesa. O pequeno escadote na varanda que não estava lá na semana anterior, os lírios. ― Que raio... ― Sim, isso é pôr as coisas com grande eloquência ― aprovou Julia. ― Agora vamos outra vez para a sala de exames. Tenho outra coisa para te mostrar. Ele seguiu-a até à mesa onde se encontrava o corpo e viu-a levantar o braço direito de Cynthia. No interior dos seus pulsos estavam linhas verticais direitas cicatrizadas. ― Já tinha tentado matar-se ― murmurou. ― Pelo menos uma vez. ― Encontrámos uma arma carregada e um nó corredio no apartamento dela. Ambos em caixas de prendas e ambos com uma etiqueta dourada semelhante. Ambas diziam "Vem ter comigo". ― Havia alguém que queria realmente que ela se matasse ― concluiu Julia com um sorriso. ― E o que tudo indica. Disseste-me que te lembrasse os lírios. ― Sim. Ela tinha pólen de lírios nas narinas. ― Encontrámos uma das flores debaixo da almofada dela. ― Sim, faz sentido. Não encontrei vestígios de pólen nas suas mãos. 36 ― Será possível que as tenha lavado? ― Talvez, mas se as flores forem tantas como tu dizes é difícil que não houvesse algum debaixo das unhas, pelo menos se lhes tiver pegado. E especialmente com unhas como as dela. Aidan olhou para as unhas compridas pintadas de verniz vermelho-vivo de Cynthia. ― Sendo assim, não lhes mexeu. ― Não deve ter mexido. ― O que significa que alguém que não ela as espalhou pela casa. O telefone de Aidan tocou e ele tirou-o do bolso. Era Murphy, e parecia furioso. ― Onde te meteste, Aidan? ― Na morgue. Que aconteceu? ― O Latent identificou as impressões digitais que a polícia científica tirou do apartamento dela. Aidan ficou à espera, mas Murphy não explicou mais nada. ― E então? O que é que ele descobriu? ― Anda mas é para aqui ― rosnou Murphy. ― E a correr. Domingo, 12 de Março, 12.30 Tess observava o seu reflexo no espelho que estava ao lado da porta


do seu apartamento. Uma boa base valia o seu preço em ouro. Mesmo assim os papos debaixo dos seus olhos estavam bem à vista. Era o segundo domingo do mês em que costumava tomar um pequenoalmoço tardio com os amigos no Blue Lemon Bistro. Depois de estudar o processo de Cynthia Adams ao longo de várias horas dormira um sono breve e pouco repousante. Quando acordara estivera tentada a telefonar aos amigos e a cancelar, mas resistira. Não podia permitir que a perda de uma doente perturbasse assim a sua vida. Já tinha idade para o ter percebido. Era um dos sermões habituais de Jon, um cirurgião que também perdia doentes, na sala de operações, felizmente não com muita frequência. Numa tentativa de recuperar o equilíbrio, decidiu arranjar-se especialmente para sair. Gastou mais tempo a pentear-se, a maquilhar-se, e até tirou a etiqueta do preço de um casaco vermelho de cabedal que andava a guardar para uma ocasião especial. A Amy ia ficar louca quando o visse, pensou Tess. Acabaria por lhe pedir que o emprestasse e, como 37 de costume, Tess ia acabar por ceder. Depois, como se fosse a irmã mais nova que Tess nunca tivera, ficaria com ele até Tess fazer uma operação-comando ao guarda-roupa dela para recuperar todas as suas coisas. Sempre fora assim, desde que Amy fora viver com a família Ciccotelli, há já quase vinte anos. Tess fechou os olhos. Só de se lembrar da sua família já se sentia melancólica. Àquela hora, mais ou menos, estavam todos sentados à mesa, na velha casa dos pais, na zona sul de Filadélfia. O ambiente era sempre barulhento, desorganizado, maravilhoso, cheio a transbordar de gente, exceptuando a sua cadeira, que estaria vazia. Na velha tradição de recordar os mortos da família, a sua cadeira não seria ocupada por ninguém. Isto porque aos olhos do pai, Tess morrera para a família. Em geral conseguia evitar o sofrimento, mas nesse dia em particular tudo lhe parecia mais duro, talvez porque toda a noite se tivesse lembrado, vezes sem conta, da vida solitária de Cynthia Adams. Não tinha família. Não tinha nenhuma relação importante. E nesse momento, em que já partira, ninguém sentia a sua falta. Isso recordara-lhe que, à excepção do seu irmão Vito, que desafiara a sentença do pai, também ela não tinha família. E Vito estava tão longe... Em Filadélfia. Isso também lhe trouxe Phillip à memória. Se estava sozinha, era sobretudo porque aquele maldito, raios o partissem, era um estupor fingido e traiçoeiro. Mas pelo menos tinha amigos. Afastou os olhos do espelho, para a última fotografia de grupo que tinham tirado, no Lemon. A Amy e o Jon, o Robin, dono do bistro, Jim, que partira há pouco numa missão


humanitária para África. Sentiu a angústia apertar-lhe o coração quando olhou para o rosto dele e desejou que estivesse são e salvo. E depois havia ainda a Gen e a Rhonda e todos os outros, que provavelmente já estavam no Lemon, a perguntar-se por onde andaria ela. Endireitou a moldura na parede e voltou-se para o espelho. Com uma rapidez impressionante, passou o Ravishing Red pelos lábios. Ficava a condizer com o casaco e era o último toque de um conjunto que ela tinha esperança bastasse para atrair alguns olhares. Talvez conseguisse que algum homem interessante se materializasse. A sua vida amorosa bem precisava de alguma novidade. Ou mesmo de uma transfusão completa. Ou de uma médium, porque na verdade estava completamente morta. O Jon andava sempre a dizer-lhe o mesmo. Quase sempre que se viam. Sentia-se realmente grata por ter aqueles amigos. Apesar disso, por vezes desejava poder silenciá-los. 38 Em vez de chamar o elevador, desceu as escadas aos saltos até ao átrio do bloco de apartamentos, onde Mr. Hughes ocupava o seu lugar à secretária, como sempre. ― Bom dia, Mr. Hughes. Como está? O riso do velho senhor era música pura. ― Não tenho de que me queixar. Enfim, tenho, mas a Ethel diz que ninguém está interessado em ouvir. ― Enquanto falava, Mr. Hughes ia observando Tess através dos olhos semicerrados. ― Que se passa Dr.a Chick? Está outra vez com um ar adoentado... Tess pôs a pasta de trabalho ao ombro, mais pesada nesse dia por causa do processo de Cynthia Adams. ― Estou só um bocadinho cansada. ― O Riggin disse que a viu entrar muito tarde. E que tinha estado a chorar. Riggin era o porteiro da noite. Ficou aborrecida por eles terem estado a falar dela. Ninguém tinha nada a ver com a hora a que ela entrava em casa nem com o estado de espírito em que o fazia, mas quem queria segurança devia aceitar em troca a falta de privacidade. E ela tinha consciência disso. O desabafo de irritação transformou-se num suspiro. ― Eu estou bem, Mr. Hughes. Pode só ajudar-me a arranjar um táxi? Já estou atrasada. Se fosse de táxi chegaria muito mais depressa ao Lemon do que se tivesse de conduzir e procurar estacionamento. Mesmo assim, Mr. Hughes parecia preocupado. ― Onde vai esta manhã, Dr.a Chick? Não, espere! É o segundo domingo, por isso vai tomar o pequeno-almoço ao Blue Lemon. Com as sobrancelhas erguidas, disse ao passar pela porta que ele lhe


segurava: ― Não me diga que sou assim tão previsível! Lembrava-se do tempo em que isso não era assim. ― Eu podia acertar o relógio por si ― disse Mr. Hughes ao mesmo tempo que mandava parar um táxi. ― O Blue Lemon no segundo domingo, o hospital às segundas, jantar com o doutor às quartas... ― Interrompeu-se bruscamente e endireitou as costas, incomodado. Com um olhar culpado, olhou-a nos olhos. ― Desculpe. Ela fez um esforço para obrigar os lábios a sorrirem. ― Não tem importância, Mr. Hughes. Os seus jantares de quarta-feira com o doutor eram coisa do passado, porque o próprio doutor era coisa do passado. Ficou furiosa por 39 perceber que ainda sofria ao pensar em Phillip, mas quando o táxi por fim parou à sua frente dominou tanto o sofrimento como a raiva. Nenhuma dessas emoções era saudável. E nenhuma faria desaparecer o passado. Esse táxi não vai ser preciso ― disse uma voz áspera atrás dela. Tess fez meia-volta e deu por si a olhar para os olhos azuis frios onde na véspera vira tanto desprezo por si. A luz da manhã não se tinham tornado mais suaves. ― Detective Reagan ― disse ela, aborrecida por ele lhe ter aparecido ali, por ter invadido o seu espaço com ar de quem era dono do mundo. Aborrecida por, à luz do dia, ele ser ainda mais atraente. Aborrecida por ter reparado. ― Posso ajudá-lo nalguma coisa? Murphy apareceu ao lado de Reagan. Juntos formavam uma espécie de muro que a impedia de ver a rua. ― Temos de falar consigo acerca de Cynthia Adams, Tess. ― Tenho aqui o dossiê dela ― respondeu Tess com uma pancada suave na sua pasta. ― Para ser honesta, esperava que tivessem ligado mais cedo. ― O seu olhar saltou do rosto fechado de Reagan para o de Murphy. Não viu ali o mais leve sinal de familiaridade ou de compreensão. ― Que se passa, Todd? ― Tem de vir connosco, Tess ― respondeu ele com calma. ― Por favor. Tess levantou a cabeça e disse a Murphy: ― Vai algemar-me, Todd? ― perguntou num murmúrio. Reagan abriu a boca, mas Murphy voltou-se para ele com um olhar que o fez desistir. ― Tess, vamos despachar isto, está bem? Depois podemos ir todos as nossas vidas. ― Murphy pegou-lhe pelo cotovelo e conduziu-a ao seu velho Ford. ― Por favor. Ela entrou, consciente do olhar de Mr. Hughes, ainda à porta, de boca


aberta. Antes de alcançarem o quarteirão seguinte, Ethel já estaria a par de tudo aquilo, tinha a certeza. ― Posso fazer uma chamada? ― perguntou num tom agressivo quando Murphy parou num semáforo. Murphy olhou-a pelo retrovisor e devolveu a pergunta: ― A quem? "A quem?!", pensou ela indignada, mas decidiu cooperar. ― Quero cancelar o meu encontro, como o detective Reagan amavelmente sugeriu. 40 Reagan fulminou-a com os seus olhos azuis, ainda mais azuis à luz do dia. ― Só uma chamada ― respondeu em tom sarcástico. ― E obrigado pela sua cooperação, Dr.a Ciccotelli. Tess fechou os dedos com força à volta do telemóvel para evitar atirálo à cabeça de Reagan, com uma fúria pura e concentrada que a deixou a tremer. ― Ora essa, detective Reagan. Concentrou-se em martelar os números no teclado, lamentando não conseguir evitar imaginar que era a cabeça de Reagan que estava a agredir. Na noite anterior sentira uma certa compreensão por um homem que ficara evidentemente marcado ao ter encontrado a última vítima de Harold Green. Mas tudo isso fora antes de ele ter assumido o papel do mau polícia com ela. "Que vá para o diabo e leve todos os seus pruridos consigo." Quando Tess começou a ouvir o toque do telefone, ele ainda não tinha desviado os olhos dela. Felizmente, Amy respondeu ao terceiro toque. ― Onde estás? ― perguntou ela sem rodeios. ― Estás atrasada. Tess ouvia o barulho de fundo do Blue Lemon do outro lado, bem como a voz preocupada de Jon a perguntar o que acontecera. ― Hoje não posso ir ― disse ela num tom formal. ― Tive uma emergência. ― Tess ― disse Amy, que por pouco não se pôs a rabujar. ― Todos prometemos que este encontro era sagrado. Todos nós temos emergências. Tess pousou os olhos no rosto desafiador de Reagan. ― Como esta, não ― respondeu a Amy. ― Se eu puder ainda apareço, mas o melhor é começarem sem mim. ― Espera, Tess. ― Jon pegara no telefone de Amy. ― Ontem recebi o teu recado mas só cheguei a casa depois das três da manhã. Que aconteceu? Tiveste algum problema? Telefonara-lhe para ele ir com ela, para poder servir de testemunha daquilo que esperara tivesse sido uma consulta com uma paciente viva.


― Estou óptima. O assunto já foi resolvido. ― Pela própria Cynthia Adams. Se não fosse o olhar frio de Reagan não teria conseguido dominar o arrepio que a recordação do corpo de Cynthia esventrado no passeio lhe provocava. Nessa altura devia estar na morgue, deitada numa mesa de observação, com um número numa etiqueta presa ao pé. Pelo menos encontrara alguma paz. Tess assim o esperava. 41 Agora tenho de desligar, Jon. Depois telefono-te, está bem? ― Desligou o telefone. ― Só uma chamada, detective. Com a sua licença. Os olhos dele pareceram lançar faíscas em resposta ao tom sarcástico dela. ― Obrigado. Quando é que me vão dizer a que propósito vem tudo isto? Falamos quando chegarmos, doutora ― Reagan acomodou-se melhor no banco, dando o assunto por encerrado. Quando chegarmos. A ideia estava associada a qualquer coisa um pouco sinistra, e fora dito com essa intenção. O polícia mau estava a provocá-la. "Pois vou ensinar-lhe que encontrou um adversário à altura." Voltou-se para o polícia bom. ― Murphy? Murphy olhou em frente, evitando os olhos dela. Pela primeira vez Tess sentiu-se alarmada. ― Temos de fazer isto pelas vias oficiais, Tess. Falamos quando chegarmos. Domingo, 12 de Março, 13.25 Aidan ia observando a Ciccotelli através do vidro duplo. Ela parecia olhá-lo de frente, mas ele sabia que a única coisa que ela via era o seu próprio reflexo. Já tinha estado vezes suficientes dos dois lados do vidro para saber que estava a ser observada. Sabia o que tinha pela frente, mas nem pestanejava. Era um gelo de mulher, disso não havia dúvida. Mas para fazer o que ela fizera era preciso ser fria. Se é que o tinha feito. Mas todas as pistas indicavam que sim. Não era provável. Era completamente impraticável. Praticamente impossível. Murphy tinha a certeza que não tinha sido ela, mas Murphy não parecia ser muito objectivo quando quem estava em causa era a Dr.a Tess Ciccotelli. E Aidan percebia porquê, tinha de admitir. Do outro lado do vidro estava uma bomba, de jeans e camisola de gola alta justa, que se adaptava como uma luva às curvas dela, ambos pretos. O cabelo escuro dela era encaracolado. Nesse dia parecia uma cigana modernaça, disfarçada de médica respeitada. Contara-lhes que tinha um encontro. Impossível. Ninguém se vestia assim para ir a um encontro. Por outro lado, ele não conhecia ninguém que se vestisse assim. Ou


tivesse aquele aspecto, mesmo que tentasse. Cerrou os dentes com força, 42 aborrecido consigo mesmo pela maneira como o seu corpo reagia ao que Ciccotelli tinha escondido por baixo do seu casaco de cabedal conservador. Por pouco provável que fosse, ela era uma suspeita. Mesmo que deixasse de ser suspeita, não deixaria, de certeza, de ser uma cabra fria. O facto de ser uma cabra fria e sexy era apenas uma daquelas partidas do destino com que um tipo decente de vez em quando tinha de lidar. Ao lado dele, Murphy passava as mãos pelo rosto. ― Tem olheiras. Não deve ter dormido muito. ―Já somos três ― ripostou Aidan num tom menos compreensivo. Olhou por cima do ombro para o local onde o tenente da esquadra estava encostado à parede da pequena área reservada à observação a afagar o bigode com ar pensativo. ― Ainda não concordas comigo. O tenente Marc Spinnelli abanou a cabeça. ― Conheço a Tess Ciccotelli há uma quantidade de anos e ela é uma boa pessoa. E uma boa médica. O diagnóstico dela pode não ser sempre o que nós queríamos, mas ela não seria capaz de levar aquela mulher à loucura. ― E de a atirar da varanda abaixo ― resmungou Murphy. ― Vamos lá despachar isto. Ainda viu Murphy entrar na sala de interrogatório e sentar-se do lado da mesa oposto àquele em que se encontrava a Dr.a Ciccotelli. Ela olhou Murphy por breves instantes e depois voltou-se de novo para o vidro, e o seu olhar já não parecia tão frio. Parecia furioso. Ainda bem. A fúria era sempre melhor que a calma e a compostura, disso ninguém tinha dúvida. ― Ele não é isento. Está envolvido ― murmurou Aidan, com a mão no puxador e os olhos no rosto inexpressivo de Murphy. ― Todos nós estamos ― replicou Spinnelli num tom frustrado. ― Qualquer polícia de Chicago estaria. Deve haver poucos que não saibam da história de Harold Green, mas a maior parte não conhece a Tess. Entra e faz o teu trabalho, Aidan. O Murphy vai fazer o dele. ― E se não fizer? Spinnelli suspirou. ― Se não fizer, vou eu. Com a promessa de Spinnelli, Aidan entrou na sala. Os olhos dela seguiram-no, semicerrados e perigosos. ― Aqui estou, detective Reagan, como o senhor queria. Está a observar-me há quinze minutos. Quando pensa dizer-me que diabo está a passar-se aqui? 43 Ele sentou-se ao lado dela, num dos extremos da mesa.


Fale-me de Cynthia Adams. Ela pestanejou e respirou fundo, claramente a procurar dominar-se. E aos poucos acabou por conseguir, sob o olhar fascinado dele. Cynthia Adams era uma mulher complicada ― respondeu Tess, por fim, olhando Aidan de frente e ignorando completamente Murphy. Mas se esteve no apartamento dela já deve saber isso. E a Dr.a Ciccorelli já esteve? No apartamento dela, quero eu dizer. ― Não, nunca entrei no apartamento dela. Aquela mulher era capaz de mentir sem sequer pestanejar. Pelo canto do olho viu o músculo do maxilar de Murphy contrair-se quando ele cerrou os dentes com força. Aidan teve pena do parceiro, e de Spinnelli também. Ambos gostavam evidentemente da Ciccotelli. Sabia que ia ser difícil para ambos. "Não faz mal, eu faço-o por eles", pensou. ― Mas já esteve no apartamento dela, quer dizer, à porta? ― insistiu ele. Ela olhou-o, cautelosamente. ― Uma vez. Ela faltou a uma consulta e eu fiquei preocupada. Telefonei-lhe, mas respondeu-me o atendedor de chamadas, de maneira que passei por lá com o meu colega, o Dr. Ernst, para ver se lhe tinha acontecido alguma coisa. Tess trabalhava com o Dr. Harrison Ernst há cinco anos. Já perto da idade da reforma, o Dr. Ernst era um homem muito respeitado. Aidan percebera-o no seu estudo apressado da suspeita, antes de a ter ido buscar para ser interrogada. ― Costuma fazer isso? Ir a casa dos doentes? ― Não, não costumo. A Cynthia era um caso especial. ― Porquê? Com a cabeça um pouco de lado e os dedos entrelaçados no colo, uma expressão inescrutável no rosto, a médica respondeu: ― Eu gostava dela. ― Quando é que isso aconteceu? A visita? ― esclareceu ele, e ficou a vê-la reflectir. A maneira como ele apresentara a questão, seguida de um esclarecimento, aborrecera-a. Ainda bem. ― Há umas três semanas. ― Ela ligou-lhe mais tarde? ― Ao fim de algum tempo, sim. ― E...? 44 ― E marcou outra consulta comigo. Tinha entrado no jogo. E parecia saber o que fazia. Respondia só ao que lhe perguntavam, sem revelar nada mais. ― E apareceu? A nova consulta? ― Não. ― Qualquer agressividade desaparecera, substituída, por uma


fracção de segundo, por um olhar de uma tal tristeza que se sentiu recuar mentalmente. Se fosse inocente, preocupava-se realmente com os doentes. Se era culpada, era muito boa. ― Não apareceu ― respondeu num murmúrio. ― Voltei a ligar-lhe, deixei-lhe outro recado, mas ela não voltou a telefonar-me. Nunca mais falei com ela. Aidan tirou o bloco de apontamentos do bolso. ― Porque é que Miss Adams a consultou, Dr.a Ciccotelli? O olhar cauteloso regressou. ― Estava deprimida. ― Com o quê? Tess Ciccotelli fechou os olhos. ― Se ela fosse viva, eu não podia contar-lhe nada disto. Imagino que saiba. São informações confidenciais. ― Mas ela já não está viva ― disse Aidan com bons modos. ― Está deitada numa mesa de observações da morgue, esventrada, morta pelas próprias mãos. Os olhos dela abriram-se muito e Aidan teve a impressão de aí ver mágoa e choque, que ela soube esconder, com todo o cuidado. ― Comecei a tratar a Cynthia há mais ou menos um ano. Antes de vir ter comigo já tinha ido a uma dúzia de médicos, talvez. Aidan lembrou-se dos frascos de medicamentos que tinham encontrado em casa da morta. Tantos médicos... E apesar disso Cynthia Adams estava morta. ― Pelos vistos, ajudou-a tanto que ela está morta ― disse com brusquidão. Os olhos dela brilharam de fúria e em seguida acalmaram-se, enquanto Murphy lançava ao parceiro um olhar de aviso. Ela tirou um dossiê da pasta e pô-lo na mesa à sua frente, entre os dois. ― Cynthia sofria de depressão grave em resultado dos abusos a que foi sujeita em criança. O pai molestou-a sexualmente desde que ela fez dez anos até que fugiu de casa, aos dezassete. ― Enfrentando-o com um olhar firme, acrescentou: ― Imagino que tenha encontrado em casa dela indicações de um comportamento sexual... extremo, detective. 45 - Encontrámos algemas e chicotes, sim. E algumas fotografias. Ela continuou a olhá-lo com firmeza. Cynthia odiava-se a si mesma, e odiava o pai por ter abusado dela. Às vezes, as pessoas que foram vítimas de abusos sexuais acabam por se comportar da maneira que mais odeiam. Definem-se através precisamente do que odeiam. E também acontece as vítimas de abusos tornarem-se dependentes do sexo. Era o que se passava com Cynthia. Numa só noite levava para casa todos os homens que podia e


no dia seguinte desprezava-se a si mesma por isso. Depois prometia a ela própria que ia parar, mas as coisas acabavam por piorar sempre. ― Nesse caso, estava a tratá-la pela dependência sexual? ― perguntou Aidan, mas ela negou. ― Não, estava a tratá-la pela depressão. Conheci a Cynthia quase há um ano, estava ela no hospital a recuperar de uma tentativa de suicídio. Tinha aberto os pulsos, como fazem as pessoas que querem realmente morrer. Se ainda não encontraram cicatrizes profundas no interior dos pulsos, vão encontrá-las. Aidan recordou as cicatrizes que vira, ironicamente uma das poucas marcas identificadoras que não fora suprimida pela queda de Cynthia. ― Por que razão tentou ela suicidar-se há um ano, Dr.a Ciccotelli? ― Já lhe disse. Ódio a si própria. ― Mas ela já se odiava a si própria há muito tempo. Porque decidiu ela matar-se nesse momento em particular? ― Na altura sofreu um novo trauma. Aidan começava a ficar seriamente contrariado. ― Que trauma foi esse? ― A irmã enforcou-se e foi Cynthia que a encontrou. Aidan esforçou-se por disfarçar o súbito interesse que a informação tinha para ele. ― Porque se enforcou? A irmã. ― A irmã era mais nova que ela. Logo que a Cynthia fugiu de casa, o pai começou a molestar a irmã. Quando esta cresceu não conseguiu aguentar as recordações e enforcou-se. Cynthia sentiu-se profundamente culpada por ter deixado a irmã com o pai. O suicídio dela deixou-a numa lástima. ― Como se chamava a irmã, Dr.a Ciccotelli? Tess abriu o dossiê e vasculhou os documentos. As páginas eram quase todas impressas, mas havia algumas escritas numa caligrafia segura e ordenada. A psiquiatra retirou uma dessas páginas e leu o seu conteúdo. 46 Invertidamente, Aidan conseguiu ler uma data de Abril do ano anterior no alto da página. ― A irmã chamava-se Melanie e matou-se há um ano, precisamente no mesmo dia. Meu Deus... Eu devia ter adivinhado. Tess parecia engolir em seco, e pelo menos nesse momento Aidan esteve a ponto de acreditar em Murphy. O seu parceiro passou as costas da mão pela boca e disse: ― Encontrámos medicamentos no apartamento dela. Uma quantidade deles. Tess levantou os olhos para Murphy, despida de qualquer agressividade ou raiva.


― Eu receitei-lhe Xanax. ― A médica-legista encontrou pó-de-anjo nas análises toxicológicas, Tess. Surpreendida, a Dr.a Ciccotelli negou vigorosamente com um gesto de cabeça. ― Ela usava fenciclidina? Nunca vi sinais de uso de drogas! ― Só dos que a própria Dra. Ciccotelli lhe receitou ― disse Aidan, num tom um pouco mais amável do que seria de esperar. Tess voltou-se para ele com a fúria bem vincada no rosto. ― Que diabo quer dizer com isso, detective? Aidan não respondeu. Em vez disso, começou a mostrar-lhe as fotografias que tinham encontrado no apartamento de Cynthia Adams na noite anterior. E ficou a observá-la, a ver a cor desaparecer do seu rosto. ― Oh, meu Deus! ― dizia ela num murmúrio, com as mãos a tremer, vendo todas as fotografias uma a uma, horrorizada. Quando chegou à última, a de Melanie pendurada de uma corda, morta, um grito abafado soltou-se dos seus lábios, que pareciam ter mudado de cor, em contraste com o seu rosto pálido. ― Onde encontrou estas fotografias? ― perguntou num tom de voz distorcido. Murphy trocou um olhar com o parceiro, como se dissesse: "Eu não te dizia?" Apontando para a fotografia da enforcada, explicou: ― Esta encontrei-a perto da porta de correr da varanda ontem à noite. Algumas das outras vieram pelo correio, em cartas sem remetente. A atenção dela ainda se concentrava nas fotografias. A sua voz não passava de um sussurro dominado pelo horror. 47 Quem teria feito uma coisa destas? De sobrancelha erguida, Aidan pensou mais uma vez que, se de facto estava inocente, preocupava-se com a doente morta. Se fosse culpada era uma das melhores mentirosas que ele conhecia. Embora Murphy estivesse certo de que era a primeira possibilidade que estava correcta, ele tinha de acautelar a hipótese de ser a segunda. Algumas vieram como attachments de e-mails. Tem o endereço de e-mail de Cynthia, Dr.a Ciccotelli? Ela voltou-se para ele, devagar, os olhos escuros, cautelosos. Devo tê-lo num sítio qualquer. É um dos campos na minha nova ficha dos doentes. ― Depois voltou-se para Murphy. ― Porquê? Com os lábios fortemente cerrados, Murphy instruiu: ― Passa a gravação. Aidan saiu da sala o tempo necessário para ir buscar o leitor de cassetes, que tinha deixado no chão do lado de fora da sala de


interrogatórios. Pôs o aparelho ao lado da psiquiatra e esperou que ela o olhasse para começar a passar a gravação. ― Cynthia. ― Era um lamento infantil, estranhamente fantasmagórico. Tess pestanejou e a mensagem prosseguiu. ― Falhaste outra vez. Prometeste que não me deixavas. Vê o teu e-mail, Cynthia. Aidan parou a cassete e tirou uma fotografia emoldurada do monte que estava em cima da mesa. ― Esta mensagem estava no atendedor de chamadas dela. E isto era o attachment do e-mail. Ontem à noite o chão da sala de Cynthia estava coberto de flores como a que se vê na fotografia do corpo. ― Alguém estava a forçá-la a reviver a morte de Melanie ― disse a Dr.a Ciccotelli lentamente, apertando os lábios. ― A fenciclidina deve tê-la convencido de que era tudo verdade, de que estava a ouvir fantasmas. Quem teria feito uma coisa destas? ― repetiu. "De facto, quem?" Aidan continuou a reproduzir a gravação, observando todos os matizes da expressão da médica. Não teve de esperar muito. Às primeiras palavras os olhos dela abriram-se. Estava genuinamente chocada. O horror estava espelhado nos seus olhos. ― Cynthia, fala a Dr.a Ciccotelli. Tenho sentido a sua falta. E a Melanie também. Faz hoje um ano. A Melanie trouxe-lhe prendas. É o aniversário da morte dela, Cynthia. Não acha que já está na altura de lhe dar o que ela quer? Não acha que chegou o momento de cumprir a sua promessa? As promessas são para cumprir, Cynthia. Aidan interrompeu a cassete. A sala de interrogatórios ficou subitamente em silêncio. Tess não disse nada. Ficou apenas a olhar para o leitor 48 de cassetes como se se tratasse de uma cobra venenosa a preparar-se para atacar. Aidan pôs mais duas fotografias à frente dela, além do laço e da arma. ― Eram estas as prendas da Melanie para a irmã ― disse ele num tom neutro. Viu os olhos dela descerem para as fotografias e foi nessa altura que começou a acreditar que Murphy tinha razão. O choque da Dr.a Ciccotelli ao ouvir a gravação foi completo e absolutamente convincente. Por outro lado, aquela mulher era especialista na mente humana. Era natural que soubesse representar uma cena daquele tipo na perfeição, não é verdade? ― Tess ― disse Murphy com voz rouca. ― Os vídeos de segurança do bloco de apartamentos mostram uma mulher de cabelo preto e casaco de cabedal a entrar no elevador com um saco de plástico grande. ― Depois de uma hesitação completou o que ia dizer. ― Encontrámos impressões digitais nas caixas onde lhe levaram a corda e a arma. No frasco de Xanax também.


Lentamente, Tess ergueu o rosto para Murphy. ― Impressões digitais de quem? Apesar da pergunta, o horror espelhado nos seus olhos mostrava que ela sabia qual seria a resposta. Murphy engoliu em seco. ― Suas, Tess. Encontrámos as suas impressões digitais no frasco de comprimidos, na corda e na arma. São iguais às que deixou no cartão que me deu. A médica inclinou-se para trás na cadeira, cuidadosamente. Depois levantou os olhos para Aidan com a mesma calma que ele já lhe vira na noite anterior, depois de ela ter observado o corpo esventrado de Cynthia Adams caído na rua. ― Acho que vou telefonar à minha advogada, detective. Esta entrevista acabou. CAPÍTULO 3 Domingo, 12 de Março, 14.43 Era pura e simplesmente inacreditável, mas era a realidade. "E tudo isto me está a acontecer a mim." Cynthia morrera. "E eu estou sentada do lado errado do vidro, e pela primeira vez na minha vida preciso de um advogado de defesa." A escolha não podia ter sido outra. Não havia advogada em quem Tess confiasse mais. A sua maior amiga, Amy, era especialista em direito comercial, mas Tess sabia que Amy fazia de vez em quando trabalho oficioso em tribunais criminais. Só gostaria de saber onde diabo se tinha metido! O Blue Lemon ficava a menos de vinte minutos a pé da esquadra, mas Tess tinha a certeza que estava ali sentada há pelo menos três quartos de hora. À espera, o tempo a passar. Apesar de tudo, venceu o impulso de voltar a olhar para o relógio e continuou a olhar em frente. Eles estavam a observá-la, do outro lado do vidro. Tinha a certeza. Conhecia o funcionamento das esquadras tão bem como o rosto que a olhava do vidro espelhado à sua frente. Todd Murphy e o seu novo parceiro, arrogante, com o seu rosto de pedra e os seus olhos azuis de gelo. Não deixou de olhar, não desviou os olhos. "O filho-da-mãe que fique ali a olhar para mim. Ele que me observe." Os dois pareciam convencidos de que tinha sido ela. Que ela mesma tinha levado Cynthia Adams a acabar com a própria vida. Estavam realmente convencidos de que ela tinha feito uma coisa daquelas! A simples ideia bastava para a deixar furiosa. Até Murphy. O coração batia-lhe descompassado ao mesmo tempo que os olhos pareciam presos ao seu reflexo no vidro. De Reagan já esperava 50


que fosse agressivo, com provas daquele tipo. Mas Todd Murphy?! A ideia de que este imaginava que ela era capaz de fazer uma coisa daquelas já bastava para a magoar. Eles eram amigos. Uma falta de confiança daquelas... Nunca poderia ser reparada. Sabia-o por experiência pessoal. A confiança era algo de valioso e só um idiota a concederia irreflectidamente. E só um idiota ainda maior tentaria restabelecê-la depois de ela ter sido destruída. E Tess Ciccotelli não era nenhuma idiota. "Nem estou desfeita e de rastos." Semicerrou os olhos, imaginando Reagan a olhá-la do outro lado do vidro, de braços cruzados sobre o peito largo. A olhá-la com desdém. Sabia tirar partido da altura. A maneira como ele se inclinara para ela quando estava a passar a gravação no maldito leitor de cassetes! Já estava à espera que ele tentasse intimidá-la. E tentara. Mas não conseguira nada com isso. Mesmo assim, tinha de reconhecer que conseguira chocá-la. Saber que as suas impressões digitais se encontravam nos instrumentos da tortura mental de Cynthia... No fundo, continuava em choque, a tentar recuperar o sangue-frio. Alguém fizera aquilo. Alguém orquestrara o que fora nada mais nada menos que o assassinato de Cynthia Adams. "Agora a mesma pessoa está a tentar arrastar-me na queda." E as coisas estavam a correr-lhe bem. Isso também tinha de admitir. Nunca pusera os pés no apartamento de Cynthia. Nunca tocara em nada que lhe pertencesse. Nunca houvera nenhuma razão para tocar nos seus medicamentos. Nunca lhe dera nenhuma prenda que pudesse ser manipulada com aquele fim. No entanto, as suas impressões digitais tinham sido encontradas, bem como a sua voz. Reagan estava a falar a sério. Estava realmente convencido de que ela fizera aquela coisa horrível, medonha. Não chegara a pronunciar as palavras acusadoras, mas os seus olhos tinham dito tudo. E, ao fazêlo, defendera Cynthia Adams. O aspecto tranquilo de Tess parecia impor-se através das paredes da sala de interrogatórios. Aidan Reagan defendera os direitos de Cynthia Adams, apesar de esta estar morta, esmagada no passeio. "Que raio de médica pensa ela que é?", perguntara ele. Por baixo da sua raiva do dia anterior houvera angústia. Preocupara-se com Cynthia, e estava convencido de que Tess não queria saber da morta. Era um bom homem, dissera Murphy. Um bom polícia. Tess esperava bem que sim. Esperava que ele conseguisse ver para além do que ela sabia serem obviamente pistas falsas, que conseguisse 51 ver para além dos seus preconceitos acerca do tipo de médica que ela era.


Depois de ter dominado o suficiente a raiva para conseguir ver as coisas com lucidez, desviou os olhos do vidro e pôs-se a observar as fotografias que Reagan tão a propósito deixara sobre a mesa. O mais certo era ele contar que ela cedesse sob o peso da culpa e acabasse por confessar o seu crime. "Tenho muita pena, detective, mas não vai ser hoje." Tess pegou na fotografia que Murphy encontrara no chão do apartamento de Cynthia. A última fotografia que ela recebera, no momento mais apropriado. Cynthia contara-lhe a história do suicídio de Melanie, como é evidente. Muitas vezes. Melanie ameaçara matarse, mas Cynthia nunca acreditara que ela acabasse por fazê-lo. Depois, um dia, um ano atrás, Cynthia chegara ao apartamento de Melanie para ir jantar com a irmã no dia de anos dela e encontrara-a morta. Estava pendurada de uma corda e tinha uma nota presa à blusa branca. Tess aproximou os olhos da fotografia e voltou-a para eliminar o reflexo das luzes na superfície brilhante do papel. Ah! Ali estava. A nota pregada à blusa de Melanie. Nesse caso, aquela fotografia fora tirada antes de a polícia ter retirado o corpo da corda, pensou ela. Tirada por quem? Pela polícia? Não parecia uma fotografia de polícia. Por Cynthia? Não lhe parecia provável. Segundo o relatório que lhe chegara às mãos, Cynthia estava completamente transtornada na altura em que a polícia chegara ao local. Talvez a própria Melanie, numa espécie de última partida cruel à irmã? Era possível, até porque Melanie fora muito específica quanto à altura em que Cynthia devia chegar naquela noite, um ano atrás. Era como se tivesse planeado que Cynthia a encontrasse enforcada naquele dia particular. Não era impossível que tivesse programado uma máquina para lhe tirar uma fotografia alguns minutos depois de morrer. No entanto, como poderia alguém ter deitado as mãos àquela fotografia? Quem poderia saber tanto acerca do passado de Cynthia? A sua paciente fora muito clara quanto à necessidade de confidencialidade. Preocupava-a que qualquer fuga de informação relativa à sua vida sexual lhe custasse o emprego numa das consultoras financeiras mais importantes do Illinois. Dificilmente, Cynthia teria falado daquele assunto a alguém. Quem poderia querer Cynthia morta? E porquê? No entanto, a questão mais premente há uma hora que não lhe saía da cabeça: 52 ― Porquê usar-me a mim? ― murmurou. Tess respirou fundo e por fim cedeu à necessidade de saber há quanto tempo estava ali sozinha à espera. Sessenta e três minutos. Onde diabo estava Amy?! Aidan observava-a do outro lado do vidro, de pé. Depois do primeiro momento de surpresa, a Dr.a Ciccotelli recompusera-se e não voltara a


mostrar-se perturbada. A porta abriu-se atrás dele e a seguir fechou-se. Aidan sentiu um aroma leve a canela e um cheiro forte a fumo de cigarro. Pobre Murphy. Nos últimos quatro meses, desde que trabalhavam juntos, que o parceiro mascava pastilhas de canela para conseguir deixar de fumar. Ao que tudo indicava, a tensão das últimas horas deitara tudo por terra. ― Não me digas que fumaste um maço inteiro, Murphy?! ― Metade ― respondeu o colega, que pigarreou profundamente. ― Como é que ela se está a aguentar? ― Parece ter recuperado bem. ― Há mais ou menos uma hora que se ocupava sobretudo a olhar para o vidro com ar calmo e desafiador. Ele podia, devia tê-la deixado ir. E sabia-o. Não tinham o suficiente para a manter ali, disso não tinha dúvida. Mesmo assim manteve-se ali, de pé, imóvel. A olhar para ela, assim como ela olhava para ele. Ela perturbava-o, Aidan tinha de admitir. Estava convencido de que nenhum homem com sangue nas veias olharia para o seu rosto, para o seu corpo, sem se sentir perturbado. E Aidan tinha sangue nas veias. Mas sabia que não era só ao seu corpo que estava a responder. Havia uma dignidade tranquila na maneira como ela esperava. "Ela é psiquiatra", repetiu a si mesmo. Tinha experiência a esconder as emoções. Tinha prática de esperar em silêncio durante muito tempo. Mais ou menos como os polícias. Ele próprio tinha algo em comum com a Dr.a Ciccotelli, e isso não lhe agradava. Do outro lado do vidro houve um movimento súbito. Ela suspirou e os seus ombros pareceram descair, embora apenas por breves instantes. Depois, voltou-se para as fotografias que ele tinha deixado em cima da mesa e com toda a calma separou as que a polícia tinha tirado ao corpo de Cynthia Adams e pô-las de lado. Após ter seleccionado as da irmã de Cynthia, começou a observá-las com atenção. As suas sobrancelhas uniam-se quando estava concentrada. ― Porquê usar-me a mim? ― murmurou tão baixo que eles mal conseguiram ouvi-la. 53 Boa pergunta ― respondeu Aidan também num murmúrio. Sabes perfeitamente que ela não fez aquilo ― disse Murphy com toda a calma. Aidan fez um esgar e respondeu: Por enquanto não sei nada, Murphy. E tu também não. Mas agradeço que me dês tempo para pensar por mim próprio. Podias ter puxado dos galões e tê-la mandado para casa. ― Se a situação fosse a inversa se Aidan fosse o chefe e Murphy o novato, era provavelmente o que teria acontecido. ― Porque não o fizeste?


Murphy suspirou. Talvez porque até ter visto a cara dela quando a confrontámos com a gravação eu próprio também não estivesse inteiramente seguro. Está furiosa com os dois, mas eu magoei-a e não vai ser fácil ela esquecer. Aidan voltou-se e perguntou com impaciência: ― A advogada dela vem de outro planeta ou quê? ―Já devia ter chegado há mais de meia hora. Chama-se Amy Miller ― respondeu Murphy, e o seu corpo ficou quase imperceptivelmente tenso. ― Então conhece-la? ― Já nos cruzámos ― respondeu o parceiro sem explicar mais nada. ― Mas nunca trabalhei com ela. Aidan voltou a concentrar a sua atenção na Dr.a Ciccotelli, que observava as fotografias umas atrás das outras como se procurasse alguma coisa. Pelo sim pelo não, tinha-lhe deixado aquele material, não fosse ela ir-se abaixo, mas nunca acreditara realmente que isso pudesse acontecer. ― Tenho de admitir que não é uma assassina provável, Murphy, mas não achas possível que tenha ficado surpreendida apenas porque a apanhámos? ― Achas mesmo que sim? ― Não. Acho que é esperta de mais para isso. Mas as nossas provas indicam o contrário e não podemos ignorá-las. Que diria o procurador? Murphy saiu para telefonar ao procurador Patrick Hurst, mas Aidan desconfiou que apenas queria escapar ao olhar fixo de Tess Ciccotelli. Para não falar em fumar mais meio maço de cigarros. ― Ficou estarrecido ― contou Murphy com uma risada quando voltou, pouco depois. ― O Patrick também a conhece, e não acredita em nada disto. Diz que quer um motivo, mais provas de que foi realmente um crime. 54 Aidan franziu o sobrolho. ― Temos uma mulher morta. Desde quando é que isso não é crime? A porta atrás deles abriu-se e deixou passar um aroma a bom perfume, seguido de perto por uma mulher de fato de saia e casaco azul e um ar muito profissional. Era loura, usava o cabelo apanhado e brincos de diamantes. Tinha olhos verdes duros e a boca não esboçava sequer um sorriso, o que lhe dava um aspecto duro. ― Uma vez que ninguém empurrou a mulher da varanda abaixo, não há crime nenhum ― disse. ― Chamo-me Amy Miller, sou advogada da Dr.a Ciccotelli e vim buscá-la. Imediatamente. ― Depois parou e pestanejou para Murphy. ― Eu conheço-o. Murphy acenou afirmativamente. ― Sou o detective Murphy. Este é o meu parceiro, o detective Reagan.


Conhecemo-nos no hospital o ano passado, Miss Miller. Amy Miller ficou um pouco a pensar e depois olhou de novo para ele, recordada. ― Vi-o à cabeceira dela! ― exclamou, abanando a cabeça incrédula. ― O senhor conhece-a. Como pode acreditar que ela seria capaz de fazer uma coisa destas? Devia ter vergonha. Porque não anda a tentar descobrir quem empurrou realmente aquela mulher? Sim, porque a Tess não foi de certeza. Agora, se me dão licença, quero falar com a minha cliente ― acrescentou, olhando fixamente um interruptor ao lado da janela. -― Em particular. Murphy desligou o interruptor da posição de altifalante. ― Porque não pensei nisso? ― disse, num murmúrio sarcástico. ― Devia andar à procura do verdadeiro assassino. Raios. Aidan viu Amy Miller sentar-se ao canto da mesa e Tess Ciccotelli, furiosa, apontar para o relógio, com os olhos castanhos em chamas. Voltou-se para Murphy à espera que o parceiro lhe explicasse como se cruzara com a psiquiatra junto de uma cama de hospital, mas ele negou-se com um gesto cansado. ― Agora não. Agora vou para casa dormir. Amanhã vamos estudar isso do cofre e descobrir quem pode ter interesse em ver Cynthia Adams morta. Aidan deixou-se ficar no mesmo sítio mais um minuto, a observar Tess Ciccotelli com a advogada. Amy Miller falava, fazia-lhe perguntas, mas a Ciccotelli limitava-se a apontar para o vidro. Amy olhou por cima do ombro com ar aborrecido e, por fim, pôs-se à frente de Aidan de 55 modo a bloquear-lhe a visão. Como é evidente, um advogado de defesa tem de defender o cliente, nisso não havia nada de surpreendente. Já o envolvimento de Murphy parecia mais sério do que ele procurava dar a entender. Aidan perguntou a si mesmo se ele e a psiquiatra teriam tido algum envolvimento romântico. Nunca ouvira nada sobre a vida privada do parceiro. Ninguém, nem ele próprio, havia mencionado nenhuma namorada, passada ou futura. Era possível, e a ideia incomodou-o. Os modos despreocupados do parceiro escondiam um interesse profundo pelas pessoas, pelos mortos que representava. Talvez escondesse uma vida interior mais profunda do que parecia à primeira vista. A mulher certa poderia achar isso... atraente. Aidan cerrou os dentes, vendo Tess Ciccotelli recolher as fotografias e juntá-las num pequeno monte. Imaginou a maneira como todas aquelas curvas poderiam encher as mãos de um homem, as mãos do seu parceiro. A ideia não lhe agradou nada. Viu-a juntar as coisas dela e sair da sala com a advogada. Não pareceu surpreendida quando o encontrou ali, e isso também não lhe


agradou. ― Detective ― disse ela com a mesma voz segura que usara na noite anterior. ― Eu sei que esteve no tribunal no dia em que Harold Green foi julgado e sei o que pensa de mim. Neste momento sei que não ia servir de nada falar sobre esse assunto. O tom cortante da voz dela provocou-lhe arrepios. Enfrentando o olhar da psiquiatra, acenou afirmativamente e respondeu: ― Tem toda a razão, Dr.a Ciccotelli. Não ia servir de nada. Temos de ter em conta as provas que reunimos. Para fazer justiça a Cynthia Adams. ― Tess... ― A advogada puxou-lhe pelo braço. ― Vamos embora. ― Não, Amy. Espera. ― Tess desviou os olhos por um momento e depois voltou a enfrentar Aidan, com um olhar penetrante e triste. ― Detective Reagan, alguém quis que Cynthia morresse, e não fui eu. Por favor. ― Depois teve um gesto inesperado e pôs-lhe a mão no braço, e com isso quase o fez dar um salto. Teve a impressão que o coração lhe arrancava a galope e que não havia na sala ar suficiente para respirar. Não conseguiu desviar os olhos dos olhos castanhos dela. ― Descubra quem fez isto ― sussurrou ela, raivosamente. ― Alguém me usou para atingir um dos meus doentes. Cynthia morreu convencida de que tinha 56 enlouquecido, de que eu também a tinha abandonado. Eu sei o que pensa de mim, mas a noite passada percebi que não era indiferente ao sofrimento dela. Por favor, descubra quem fez isto e faça-o pagar. Depois a mão dela soltou-o e Tess Ciccotelli foi-se embora. Ficou a vêla de costas. E a pensar. Domingo, 12 de Março, 14.30 "Só mais um minuto." A campainha do elevador tocou e antes que as portas estivessem completamente abertas Tess saiu, no átrio principal da esquadra, com a respiração entrecortada. Amy seguiu-a num passo mais lento. Ver-se metida num elevador sufocante fora a última gota num dia já de si horrível. Tess olhou para as portas de vidro que davam para a rua. "Um minuto." Mais um minuto e estaria fora da esquadra, e então... E então continuaria metida num tremendo sarilho. Tess rejeitou a ajuda que Amy lhe oferecia e vestiu sozinha o casaco sem parar de andar. ― Deixaste-me ficar sozinha naquela sala de interrogatórios durante uma hora porque foste a casa vestir a porcaria do fato?! ― atirou-lhe, furiosa. Com uma sobrancelha levemente erguida, Amy conseguiu mostrar-se ao mesmo tempo digna e ofendida. ― Achei melhor aparecer vestida como uma profissional do que como


puta de rua... ― disse-lhe, olhando-a de alto a baixo. Tess abotoou o casaco com movimentos bruscos. ― Eu não estou vestida como uma puta! ― quase gritou entre dentes. Depois viu que Amy procurava dissimular um sorriso e percebeu que a sua mais velha amiga alcançara o seu objectivo. Durante alguns segundos não pensou naquela sala nua, com o espelho vidrado por trás do qual se encontravam os olhos acusadores de Aidan Reagan. Ou no corpo morto de Cynthia Adams, na morgue. Ou no facto de as suas impressões digitais se encontrarem num sítio onde ela nunca estivera. Suspirou exasperada. ― Estás mas é cheia de inveja de eu ter encontrado este casaco vermelho e tu não! ― Lá isso é verdade. No Macy's? ― Marshall Fields, com sessenta por cento de desconto. 57 Amy ficou boquiaberta. ― Emprestas-mo? Claro, porque não? Desde que me emprestes a tua camisola preta Tess passou pelo balcão central, ignorando o olhar descaradamente curioso do guarda de serviço. Tinha chegado acompanhada por dois detectives com ar sombrio e saía na companhia de uma conhecida advogada de defesa. Que diabo! Não era preciso nenhum génio para juntar dois e dois. No fim do turno não se falaria de outra coisa. Tinha a certeza que nenhum polícia ia desperdiçar as suas lágrimas com ela. Pelo contrário, o que iam era pressionar Murphy e Reagan para lhe darem o que ela merecia. Despreocupadamente, Amy pegou-lhe pelo cotovelo e empurrou-a para a porta da frente. ― A minha camisola de caxemira nova? ― perguntou, mas a alegria na sua voz não era natural e Tess percebeu que todo aquele número estava a ser encenado para quem quer que estivesse à escuta. ― Mas as tuas mamas são maiores que as minhas. Vai ficar deformada. A ideia de que a amiga estava a procurar levar as coisas com ligeireza deixou Tess ainda mais aborrecida. A situação era muito séria. Quando aquilo se soubesse, a reputação dela como psiquiatra seria afectada, e com isso os seus doentes e o êxito do seu consultório. E ela não tinha a menor dúvida de que aquilo se espalharia. Não havia um único polícia na cidade que não saltasse de alegria se soubesse que ela estava falida. Depois do caso de Harold Green tinham, por exemplo, pressionado para que o seu contrato com o procurador não fosse renovado. Vê-la ser acusada e julgada seria a cereja em cima do bolo. ― Não sejas egoísta, Amy ― disse ela num tom cáustico. ― A tua camisola não só vai ajudar-me a manter-me quente, mas, além disso, vai ficar muito bem com as listas pretas do uniforme da prisão. Pelo


menos, graças a Deus, vão fazer-me parecer mais magra. ― Cala-te, Tess ― sussurrou Amy. ― As coisas agora não parecem brilhantes, mas nós vamos resolver tudo. Vais ver. Vamos almoçar. Já comeste alguma coisa hoje? ― Não. ― Murphy perguntara-lhe se queria que lhe levasse uma sanduíche, mas ela recusara. O seu estômago estava de tal maneira às voltas que não teria sido capaz de comer, mas fosse como fosse não teria aceitado qualquer ajuda de Murphy. Nunca mais! ― Bom, vamos para minha casa e eu faço-te sopa. Só de se lembrar da sopa de Amy quase vomitou. 58 ― Não, obrigada. Leva-me só para casa. Eu estou bem. De lábios contraídos, Amy disse-lhe: ― Tess, se não comeres, vais ficar outra vez doente. Tess sentiu-se furiosa, mas esforçou-se por não perder a cabeça. A intenção de Amy era boa. As intenções dela eram sempre boas. ― Eu como, prometo. Mas agora deixa-me em paz. ― Dr.a Ciccotelli? Tess parou, não porque quisesse falar com a mulher que a tinha chamado, mas porque ela se pusera à frente da porta envidraçada a cortar-lhe o caminho. Era jovem, talvez uns vinte e cinco anos. Os olhos eram grandes e cinzentos e usava óculos que lhe davam um ar estudioso. Tinha uma longa trança loura que deixava cair por cima de um ombro e uma covinha no queixo. A sua pronúncia era do Sul. Já a sua atitude era inequivocamente a de uma jornalista. "Lá vamos nós", pensou Tess, perguntando a si mesma qual dos jornalistas da esquadra decidira esquecer por momentos a sua aversão à imprensa e lançar aquela piranha no seu encalço. ― Chamo-me Joanna Carmichael e estou a cobrir o caso Adams para o Herald. A Dr.a Ciccotelli esteve ontem depois da meia-noite no local onde Cynthia Adams saltou do vigésimo segundo andar do seu apartamento. Tem algum comentário a fazer à posição da polícia de que Miss Adams foi levada a atirar-se? O braço de Amy pareceu saltar para proteger Tess. ― Não há comentários ― rosnou a amiga. ― Saia da frente. Já. Tess olhou pensativa os olhos da jovem e tomou uma decisão imediata. Joanna Carmichael não sabia que ela fora interrogada, senão teria feito a pergunta de maneira muito diferente. Quando a coisa rebentasse, talvez não fosse assim tão mau ter um porta-voz do seu lado. ― Dê-me o seu cartão ― disse-lhe. ― Se eu tiver alguma coisa a dizer, ligo-lhe. A jornalista deu-lhe um cartão. ― Obrigada.


Já fora da esquadra, Tess inspirou profundamente o ar frio. O céu cinzento estava quase da mesma cor que os olhos da jornalista. No entanto, pensar em olhos recordou-lhe os olhos azuis penetrantes e acusadores de Aidan Reagan. Pelo menos podia ir para casa. Enquanto esperava na sala de interrogatórios não se permitira sequer a ideia de que isso talvez não fosse possível. Canalizara essa emoção para a fúria cega e fria que lhe dera 59 forças durante o tempo que ali estivera fechada, sentindo-se observada por Reagan. A raiva era uma emoção mais segura que o medo. No entanto, no momento em que se encontrou ao ar livre, o medo atingiu-a e fê-la sentir um arrepio ao longo da espinha. O pesadelo ainda não acabara. Nem de longe. ― Tenho de ir para casa ― disse a Amy num murmúrio. "Tenho muito que fazer." CAPÍTULO 4 Domingo, 12 de Março, 18.30 Aidan entrou na casa das máquinas dos pais e escapou assim à chuva fria da tarde. Quando o cheiro de qualquer coisa deliciosa e acabada de cozinhar lhe chegou ao nariz, continuava a tremer. A mãe tinha feito um assado para o jantar de domingo e... Estudou o aroma com atenção e concluiu, satisfeito: tarte. "Oxalá seja de cerejas", pensou, ao mesmo tempo que ia despindo o sobretudo encharcado. Agarrou numa toalha velha que encontrou num cesto e secou o cabelo antes de entrar na cozinha, onde a mãe estava junto da bancada a meter a louça na máquina. Pela pilha de louça devia ter vindo muita gente, pensou ele, lamentando não ter podido estar lá. Há muito tempo que a família não se reunia toda para o almoço de domingo. Andavam todos muito ocupados. Becca Reagan levantou os olhos do trabalho e um sorriso iluminou-lhe o rosto, fazendo, sabe-se lá porquê, o coração saltar-lhe no peito. A imagem de Cynthia Adams morta no meio da rua dominou-lhe de novo o pensamento, juntamente com a voz de Tess Ciccotelli. Não tinha família, dissera ela. Não tinha mãe a quem sorrir quando ia a casa, e do pai que abusava dela só tinha recordações monstruosas. Em seguida, lembrou-se do homicídio de uma criança em que estava a trabalhar quando recebera a chamada por causa de Cynthia Adams. Depois de a psiquiatra e a advogada se terem ido embora, Aidan tinha visitado a mãe do rapaz. Percebeu que ela sabia onde ele estava escondido, mas estava a proteger a besta, quando não tinha protegido o próprio filho. Se pensasse muito no assunto, ainda ficava louco. Preferiu concentrar-


se na voz da mãe, calorosa e acolhedora. ― Aidan! Estava a pensar por onde andarias. 61 Aidan deu-lhe um beijo. Olá, mãe. Sobrou alguma coisa? Ela olhou-o de alto a baixo, a analisá-lo. Era um olhar familiar, aquele com que observara o pai todos os dias quando ele voltava a casa, ao fim de mais um dia nas ruas. Depois de uma vida inteira a trabalhar na polícia de Chicago, Kyle Reagan estava por fim reformado. Com as duas mãos, pegou-lhe no rosto, compreensiva. Só lhe fazia perguntas quando percebia que ele queria falar, uma das suas características que o filho mais apreciava. Uma das que nunca encontrara noutra mulher, e ninguém podia dizer que não tivesse tentado. E de que maneira! Devia ser por isso que aos trinta e três anos continuava solteiro, pensou. ― Tens uma travessa de restos do assado no frigorífico. A tarte ainda está a arrefecer. ― A mãe olhou-o, divertida. ― Continuas com o mesmo sentido de oportunidade. Com esforço, conseguiu arrancar do rosto um sorriso cansado. ― Óptimo. ― A tua cabeça está toda molhada, rapaz. Ainda apanhas alguma pneumonia. Aidan abriu a porta do frigorífico. ― É porque está a chover, mãe. E a capota do Cantam abriu um buraco quando eu vinha a caminho. A mãe suspirou. ― Imagino que não sirva de nada dizer-te que arranjes um carro mais razoável... Ele fez uma careta e sentou-se à mesa da cozinha. ― O Camaro tem duzentos e noventa cavalos. Ela revirou os olhos, habituada à resposta. ― O teu pai tem fita adesiva na garagem. Quando acabares de jantar vai reparar esse rasgão. ― Já reparei ― respondeu-lhe com a boca cheia. ― Parei numa loja de ferragens pelo caminho. Quando ele acabou a comida de que se tinha servido, a mãe tirou-lhe o prato e pôs-lhe outro à frente com uma grande fatia de tarte. ― O Sean e a Ruth já se foram embora com os miúdos. O Abe e a Kristen ainda cá estão ― disse ela. ― O pai está a ver se ensina a pequena a apostar nos cavalos. A sua sobrinha de quinze meses, Kara. E afilhada. Sentiu outra vez um aperto no coração, ao pensar na felicidade que Abe, o irmão, por fim encontrara. 62


― Eu sei. O todo-o-terreno do Abe está a ocupar o caminho para a garagem, de maneira que tive de estacionar na rua. Onde está a Rachel? A sua irmã mais nova, Rachel, estava a crescer depressa de mais para o gosto dele. ― Está em casa de uma amiga. Deve chegar por volta das nove. Acho que tem um problema qualquer com um namorado, mas não me contou nada. ― Com uma sobrancelha erguida, disse ao filho: ― Pensei que talvez pudesses falar com ela. Aidan resmungou: ― De rapazes? Nem pensar. Se eu fosse ao pai, fechava-a no quarto até ela ter vinte e cinco anos. Assim já não tínhamos de nos preocupar com esses rapazes. ― Em tempos também foste um desses rapazes... ― Era precisamente o que eu queria dizer. A bebericar o café, com ar subitamente sério, a mãe disse-lhe: ― A semana passada vi a mãe da Shelley no cabeleireiro. Aidan sentiu os músculos retesarem-se. Shelley St. John era um assunto que o incomodava. ― Mãe, hoje não, por favor. Becca concordou. ― Eu sei, mas não queria que ouvisses a notícia por outra pessoa sem estares a contar. Ela vai casar-se. Em tempos teria ficado magoado, mas esse tempo já tinha passado há muito. ― Eu sei. De olhos esbugalhados, a mãe perguntou-lhe: ― Sabes? Quem é que te disse? ― Ela mandou-me um convite ― mais uma facada como tantas outras. Shelley sempre soubera onde assestar um golpe. Também sabia trair. ― Agora vamos mudar de assunto, por favor. Becca suspirou. ― Come a tarte antes que o teu irmão perceba que a parti para ti. ― Tarde de mais ― rosnou Abe junto da porta. ― Caramba, Aidan, vais comê-la toda sozinho. ― Olho que não vê, coração que não sente ― respondeu Aidan. ― Ninguém te mandou vires aqui meter o nariz... Ainda a resmungar, o irmão pegou num prato e sentou-se à mesa. ― Que é que te aconteceu? Estás ensopado. 63 Becca pôs a cafeteira do café entre os dois. Está a chover, Abe ― disse ela, e Aidan não conseguiu evitar sorrir. Mas Abe não estava a sorrir. Esta noite não foste à cama, pois não? Ainda estás a trabalhar no caso


do miúdo dos Morris? Aidan negou com um aceno de cabeça. Eu e o Murphy passámos a tarde de ontem a ver se apanhávamos o miserável do pai, mas o tipo desapareceu. Depois da meia-noite apareceu um caso novo que nos deu que fazer todo o dia. O único caso novo que apareceu no quadro ontem à noite foi uma mulher que se atirou de uma varanda ― disse Abe, de sobrolho franzido. ― Não foi suicídio. Não foi bem ― respondeu o irmão, de olhos postos na sobremesa. ― Como é possível "não ser bem" um suicídio? ― quis Becca saber. ― Isso não é como estar um bocadinho grávida? ― Quem é que está grávida? ― perguntou a cunhada de Aidan, Kristen, que acabava de entrar na cozinha com um bebé de caracóis ruivos ao colo. De olhos semicerrados, apontou para o que sobrava da tarte e disse ao marido: ― Que lata! ― A mamã é que teve a culpa ― desculpou-se o marido com um encolher de ombros antes de pegar ele no bebé. ― Quem é que está grávida? ― perguntou outra vez Kristen, sentando-se com eles à mesa. Abe fazia Kara saltar num joelho. ― Ninguém. O Aidan teve um caso de uma mulher que se atirou de um vigésimo segundo andar. Kristen fez uma careta de desagrado: ― Deve ter sido uma noite horrível. A sua cunhada sabia do que estava a falar. Trabalhava no gabinete do procurador, por isso também lhe calhavam alguns cadáveres todos os dias. Com um suspiro, Aidan continuou: ― E não sabes o melhor. A mulher estava a ser tratada por uma psiquiatra que... ― Quando viu o olhar que o irmão e a cunhada trocaram, Abe interrompeu o que ia dizer. ― Tess Ciccotelli ― disse Kristen num tom neutro. ― Nesse caso, foste tu que a arrastaste para a sala de interrogatórios esta tarde. Caramba, Aidan! 64 Aidan olhou várias vezes para os dois. Kristen parecia furiosa e o irmão mostrava não ter outra preocupação na vida que não fosse arranjar o totó da filha. Aidan percebeu que estavam todos contra ele. ― Como é que vocês sabiam? ― O meu chefe chamou-me hoje à tarde. Explicou-me mais ou menos o caso e disse-me que ficava eu com ele, que falasse com os polícias que a tinham levado para ser interrogada. Eu disse-lhe que não podia. Trabalhei anos a fio com a Tess, sou amiga dela.


― Tu e toda a gente, ao que parece ― queixou-se Aidan, que acompanhou as palavras com uma facada violenta na tarte. A mulher tinha mais aliados que a NATO. ― Terei sido eu o único a assistir à sessão em que ela ilibou Harold Green de toda a responsabilidade por ter matado três miúdas e um polícia?! ― Ela não o ilibou, Aidan ― disse Kristen, muito séria. ― Tu não estiveste lá, Kristen ― disse Aidan num tom desagradável. ― Eu estive. ― Na sala de audiências não estive, mas estive antes e depois. Além disso, ela falou comigo sobre o assunto. Estava desesperada, sem saber o que fazer. Sabia muito bem quais iam ser as consequências do que tinha de fazer. Ela nunca teria defendido que ele era inimputável se não estivesse convencida disso. Até porque ela não é uma pessoa capaz de fazer uma coisa dessas. Deves ter passado algumas horas com ela esta tarde. Não acredito que não te tenhas apercebido disso! Aidan mexeu-se na cadeira, pouco à vontade, porque não tinha bem a certeza do que tinha visto e ouvido. ― Ela é psiquiatra, Kristen. Sabe levar as pessoas a pensarem o que lhe convém. Kristen chegou o prato à frente. ― A Tess é psiquiatra, não é nenhuma feiticeira. E tu estás a perder o teu tempo, Aidan. Descobre mas é quem queria realmente que aquela mulher morresse. E que, ao mesmo tempo, odiasse a Tess e quisesse envolvê-la em tudo isso ― disse Kristen, ofegante, ao mesmo tempo que se ia levantando. ― Vais acabar por chegar à conclusão de que a lista é muito maior do que imaginas. Aidan passou a mão pela testa com ar cansado. ― Kristen, por favor. ― Por favor o quê, Aidan? Por favor deixo que te enterres no teu preconceitozinho? Não me parece boa ideia. Sabias que a Tess Ciccotelli perdeu o contrato com o procurador porque o sindicato da polícia protestou contra ela? 65 Aidan lembrou-se do Mercedes em que ela tinha aparecido na noite anterior. Não me parece que isso tenha afectado os rendimentos dela. Kristen cerrou os punhos com ar agressivo. Bom, e sabias que por pouco não morreu porque houve um polícia que não esteve para se despachar a defendê-la uma vez que ela foi atacada por um daqueles doidos da Interview? Não, não sabia ― reconheceu Aidan, um pouco atrapalhado. Pergunta ao Murphy que ele conta-te o que aconteceu. A Tess Ciccotelli já pagou muito caro ter cumprido o dever dela. E a mim custa-me estar aqui sentada a ouvir-te atacá-la sem razão. Tenho a certeza que


ela não fez aquela merda e tu sabes isso tão bem como eu. Becca ficou de boca aberta e Aidan pestanejou, chocado com uma palavra que raramente ouvira à cunhada. Abe tapou os ouvidos da filha com as suas mãos e observou, pausadamente: ― Disseste uma palavra feia. À frente da menina. Kristen cerrou os lábios, mas tremia de forma visível e tinha ficado muito corada. ― Desculpa, Abe. Mas é a única coisa que lamento ter dito. Fala com o Murphy, Aidan. Depois, faz uma lista de todos os criminosos que a Tess nos ajudou a apanhar. A seguir, olha-me bem nos olhos e diz-me que estás convencido que nenhum deles lhe tem raiva suficiente para se querer vingar dela, por exemplo montando uma história doida como esta. ― Acalma-te, Kristen ― disse Abe num tom de voz normal. ― Acalmate. O Aidan há-de descobrir o que aconteceu. ― Fez um estalido com a língua e voltou a fazer rir Kara. ― Vais aceitar o caso, não vais? ― perguntou à mulher. Kristen abanou a cabeça negativamente. ― Não. Não consigo ser objectiva quando se trata de uma coisa destas. Tudo isto me parece tremendamente injusto. O Patrick disse que achava que conseguia manter a objectividade, de maneira que vai ser ele a tomar conta do assunto. ― Com um olhar sério na direcção de Aidan, acrescentou: ― A não ser que a investigação a ilibe de toda a responsabilidade. Aidan olhou para ela com atenção. Não se lembrava de a cunhada alguma vez se ter enganado a respeito de um caso em que tivesse uma posição tão segura. Ninguém teria conseguido fazê-lo levar mais a sério a possibilidade de a psiquiatra estar inocente. 66 ― Hoje, antes de sair, já pedi ao arquivo uma lista de todos os condenados contra os quais ela testemunhou. Amanhã já devem tê-la. ― Obrigada ― respondeu ela, com um suspiro de alívio. ― E vou perguntar ao Murphy o que aconteceu com o tipo que tentou agredi-la. ― Que a agrediu ― disse ela com firmeza. ― Tem cuidado com a maneira como pegas no caso, Aidan. Vais ver que estás enganado em relação a ela. ― Espero bem que sim, Kristen. Seja como for, vou cumprir a minha obrigação. Ela olhou-o fixamente: ― Fico a contar com isso. Domingo, 12 de Março, 20.30 A Ciccotelli estava em casa, sã e salva. Via-se bem pela janela, com binóculos, claro. Os binóculos eram uma ferramenta muito importante.


Nunca devíamos andar sem eles. Uma arma ou uma faca chamam a atenção, mas ninguém se mete com uma pessoa que ande na rua com uns binóculos debaixo do braço. Além disso, se alguém estranhasse, bastava dizermos que observávamos pássaros. Como se isso tivesse algum interesse. Criaturinhas maçadoras... Ainda se fosse por aves de rapina, que observam em silêncio do alto, garras preparadas para se enterrarem na carne, à espreita de vítimas desprevenidas... As aves de rapina são criaturas admiráveis. E que merecem ser imitadas. A vítima desprevenida estava sentada à mesa da sala a trabalhar no computador portátil, com head-phones nos ouvidos. De vez em quando olhava distraidamente pela janela, onde via Chicago a seus pés. Era de facto interessante. Quando olham de uma janela alta, as pessoas nunca se lembram que, da mesma maneira que podem olhar para fora, outras podem olhar para dentro com a mesma facilidade. Na verdade, era muito fácil. E, pelo menos de momento, aborrecido. Ela não ficara presa. Embora decepcionante, já era de esperar. Ainda havia muita gente que tinha a Dr.a Ciccotelli em consideração suficiente para a defender do que pareciam acusações ridículas. Que motivo poderia ela ter?, perguntavam decerto. Uma psiquiatra brilhante, que já fora objecto de vários louvores das autoridades... Uma risada rompeu 67 o silêncio. Por essa altura, no dia seguinte, a polícia já teria o motivo e o número dos seus defensores inabaláveis desceria de um minuto para o outro. No entanto, não fosse alguma coisa correr mal, o melhor era arranjar mais. Um toque na tecla de marcação rápida e o telefone de Nicole tocou. Como era esperta, respondeu ao primeiro toque. O que foi? ― perguntou com voz grossa e rouca. ― Que diabo fizeste tu à voz?! ― Seria de esperar que uma actriz cuidasse mais da voz, mas nesse momento Nicole parecia ter estado a chorar. Era uma mulher frágil. Teria de a observar de perto. Talvez fosse preciso fazer uma nova visita ao irmão mais novo dela para assegurar a sua cooperação. ― É melhor para ti que continues a ser capaz de actuar. Nicole pigarreou. ― Não é nada. Já passou. ― Espero bem que sim. Já investi muito tempo e muito dinheiro na tua voz, Nicole. Além disso, não te esqueças que a saúde do teu irmão depende de ti e só de ti. ― Que quer que eu faça? ― perguntou Nicole, e parecia que a voz lhe tinha saído só depois de passar por uma barreira de dentes cerrados.


― Esquina da Michigan com a Rua Oito, às onze. Traz a peruca. Houve uma pequena pausa de silêncio e depois ouviu-se a voz de Nicole, sufocada e receosa: ― Tinha-me dito que iam ser alguns dias. ― Mudei de ideias. Às onze, Nicole. "Eu e tu vamos fazer uma visitinha. Juntos. A Mr. Avery Winslow." O rosto de Winslow, com os seus olhos tristes e as suas olheiras de basset, parecia observar tudo do topo de uma pilha de papéis. Logo abaixo vinha a fotografia de Avery Júnior. Pobre Mr. Winslow, perder o filho de uma maneira daquelas... Era perfeitamente compreensível que um pai se sentisse culpado. E era razoável que procurasse a ajuda de uma psiquiatra. A pouca sorte era essa psiquiatra ser Tess Ciccotelli. Avery Winslow andava a tomar a medicação há três semanas. O apartamento dele já tinha tudo preparado. Estava a chegar a altura do segundo acto. Pobre Mr. Winslow... Realmente não era nada pessoal. Pelo menos não era nada contra ele, em particular. Já contra a Ciccotelli... com ela era diferente. Com ela era pessoal. 68 De qualquer maneira, não tardava muito que morresse, mas até lá ainda tinha muito que sofrer. Domingo, 12 de Março, 23.30 "Tarde de mais. Tarde de mais. Estou atrasada." O refrão repetia-se vezes sem conta na cabeça de Tess enquanto ela se esforçava por avançar através da multidão. Não conseguia ver nada. Não conseguia ver o que ficava para lá de todos aqueles homens. Eram todos homens. Todos tinham cabelo preto. E estavam todos furiosos. "Furiosos comigo." Conseguiu afastar o último homem da frente e parou. Aos seus pés estava Cynthia Adams. Morta. "Tarde de mais." Um dos homens inclinou-se, retirou o coração de Cynthia do seu corpo destroçado e pegou-lhe, ainda a palpitar, nas suas mãos. ― Pegue-lhe ― ordenou ele, os olhos azuis a brilharem na noite. ― Não, não ― disse ela, e recuou. O coração batia e o sangue caía-lhe através dos dedos e ia manchar o rosto pálido de Cynthia. Quando começou a salpicar para os lados, os olhos dela abriram-se e olharam em frente, esbugalhados. Mortos e vazios. Deu meia-volta, um grito aprisionado na garganta. E ficou imóvel no sítio onde se encontrava. A polícia. "Vêm prender-me." Até onde a sua vista alcançava só se viam uniformes. Uniformes e olhos acusadores. "Foge. Acorda. Que diabo, acorda e foge!" ― Tess, por favor! Tess, acorda! Ouviu um grito, estridente, de terror. Percebeu que fora ela própria que gritara. Tess levantou a cabeça da mesa da sala, de olhos escancarados, com a vista ainda pouco nítida. Fez um esforço para


perceber os contornos e viu um rosto familiar. Olhos castanhos, cabelo louro, curto. Os dedos tiravam-lhe os head-phones dos ouvidos. Dedos fortes que lhe acariciavam o rosto. Vivos e calorosos. "Jon." Jon estava ali com ela. Já estava bem. Não iam apanhá-la. Pelo menos não nesse dia. O seu pulso continuava acelerado, mas já conseguia respirar. ― Meu Deus, Jon... Jon Cárter mantinha o rosto dela entre as suas mãos de cirurgião, as suas mãos hábeis que lhe percorriam a cabeça, a nuca, lhe acariciavam o rosto, até que ela se recompusesse. Tess fez-lhe um gesto de que estava melhor e recostou-se na cadeira. Ele pegou noutra e sentou-se ao contrário, com as costas entre as pernas, a observá-la com atenção. 69 Não foi nada. Foi só um pesadelo. Hum... ― fez deslizar os dedos até à carótida dela e pôs-se a contar. Já te disse que estou bem ― disse ela afastando o cabelo do rosto Foi só um pesadelo. Estavas a gritar tão alto que te ouvi lá fora. Pregaste-me um susto a sério, Tess. Ainda bem que tenho a tua chave, senão tinha chamado a polícia. Foi arrepiante. Parecia que te estavam a esfaquear. Recuando subitamente, com o sonho ainda presente, Tess protestou: ― Isso não tem graça nenhuma, Jon. ― Não era para ter. ― As sobrancelhas arqueadas dele uniram-se numa expressão preocupada e confusa. ― Deve ter sido um belo sonho... O que é que sonhaste? Tess pôs-se de pé e ficou aborrecida quando percebeu que os seus joelhos pareciam de borracha. ― Seja como for, que estás aqui a fazer? ― Estava preocupado contigo. A Amy foi-se embora a meio do almoço e não voltou a ligar para me dizer que estavas bem. Estive toda a tarde a tentar ligar-te, mas tu não atendeste, de maneira que decidi passar por aqui quando acabou o meu turno. ― Pus o telefone em silêncio para ver se conseguia dormir qualquer coisa. ― Andas a dormir mal ― reparou ele. Não por não ter tentado, mas o sonho acabava sempre por voltar a acordá-la. Apesar disso, das outras vezes não devia ter gritado. ― Na verdade, estava a dormir agora... ― Hum... Em cima da mesa, com a cara sobre o teclado. Duvido que a tua baba faça bem a essas coisas electrónicas. Que aconteceu afinal, Tess? Quando a amiga deu dois passos hesitantes em direcção à cozinha, os olhos dele seguiram-na.


― A Amy contou-te alguma coisa? ― Nada. Só me disse que estavas metida num sarilho e que te ia buscar para te levar a casa e te meter na cama. Imagino que tenha acontecido qualquer coisa grave. ― Ah, a confidencialidade da relação com o cliente... Estou a ver que ela sabe manter segredos. Ainda bem! ― Conseguiu chegar ao frigorífico e apoiou-se na porta, ainda a tremer. ― Vou beber um copo de vinho. Também queres? 70 Jon foi atrás dela e parou encostado à porta da cozinha, de sobrolho franzido. ― Não. Que história é essa de confidencialidade? A Amy disse que tinhas tido um problema com o carro. ― A Amy estava a ser discreta, mas eu recorri aos serviços dela. ― Tess encontrou o saca-rolhas, contente por ter alguma coisa com que ocupar as mãos trémulas. ― Parece que sou suspeita. ― Suspeita de quê? De um crime? ― perguntou ele de sobrolho cada vez mais carregado. Tess conseguiu produzir uma risada nervosa ao mesmo tempo que tirava a rolha à garrafa. ― Sim, de um raio de um crime, Jon. Serves-me o vinho, se fazes favor? As minhas mãos ainda estão a tremer. ―Jon serviu-lhe algum vinho, que ela consumiu em três goles ruidosos. ― Mais. Em silêncio, ele obedeceu-lhe e ela levou o copo consigo para a mesa da sala. Afundou-se na cadeira. ― Uma das minhas doentes suicidou-se ontem à noite. ― Foi por isso que recebeste o tal telefonema? Que até querias que eu fosse contigo não sei onde? ― Sim ― confirmou ela, acompanhando a resposta com um gesto da mão. ― Mas teria acontecido o mesmo quer tivesses ligado, quer não tivesses, por isso não precisas de te sentir culpado. Senta-te, por favor. Vou contar-te uma história. Ele sentou-se e ela contou-lhe tudo, dos olhos azuis acusadores de Reagan à jornalista que a esperava à porta da esquadra. Por um longo momento, Jon não disse uma palavra. Depois desabafou: ― Isso é uma loucura! Tess riu-se. ― É uma maneira de pôr a coisa, tão boa como qualquer outra. ― Pegou no copo e tocou com ele na garrafa como se fizesse um brinde. ― Mais. Por favor. Ele serviu-lhe o quarto copo. ―Já te acusaram? ― Ainda não. Convinha-me que não te afastasses muito da cidade. Posso precisar de ti como testemunha abonatória. ― Isso não tem graça nenhuma, Tess ― disse, reprovador. Ela concordou com um gesto de cabeça.


― Não era para ter. Estou metida num grande sarilho. ― Apontou para uma pilha de cassetes que estavam ao lado do leitor de cassetes. 71 não encontrei aqui nem uma pista. Não tenho nada de específico de que Cynthia tivesse falado numa das nossas sessões. Tenho aqui cinco horas de gravação. Transcrevi todas as palavras que ela pronunciou. Jon respirou fundo, pensativo. ― E agora? Tess encolheu os ombros. Primeiro, tenho de acabar este vinho. Depois tenho de dormir, de dormir mesmo. Espero que o vinho chegue para me deixar tão atordoada que o sonho não volte. Amanhã levo estas transcrições ao Reagan. Depois, se ele durante a noite não tiver arranjado nenhuma razão para me prender, vou para o hospital fazer o meu turno. ― Voltou a encolher os ombros. ― Depois disso, tanto se me dá. ― Tens a certeza que queres mesmo beber isso tudo? Com um esgar e um piparote com a unha na garrafa quase vazia, sentiu-se suficientemente atordoada para dizer uma graça. ― Já bebi. Quatro copos. ― Tess ― disse Jon com um olhar de aviso. ― Achas que é uma boa ideia dar toda essa informação ao detective? Ele pode muito bem ser um dos que conseguiram que o teu contrato fosse denunciado. ― Pode bem ter sido. Provavelmente foi. Mesmo assim, de momento, ele e Murphy são a minha única hipótese de ver este assunto resolvido. Se eles fizerem merda, levo isto a um nível mais alto. O Spinnelli continua a gostar de mim. Por agora, vou ajudar os detectives. ― Recostou a cabeça nas costas da cadeira e continuou: ―Jon, alguém matou Cynthia Adams, como se a tivesse empurrado da varanda com as próprias mãos. Se eu conseguir ajudar o Reagan a descobrir quem foi, posso encerrar este assunto e continuar a viver a minha vida. ― Esforçou-se por se pôr de pé, dessa vez mais grata pela ajuda das mãos dele. ― Agora tenho de ir dormir. Apoiando-se pesadamente no ombro dele, conseguiu chegar ao quarto. Riu-se quando ele a enfiou na cama e lhe tirou as meias. Apoiada nos cotovelos, fez-lhe uma careta. Jon era um homem bem-parecido, e ela já ouvira muitas conjecturas em voz baixa quanto à habilidade das mãos dele fora da sala de operações. Mas ela e Jon eram apenas amigos. Não havia uma centelha de atracção entre os dois. A seguir a Amy, era o melhor amigo dela, com uma ligação monógama e de uma fidelidade total. Mesmo assim, não resistiu à tentação de o provocar: ― Há muito tempo que não dorme nenhum homem na minha cama Jon. Tens a certeza que não queres ficar? 72 Ele sorriu-lhe.


― A oferta é tentadora, Tess, mas o Robin não ia gostar... Ela fechou os olhos. ― Ele que não se preocupe. Estás livre das minhas garras perversas. ― Voltou a rir-se. Os seus sentidos estavam suficientemente embotados e dormentes para se sentir confortável. ― Diz ao Robin que não te ataquei. ― Aconchegou-se na almofada, com um suspiro quando ele lhe desviou o cabelo do rosto. Começou a sentir-se sonolenta. ― Vou para a cama sozinha. Outra vez. A mão de Jon hesitou. ― Tess. Ela abriu apenas um olho. A expressão dele era triste, e isso pareceu lançar uma onda inesperada de nostalgia que ressoou com força no seu coração. Era o vinho, pensou. "Sim, porque há muito que esqueci aquele filho-da-mãe." Há mais de um ano que dormia naquela cama sem Phillip Parks. Não sentia falta dele. Por ela, podia ir para o inferno. Do que sentia falta era de ter alguém, pensou. Deu uma volta na cama que quase fez os lençóis levantarem voo. No dia seguinte teria tempo de sobra para se analisar. "Especialmente se o Reagan conseguir mesmo prender-me." ― Eu fico bem, Jon. Vai para casa; que o Robin está à tua espera. Não te esqueças de fechar a porta e de soltar a Bella. Como se tivesse ouvido o seu nome, a gata saltou-lhe para a almofada e aconchegou-se ao cabelo dela a ronronar. ― Amanhã telefona-me, Tess. O sono estava a chegar. Por fim. Misericordiosamente. ― Está bem. CAPÍTULO 5 Segunda-feira, 13 de Março, 7.40 "Daniel Morris, seis anos e dois meses. Causa da morte, asfixia. Encontradas fibras nos pulmões que podem ser de esponja de almofada." "Merda." Aidan atirou o relatório da autópsia para cima da secretária e engoliu a bílis que parecia subir-lhe à garganta. O estupor do pai tinha sufocado o filho com uma almofada, depois partira-lhe o pescoço e atirara-o de umas escadas para encobrir o crime. Aidan quase ouvia ranger os dentes. E a mãe do rapazinho tinha colaborado com tudo aquilo. De certa maneira, isso parecia tornar tudo ainda mais grave. Fechou os olhos e respirou fundo. "Acalma-te. Se perderes a cabeça, não vais conseguir que se faça justiça a este rapaz." Ainda conseguia ouvir a voz calma e firme de Murphy quando, lado a lado, observavam o técnico do Departamento de Medicina Legal a meter o corpo do rapazinho num saco de plástico


naquela sexta-feira à noite. "Raios partam isto." Aidan engoliu em seco e os seus lábios contraíram-se involuntariamente. Amaldiçoou a impressão desagradável que sentia nos olhos. "Pensa noutra coisa. No que quer que seja. Em Cynthia Adams e Tess Ciccotelli." Nesse dia cumpriria a promessa que fizera a Kristen e concentrar-se-ia na própria vítima, em descobrir quem poderia querê-la morta. Tinha de ir à empresa de consultoria financeira onde ela trabalhava para saber quem eram as pessoas com quem se dava. Também tinha de seguir a pista dos lírios. Uma pessoa que comprasse lírios naquela quantidade não podia deixar de ser notada, e além disso... ― Detective? A voz surgiu sem aviso e fê-lo dar um salto. Abriu os olhos e viu Tess Ciccotelli de pé em frente da sua secretária com um olhar preocupado 74 no rosto. As suas pulsações, que já tinham começado a normalizar, recomeçaram a correria louca, ao ponto de ele sentir as batidas do coração nos ouvidos. Olhou-a de alto a baixo. Nesse dia vestia-se com roupa mais formal, de trabalho, e trazia o casaco dobrado num braço. As calças de ganga justas tinham desaparecido bem como o casaco vermelho de cabedal, substituído por um conjunto elegante e feminino de calças pretas e casaco. O cabelo já não estava encaracolado. Parecia ter conseguido alisá-lo, embora tivesse deixado algumas madeixas soltas para suavizar o rosto. A maquilhagem também era mais suave. Já não havia vestígios do batom vermelho-vivo. O único toque colorido nesse dia era dado por um lenço vermelho que trazia ao pescoço. As botas de saltos altos e finos tinham sido trocadas por uns sapatos cómodos de altura razoável irrepreensivelmente engraxados. Parecia a capa de um número de revista dedicado à mulher de negócios do ano. Se não tivesse visto a cigana da véspera, não acreditaria que a transformação era possível.! Fosse como fosse, conservadora ou não, cabra fria ou não, suspeita ou não, deixava-o sempre a salivar. O que, de resto, apenas queria dizer que era perigosa, uma mulher a manter à distância. A não tocar. Fossem os seus aliados quem fossem. Ergueu os olhos ao encontro dos dela. ― Dr.a Ciccotelli, não ouvi a campainha do elevador. Ela suportara o seu escrutínio sem protestar. ― Isso foi porque eu subi pelas escadas. Detective Reagan, desculpe incomodá-lo a esta hora ― disse ela num tom calmo. ― Esta manhã tenho muitos doentes a ver no hospital, mas primeiro queria deixar-lhe isto. A minha ideia não era entrar, mas o guarda da recepção disse-me que estava aqui e mandou-me subir. ― Ajeitou a mala ao ombro e disse com sarcasmo. ― Não deve ter ouvido as notícias.


Ele apontou para a cadeira em frente da sua secretária: ― Toma um café? ― Da vossa máquina? ― Com um sorriso ao canto da boca acabou de o seduzir, apesar dos esforços dele para que isso não acontecesse. ― Agora está a ver se me envenena. Não, obrigada, detective. ― Com ar mais sério, tirou um envelope grande de papel pardo da pasta. ― Passei a noite de ontem a transcrever as minhas últimas cinco sessões com Cynthia Adams. Pensei que talvez pudessem facilitar a sua investigação da morte dela. Não era o que ele esperava que ela dissesse. Mesmo assim, pegou no envelope e abriu-o. Lá dentro vinha um monte de páginas impressas e cinco cassetes. 75 ― Costuma gravar as suas sessões? Não todas. Só com alguns pacientes e sempre com autorização deles. Sendo assim, Cynthia Adams deu-lhe autorização para o fazer? Ao princípio, não. Quando começámos a encontrar-nos, a Cynthia negava os aspectos mais desviantes do seu comportamento. Falavame só dos episódios. ― Das ligações. ― Das ligações de uma só noite ― corrigiu ela. ― Depois, na sessão seguinte, negava que tivesse dito tal coisa. Foi nessa altura que a convenci a deixar-me gravar as nossas conversas, para ela poder ouvir o que eu própria já ouvira. ― Pelo rosto de Tess Ciccotelli passou uma sombra. ― Ela ficou... de rastos. Mas este método acabou por nos permitir concentrar nos verdadeiros problemas dela. A psiquiatra não era de maneira nenhuma como ele estava à espera. Kristen, no entanto, talvez não tivesse ficado surpreendida. Nem Murphy, ou Spinnelli. ― Está a falar da depressão dela? ― Sim, era indispensável que ela a superasse, porque a depressão influenciava todos os outros aspectos da sua personalidade. ― Como a tentativa de suicídio há um ano. ― E a parafilia sexual dela, a dependência dela ― corrigiu a psiquiatra. ― Para Cynthia era uma compulsão. Talvez uma maneira de dominar os homens e o seu próprio corpo ao mesmo tempo. ― Porque foi vítima dos abusos do pai. ― Sim. Ela raramente levava o mesmo homem para casa duas vezes, mesmo que eles lhe suplicassem que o fizesse. Aidan pegou no molho de papéis e pôs-se a folheá-los. ― Quem é que suplicava? ― Alguns. Sublinhei os nomes dos que sei que se tornaram persistentes, mas Cynthia nunca me falou dos apelidos deles. Desconfio que a maior parte das vezes os primeiros nomes eram


inventados. ― Então como sabe que ela estava a dizer a verdade? Tess Ciccotelli suspirou. Parecia cansada. ― Um dos medicamentos dela pode provocar problemas hepáticos, por isso tinha de fazer análises periódicas. Os resultados para o fígado foram negativos, mas foi assim que detectámos que tinha gonorreia, que apanhou numa dessas aventuras de uma noite. Ela própria transmitiu-a sabe Deus a quantos homens. Por lei, sou obrigada a comunicar o caso 76 aos serviços de saúde. Falei com uma Miss Tuttle, que ficou responsável do dossiê de Cynthia. Combinámos que eu falaria a Cynthia na sua doença sexualmente transmissível e lhe contaria que comunicara o caso. ― A médica respirou profundamente e continuou: ― Nesse dia Cynthia ficou explosivamente furiosa. Eu tinha violado a privacidade dela. Dizia que ia perder o emprego. Foi a nossa penúltima sessão. Jurou-me que não voltaria. ― Mas ainda tiveram mais uma sessão, por isso acabou por voltar. ― Voltou. Um dia acordou com um homem que não se lembrava de ter levado para casa. ― Não controlava esse homem. ― Precisamente. E isso assustou-a o suficiente para voltar. Mudei-lhe a medicação e combinámos que voltaria dali a uma semana para verificarmos como estava a funcionar. Mas ela não apareceu. ― Foi nessa altura que foi ao apartamento dela. ― Sim, mas ou ela não estava em casa ou não quis abrir-me a porta. ― Olhou-o com os olhos semicerrados. ― As minhas impressões digitais podem ter sido encontradas na campainha, talvez nos batentes, mas tenho a certeza que nem sequer cheguei a tocar no puxador, detective. Fui com um colega, para o caso de surgir algum problema. Fora o que ela dissera no dia anterior na sala de interrogatórios. ― Costuma fazer isso? Levar um colega? ― Sim, sempre. Ou levo um colega ou não vou. ― Fechou os olhos. ― Excepto sábado à noite. Nenhuma das pessoas a quem costumo telefonar estava disponível. Ele pegou no bloco de apontamentos. ― A quem telefonou ontem à noite, Dr.a Ciccotelli? Ela abriu muito os olhos, mas depois respondeu. ― Primeiro, telefonei ao Dr. Harrison Ernst, o meu colega, mas ele não estava em casa. Depois telefonei ao Jonathan Cárter, mas também não estava. é cirurgião no County Hospital. Não me parece que ele vá querer falar consigo. É um grande amigo e está furioso com tudo isto.


Aidan tomou nota do nome, ignorando o travo a ciúme que sentiu sem estar à espera. Sendo assim, tinha acabado com Murphy e de momento estava enrolada com aquele Cárter. De qualquer maneira, isso não tinha a menor importância, claro. ― Fale-me da chamada que recebeu no sábado à noite. ― Foi à meia-noite e seis. Ontem verifiquei os números dos telefonemas que recebi, mas dizia "número desconhecido". Se quiser pode verificar 77 as minhas chamadas. Pareceu-me que me estavam a ligar de um telemóvel, havia um pouco de ruído. Quem ligou foi uma mulher, jovem. ― Jovem de que idade, mais ou menos? Já não era adolescente, mas também não era uma mulher de meiaidade, parece-me. Não me disse o nome, só me disse que era uma das vizinhas de Cynthia Adams e que eu tinha de ir porque ela estava a ameaçar que ia saltar. Aidan franziu o sobrolho enquanto olhava para os seus apontamentos. ― Disse que estava a ameaçar saltar? ― Acho que foram essas as palavras precisas. Porquê? ― Porque eu tenho testemunhas que dizem que ela não falou com ninguém. Limitou-se a subir os degraus do escadote, a voltar-se de costas e a saltar. O rosto da psiquiatra ficou quase imperceptivelmente tenso. Se ele não andasse à procura, não teria descoberto aquilo. No sábado à noite não andava. Estava demasiado furioso por demasiadas razões e partira do princípio de que aquele rosto inexpressivo dizia tudo. Mas ele já tinha obrigação de saber que não podia aceitar o que as pessoas diziam como verdades absolutas. Era indesculpável. Mesmo assim, havia as provas físicas. ― Como pensa que as suas impressões digitais possam ter ido parar ao apartamento, Dr.a Ciccotelli? Ela abanou lentamente a cabeça. ― Não faço ideia. Estou farta de dar voltas à cabeça, mas não faço realmente a menor ideia. ― Olhou para o relógio e acrescentou: ― Tenho de ir andando para o hospital, detective. Fica aqui o meu cartão. O meu número de telemóvel está escrito atrás, mas quando ando a fazer as visitas não o levo. Se precisar de voltar a falar comigo hoje, a minha secretária consegue contactar-me. ― Pôs-se de pé e ajeitou um pouco o lenço à volta do pescoço. Hesitou e depois olhou-o de novo nos olhos. ― Não fiz de propósito para ver o que estava em cima da sua secretária, detective Reagan, mas vi o relatório do médico-legista que estava a ler quando eu cheguei. O daquele rapazinho. O seu corpo ficou tenso. Sentiu o sangue subir-lhe ao rosto.


― Isso não lhe dizia respeito, Dr.a Ciccotelli. E não diz. ― Eu sei. Só queria dizer que tenho muita pena. O senhor vê muita coisa no seu trabalho. Imagino que isso o deixe frustrado em ocasiões em que preferia não o estar. 78 Ela estava a absolvê-lo a ele da responsabilidade. Não deixava de ser irónico. ― A senhora também vê muita coisa. O sorriso dela era ao mesmo tempo triste e céptico. ― Não é a mesma coisa. Não são crianças pequenas. Uma vez tentei trabalhar com crianças vítimas de abuso e não consegui. ― O seu olhar ficou fixo nele, a cabeça um pouco de lado. ― Estou a ver que ficou surpreendido. Era aborrecido saber que era assim tão transparente. ― Um pouco, sim. ― Não confia em psiquiatras. ― A Dr.a Ciccotelli tem a sua função e eu tenho a minha. Os seus lábios esboçaram um sorriso. ― Quer dizer, tratar os doidos sim, mas meter-me na sua cabeça não. É razoável, detective. ― Enquanto falava ia pegando no casaco para o pôr pelas costas. Os dedos dele pareciam pedir-lhe que a ajudasse, ao mesmo tempo que o cérebro insistia que não se aproximasse. ― Se me lembrar de alguma coisa, aviso-o. Se as minhas impressões digitais aparecerem em mais algum sítio avisa-me? Ele sorriu, embora um pouco contra a sua vontade. ― Aviso. Obrigado por ter vindo. A minha cunhada manda-lhe cumprimentos. Ela agradeceu com um gesto. ― Eu e a Kristen somos amigas. Diga-lhe que eu retribuo. ― Deu uns passos em direcção às escadas e parou. Murphy vinha a chegar, de mãos nos bolsos e sobrolho franzido. ― Tess, não estava à espera de a encontrar aqui. ― Não estava a pensar subir. Passou por ele e Murphy voltou-se para trás e agarrou-lhe no braço, de olhar intenso. ― Desculpe, Tess. Nem me devia ter passado pela cabeça. Mesmo do outro lado da sala Aidan sentiu a frieza com que os olhos dela o encaravam e o tom agressivo da sua voz. Viu de novo a mulher que estivera na sala de audiências, que pronunciara as palavras que haviam permitido a um assassino escapar à sentença. Meticulosamente, agarrou na mão dele e libertou-se. ― Não, não devia, Todd. Deixei aí umas coisas para vocês lerem. Bom dia. E saiu, deixando atrás Murphy de braço levantado e rosto de cor da


cinza. 79 Virando-se, Murphy deixou-se cair na cadeira e olhou para a secretária por momentos, sem prestar atenção ao relatório da autópsia do pequeno Danny Morris, que aí se encontrava. Engoliu em seco. Merda. Puta de maneira de começar um dia! Aidan foi buscar café para os dois e sentou-se num canto da secretária do parceiro, encostada à dele. ― Murphy, conta-me o que se passou entre ti e a Ciccotelli. A Kristen diz que tu sabes qualquer coisa sobre um ataque o ano passado. Com as mãos à volta da chávena de café, Murphy aproveitou para as aquecer. ― Está aqui um frio dos diabos. ― Frio estava há uns minutos. Murphy resmungou. ― Merda para isso também. ― Entretanto, bufou, exasperado, e ajeitou-se melhor na cadeira. ― Há uns quinze dias, depois daquele dia no tribunal por causa do Green, pediram à Tess que avaliasse outro suspeito. ― Isso deve ter sido antes de ela ter perdido o contrato com o procurador. Murphy avaliou-o com um olhar penetrante. ― Sim, antes do fim do contrato. Este tipo que ela tinha de avaliar não era grande actor. Tinha matado a senhoria e o marido, que estava deitado. Ele invocou esquizofrenia, mas o procurador achou que ele devia estar mas era pedrado. O advogado dele tinha decidido invocar inimputabilidade. Era um calmeirão. ― Murphy ficou imóvel por momentos e depois abanou a cabeça.― Levaram-no algemado de pés e mãos. A Tess sentou-se o mais afastada dele que pôde. Tinha sido eu que o tinha prendido, por isso fiquei sentado do outro lado do vidro com o procurador, o Patrick Hurst. Mas estava lá um guarda com ela, e o guarda lançou-lhe um olhar maldoso. ― Murphy desviou o olhar, os lábios a desenharem um esgar. ― Filho-da-mãe. Como se a odiasse, estás a ver? ― Sim, estou a ver ― disse, e sentiu-se envergonhado porque de facto estava. ― O que é que o suspeito fez? ― Esperou um pouco e depois lançou-se por cima da mesa e atirou-se a ela. ― Murphy pousou o café na mesa. ― Passou-lhe a corrente das algemas das mãos à volta do pescoço e ameaçou que o partia. Aidan pestanejou. ― E que fez o guarda? 80 Murphy fez um estalido com a língua. ― Acabou por se meter, mas nessa altura o tipo já tinha apanhado a Tess. Eu pus-me lá em quinze segundos, mas ele já a tinha magoado.


Agarrou nela e atirou-a de cabeça contra as paredes de cimento e depois ficou ali, a asfixiá-la. Nunca me hei-de esquecer do olhar dela nesse momento. Pensou que ia morrer. ― Foste tu que agarraste o tipo? ― Eu, o procurador e dois guardas. Quando conseguimos, já ela tinha desmaiado. Parti-lhe um braço e ela teve uma fractura no crânio. E ficou com uma cicatriz à volta do pescoço por causa da corrente. Aidan lembrou-se do lenço que ela trazia à volta do pescoço nessa manhã e percebeu. Só de pensar nas mãos do assassino à volta do pescoço dela sentiu uma fúria violenta. ― De maneira que foste para o hospital com ela. ― Sim. Depois pediu-me que ligasse ao irmão, que veio de Filadélfia nessa noite, de avião. Voltei no dia seguinte para ver como ela estava e começámos a falar. Na verdade, ela nem sequer conseguia falar. Tinha de escrever o que queria dizer num bloco de apontamentos porque tinha ficado sem voz. Só ao fim de alguns dias é que conseguiu voltar a falar. ― Com um sorriso suave acrescentou: ― Ela lembra-me a minha irmã mais nova. Alegre e viva. E foi assim que ficámos amigos.; ― Ela ainda...? Murphy olhou para o parceiro com ar interrogador. ― O quê? Se me lembra a minha irmã? Sim. ― Reclinou-se mais na cadeira e olhou para Aidan. ― E a ti, lembra-te a tua irmã? Aidan ainda pensou em mentir, mas depois mudou de ideias. ― Não. Murphy riu-se baixinho. ― Estou frito contigo... ― Volta a dizer isso e estás mesmo. ― Porquê? Ela não fez isto, e tu sabe-lo tão bem como eu. Vamos ilibá-la e tu depois tens o caminho livre. ― Deixa-te disso, Murphy. ― Mulheres como ela exigiam que um tipo estivesse cheio de papel. Aidan inclinou-se e tirou uma folha da impressora. ― Está aqui uma lista de todas as floristas a menos de dez quilómetros da casa de Cynthia Adams. Pensei que talvez valesse a pena investigar se alguém comprou recentemente um grande número de lírios. ― Dá-me metade da lista. ― Murphy esperou até Aidan estar sentado atrás da secretária antes de acrescentar: ― Ela não tem namorado. 81 Aidan estava a marcar o primeiro número de telefone, mas interrompeu. ― O quê?! ― A Tess não tem nenhuma ligação. Esteve para casar, mas agora já não tem namorado.


"Deixa-te disso, Reagan", avisou a parte sensata do seu cérebro. A parte estúpida não prestou atenção. Aidan mexeu-se na cadeira e olhou para Murphy, do outro lado da secretária, que fingia ignorá-lo e já tinha marcado o primeiro número da lista dele. Excitado e aborrecido com a observação, Aidan fez chamadas para cinco floristas diferentes e depois pousou violentamente o auscultador e disse: ― Porquê? ― Porquê o quê? ― Sabes muito bem o quê ― silvou Aidan. ― Não te armes em parvo. Murphy levantou os olhos dos papéis, a sorrir. Filho-da-mãe armado em esperto. ― Rompeu o noivado com o tipo duas semanas antes do casamento ― explicou, já sem o sorriso malicioso nos lábios. ― Corre que o namorado andava a enganá-la. Aidan abriu os olhos, surpreendido. Ao que parecia, ele e Tess Ciccotelli tinham mais em comum do que seria de esperar. ― Devia ser um idiota chapado. ― Quanto a isso estou de acordo contigo. Já arranjaste alguns lírios? ― Só rosas e cravos. Lírios não, ou pelo menos não na quantidade que vimos no apartamento. ― O mais certo é tê-los comprado em vários sítios diferentes. Vamos experimentar até chegarmos a dez cada um. Depois, vamos fazer uma visita ao sítio onde Cynthia Adams trabalhava. ― Parece-me boa ideia. Segunda-feira, 13 de Março, 8.30 Tess atirou com o chapéu-de-chuva entre resmungos e tirou o telemóvel do bolso depois de ele ter tocado pela terceira vez em três minutos. Alguém muito persistente queria falar com ela. Uma olhadela ao número revelou-lhe que essa pessoa era a sua secretária. 82 ― Diga, Denise ― respondeu, num tom mais desagradável do que pretendera e fazendo uma careta quando o seu pé se afundou num buraco do passeio, deixando-a ensopada até aos artelhos. Conseguiu enfiar-se debaixo do alpendre que havia em frente do hospital psiquiátrico a tremer de frio, tentando sacudir a água do sapato direito, que provavelmente ficara estragado para todo o sempre. Era uma manhã horrível, fria e chuvosa. Totalmente de acordo com o seu estado de espírito. ― Que aconteceu? ― conseguiu perguntar, já mais calma. ― Teve várias chamadas esta manhã, Dr.a Chick. Um arrepio que não tinha nada a ver com a chuva fria desceu-lhe pelas costas. Dominou-se a tempo para não dizer uma palavra inconveniente. ― De quem?


― Vários jornalistas. Um do Trib, outro do Channel Eight. Queriam um comentário a um artigo que saiu esta manhã no Bulletin. Sentiu uma dor aguda instalar-se por cima das sobrancelhas. ― O Bulletin... ― Recordou uma jovem de olhos cinzentos com uma longa trança loura. ― Deixe-me adivinhar. Joanna Carmichael. ― Não, o artigo é assinado por Cyrus Bremin, mas... sim, as fotografias são assinadas por Joanna Carmichael. Nesse caso não leu o artigo? "Fotografias." A dor tornou-se mais forte. ― Não. É muito mau? ― É mesmo, mesmo mau. Também recebeu duas chamadas de um Dr. Fenwick, da Ordem dos Médicos. Disse que lhe ligasse imediatamente ― comunicou Denise, que ditou um número de telefone. ― Eu disselhe que ia estar em consultas esta manhã, mas ele insistiu. Tess memorizou o número e sentiu o estômago às voltas. ― Houve mais alguma chamada? ― Mrs. Brown tem tido ataques de pânico. Mandei-a para o Dr. Gryce. Mr. Winslow ligou três vezes. Não quis falar com mais ninguém. Parecia muito perturbado, de maneira que o marquei para as três. ― Obrigada ― respondeu, e guardou o telefone no bolso, com o coração a bater de tal maneira que parecia que estava prestes a saltar-lhe do peito. Rapidamente, olhou à sua volta. Havia um quiosque de jornais do outro lado da rua. Atravessou com o vermelho para os peões e ouviu algumas buzinadelas e outros tantos gritos pelas janelas do carro. As mãos tremiam-lhe quando pegou no jornal. Estava na primeira página! Parecia impossível, mas estava na primeira página do jornal. 83 A chuva caía-lhe sobre a cabeça descoberta, ensopando-a até aos ossos mas mesmo assim ficou parada no meio da rua, sem conseguir mexer-se. O seu próprio rosto olhava-a da página impressa, ao lado de uma fotografia obscena de Cynthia Adams esventrada numa rua de Chicago. Abaixo vinha em letras garrafais: "Conhecida psiquiatra envolvida no suicídio de paciente." O telemóvel voltou a tocar e ela respondeu num tom tenso e rígido: ― Sim...? ― Fala a Amy. Já leste o Bulletin desta manhã? -JáO silêncio entre as duas tornou-se audível por entre a chuva que continuava a cair. ― Onde estás, Tess? De uma maneira ou de outra, a realidade voltou a ligar-se à sua mente e, impulsionada por uma explosão de fúria, Tess reagiu e atirou o jornal para o primeiro cesto de papéis que viu. Tinha doentes para ver


e estava ali no meio da rua como se não soubesse o que fazia. ― Estou no hospital. ― Com passo rápido atravessou a rua, dessa vez depois de ter esperado pelo sinal verde, sem se ralar com a chuva. Fosse como fosse, já estava ensopada até aos ossos. ― Agora vou fazer as visitas, Amy, mas depois tenho um encontro na Ordem. Acho que é melhor levar a minha advogada. ― É só dizeres-me onde e quando que eu apareço. Tess pigarreou e, resolutamente, limpou a voz. ― Obrigada. Segunda-feira, 13 de Março, 8.30 ― Cheguei. Joanna Carmichael levantou os olhos do jornal e quase se engasgou com os flocos de chocolate. O namorado estava no meio da sala, a pingar água da chuva, com uma mão carregada de jornais e a outra de flores amarelas. Tinha no rosto o sorriso descontraído que geralmente só lhe via depois do sexo. ― Que fizeste, Keith? ― São recordações. ― A pilha de jornais aterrou em cima da mesa com um baque, fazendo o leite dos flocos salpicar tudo à sua volta. Devia ter comprado alguns vinte exemplares do Bulletin, cada um deles 84 com uma prova da dissimulação e da traição do editor. Cada uma delas com o nome de Cyrus Bremin a assinar a sua história. "A minha história." Schmidt prometera-lhe uma história, não lhe prometera o crédito por ela, pensou amargamente. Keith sacudiu-se como um cão molhado e depois apresentou-lhe o ramo de flores com uma vénia pomposa. ― Pensei que talvez quisesses mandar uns recortes para casa... Era só o que lhe faltava. Até rangeu os dentes. ― Keith, essa história não é minha. ― O teu nome está ao lado das fotografias ― disse ele com calma, pondo as flores de lado. Toda a felicidade tinha desaparecido do seu rosto. ― Um crédito fotográfico... ― desdenhou ela. ― Eu não sou fotógrafa. Sou jornalista, e se tivesses um pingo de bom senso percebias qual era a diferença. Com a mão, o namorado alisou o cabelo molhado. ― Eu acho que sou um homem sensato, Jo, e vejo a diferença. Mas também vejo o teu nome num jornal importante, na primeira página. Era o que tu querias. Era o que querias provar ao teu pai que eras capaz de fazer, sem a ajuda de ninguém. Agora já podemos ir para casa. Joanna atirou os jornais para o chão. Bastara ele mencionar o seu pai


e a sua condescendência enlouquecedora para fazer o seu sangue ferver. ― Não estou pronta para ir para casa nem nada que se pareça, Keith. Só quando tiver o meu nome a assinar uma peça da primeira página. Antes disso, nem pensar. Keith deixou-se ficar parado por um momento, só a olhar para ela com uma expressão que a deixava doida de impaciência. ― Tu fizeste um bom trabalho, Jo. Denunciaste uma médica que prejudica os próprios doentes. Se fosses capaz de ignorar um pouco o teu ego, talvez conseguisses ver isso. E tinhas dito que quando isso acontecesse podíamos voltar para Atlanta. E eu quero voltar para a minha terra. ― Então volta. ― Contrariada, pôs-se de pé para deixar o prato dos cereais no lava-louças. ― Mas vais ter de voltar sozinho. Eu só saio desta cidade quando tiver alguma coisa de jeito para mostrar. ― Olhou para o nome de Cyrus Bremin, que parecia troçar dela a partir do monte de papel que se encontrava no chão. ― Tenho de arranjar um argumento de força para lidar com o Schmidt. ― Por entre a fúria e o rancor, um 85 pensamento tomou forma. ― Um exclusivo com a Ciccotelli servia. Ela disse-me que me ligava. ― Levantou os olhos e viu Keith de costas, a entrar no quarto. ― Keith, desculpa ter descarregado em ti, mas fiquei tão desapontada... Ele assentiu com um gesto, sem se voltar. ― Não te esqueças de pôr as flores em água. Nunca te lembras e elas acabam por morrer. Joanna fez por esquecer o mal-estar. Keith acabaria por voltar. Nos seis anos de relação séria entre os dois sempre voltara. Nesse momento, tinha de se concentrar no mais importante, que era conseguir um exclusivo com a Ciccotelli. Depois do artigo daquela manhã não seria fácil, mas ela podia sempre acusar Bremin pelo que acontecera e apresentar-se em toda a sua inocência. Talvez resultasse. Depois poderia mostrar ao pai que ele estava enganado. Que ela seria capaz de vencer no jornalismo sem a ajuda dele. Poderia ocupar o seu lugar no grupo de imprensa da família com credenciais conquistadas por si mesma. Segunda-feira, 13 de Março, 9.15 Aidan teve um sobressalto quando alguém lhe atirou com um jornal para cima da secretária, ia ele a meio da sua décima florista. Levantou os olhos para o rosto do tenente, de lábios contraídos e tenso, e depois voltou a olhar para o jornal. Ficou boquiaberto. A voz da florista tornou-se um zunzum sem sentido do outro lado da linha. ― Sim, obrigado, minha senhora. Vou ter de lhe ligar mais tarde.


Pousou o auscultador e pegou no jornal. Era o Bulletin, um matutino popularucho, pouco melhor que os tablóides de mais baixo nível. Na primeira página, o rosto de Tess Ciccotelli olhava-o de frente. ― Murphy, olha para isto. Murphy estacou ao olhar para o jornal, o olhar duro e frio. ― Quem é que publicou uma merda destas? ― Cyrus Bremin ― atirou Spinnelli, de tal maneira furioso que o bigode parecia dançar-lhe por cima do lábio superior ao ritmo dos espasmos de raiva. ― Diz que tem uma fonte anónima no departamento da polícia. Descubram quem confirmou a história. Quero-o no meu gabinete o mais depressa possível― gritou, antes de entrar no gabinete e bater com a porta com tanta força que deixou as persianas e os vidros a oscilarem. 86 Murphy continuava a olhar para a página a preto e branco. ― Vou dar uma palavrinha ao Bremin ― disse com muita calma. ― Vão ver que identifica a testemunha não tarda nada. ― E enterra-nos ainda mais com a imprensa. Passas a vida a dizer-me que não perca a cabeça. Desta vez prega a ti mesmo, Murphy. ― Aidan estudou a fotografia de Cynthia Adams. ― Deve ter sido tirada antes de eu ter chegado ao local. Lembro-me de ter passado através dos mirones e de ter dito ao Forbes e ao DiBello que estivessem atentos às máquinas fotográficas. ― Esforçou a vista para ler o crédito fotográfico. ― Diz aqui que a fotografia foi tirada por uma Joanna Carmichael. ― Escreveu o nome no computador. ― Ora, ora... Vejam só onde vive Miss Carmichael... Murphy espreitou por cima do ombro do parceiro. ― No prédio de Cynthia Adams. A história caiu-lhe no colo. ― Tem um encontro marcado connosco, por isso não sei se será assim tão sortuda. Aidan estava a imprimir a morada quando a porta do gabinete de Spinnelli se abriu. ― Sala de reuniões daqui a meia hora ― ladrou Spinnelli. ― Telefona ao Jack Unger, da polícia científica, e manda-o vir também. O procurador quer falar. Segunda-feira, 13 de Março, 9.30 As testemunhas já eram esperadas. Os fotógrafos, não. "Feliz Natal para mim." Cynthia Adams estava na primeira página, e a cara dela dizia tudo. Mas o melhor de tudo era a sempre popular Tess Ciccotelli, com ar preocupado e cansado. Ora ali estava uma publicidade impagável. Bem feitas as contas, estava a ser um belíssimo dia. Mr. Avery Winslow também estava a avançar de acordo com as


expectativas. Durante toda a tarde alternara entre caminhar de um lado para o outro na sala de estar, sentar-se no quarto do filho e telefonar à psiquiatra em quem tanto confiava. Estava a mostrar-se mentalmente mais instável que Cynthia Adams. Cynthia resistira. Gostava de negar aquilo que mais receava. Tinha sido frustrante. Cada vez que a coisa parecia prestes a resolver-se, ela recuava e negava ter ouvido o que quer que fosse. Chegara a negar alguma vez ter tido uma irmã. Fora preciso subir três vezes a sua dose de "medicação" 87 até ela ficar no ponto. Por fim, ainda tinha sido preciso passar para outro nível de substâncias. Só o pó-de-anjo tinha conseguido levá-la a atirar-se. Os lírios tinham sido um golpe de mestre, bem como a fotografia da irmã pendurada da corda, que fora como a cereja no cimo do bolo. O bolo de aniversário. O calendário também se mostrara cooperador na tarefa de decompor a mente de Miss Cynthia Adams. Seria também o calendário a decidir a sorte de Mr. Avery Winslow. Isso e o choro ininterrupto de uma criança. Uma obra-prima. Além disso, se a bonita Nicole estivesse a cumprir as suas obrigações, mais uma fotografia devia bastar para lhe fazer saltar a tampa. Arrastando consigo a Dr.a Ciccotelli, em quem tanto confiava. Segunda-feira, 13 de Março, 9.45 O procurador Patrick Hurst atirou o jornal para cima da mesa com ar enojado. ― Merda. Isto é mau, Marc. Mesmo, mesmo mau. Jack Unger, da polícia científica, pegou no jornal e estudou a primeira página. ― Quem é a fonte anónima de Bremin? Murphy franziu o sobrolho. ― Não sabemos. Ele não esteve lá ontem à noite. A fotógrafa esteve. Os dois guardas de uniforme lembram-se de ter visto lá a Carmichael, mas garantem que não lhe disseram uma palavra. ― Qualquer pessoa que tenha estado de serviço ontem à noite viu a Ciccotelli vir para a esquadra connosco ― disse Aidan, encolhendo os ombros um pouco embaraçado ao lembrar-se de como estivera furioso. ― A advogada dela assinou o livro de admissões à entrada, por isso qualquer pessoa que lá tenha metido o nariz percebeu que ela tinha estado aqui. Além disso, deve ter havido muitas pessoas a verem-nas sair juntas. Nenhuma delas vai confessar que falou com os jornais, mas todos sabemos que qualquer delas ficaria encantada por fazê-lo, Marc. Spinnelli dobrou o jornal de maneira que a Ciccotelli não continuasse a olhar para eles. ― Tudo isso é verdade, mas vamos investigar a fuga juntamente com


tudo o resto, como sempre. Sendo assim, porque estás tu aqui, Patrick? A tua visita parece um pouco, digamos, prematura... 88 O procurador suspirou. ― Estou aqui porque isto tem implicações muito para além da inocência ou da culpa de Tess Ciccotelli, ou até da descoberta de quem fez isto a esta pobre mulher. ― Cynthia Adams ― disse Aidan com suavidade, e ergueu as sobrancelhas quando Patrick o olhou de cenho franzido. ― Era assim que se chamava a pobre mulher. Os olhos do procurador não estavam isentos de compaixão. ― Eu sei o nome dela, detective, mas de momento ainda nem sequer comprovámos que a morte de Miss Adams foi um homicídio. ― Antes que Aidan pudesse objectar, ergueu a mão para o silenciar. ― Vocês vão investigar e descobrir quem fez isto. Não vos estou a dizer que parem. Na realidade, estou mesmo a dizer-vos que avancem o mais depressa possível. Aqui a grande questão é a credibilidade da Dr.a Ciccotelli nos casos anteriores. Graças a Bremin e ao Bulktin, todos eles voltaram ao centro das atenções. Qualquer advogado de defesa que tenha perdido um caso em que ela tenha testemunhado vai invocar essa razão para apelar. E isto pode dar cabo do meu gabinete. Sabes em quantos casos ela esteve envolvida nos últimos cinco anos? "Sei", pensou Aidan. Nesse momento já sabia perfeitamente quantos haviam sido. Kristen tinha toda a razão. Harold Green era um caso à parte. Tess Ciccotelli tinha-se excedido em esforços para pôr alguns tipos muito beras atrás das grades. Chegara a ficar abatido com a descoberta. ― Quarenta e seis ― respondeu, entre dentes. ― O quê?! ― O bigode de Spinnelli agitou-se freneticamente. Aidan pigarreou. ― A Dr.a Ciccotelli testemunhou em quarenta e seis casos. Ontem pedi a lista ao arquivo. Trouxe-a de caminho ― explicou, e atirou com a lista impressa na direcção dos outros. ― Quantas condenações, Aidan? ― perguntou Spinnelli. ― Trinta e uma em quarenta e seis. Murphy deixou a cabeça cair para trás e apoiou-se pesadamente na cadeira. ― Meu Deus! Patrick pegou na lista com ar sombrio. ― Podem sair daqui trinta e um apelos. Sabem quanto tempo isto vai deixar o meu pessoal sem poder fazer mais nada? ― Nem quero pensar nisso ― disse Spinnelli. ― De maneira que o que temos de fazer é ilibar Tess e deixar o teu pessoal a trabalhar em 89


novos filhos-da-mãe. Além das impressões digitais no apartamento de Cynthia, que temos contra ela? ― A voz dela no atendedor ― respondeu Aidan. ― Já mandei a cassete para o departamento de electrónica para eles fazerem uma espectrografia de voz ― disse Jack. Patrick acenou que não. ― Não é admissível. ― Mas se os resultados forem diferentes podemos excluí-la ― argumentou Jack. ― O nosso perito é muito competente, Pat. Vale bem o esforço. ― Nesse caso avança ― concordou Patrick. ― Sendo assim, temos de pedir à Dr.a Ciccotelli que venha fazer uma gravação da voz dela para compararmos ― acrescentou Aidan. ― Ela está a facilitar muito as coisas, por isso não creio que seja difícil. E a arma com a etiqueta? ― Já tirámos as impressões todas. O número de série foi limado, mas acho que ainda consigo recuperá-lo ― disse Jack, que atirou um olhar interrogador a Spinnelli. ― Suponho que este caso passa a ser prioritário. ― Supões bem. Mais alguma novidade? ― Andamos a ver se descobrimos alguma coisa dos lírios ― disse Murphy. ― Até agora temos três lojas que venderam muitos no sábado. Vamos lá falar com eles hoje à tarde, mas primeiro queríamos ir ao escritório da Cynthia Adams. Alguém odiava o suficiente aquela mulher para a querer ver morta. Nós sabemos que ela variava constantemente de parceiros sexuais e provavelmente deu a muitos deles uma prenda de despedida. Talvez um deles a odiasse a ponto de a matar. Aidan olhou para a lista de julgamentos em que Tess Ciccotelli tinha testemunhado e lembrou-se do que ela dissera na sala de interrogatórios no dia anterior. "Porquê eu?", perguntara ela. Talvez eles tivessem percebido tudo ao contrário. Talvez Cynthia Adams fosse apenas um instrumento. Talvez alguém quisesse apenas um apelo. Patrick olhou-o com surpresa. ― Havia maneiras mais fáceis... ― São muitos ses ― disse Spinnelli. ― Vamos ver se encontramos algumas respostas seguras. E os e-mails com os ficheiros em attachment Conseguimos identificar a origem de alguns? ― Estão na electrónica. Mas eu vou ver se os apresso. ― Jack franziu o sobrolho e voltou a abrir o jornal. ― Esta fotografia foi tirada mal 90 a mulher caiu. E quero dizer logo. Talvez trinta segundos depois. Um minuto no máximo. Aidan inclinou-se para o jornal.


― Como sabes? ― Olha para o cimento junto da cabeça. Ainda não há nenhuma poça de sangue. Aidan sentiu o pulso bater mais depressa. ― A Tess Ciccotelli disse que recebeu uma chamada à meia-noite e seis a dizer que a Cynthia Adams estava prestes a saltar. Os adolescentes que testemunharam a queda disseram que ela saltou à meia-noite e cinco. ― Isso é muito específico ― observou Patrick, mas os seus olhos também tinham começado a brilhar. ― Os miúdos já estavam atrasados para voltar a casa. A rapariga disse que tinha de estar em casa à meia-noite e que tinha acabado de olhar para o relógio, com medo de arranjar algum problema com os pais ― disse Aidan com um olhar na direcção de Murphy. ― A Tess Ciccotelli disse que a chamada lhe pareceu de um telemóvel. Murphy abriu muito os olhos. ― A pessoa que ligou estava lá, a vê-la cair. Filho-da-mãe. ― A Ciccotelli também disse que a pessoa que ligou era uma mulher, que disse ser vizinha da Adams, e que... ― A Carmichael vive no mesmo prédio que a Adams ― completou Murphy. ― Não seria a primeira vez que um jornalista fazia as próprias notícias. ― Com um encolher de ombros, acrescentou: ― Vale a pena pôr a ideia na lista. ― E também valia a pena saber se ela tirou outras fotografias ― acrescentou Jack. ― Se o criminoso estava lá, talvez ela o tenha visto. A ele ou a ela. Aidan recostou-se na cadeira. ― Sendo assim, os nossos suspeitos neste momento são trinta e um prisioneiros que podem querer apelar das sentenças, sabe Deus quantos dependentes de sexo que contraíram uma doença sexualmente transmissível, uma jornalista que faz fotografia e, infelizmente, Tess Ciccotelli. Patrick pôs-se de pé. ― Antes de mais, elimina a possibilidade de ter sido ela. Não quero ficar afogado em apelos. ― Entendido ― disse Spinnelli. ― Meus senhores ― continuou, a apontar para a porta ― quero-vos todos à procura de pistas mais seguras. Hoje. E ainda não me esqueci da "fonte anónima". Mãos à obra. 91 Murphy fez-lhe a continência. -― Vamos sair agora para verificar as floristas. Por acaso estás, estiveste ou achas que vais estar metido nalgum sarilho com a tua mulher? Podemos comprar-te umas flores. A entrega saía-te barata...


As mulheres casadas gostam de flores. Com um esgar de impaciência cómica, Spinnelli respondeu: Eu estou sempre metido em sarilhos com a minha mulher. Infelizmente, ela prefere rochas muito polidas e brilhantes. Ponham-se a andar. Quando saíam da sala de reuniões, Aidan olhou de relance para Murphy. ― Já foste casado? ―Já. Agora já não sou. Qual é a primeira florista da tua lista? Era evidente que queria mudar de assunto. ―Josie's Posies. Vendeu alguns lírios no sábado. ― Aidan estudava a lista dos casos da Ciccotelli ao mesmo tempo que ia caminhando. ― Conduzes tu. Eu queria ir dando uma vista de olhos a estes nomes. Alguns destes tipos já devem ter sido libertados. ― Deu uma espreitadela ao relógio. ― Antes de passarmos pelo escritório da Adams podíamos passar pelo Departamento de Saúde e ver se a Adams e a Ciccotelli chatearam alguém em comum. Segunda-feira, 13 de Março, 10.30 Uma mulher de meia-idade, Miss Tuttle, olhou-os de cima a baixo de trás de um enorme balcão de madeira. ― Todas as informações que nos são dadas pelos nossos clientes são confidenciais, como sabem, senhores detectives. ― Estamos a investigar um assassinato, minha senhora ― replicou Murphy, delicadamente. ― Uma das suas clientes morreu, por isso a privacidade dela já não tem importância. ― Mas a do parceiro dela tem. Tenho muita pena, mas não posso ajudá-los. ― Houve alguém que levou esta mulher a atirar-se de um vigésimo segundo andar ― disse Aidan com a maior calma de que foi capaz, e, esclarecido este ponto, guardou a fotografia. ― Esse alguém podia ter sido um dos parceiros dela. Alguém com motivos de rancor. Não se lembra de ninguém que tivesse proferido uma ameaça contra Miss Adams quando soube que podia ter sido contagiado? 92 ― Detective ― começou ela, olhando-o de frente ― se eu revelasse fosse o que fosse acerca dos nossos clientes, ninguém vinha aqui. O meu trabalho é proteger a privacidade das pessoas. Só vocês estarem aqui já torna isso difícil. Se vos dissesse o que querem saber, o meu trabalho tornava-se impossível. ― Nós não queremos impedi-la de fazer o seu trabalho. Acredite que não é essa a nossa intenção ― disse Aidan, que a olhou com esperança de estar a recorrer ao seu olhar mais persuasivo. Nunca contara que fosse fácil. Na verdade, Miss Tuttle estava até a colaborar mais do que ele tinha contado. ― Os apontamentos da médica dela


apontam-na como o contacto de Miss Adams. Pode ao menos dizer-nos se se lembra dela? ― depois de perguntar tirou do bloco de apontamentos outra fotografia de Cynthia Adams, a que tinha encontrado na carta de condução. ― O aspecto dela era este. Deve ter vindo aqui há um mês e meio, mais ou menos. Tuttle mordeu o lábio. ― Lembro-me dela, sim. ― Importa-se de nos dizer se algum dos parceiros dela fez alguma ameaça, se mostrou raiva quando foi notificado? Não precisa de nos dizer nomes, só se estamos a progredir na direcção certa. ― Sem nomes, detective? Aidan confirmou: ― Sem nomes. Ela respirou fundo. ― Houve um. Ficou branco como o papel. E ameaçou que a ia fazer pagar. Aidan recuou um passo. ― Muito obrigado, Miss Tutte. Agora vamos deixá-la. Murphy esperou até se encontrarem os dois na rua para tirar do bolso uma pastilha elástica de canela. ― Não conseguiste nenhuma lista de nomes. ― Também não estava à espera de conseguir ― respondeu Aidan, que deslizou para o lugar ao lado do condutor e esperou que o parceiro se sentasse ao volante. ― Mas agora já ficámos a saber que vale a pena pedir um mandado. Era só isso que eu queria. Murphy meteu-se no meio do trânsito. ― Nesse caso portaste-te bem. Vamos comer qualquer coisa e depois vamos para o escritório onde ela trabalhava. E a seguir para o Josie's Posies. CAPÍTULO 6 Segunda-feira, 13 de Março, 15.15 Amy fechou a porta do escritório de Tess. ― Podia ter sido pior, Tess. Tess afundou-se na cadeira. A reunião com o Dr. Fenwick, responsável da Ordem dos Médicos no Illinois, não tinha corrido bem. ― Também podia ter sido melhor, Amy. ― Não houve sanções. E não ficaste sem licença para exercer. ― Porque não fiz nada de mal, caramba! ― gritou Tess, que logo a seguir se pôs a massajar a cabeça no sítio onde uma enxaqueca ameaçava atacar. ― Desculpa. Obrigada por teres vindo. Custou muito menos contigo aqui. ― Tess desconfiava que, se a advogada dela não tivesse estado presente, o Dr. Fenwick teria feito mais do que simplesmente "desaprovar". Mas a verdade é que desaprovara. A Ordem achava inaceitáveis as queixas contra os seus membros. Além disso, também não gostava que as suas chamadas só fossem


atendidas depois das consultas. A Ordem ia estar atenta às investigações e ao seu próprio comportamento. Quando fosse ilibada pelas autoridades teria de apresentar uma declaração em que negasse igualmente todas as acusações. ― A Ordem que se foda ― resmungou. ― Não creio que seja caso para tanto ― brincou Amy. ― A maior parte deles até já não deve conseguir, a não ser com uma boa dose de Viagra. Tess lançou-lhe um olhar irritado. ― Não tem graça nenhuma. Estamos a falar da minha carreira. Amy sentou-se no braço do sofá com os braços cruzados sobre o peito, já séria. ― Que pensas fazer a respeito de tudo isto, Tess? 94 ― Que queres dizer com isso? ― Quero dizer que não podes deixar uma acusação destas sem resposta. Isto podia acabar com a tua carreira. ― Hum... ― Tess, estou a falar a sério. Tess pôs-se de pé e começou a arrumar os papéis na pasta. ― Vou trabalhar com a polícia para descobrir quem fez realmente isto. Amy inclinou-se para a frente, de sobrancelhas erguidas e expressão sarcástica. ― Notícia de última hora: a polícia pensa que foste tu. Tess estudou o conteúdo de um dos dossiês e depois atirou-o para dentro da pasta com os outros. ― Não me parece que pensem. Ou antes, o Todd Murphy talvez não, mas o detective Reagan pensa de certeza. ― Tess pensou em Reagan, na maneira como ele lhe tinha feito as perguntas nessa manhã. ― Não, vendo bem as coisas acho que ele também não pensa que fui eu. Seja como for, não vão conseguir provar que fui eu, porque não fui. O riso de Amy não foi agradável. ― Como se isso fosse coisa para os deter. Vê mas é se acordas. Todos os dias defendo pessoas que pensam que não vão ser acusadas porque não fizeram nada. Que te leva a pensar que o teu caso é diferente? Tess fechou a pasta. Sentiu um calafrio de medo acelerar-lhe o pulso como um foguetão. ― O que me leva a pensar isso é que estou inocente, só isso. Pelos olhos de Amy passou uma expressão de mágoa. ― Eu não defendo pessoas que penso que sejam culpadas, Tess. Tess deixou os ombros descaírem de desânimo. ― Desculpa, não queria magoar-te. ― Pôs um braço sobre o ombro de Amy e sentiu que ela estava tensa. ― Eu sei que dás tanta importância à tua ética como eu à minha.


Amy acenou que sim. ― Não tem importância. ― Mas tinha. E era fácil de perceber. Fosse como fosse, Amy encolheu os ombros. ― Em minha opinião, devias atacar este assunto de frente. Liga para o jornal e dá-lhes a tua versão. Faz o Bremin parecer um idiota por se ter precipitado. Tess tinha andado a trabalhar num plano semelhante ao longo desse dia. ― Está bem. Tens algum contacto num jornal? Alguém que aches que seja justo e imparcial? 95 ― Tenho. Deixa-me preparar as coisas. Depois digo-te quando e onde ― disse Amy, apontando-lhe um dedo num gesto de quem a avisava. ― Mas não fales com mais ninguém a não ser com a pessoa que eu te mandar. Promete-me. ― Está bem. ― Tess olhou para o relógio de sobrolho franzido. ― Eu tinha uma consulta às três horas. Com quem seria? ― De testa vincada pelo esforço, acabou por se recordar de que se tratava de Mr. Winslow. Que homem tão triste... A história dele partia-lhe o coração. ― Amy, tenho de atender este doente. Eu ligo-te para o escritório depois da consulta. Amy estava a abotoar o casaco quando alguém bateu suavemente à porta. Denise meteu a cabeça pela abertura e disse: ― Dr.a Ciccotelli, tenho uns vinte recados para si. A maior parte são de jornalistas, mas uma meia dúzia são de doentes. ― Com ar de quem lamentava, acrescentou: ― Três cancelaram as sessões de amanhã. Tess suspirou, pegou no monte de recados escritos que Denise trazia e estudou-os um a um. ― Suponho que já seria de esperar algum atrito. ― Um detective Reagan telefonou duas vezes. Pediu que lhe ligasse assim que pudesse. É urgente. Deixou o número do telemóvel. Ah, e tem uma chamada na linha um. É uma pessoa que diz que é vizinha de Mr. Winslow e que insistiu em falar consigo. Não quis deixar recado. Tess ergueu a cabeça bruscamente. A palavra "vizinha", pareceu-lhe que o coração lhe caía aos pés. ― O quê?! ― Uma vizinha de Mr. Winslow... Tess deu um salto em direcção ao telefone. ― Merda! Merda, merda, merda! ― Tess pegou no aparelho da secretária dela e pegou-lhe com as mãos a tremer. ― Está? ― Dr.a Ciccotelli? Não era a mesma mulher. Parecia mais velha do que a que se anunciara como vizinha de Cynthia Adams. "Merda!" Acenou a Denise e a Amy para que se calassem. Inspirou profundamente e esforçou-se para que a sua voz se mostrasse firme.


― Fala a Dr.a Ciccotelli. Que deseja? ― Sou vizinha de um dos seus pacientes, Avery Winslow, e estou preocupada com ele. Tem estado todo o dia no apartamento a chorar. 96 Bati à porta do apartamento, mas ele disse-me que fosse embora. Ele... ele tinha uma arma na mão, Dr.a Ciccotelli. "Meu Deus!", pensou Tess. ― Chamou a polícia? ― Não, só lhe liguei a si. Valha-me Deus, se calhar devia ter ligado para o número de emergência. Vou ligar agora. ― Não, deixe estar, ligo eu. Obrigada, Miss...? ― nesse momento ouviu um clique. ― Merda! ― Com as mãos a tremerem, folheou o monte de recados até que encontrou o de Reagan. ― Merda! Diabos levem isto! Denise, ligue para o número de emergência. Diga à polícia que vá a casa de Mr. Winslow e que ele está a ponto de se suicidar. Depois arranje-me o endereço dele. Eu ligo-lhe para lho pedir quando chegar ao carro. Despache-se, Denise. ― Branca como se estivesse a ponto de desmaiar, Denise foi a correr fazer o que lhe pediam. ― Merda, onde é que meti a porcaria do telemóvel? Amy meteu a mão no bolso do casaco de Tess. ― Está aqui, Tess. Acalma-te. ― Como é que eu posso acalmar-me?! ― Um soluço de pavor quis sair-lhe da garganta. Conseguiu reprimi-lo e marcar o número de Reagan. Quando este atendeu já estava fora do escritório com o casaco num braço. ― Fala Reagan. -― Detective Reagan, fala Tess Ciccotelli. ― Dr.a Ciccotelli, tenho andado toda a tarde a tentar apanhá-la. ― A voz dele parecia tensa, novamente furiosa. ― Nós... ― Seja o que for, tem de ficar para mais tarde. ― Passou pela porta do elevador e desceu as escadas numa correria, quase sem se aperceber de que Amy a seguia a pouca distância. ― Preciso da sua ajuda. Recebi outra chamada. ― De quem? ― Avery Winslow. A minha secretária está a ligar para o número de emergência neste preciso momento e eu já estou a caminho. Por favor, vá ter comigo lá. ― Está bem. ― Despache-se, por favor, detective. ― Desligou o telefone e abriu a porta da garagem. ― O meu carro está ali. ― Vamos no meu ― disse Amy, que a puxou pelo braço na direcção oposta. ― Não estás em condições de conduzir. 97 Demoraram um minuto a chegar ao Lexus de Amy, um minuto que


mais pareceu um ano. Tess estava a tremer quando Amy saiu da garagem para se meter no trânsito. Quando a mão de Amy apertou a dela, Tess teve um sobressalto. ― Respira fundo, Tess. Acalma-te e respira fundo. Vamos para lá o mais depressa que eu conseguir. Segunda-feira, 13 de Março, 15.45 ― Tem um cartão de oferta? ― perguntou Murphy. Aidan pôs-se de pé, pegando no Colt de calibre.45 de Mr. Avery Winslow com as extremidades de dois dedos enluvados. Mr. Winslow já não ia precisar dele. ― Não há nenhum cartão. ― Só havia pedaços de cérebro e fragmentos de crânio. Estes concentravam-se sobretudo na parede por trás da secretária onde se encontrava o computador, mas o monitor do computador de Winslow estava coberto e o teclado parecia cinzento, vermelho e peganhento. O monitor tinha tombado e estava de esguelha. Por trás do sangue e dos tecidos cerebrais, ia-se iluminando e escurecendo com a passagem de uma série de imagens. Murphy aproximou-se o suficiente para observar as imagens em slide show por trás de toda aquela massa. ― Imagens de crianças. De um rapazinho. Ao lado do corpo de Winslow encontrava-se uma cadeira de escritório com rodas. ― Estava sentado à mesa do computador de costas voltadas para o monitor ― disse Aidan. Murphy grunhiu. ― A força do disparo deve tê-lo atirado contra o ecrã. Aidan curvou-se junto do corpo. -― Estava agarrado a um urso de pelúcia. ― Por alguma razão isto fêlo sentir um aperto na garganta. Engoliu para o fazer passar e olhou para Murphy. ― Um ursinho de pelúcia com uma etiqueta dourada de oferta. Do mesmo tipo das outras. "Feliz aniversário, Avery Júnior". Filosoficamente, Murphy fez uma careta. -― Mas flores, não ― observou. ― Parece-me que não era um ponto sensível dele. 98 ― Aqui está a caixa em que o urso chegou ― disse Murphy, que a retirou de cima da mesa pequena da sala de estar, bem como a um bloco de apontamentos. ― Ele tinha um encontro marcado com Tess, aqui, às três horas. ― Pelos vistos distraiu-se com outra coisa ― disse Jack Unger, da porta. ― Spinnelli quis que eu viesse, só para o caso de ser preciso qualquer coisa. ― Observou a cena com olhar crítico. ― Vou buscar a minha equipa e vamos começar. Aidan indicou-lhe a casa de banho.


― Vê se ele tem ali medicação. Procura tudo e mais alguma coisa, nem que sejam aspirinas. Jack atirou-lhe um olhar um pouco impaciente por cima do ombro. ― Não te preocupes, Aidan. Vamos passar este sítio a pente-fino. Murphy deu a volta à secretária do computador e moveu o rato com um dedo enluvado. ― O computador está pendurado no slide show. Quando mexemos o rato, ele não pára. ― Pode estar bloqueado com matéria cerebral. ― Parece-te mesmo que sim? Aidan abanou a cabeça. ― Não. O melhor é levarmos também o disco rígido. Ficas com o quarto ou com a cozinha? ― Posso ficar com o quarto. Deixou Aidan a estudar a cozinha. Estava suja, com pilhas de pratos amontoadas no lava-louças. Com a mão tocou a porta do forno. Estava ligado e quente, no máximo. No entanto, não estava preparado para o que viu quando abriu a porta. Sufocado, deu um salto para trás quando percebeu realmente o que estava à sua frente. ― Murphy, anda ver isto. Murphy foi imediatamente e espreitou por cima do ombro do parceiro. ― Que diabo é isto? ― Não é real ― disse Aidan com ar sombrio. Tirou o lenço do bolso e aos poucos foi puxando o tabuleiro do forno até ele sair. ― É só uma boneca, mas parece mesmo real. ― Os dedos das mãos e os pés e também o nariz estavam derretidos e o cheiro do cabelo queimado fazia-lhes arder o nariz e os olhos. ― Com cabelo verdadeiro e tudo. ― Fecha a porta do forno ― ordenou Jack, prontamente obedecido por Aidan. ― Com base na temperatura interior podemos descobrir 99 há quanto tempo está aí. ― Jack ligou apenas a luz interior do forno e observou através do vidro. ― É... ― abanou a cabeça ― desumano. Qual é afinal a história deste tipo? ― A Tess conhece-a ― disse Murphy, abrindo uma gaveta. ― Aidan, olha. Aidan olhou com repugnância para o revólver que se encontrava em cima das luvas de forno. ― Estavam à espera que ele encontrasse a boneca, ficasse passado e depois encontrasse isto. ― Detectives...? ― chamou uma voz vinda da sala de estar. Aidan dirigiu-se para lá e encontrou o técnico do Departamento Médico-Legal a observar o corpo de Winslow. ― Sou Johnson, do departamento da Vanderbeck. A Julia disse-me que desse o tratamento de luxo a este tipo. De que andamos à procura?


― Para começar, da hora da morte ― disse Aidan. ― Da análise toxicológica também. ― Ainda está quente ― disse Johnson, que se ajoelhara ao lado do corpo. ― O sangue ainda não começou a coagular. Eu diria que puxou o gatilho há uma hora, no máximo. Que urso é este? Caramba, olhem para isto! ― continuou ele, sem esperar por uma resposta. Levantou o rosto, onde a surpresa era evidente. ― A minha mãe dizia que nós a fazíamos arrancar o cabelo, mas eu nunca tinha encontrado ninguém que o fizesse realmente. Aidan inclinou-se para observar de mais perto. Na mão esquerda Winslow tinha uma mão-cheia de cabelo castanho grisalho, igual ao que faltava numa área do couro cabeludo acima da nuca. Johnson retirou o urso de pelúcia com cuidado da mão de Winslow e observou-o atentamente, virando-o em todos os ângulos. ― Também há cabelos agarrados ao urso. Deve tê-los arrancado com as duas mãos antes de lhe ter pegado. ― O que é que eles te fizeram, Winslow? ― perguntou Aidan num sussurro. ― Desculpe, detective, mas preciso de um pouco mais de espaço. Importa-se de recuar? Aidan afastou-se como lhe pediam, sem desviar os olhos dos movimentos do técnico, até que um grito abafado o fez desviar os olhos para a porta aberta. Ali estava Tess Ciccotelli, sem casaco, com o cabelo e o casaco do rato a pingar. Estava literalmente branca. Tinha a mão sobre a boca e os 100 olhos escancarados de horror. Deu apenas um passo incerto no interior da sala e deteve-se. ― Oh, não ― murmurou. ― Oh, Avery! Um guarda de uniforme, parado junto da porta, agarrou-a pelo braço. ― Desculpe, detective. Não consegui agarrá-la quando passou por mim. ― Puxou-a, mas ela debateu-se, sem que os olhos se afastassem do corpo de Avery Winslow. O polícia voltou a protestar, dessa vez com mais firmeza. ― Por favor, doutora. ― O tratamento não era respeitoso e, juntamente com as mãos do homem sobre ela, bastou para deixar Aidan a ferver. ― Tire as mãos de cima dela, guarda. ― Apesar dos seus esforços por falar num tom calmo, a sua voz mais pareceu um grunhido. ― Esta mulher é Tess Ciccotelli, detective. Ela... ― conseguiu dizer o guarda, a pestanejar, realmente surpreendido. ― Nós sabemos quem ela é ― disse Aidan num tom ainda desagradável. ― Largue-a... Com ar furioso, o guarda obedeceu e deu um passo atrás com um


olhar de profundo desprezo para Ciccotelli, que ela nem sequer notou. Murphy descalçou uma luva, pôs-lhe a mão sobre os ombros e empurrou-a suavemente. ― Venha, Tess ― disse num murmúrio. ― Agora já não há nada que possa fazer. Deixe-me chamar alguém que a leve a casa. Ela libertou-se das mãos de Murphy. ― Ele perdeu o filho ― disse ela, como se ninguém tivesse dito nada antes. ― O filhinho dele. Levantou os olhos para Aidan e nesse momento quaisquer vestígios de dúvida que este ainda tivesse em relação à inocência dela foram simplesmente reduzidos a nada. Os seus olhos só revelavam angústia. E verdade. ― Como é que ele perdeu o filho? ― perguntou Aidan com toda a calma. E viu a garganta e o pescoço dela agitarem-se por baixo do lenço colorido que trazia ao pescoço. Estava completamente errado. Não havia dúvida. ― Foi no Verão passado ― respondeu ela num sussurro. ― Fez tanto calor, lembram-se? Ele já ia a sair a correr quando a mulher lhe lembrou que era a vez dele de o deixar na creche. Os olhos dela voltaram-se de novo para o corpo de Winslow. Pelo canto do olho, Aidan viu as mãos de Johnson imóveis e Jack a olhar da 101 entrada da cozinha. A Ciccotelli continuou, sem lhes prestar atenção, a nenhum deles. A voz dela tinha um timbre ligeiro, imaterial, que os deixou a todos arrepiados. ― Ele não queria ir. Andava cheio de trabalho e já estava atrasado. Tinha a cabeça cheia de reuniões, mas fez o que a mulher lhe pediu porque tinham combinado dividir as tarefas relacionadas com o filho e... ― mais uma vez a garganta dela agitou-se por baixo do lenço. ― E porque adorava o filho. Prendeu-o no banco de trás do carro e sentouse ao volante. Havia muito trânsito e isso atrasou-o ainda mais. Pôs um CD para se acalmar. Por fim, chegou ao trabalho e entrou a correr. Tinha clientes à espera. Pelo caminho acabou por se esquecer que levava o filho. Umas horas mais tarde ouviu barulho na rua à frente do escritório. Havia um carro da polícia no parque de estacionamento e uma ambulância. Um dos guardas estava a partir o vidro do carro. ― Era o carro dele, de Mr. Winslow, com o bebé ainda lá dentro ― continuou Tess, com os olhos fechados. ― Disseram que a temperatura dentro do carro tinha chegado aos quarenta e cinco graus. O cérebro do bebé dele... ficou... ― Tess continuou a abanar a cabeça, incapaz de continuar. Nem era preciso que o fizesse. O retrato que pintara já era suficientemente realista. Aidan mal conseguia imaginar a cena. O desespero e o desamparo de um pai que sabia que tinha feito uma coisa daquelas. E a imagem desse mesmo pai a descobrir uma boneca


a assar no forno tornou-se ainda mais terrível. ― Tentaram reanimar o bebé enquanto Avery estava ali, a ver, mas era tarde de mais ― concluiu ela, pesadamente. ― O filho estava morto há pelo menos duas horas. Aidan inspirou profundamente. Não era aquela a melhor altura para pensar em todos os seus sobrinhos e sobrinhas, em como os seus irmãos por vezes andavam ocupados. Em como um erro trágico como aquele podia acontecer até a bons pais. Mas mesmo assim pensou. Como pensou, a pergunta seguinte acabou por ser feita em voz rouca: ― Quando é que ele a procurou? ― Depois de ter tentado suicidar-se pela primeira vez. Nessa altura a mulher já o tinha deixado. Ele... odiava-se a ele mesmo. E todas as pessoas que conhecia o acusavam pelo sucedido. ― Ela abriu os olhos e encontrou o olhar dele. ― Foi um acidente, detective. Foi apenas um acidente horrível. Johnson voltara tranquilamente ao trabalho. 102 ― Detectives, há qualquer coisa por baixo dele ― disse ele, puxando uma caixa fina do tamanho de uma matrícula pequena de baixo do corpo de Winslow. Murphy pegou na caixa e abriu-a. Olhou para os outros com ar surpreendido e voltou a caixa para eles de maneira que conseguissem ver o que estava lá dentro. ― É um CD. A banda sonora do Fantasma da Opera. Porquê? Ela teve um sobressalto, como se tivesse apanhado um choque de 40 volts. Com os dedos sobre os lábios, olhou para o CD que estava dentro da caixa. ― Era a música que ele ia a ouvir nesse dia. Distraiu-se, dizia, por ir a ouvir "Music of the Night". ― Mais uma vez engoliu em seco. ― Desde esse dia não conseguia ouvir mais nada. Isso e o bebé a chorar. Não conseguia dormir, não conseguia fazer nada. Perdeu o emprego, a mulher deixou-o. A culpa levou-o à beira do abismo. ― Bom, agora tudo indica que alguém o empurrou um pouco mais ― disse Aidan, e ela concordou com um gesto rígido. ― Sim, alguém o empurrou. Murphy fechou a caixa e deu-a a Jack. ― Guarda-a num saco, por favor. ― Detectives ― disse Johnson, que acabava de voltar o corpo para o lado, deixando à vista uma fotografia a cores, de formato pequeno, impressa em papel brilhante. E mais abominável que a de Melanie pendurada de uma corda. Aidan sentiu o estômago dar uma volta e tentou evitar olhar, embora por alguma razão não tivesse conseguido fazê-lo. Um bebé com um fato de uma única peça azul numa cadeira para automóvel, com o rosto vermelho e manchado e as feições irreconhecíveis.


Tensa, de movimentos rígidos, Tess Ciccotelli avançou da porta da sala até junto de Aidan e olhou para a fotografia. ― É o filho dele. ― A sua voz era grave e tremia de raiva. ― Foi assim que a polícia o encontrou naquela manhã. ― Desceu as pestanas devagar sobre os olhos e os seus lábios tiveram um trejeito nervoso. ― Quer saber o que é mais irónico? Quem quer que mandou esta fotografia não precisava de o ter feito. Avery Winslow via-a cada vez que fechava os olhos. Houve alguns segundos durante os quais ninguém produziu um som. Depois, Murphy inspirou vigorosamente. ― Está aqui um envelope sobre a secretária, do mesmo tamanho que a fotografia. ― Com um trejeito de desagrado, pegou no envelope 103 por um canto que não estava coberto de sangue e de massa cerebral. Depois olhou para o remetente. ― Dr.a Ciccotelli, psiquiatra. É um envelope timbrado, Tess. É um dos seus. Ficou de boca aberta, o corpo rígido. O seu olhar horrorizado saltou da fotografia para o corpo de Avery Winslow. Ficou a olhar, uma tempestade a preparar-se para se desencadear nos seus olhos. ― Desculpem, tenho de ir. ― Deu meia-volta e saiu. Murphy ia sair atrás dela, mas Aidan fez-lhe sinal de que ficasse e tirou as luvas. ― Deixa estar, vou eu. ― Ela tinha-se encaminhado para a porta de saída. ― Espere, Dr.a Ciccotelli. ― Ela começou a descer as escadas, com o rosto firmemente levantado. Ele passou a porta e seguiu-a. Do cimo das escadas via apenas o alto da cabeça dela. ― Dr.a Ciccotelli, pare. Ela hesitou um breve momento, quase imperceptível, e depois lançouse ainda mais depressa que antes, agarrada ao corrimão para não cair. Tess corria. Os degraus eram pouco mais que uma mancha aos seus pés. Reagan não tinha desistido. Sentia os passos dele no seu encalço, cada vez mais fortes. Mas não conseguia parar, não conseguia sequer respirar. Precisava de um minuto. Precisava apenas de um minuto, para recuperar o fôlego e para se recompor um pouco. "Aquela fotografia... meu Deus. Quem teria sido capaz de fazer uma coisa daquelas? Quem teria sido cruel àquele ponto?" Aquela fotografia... aquela obscenidade hedionda chegara num envelope dos dela. "Com o meu nome timbrado no remetente." Avery abrira-o porque tinha confiança nela. Sentiu um aperto na garganta. O que ele devia ter pensado... sentido. "A dor de ver o filho assim... e pensou que tinha sido eu a mandar-lha." E depois pusera o cano da arma na boca e puxara o gatilho. Ele estava morto. Avery estava morto. Por muito mau que isso fosse, o


quadro geral era bem pior. Ainda uma hora atrás podia dizer a si própria que não tinha culpa nenhuma, que fora apenas um instrumento nas mãos de alguém que queria atingir Cynthia Adams, que queria matá-la. Agora já tinha a certeza que isso não era assim. Agora sabia que Cynthia e Avery é que tinham sido os instrumentos. O verdadeiro alvo... "Sou eu." Duas pessoas inocentes tinham morrido. "Por minha causa." 104 Ia-se arrastando, com a respiração entrecortada pelos soluços, até que parou abruptamente, encostada ao corrimão, enquanto o coração parecia bater-lhe nos ouvidos e as pernas cediam sob o peso do corpo. Deixou-se escorregar até ficar sentada num degrau, a respirar com cada vez mais dificuldade. O ruído dos passos de Reagan abrandou e por fim parou. Ele estava mesmo atrás dela. Nesse momento, o único ruído nas escadas era o da sua própria respiração entrecortada. ― Tess ― disse ele. E nada mais. Apenas o nome dela. Contudo, o seu nome dito assim, numa única sílaba, pareceu ficar a pairar entre os dois, a pulsar com vida própria. Tess fixou os olhos na parede em frente. ― Não tenciono sair da cidade ― disse ela, e pôs-se de pé. ― Tem a minha palavra. E tenciono cooperar de todas as formas ao meu alcance. Com gestos pouco firmes, começou de novo a andar. Quando ele lhe passou à frente, ela já tinha descido mais meio lanço de degraus. Ele parou no patamar, bloqueando-lhe o caminho com o corpo enorme. Tess deteve-se no último degrau, com os joelhos a tremerem. "Ele não pode prender-te", disse a si mesma. "Não fizeste nada de mal." No entanto, sabia que se ele quisesse podia fazê-lo e ela não poderia fazer nada para o impedir. ― Desculpe, detective ― disse, e apercebeu-se de que a voz lhe tremia. Amaldiçoou a sua fraqueza e o seu medo. Aquilo devia ter a ver com Avery e Cynthia, mas era suficientemente pragmática para admitir que não fosse. Tinha a ver com ela. ― Sei que andou toda a tarde a tentar contactar-me. Descobriu alguma coisa? Aidan Reagan estava tão próximo que ela conseguia sentir a respiração dele contra o seu rosto. Ele era forte e sólido, os seus olhos eram penetrantes e orgulhosos, mas mesmo assim conseguiu ver que ali também havia compaixão. Por Cynthia. Por Avery. E por momentos deixou-se levar pela fantasia e imaginou o que seria receber a protecção dele em vez do seu ataque e da sua acusação. O momento foi passageiro.


― Descobrimos três floristas que venderam lírios a uma mulher jovem no sábado ― disse Aidan com voz sombria. ― Pagou com cartão de crédito, em todos os casos. Tess nem precisou de perguntar. Já sabia. Reunindo toda a sua coragem, levantou os olhos para ele. Estavam sérios, mas não lhe pareceram acusadores. 105 ― Com o meu cartão ― disse, como se se limitasse a verificar uma coisa óbvia. ― Sim ― confirmou ele, com um aceno de cabeça. Ela cerrou os lábios. ― Não fui eu que fiz isto, detective. Nada disto ― olhou noutra direcção. ― Não estou à espera que acredite em mim. ― Eu próprio não esperava acreditar em si. Surpreendida, Tess olhou para o rosto sério dele e o seu pulso voltou a acelerar loucamente. ― O detective acredita em mim? As sobrancelhas dele uniram-se sobre os olhos, como se o percurso que o levara ali fosse um mistério absoluto. ― Acredito. ― Nesse caso... ― Quase teve medo de pronunciar as palavras em voz alta. ― Nesse caso não me vai prender? ― Não. ― Reagan apoiou-se ao corrimão e recuou um passo no patamar, os olhos intensos perturbados. ― Mas preciso de perceber porquê a si. ― Não sei. Ao princípio, pensei que tinha sido apenas um instrumento, mas pelos vistos não fui. ― Esta manhã convenci-me de que o alvo era a Dr.a Ciccotelli, mas só agora tive a certeza. Ela abanou a cabeça com rapidez, intrigada. ― Esta manhã porquê? Que aconteceu? Ele olhou noutra direcção por alguns segundos. Quando olhou de novo para ela os seus olhos pareciam rendidos. ― Ontem à tarde pedi uma lista de casos em que a Dr.a Ciccotelli testemunhou a pedido da acusação. Eram muitos, era muita gente que tinha a ganhar com pô-la em causa. Devo-lhe um pedido de desculpas, Dr.a Ciccotelli. Eu não tinha razão. A maneira como usara de novo o título dela voltara a erguer o muro entre os dois. Mesmo assim, uma atitude formal era dez vezes melhor que uma atitude acusadora. ― Obrigada. ― Agora temos de decidir em que direcção prosseguir as investigações. ― Reagan olhou para o relógio. ―Já saí há muito tempo. Tenho de voltar para cima e acabar de analisar o lugar do


crime. Suba comigo e depois pode descer de elevador. Tess acenou que sim, com um aperto no estômago só de pensar. 106 ― Não vale a pena. Eu subo pelas escadas. O olhar dele mostrava o pensamento de que ela era meio louca. ― São nove andares. Nove ou dezanove pouco interessava. Tess só andava de elevador quando não podia mesmo deixar de ser, o que, em geral, significava acima do vigésimo andar. No seu estado, nesse momento, nem sequer conseguia imaginar-se fechada numa caixa de dois metros por dois, nem que fosse só por nove andares. ― Já desci um andar e meio, por isso já são só sete andares e meio. Suba e acabe o seu trabalho, detective. É o mínimo que podemos fazer por Avery Winslow. Eu fico bem. Quando tiver tempo para falar comigo telefone-me. Eu vou rever as minhas avaliações em tribunal. Talvez consiga isolar um ou dois nomes mais interessantes. ― Olhou para baixo, mas depois levantou de novo os olhos para ele. ― E obrigada por acreditar em mim, detective. Ele acenou numa retribuição da amabilidade dela e subiu dois andares enquanto ela descia outros dois. Um pressentimento fê-la olhar de novo para cima, apenas para ver que ele tinha parado e ficara a olhála. A boca dele era uma linha direita e os seus olhos azuis brilhantes estavam concentrados no rosto dela, que enrubesceu por se saber sujeito a escrutínio. Não era o olhar acusador de antes, mas a nova expressão era igualmente intensa. O pulso dela acelerou. ― De nada, Dr.a Ciccotelli ― respondeu ele por fim, num tom sóbrio. Depois subiu os degraus dois a dois e menos de um minuto mais tarde a porta acima dela abriu-se e voltou a fechar-se. O barulho ficou a ecoar pelas escadas. Tess deixou sair uma lufada de ar dos pulmões, com um sentimento de alívio. O detective Aidan Reagan era um homem másculo e poderoso. Sentiu a pele arrepiada com os efeitos do longo olhar dele, que nem sequer tentou classificar. "Basta que fiques agradecida por ele não tencionar prender-te, Tess", disse a si própria. Continuou a descer as escadas, aliviada e com o peso da culpa a oprimi-la ao mesmo tempo. Não ia ser presa. O facto não impedia que duas pessoas estivessem mortas. Isso já não poderia mudar. Ainda com as pernas enfraquecidas e com o sentimento de alívio recente a dominá-la, desceu os restantes sete andares. Saiu no patamar do átrio quando Amy vinha a sair do elevador, com o casaco de Tess no braço. Os olhos da amiga olharam-na fixamente. 107 ― Que aconteceu lá em cima? Só agora é que consegui estacionar e


subi para ir ter contigo, mas nem sequer me deixaram sair do elevador. Havia um ranhoso de um guarda à porta do apartamento que me disse que o detective Reagan tinha descido atrás de ti pelas escadas abaixo. Pensei que tinha de te ir buscar outra vez à esquadra. ― Não, não foi por isso que ele veio atrás de mim. O Avery Winslow morreu. ― Até aí ainda percebi ― disse Amy. ― Há polícias de uniforme e técnicos da polícia científica por toda a parte. ― Havia outra fotografia ― disse Tess, e bastou pensar nela para sentir o estômago às voltas. ― Tinha vindo num envelope do meu escritório, Amy. As sobrancelhas de Amy uniram-se numa só linha. ― Isso não é nada bom, mas qualquer um podia ter roubado um envelope. Não é o fim do mundo. ― Para Avery Winslow é. ― Não foste tu que o levaste à morte nem podes fazer nada para modificar o que lhe aconteceu. Toma o teu casaco. Vou levar-te a casa. Tess pegou-lhe com um sorriso leve de gratidão. Tinha saído do carro de Amy um quarteirão antes do prédio de apartamentos onde vivia Winslow e deixara o casaco no banco de trás. ― Obrigada. A única coisa boa em tudo isto é que o detective Reagan sabe que não fui eu. ― Sabe? Não me digas! E o detective dos detectives concedeu-te essa informação? Tess mudou de posição, pouco à vontade com o tom trocista de Amy. ― Sim, disse-me isso. Pouco faltou à risada de Amy para ser um esgar de desprezo. ― E tu acreditaste nele? ― Acreditei ― confirmou Tess com um aceno. ―- Por amor de Deus, Tess, não sejas parva. ― Não sou ― respondeu Tess, um pouco ofendida, endireitando-se. Amy empurrou a porta principal do edifício e saíram para a rua. -― Se acreditares em tudo o que os polícias te disserem, és parva, sim. O meu carro está estacionado a dois quarteirões daqui. ― Amy estudou o rosto de Tess com uma expressão crítica. ― Estás muito pálida. Queres ficar aqui enquanto eu vou buscar o carro? 108 Tess abanou negativamente a cabeça, ainda incomodada com o insulto. ― O passeio vai fazer-me bem. Amy encolheu os ombros e começou a andar. ― Como queiras. Desculpa ter-te chamado idiota, mas estás a deixarme assustada. Os polícias querem que confies neles. Faz parte da maneira de trabalhar daquela gente. O detective Reagan tem uns


olhos azuis incríveis, e tenho a certeza que transmitem uma sinceridade inquestionável, mas a verdade é que ele é polícia. E os polícias mentem para levar as pessoas a confessarem ― concluiu Amy com um olhar penetrante. ― Falaste com ele nas escadas, não falaste? ― A única coisa que eu lhe disse foi que não tinha sido eu ― respondeu Tess, sem deixar de olhar em frente. ― E ele perguntou-te se podiam encontrar-se mais tarde para conversarem... ― Na verdade, fui eu que me ofereci para o fazer ― ripostou Tess, de queixo erguido, inquieta com o ataque verbal de Amy. O riso trocista de Amy pareceu-lhe uma agressão. ― Quanto é que eu disse que te cobrava? Acho que vou cobrar o dobro. Tess sentiu-se a ranger os dentes, mas não respondeu. Amy bufou cheia de impaciência. ― Agora estás furiosa comigo porque sou eu a única a dizer-te a verdade. Tess, não confies na polícia. O Reagan vai olhar para ti com os belos olhos pestanudos e atirar-te com aquele sorriso de estrela de cinema para te levar a contares-lhe tudo. E não sei se sabes, querida, mas tudo o que disseres pode ser usado contra ti e vai sê-lo. Não me arranjes mais sarilhos. Vê se calas essa boca; isso basta para não haver problema nenhum. Não fales com detectives sem a presença da tua advogada. A última vez que me informei, a tua advogada era eu. Tenho a tua palavra? Tess enfiou as mãos mais profundamente nos bolsos, sem perceber o que a irritava mais ― se o ultimato de Amy, se a sua falta de confiança na sua própria capacidade de avaliar o carácter das pessoas. "Até parece que não sou psiquiatra...", pensou ela, sardonicamente. Trabalhar com a polícia não lhe parecia um erro. Podia mesmo ser a sua única hipótese de acabar com tudo aquilo antes que mais alguém morresse. ― E se eu responder que não, doutora Miller? Amy parou no meio do passeio, obrigando Tess a fazer o mesmo. A amiga não estava a brincar. O seu ar era o mais sério possível. Os seus olhos eram cortantes como lâminas e o rosto estava vermelho de fúria. 109 ― Nesse caso terá de arranjar outra advogada, Dr.a Ciccotelli, porque eu não estou na disposição de a representar. Dito isto, continuou a andar, deixando Tess parada no passeio, de boca aberta, a vê-la afastar-se. Quando a advogada desapareceu no meio da multidão, Tess lembrou-se que fora a segunda vez no espaço de uma hora que alguém a tratara por "doutora" num tom maldoso. A primeira fora o polícia de uniforme de guarda à porta, que a agarrara com tanta força que o mais certo era ter-lhe deixado algumas nódoas


negras. Mas Aidan Reagan impusera-lhe respeito. Tinha-lhe dito que tirasse as mãos de cima dela, e não o tinha dito com bons modos. Reagan tinha-a defendido. No entanto, disse a si mesma, isso era da natureza dele. Parecia ser a maneira como a psique dele estava montada. De repente, lembrou-se que as suas opções para chegar a casa não eram as melhores. Amy já se tinha afastado há muito e Tess não conseguiria apanhá-la mesmo que começasse a correr atrás dela, coisa que não faria. Além disso, tinha saído do escritório sem a pasta nem a mala. Tinha um dólar e cinquenta cêntimos em moedas no bolso, um lenço de algodão e o telemóvel. "Se eu estivesse em Filadélfia, podia ligar ao Vito e ele vinha sem pestanejar." A ideia foi tão inesperada que a fez pestanejar. E cerrar os dentes com força. A sua terra passara a ser Chicago, e não um bairro em Filadélfia sul. E o seu irmão Vito estava a centenas de quilómetros de distância. "Sinto a falta dele." Conseguiu admitir para si própria. "Sinto a falta deles todos." Tinha a certeza que Vito viria se ela lhe telefonasse, mas isso ia criar-lhe problemas com o pai e ela não queria que isso acontecesse. Já se tivesse mesmo sido presa... "Sim, nesse caso teria chamado Vito." Mas não fora, por isso nunca teria a certeza. Jon estava quase de certeza na sala de operações e Denise já devia ter saído. Voltou a olhar para o edifício onde vivia Avery. Eles ainda lá estavam, Murphy e Reagan. E também o que sobrava de Avery Winslow. Fechou os olhos tentando recuperar a memória e abriu-os de novo rapidamente depois de ver as imagens que pareciam projectar-se do lado de dentro das pálpebras. Avery caído, com metade da cabeça desfeita. Cynthia e o seu corpo esventrado. E o som da sua própria voz atraindo Cynthia para a morte. Aquelas imagens nunca a abandonariam. Não podia voltar a subir. Não poderia voltar a enfrentar tudo aquilo. Por outro lado, e por muito que isso a irritasse, o aviso de Amy não lhe saía da cabeça. Reagan era boa pessoa e um bom polícia. Fora o que 110 dissera Murphy. No entanto, Murphy deixara que ela fosse levada para a esquadra e encostada à parede. Como é evidente, percebia que ele estava a fazer o seu trabalho, mas continuava magoada. Além disso, o episódio ilustrava a facilidade com que a confiança de um polícia podia ser retirada. Estava decidida a ajudar Reagan e Murphy, mas com reservas. De momento, apenas precisava de um sítio para se sentar e fugir ao frio. Olhou à sua volta, a avaliar a situação. Estava a apenas meia dúzia de quarteirões do Blue Lemon, um sítio onde sabia que seria sempre bem recebida, mesmo sem um centavo na carteira. Segunda-feira, 13 de Março, 16.45


Joanna passou à frente de uma senhora que passeava o seu cão, murmurando um pedido de desculpas ao passar. Tess Ciccotelli, como todas as outras pessoas que se encontravam na rua naquele momento, levava a cabeça inclinada contra a chuva e o vento. Parecia de propósito para lhe facilitar a tarefa de a seguir. Andara no seu encalço toda a tarde e já descobrira que outro dos doentes de Ciccotelli morrera. Só isso já daria outra história e uma primeira página. Assinada por Cy Bremin. "Só por cima do meu cadáver." Enfim, sem trocadilhos... Semicerrou os olhos, tentando fixar melhor o objecto das suas atenções, que acabava de dobrar uma esquina e se dirigia para oeste. Precisava da exclusividade para se assegurar de que Schmidt não dava a história dela a Bremin. Precisava de acesso livre a Tess Ciccotelli. Tudo indicava que seria possível satisfazer o seu desejo. Numa jogada que deixara Joanna perplexa, Ciccotelli despedira a sua advogada de defesa. Ali mesmo à frente dos seus olhos, no meio da rua. E tudo porque a psiquiatra queria realmente colaborar com a polícia. Pessoalmente, Joanna estava de acordo com a advogada. A Ciccotelli era uma idiota. Ou, e isso era um elemento a ter em conta, talvez ela não tivesse realmente feito nada de mal e tudo aquilo não passasse de uma armadilha. De resto, pouco lhe importava qual das teorias estava correcta, desde que o artigo viesse assinado "Joanna Carmichael". CAPÍTULO 7 Segunda-feira, 13 de Março, 16.45 Aidan voltou precisamente na altura em que Johnson, o técnico do Departamento Médico-Legal, estava a fechar o saco onde tinha metido Winslow. Afastou-se para deixar passar a maca e foi pôr-se ao lado de Murphy. ― Ela ficou bem ― disse Aidan em voz baixa. ― Falei-lhe nos cartões de crédito. Não foi preciso dizer-lhe que eram dela. Ela percebeu logo. ― Spinnelli ligou-me enquanto estavas a falar com Tess. ― Murphy mostrou-lhe o bloco de apontamentos, onde tinha rabiscado o endereço de um centro de apartados do lado oposto da cidade. ― Disse que o endereço do cartão de crédito é este lugar. Estão abertos até às seis. ― É à justa, mas ainda conseguimos chegar ― disse Aidan, com um olhar de relance ao relógio. ― Spinnelli também disse que tinha notícias de Patrick. Tanto quanto sabe, já há cinco advogados a tratar dos apelos. ― Merda. ― Nem mais ― concordou Murphy. ― Onde está a Tess? ― Disse-me que ia para casa, começar a estudar as peritagens antigas


em tribunal. Eu disse-lhe que lhe ligávamos mais tarde. ― Murphy! ― Jack apareceu do corredor que levava aos quartos e fezlhes um gesto de que se aproximassem. ― Tu também, Aidan. Venham cá. Quero que vejam isto. Foram atrás de Jack até ao sítio onde fora o quarto do filho de Winslow. O berço continuava ao canto e a mesa de mudar as fraldas também estava no sítio onde provavelmente sempre estivera, com as fraldas descartáveis e o pó de talco. Tudo estava coberto por uma camada 112 espessa de pó. Um dos homens de Jack estava empoleirado num banco com a cabeça enfiada numa conduta de ventilação, cuja tampa estava aberta para trás, encostada à parede. ― Este é o Rick Simms. Mostra-lhes o que encontraste, Rick. Simms voltou-se e entre o polegar e o indicador tinha uma pequena caixa preta, com dois centímetros de comprimento por um de espessura. Aidan subiu para um dos cantos do banco para ver melhor. Um cabo com uma ligação USB estava conectado ao pequeno objecto, de maneira que Aidan percebeu o que Rick Simms encontrara. Olhou para Murphy, ao mesmo tempo surpreendido e furioso, surpreendido sobretudo por ainda conseguir sentir o que quer que fosse depois do que vira essa tarde. ― É uma câmara. ― Bom olho ― disse Rick. ― É uma câmara sem fios, de alta resolução. ― Revirou o objecto na mão. ― E capaz de transmitir som. Aqui está o microfone. ― O filho-da-mãe gosta de ver ― murmurou Murphy. ― Como é que a descobriste aí? ― O Rick viu que não havia pó na tampa desta conduta ― disse Jack, deixando transparecer na voz uma ponta de orgulho. ― Bom trabalho. O rosto de Rick iluminou-se num sorriso. ― Obrigado. ― Quantas câmaras haverá aqui? ― perguntou Aidan, descendo do banco. ― Também pensámos nisso ― disse Jack, conduzindo-os à sala de estar. ― Eles não haviam de querer perder o grand fim de ― disse ele, e apontou para a conduta de ventilação que ficava por cima da secretária, nesse momento já vazia, visto que o computador fora levado para o laboratório. ― Experimenta aquela. Rick fez uma careta e estendeu os braços para alcançar a tampa da conduta, salpicada de sangue e tecidos do cérebro. ― Céus! Isto tem mesmo mau aspecto, Jack. Jack riu-se com secura. ― Só te faz bem sujares as mãos de vez em quando, para variar. O Rick é um dos peritos de electrónica da unidade ― explicou a Aidan. ―


Costuma trabalhar no laboratório, mas hoje trouxe toda a gente comigo. Rick entregou a tampa da conduta de ventilação a Jack, que a pôs de lado com cuidado. 113 ― Tinhas razão ― disse Rick. ― Outra câmara, com um microfone e ― Com a lanterna iluminou o interior da conduta e depois voltou-se para trás, perturbado. ― E um altifalante montado para o lado de dentro. ― Soltou-o para os outros poderem vê-lo. Era uma pequena caixa, do tamanho de uma ameixa. ― Para quê um altifalante? ― Enquanto estavas a falar com a Tess apareceu aqui uma vizinha, Aidan ― disse Murphy. ― Disse que ouvia um bebé a chorar todo dia. Pensei que ele pudesse estar a ver um vídeo, mas agora já percebemos. Rick olhou com repugnância para o objecto que tinha na mão. ― Estamos a lidar com um tarado. ― Para onde segue a imagem do vídeo? ― perguntou Aidan. ― Vou ter de procurar o receptor ― disse Rick ― mas quase jurava que ia para a Ethernet, e depois... ― fez um gesto vago com a mão ― sabe-se lá para onde. Murphy pestanejou: ― Para a Ethernet...? ― É uma maneira de entrar na Internet ― murmurou Aidan, a pensar nas implicações de tudo aquilo. Rick concordou. ― Num stream de vídeo. E a última moda. Tenho visto muitas montadas no chão a apontar para cima ou mesmo em sapatos para os tarados espreitarem por baixo das saias das mulheres. Esta foi feita especialmente para vigilância. Murphy abanava a cabeça. ― Sendo assim, isto está na Internet?! ― repetiu. ― Num site ou coisa que o valha? Estás a dizer-nos que qualquer um podia ter visto o Winslow a rebentar com os miolos?! ― É possível ― respondeu Rick com um encolher de ombros. ― Tudo depende do que o teu criminoso tenha querido fazer. Se o espectáculo for privado, não aparece numa pesquisa qualquer num motor de busca ― explicou. ― Mas se não for... Aidan sentiu um aperto no estômago quando percebeu o que Rick estava a querer dizer. ― Por amor de Deus! Uma espécie de paj-per-vien? ― Olhou para Murphy e percebeu que este tinha chegado à mesma conclusão. ― Snuff movies para o século vinte e um ― disse Murphy, com um espasmo involuntário num músculo do seu maxilar. ― Isto é inacreditável.


― Tens alguma ideia de quanto tempo isso aí esteve? ― perguntou Aidan. 114 Jack pôs-se de joelhos para inspeccionar a tampa do ventilador. ― No ventilador propriamente dito há pó, mas nos parafusos não. Uma semana ou duas... ― Sendo assim, temos de descobrir quem teve acesso a este apartamento nas duas últimas semanas ― disse Murphy. ― De que tipo de pessoa andamos à procura? De alguém que precisasse de ferramentas especiais? Rick desceu do banco. ― Francamente, qualquer adolescente que perceba um pouco de computadores podia ter feito isto. Aidan suspirou com ar cansado. ― Jack, temos de verificar se há dispositivos do mesmo tipo no apartamento de Cynthia Adams. Jack olhou para Rick. ― Achas que consegues fazer isso hoje à noite? Rick acenou afirmativamente. ― Para apanhar este estupor? Sem dúvida. ― Nós temos de ir investigar uma pista relacionada com as flores no apartamento de Cynthia Adams ― disse Murphy. ― Podes acabar isto sozinho, Jack? Jack fez-lhes sinal de que podiam sair. ― Vão. Podemos encontrar-nos no gabinete do Spinnelli às oito. Dizlhe que mande vir comida chinesa. Hoje vamos sair tarde. Segunda-feira, 13 de Março, 8.30 Ela ainda ali estava. Sentada à mesa da sala de jantar, com um robe de seda vermelho e peúgas brancas grossas, meio copo de vinho tinto à frente, estudava vários dossiês. Ainda ali estava. E não onde devia estar ― assustada numa cela, rodeada de escumalha, de gente que nunca tomava banho, à espera de um dos ditos amigos que a tirassem dali ou de comparecer perante um juiz. Mas a paciência era uma virtude. E o rosto de Ciccotelli começava a dar mostras de tensão. A mão tremia-lhe quando pegava no copo de vinho e uma vez por outra um olhar de puro horror parecia dominarlhe o rosto pálido e os olhos sem brilho. Eram os momentos em que recordava o aspecto dos corpos. Estava a pensar no que teriam sentido antes de morrerem, se os teria traído. Estava a pensar quem viria a seguir. 115 De momento teria de ser tudo. Quanto aos polícias, mesmo que se empenhassem com todos os


recursos, já teriam muita sorte se conseguissem encontrar os próprios traseiros. Por fim, dariam com os registos financeiros das vítimas e acabariam por encontrar os pregos que fechariam a tampa do bonito caixão da Ciccotelli. Até lá, ainda havia a questão da Ordem dos Médicos. Esses tinham aparecido antes do esperado, graças ao artigo de primeira página de Cy Bremin. Que interessante tudo aquilo... Valia bem a pena ouvir outra vez. Um clique do rato no ficheiro de som trouxe a voz do Dr. Fenwick de novo à vida. "A direcção da Ordem considera estas alegações ao mesmo tempo sérias e inaceitáveis." O quê?! A sério? Ao mesmo tempo sérias e inaceitáveis... Era um dos comentários mais estúpidos que o microfone tinha registado durante as semanas que passara escondido num armário no escritório da Ciccotelli. A direcção da Ordem não tinha nada contra a Ciccotelli e todos os presentes o sabiam. Fenwick, Ciccotelli e a advogada dela, que pusera fim às ameaças do velho estúpido com a maior facilidade. Contudo, a visita, em si, lançara fundações sobre as quais seria possível construir. O autoritário Dr. Fenwick acharia provavelmente a morte de Mr. Avery Winslow ainda mais séria e menos aceitável. Já eram dois pontos. O terceiro tiro seria apontado à direcção da Ordem, e não à polícia. Não era a vingança perfeita, mas servia para evitar o aborrecimento enquanto a polícia ia fazendo o seu trabalho. E acima de tudo seria um espectáculo muito divertido. Segunda-feira, 13 de Março, 8.30 ― E então? Spinnelli estava sentado à cabeceira da mesa, a vê-lo comer de sobrolho carregado. À volta da mesa estavam sentados Aidan, Murphy, Jack, Rick e Patrick, que o tinha informado em tom lúgubre de que o número de apelos já subira para oito. ― Dá-nos um minuto para comer, Marc ― protestou Jack. ― Desde a hora de almoço que não como nada. ― Nós não almoçámos ― resmungou Aidan. Tinham andado demasiado ocupados com as floristas. ― Mas enquanto comemos podemos mostrar-te umas imagens de vídeo. ― Pôs-se de pé e agarrou no disco que tinham retirado da câmara de segurança da loja de apartados 116 e depois pegou no seu pacote de comida chinesa, o que despertou um olhar guloso de Murphy. ― Não era preciso ir tão atrás. ― Inseriu o disco, carregou no play e recuou de maneira que o grupo pudesse ver o ecrã de televisão. ― Isto foi na última quinta-feira à tarde. Uma mulher apareceu na imagem. Usava um casaco de cabedal. O cabelo preto caía-lhe em caracóis sobre os ombros. Era mais ou menos da mesma altura que Tess Ciccotelli, mas o casaco disfarçava a sua figura.


A mulher parecia ser de ascendência latina. O seu rosto, embora ligeiramente mais fino que o de Ciccotelli, era suficientemente parecido para poder passar pelo de uma italiana na memória de um empregado de balcão apressado ou na imagem de má qualidade do filme de segurança de uma loja. ― A Tess tem um casaco da mesma cor ― disse Murphy. ― Esta parte realmente deixou-me nervoso ― acrescentou ele. ― Vejam como ela abre o casaco apenas o suficiente para mostrar o lenço à volta do pescoço. A mulher que fez isto queria ter a certeza que o empregado o via porque a Tess anda sempre com um. "A não ser que ande com uma camisola de gola alta que se ajuste ao corpo dela como uma segunda pele", pensou Aidan, que, em seguida, se esforçou por afastar o mais possível essa imagem mental. Spinnelli acenou afirmativamente. ― Sim, por causa da cicatriz do ataque do ano passado. A segunda imagem que Aidan teve de se esforçar por pôr de lado foi a das suas próprias mãos à volta do pescoço do tipo que quase a tinha matado. ― Raios ― murmurou Patrick, concentrando-se ainda mais no ecrã. ― Parece mesmo ela. ― Nem pensar! Não se parece nada com a Tess! ― protestou Murphy. ― Estás a ficar ceguinho ou quê? Patrick negou com a cabeça. ― Não, não estou a ficar ceguinho, mas um juiz pode ver aqui uma semelhança suficiente para deixar estes apelos seguirem em frente. Especialmente se juntarmos a isto todas as outras provas que se estão a amontoar. Sem motivo, não temos o suficiente para a acusar ― acrescentou ― mas o que há é mais que suficiente para lançar suspeitas. Merda. Isto não é nada bom. Aidan estava a ver a mulher encaminhar-se para o apartado dela, inclinar-se e inserir a chave. 117 ― Só uma pessoa que não estivesse boa da cabeça podia pensar que é ela. Esta mulher anda de uma maneira muito diferente de Tess Ciccotelli. ― Não consigo imaginar-me a usar um argumento destes à frente de um juiz ― disse Patrick, com uma ponta de troça na voz. ― Por outro lado, tenho de conceder que não há muitas mulheres que andem como a Tess... Aidan olhou por cima do ombro para o sítio onde Patrick estava sentado. Tinha nos lábios uma espécie de sorriso, ou o mais próximo de um sorriso que estava ao seu alcance produzir. Murphy parecia extraordinariamente interessado no seu pacote de comida chinesa. Jack ria-se abertamente e Rick parecia ter vontade de fazer o mesmo.


Com o rosto a arder, Aidan revirou os olhos. ― O que eu queria dizer era... Não tem importância. O bigode de Spinnelli fez uma pequena dança. ― Todos sabemos o que tu queres dizer, Aidan. ― Spinnelli pigarreou, mais sério. ― Mas, independentemente da elegância do andar desta mulher, o Patrick tem razão. Ainda não provámos que não é a Tess. Conseguimos recolher algumas impressões digitais naquele apartado? ― Eu mando lá uma equipa, Marc ― disse Jack. ― Mas parece-me que ela nunca tirou as luvas. A mulher no vídeo meteu o correio, que tirou do apartado, na bolsa lateral da pasta que levava com ela. ― Acham que pode ser esta a mente por trás dos crimes? ― divagou Patrick. ― Não sei ― disse Aidan. ― Ela parece-me muito... não sei, nervosa. Agitada. Patrick encolheu os ombros. ― Se eu estivesse a pensar matar duas pessoas também era capaz de ficar agitado. Ela está muito exposta. Sabe que está a ser gravada e está a posar. Temos de descobrir quem é. Murphy cruzou os braços à frente do peito, de sobrolho carregado. ― Ela também aparecia no vídeo do átrio do edifício onde vivia a Cynthia Adams. O porteiro desligou a câmara à saída do elevador do piso desta, mas não a que filmava o elevador no átrio do edifício. Podemos descobrir se alguém a viu no apartamento de Winslow. Spinnelli espetou as unhas sob o queixo. ― E as câmaras que encontraste dentro dos apartamentos? Rick pôs de lado os restos do jantar. 118 ― No apartamento da Cynthia Adams encontrei um sistema de câmaras semelhante. Um por cima da cama dela e outro na sala. Também havia um na casa de banho ― acrescentou, intrigado. ― A primeira vez que tentou matar-se abriu os pulsos ― disse Aidan, tirando o disco de segurança da loja de apartados do leitor de vídeos. Depois sentou-se ao lado de Rick. ― Em geral, as pessoas fazem essas coisas na banheira. Talvez o nosso assassino estivesse a contar que ela tentasse outra vez da mesma maneira. ― Talvez. Seja como for, o sistema era semelhante nos dois apartamentos, com câmaras sem fios e altifalantes. Tinha sido tudo limpo e, além disso, a pessoa que os instalou limpou as tampas dos ventiladores e mesmo os ventiladores por dentro. E, antes que perguntes, seria quase impossível relacionar o equipamento com o local onde foi adquirido. São sistemas de vigilância demasiado genéricos. De boa qualidade. Podem comprar-se em qualquer loja de electrónica ou através da Internet. Há disto por toda a parte. Seria


como procurar agulha em palheiro. ― E as transmissões? ― perguntou Aidan. ― Não conseguimos apanhá-las? ― Desde que a transmissão continue activa, podemos tentar. A transmissão no apartamento de Cynthia Adams já não está activa, mas as câmaras no apartamento de Winslow continuam a transmitir. Eu encontrei o router para onde a câmara estava a enviar as imagens. Posso pôr um packet sniffer na rede e ler o endereço de IP para onde a informação está a ser encaminhada. Patrick pestanejou. ― Em inglês, Rick. ― Desculpa ― pediu Rick com uma risada. ― A informação transmitida através da Internet é dividida em pacotes, enviada para o endereço a que se destina e montada na ordem correcta no outro extremo do circuito. Os packet sniffers partem cada um dos pacotes nos seus componentes. Um deles é o endereço de IP, o sítio aonde se destinam. Quando as mensagens são transmitidas através da rede posso ler os endereços de IP no meu ecrã. No entanto, há aqui dois grandes problemas. O primeiro são vocês ― disse ele a Patrick. ― É como para pôr um telefone sob escuta. Nem pensar em fazer isto sem um mandado. ―Já calculava ― respondeu Patrick, a tamborilar os dedos na mesa. ― E o outro? ― Este é que é o verdadeiro problema. Depois de encontrar o endereço de IP não tenho a menor garantia de que é verdadeiro. Nenhum 119 hacker que se prezasse ia mandar estes ficheiros de vídeo para si mesmo. Em princípio, deve mandá-lo para um zumbi de computadores qualquer. Se for esperto, este manda-o para um segundo. ― Rick encolheu os ombros. ― Na altura em que eu tiver o verdadeiro endereço de IP, ainda tenho de o ligar a uma pessoa, e os fornecedores de acesso à Internet não são muito cooperadores. Isso significa pedir outro mandado. ― Sniffers e umbis ― resmungou Spinnelli. ― Quanto tempo demora tudo isso, Rick? ― Alguns dias, em princípio. Mas é melhor avisar já que muitos destes servidores são administrados a partir de empresas estrangeiras. Os mais espertos, pelo menos, é neles que se alojam. ― Isto parece-me tudo muito elaborado ― refilou Patrick. ― Se for no estrangeiro, é como dar com a cabeça numa parede de tijolo. Aidan esfregou as têmporas. ― Pelos vistos, tens feito muito disto, Rick. ― Infelizmente tenho. Uma das áreas em que estamos a trabalhar


mais neste momento é o crime virtual. No topo da lista vem a pornografia infantil. E os pedófilos sabem como funciona o sistema. Conseguem dar-nos a volta até ficarmos com a cabeça a andar à roda. E quando chegamos ao fim não ganhamos nada com isso porque eles já deram à sola e recomeçaram noutro sítio qualquer. Mas podem ter a certeza que eu vou fazer tudo o que for possível. ― A verdade é que não tens grande esperança... ― disse Aidan. Rick fez que não com um aceno. ― Não. Gostava de dizer o contrário, mas não tenho. Patrick soprou todo o ar dos pulmões. ― De momento não temos mais nada por onde começar. Daqui a menos de uma hora já te trago o mandado, Rick. Volta para o apartamento do Winslow e espera. Rick pegou nas coisas dele e despediu-se. ― Obrigado pelo jantar, tenente. Ah, e mais uma coisa. O vosso homem desligou as câmaras do apartamento de Cynthia Adams. Em breve deve fazer o mesmo às do apartamento de Avery Winslow. Quando isso acontecer ficamos sem nada. Quando Rick saiu da sala, Spinnelli fez um ruído de frustração. ― Ele é sempre assim optimista? Jack encolheu os ombros. ― O trabalho dele é sobretudo dar caça a vendedores de pornografia infantil. Achas que isso é coisa para deixar um homem optimista? 120 Patrick afastou-se da mesa. ― Tenho de ir tratar do mandado ― disse ele. ― Vão-me mantendo a par. Marc, chama-me assim que tiveres alguma coisa que me sirva para refutar isto e para me ver livre daqueles malditos apelos. Quando o procurador saiu, Spinnelli olhou para Aidan, Murphy e Jack, com um olhar cansado. ― Podemos tentar provar que não é a Tess, ou então podemos procurar descobrir quem está por trás disto. Até agora, a primeira possibilidade não está a correr muito bem, por isso talvez seja melhor concentrarmo-nos na segunda. Quem é que podia servir para este papel? Murphy olhou para Aidan. ― Pensámos que podia ficar para um dos amantes coléricos da Cynthia Adams, mas depois do caso Winslow já não faz sentido pedir para verificar os arquivos do Departamento de Saúde. ― Também me parece ― concordou Aidan. ― Tens razão. Neste momento temos duas opções diferentes. Opção A, alguém quer desacreditar Tess Ciccotelli. ― Porquê? ― perguntou Spinnelli. ― Que motivo pode haver para isso? Isto parece-me muito rebuscado. Tinha de ser alguém com uma razão de queixa terrível e inteligência para montar todo este esquema.


A maior parte das pessoas que ela avaliou não são suficientemente inteligentes para tanto. ― Um apelo é um bom motivo ― disse Murphy. ― E estas pessoas têm famílias. Aidan tirou a lista dos casos de tribunal do bloco de apontamentos. ― Nesse caso temos de voltar a um dos nomes da lista. Ainda não tive tempo para os verificar, mas a Tess disse que ia estudar os dossiês antigos hoje à noite. Talvez já tenha descoberto alguma coisa. ― Ficou a olhar para a página impressa e depois abanou a cabeça, ainda perturbado pelo que Rick Simms tinha dito. ― Mas há uma opção B, que está a martelar-me a cabeça. E se não se tratar de um alvo pessoal? E se alguém tiver descoberto que ela é uma boa fonte de pessoas que podem ser levadas a suicidar-se? A especialidade dela são pessoas que já tentaram suicidar-se. E se alguém andar a escolher pessoas da lista de pacientes dela e a persegui-los, pressioná-los e atormentá-los com a própria culpa até os levar ao suicídio? ― Para depois registar tudo em ficheiros de imagem ― concluiu Jack num tom de voz sombrio. Spinnelli não pareceu convencido. 121 ― Parece-me muito complicado. ― Uma pessoa que goste do que faz, Marc ― disse Aidan num tom um pouco agressivo. ― E havendo um público disposto a pagar o preço... O motivo podia ser a simples ganância. ― Não há nada simples neste caso ― disse Spinnelli. ― Mas percebi a tua ideia, Aidan. Já todos lidámos com sociopatas que nem pestanejam antes de fazer outra pessoa sofrer por dinheiro. Mas de que tipo de pessoa estaremos a falar aqui? ― Se a Tess for apenas um instrumento e os doentes dela forem o verdadeiro objectivo... ― disse Aidan com um encolher de ombros. ― Nesse caso não temos nenhuma ligação. Podemos estar a falar de qualquer pessoa. Spinnelli soltou um suspiro profundo. ― Tu és tão optimista como o Rick Simms. Dêem-me alguma boa notícia, antes que seja eu a matar-me. Jack pôs uma folha de papel no centro da mesa. ― Quando vinha para aqui passei pelo gabinete da Julia e ela já tinha a análise toxicológica do Winslow. ― Julia Vanderbeck, a médicalegista, também era mulher de Jack. ― Encontrou fenciclidina no sangue dele, como na Adams ― concluiu Jack. ― Os comprimidos foram trocados? ― perguntou Murphy, e Jack concordou. ― Sim, e o nome de Tess estava no frasco de Xanax, que também tinha impressões digitais dela, como aconteceu no caso da Cynthia


Adams. Spinnelli suspirou de novo. ― Eu tinha dito boas notícias, Jack. ― Tem paciência, Marc. O que estava do lado de fora do frasco não é tão interessante como o que estava lá dentro. Fiz uma análise espectroscópica ao resíduo que se encontrava no fundo do frasco. Era quase só pó que lá tinha ficado. A olho nu praticamente não se via. O mais interessante é que não era Xanax nem fenciclidina. Era Soma. A Julia diz que é um relaxante muscular. E aparece nos dois frascos. Spinnelli acenou devagar. ― Nesse caso alguém reutilizou os frascos. ― Como as impressões digitais dela estão lá, talvez os frascos lhe tenham realmente pertencido ― disse Murphy. ― Só que isso não a iliba, Jack. Na verdade, torna tudo mais grave. -― A não ser que tenham sido roubados ― disse Jack, erguendo uma sobrancelha. 122 Spinnelli abanou a cabeça. ― São demasiados "ses". Descubram se a Tess alguma vez tomou Soma e quando. Juntamos a informação ao resto dos "ses". Descobriste mais alguma coisa, Jack? ― Estamos a ver se descobrimos quanto tempo a boneca esteve no forno com base no que derreteu. Além disso, aspirámos os dois apartamentos. Estamos à procura de fibras comuns para ver se conseguimos provar que o autor dos crimes esteve nos dois locais. ― Partindo do princípio de que se trata de apenas um ― disse Aidan. ― A Tess disse que a pessoa que telefonou hoje parecia diferente da de sábado à noite. Mais velha. ― Já tens os registos telefónicos dela? ― perguntou Spinnelli. ― Temos os do telefone de casa. A chamada de sábado à noite parece ter sido feita de um telemóvel anónimo. O de hoje foi feito para o escritório dela, de maneira que também já pedi esses registos. Quando viemos para aqui o relatório ainda não estava pronto. Quando chegar aviso-te. E os números de série das armas, Jack? ― Os meus homens não conseguiram o número da arma da Cynthia Adams, de maneira que acabei por mandá-la para o laboratório do FBI. O equipamento deles é melhor, mas demoram alguns dias a mandar os resultados. A do Winslow também já foi enviada. A história é a mesma. Tenho muita pena. ― Jack pôs mais um monte de folhas e de fotografias à frente de Spinnelli. ― Está aqui um inventário das coisas que tirámos dos dois apartamentos. O urso que o Avery Winslow tinha na mão é um modelo comum. Não tem nada de particular. Descobrimos ursos iguais no Wal-Mart e no Toys R'Us, por isso o mais certo é ser um beco sem saída.


Aidan inclinou-se para a frente, incomodado com a recordação do urso na mão do homem. ― Deixa-me ver as fotografias do urso. ― Quando Spinnelli lhas passou, Aidan abriu a pasta que tinha ido buscar ao arquivo, de caminho para a reunião dessa tarde. ― Raios! É especial, sim. Este é o relatório de polícia da morte do bebé dos Winslow. ― Tirou uma fotografia da pasta para que todos pudessem vê-la. Era uma vista mais ampla do local da morte, em que se via todo o banco de trás do carro. Do lado esquerdo estava um saco de fraldas e à direita um urso de pelúcia. ― É o que foi encontrado ao lado da cadeira do bebé no dia em que ele morreu. ― Filho-da-mãe. Não lhe escapa uma ― murmurou Murphy. Levantou os olhos das fotografias com a repugnância estampada no rosto. ― Tens o dossiê da Melanie Adams? 123 ― Tenho, pedi os dois. ― Aidan pôs a fotografia de polícia tirada no local da morte de Melanie no meio da mesa, enquanto Murphy procurava no monte uma cópia da fotografia que tinha encontrado no apartamento de Cynthia Adams. ― São iguais ― concluiu Murphy. ― A posição é a mesma, a roupa também. Os sapatos também. A única coisa diferente é o fundo. A do fotógrafo da polícia parece mais uniforme. Esta aqui ― disse, apontando para a nova fotografia ― é brilhante. ― Isto pode fazer-se com Photoshop ― disse Aidan, que em seguida reparou no olhar surpreendido de Murphy. ― Tive uma cadeira de Design no meu curso. É um software. Podemos pegar numa fotografia e alterá-la, modificar as cores. Uma pessoa com experiência podia trabalhar esta fotografia de maneira a fazer parecer que Melanie se tinha enforcado na Torre Eiffel. ― Sendo assim, é alguém que tem acesso aos nossos ficheiros ― murmurou Spinnelli. ― Filho-da-mãe. Inclinou-se para trás na cadeira, de maxilares crispados, claramente incomodado com o que estava implícito naquela conclusão. Durante um longo momento o silêncio foi absoluto. Depois, Aidan disse as palavras que mais ninguém se atrevera a dizer. ― Há mais um grupo de pessoas que podiam ter razões de queixa de Tess Ciccotelli. Os seus olhos cruzaram-se com os de Spinnelli e Aidan percebeu que o seu chefe já tinha chegado à mesma conclusão. ― Nós ― concluiu Aidan. Spinnelli voltou-se, fechando os olhos com um breve aceno de cabeça. ― Murphy, vai ao arquivo e faz de conta que tu e o Aidan confundiram as instruções e tu vais lá estudar os mesmos dossiês. Pede para ver os registos. Temos de descobrir quem teve acesso a esses ficheiros. ―


Olhou os três homens que estavam ali com ele com uma expressão decidida. ― Por agora mantemos isto entre nós. Só chamo os assuntos internos quando tiver de ser. ― É possível que eles não se fiquem por estes dois ― disse Murphy, tranquilamente. ― Os outros pacientes dela estão em risco, independentemente de quem esteja por trás disto. Vamos ter de consultar a lista dos doentes dela. Jack pareceu céptico. ― Não acredito que ela nos dê a lista. É um assunto confidencial. 124 ― Vamos ter a amabilidade de pedir primeiro ― decidiu Spinnelli. ― Ela vai dizer que não e nós vamos ter de a intimar. De momento, andamos à procura de uma pessoa que percebe de medicina e de electrónica, que pode ser ou não a mulher que aparece no vídeo. Agora vão-se embora e tragam-me qualquer coisa de onde possamos partir. Voltamos a encontrar-nos aqui às... hum... oito em ponto amanhã de manhã. Com isto, a reunião terminou. Murphy olhou de relance para Aidan quando os dois se encaminhavam para as respectivas secretárias. ― Telefona-me depois de falares com ela. ― Que história é essa de eu falar com ela?! Tu vens comigo! Murphy fez-lhe sinal de que não ia. ― Ouviste o que ele disse. Eu tenho de ir aos arquivos. ― Filho-da-mãe cobarde ― resmungou Aidan. ― Não queres é ter de a enfrentar. ― Tenho a certeza que por enquanto ela não vai querer falar comigo. Ainda está magoada. Além disso, és tu que gostas de a ver andar... ― Cala essa boca, Murphy. ― Tinham chegado às secretárias e Aidan já estava a pegar no casaco pendurado na cadeira. ― Ainda hoje não peguei no caso de Danny Morris. O estupor do pai anda por aí enquanto o miúdo está na morgue. ― De caminho para casa da Tess passa pelo bar onde ele costuma ir. Pode ser que tenhas sorte e ele tenha passado por lá para beber uma cerveja. ― Tudo isto enquanto tu ficas descansado no arquivo. Não é muito justo, Murphy. ― Privilégios da antiguidade, Reagan. Vemo-nos amanhã. Segunda-feira, 13 de Março, 11.15 Tess inclinou-se sobre um monte de dossiês que estavam em cima da mesa da sua sala para encher o copo de Jon com um bom merlot. ― Não vejo necessidade de me andares a vigiar. Sei tomar conta de mim mesma. A verdade é que depois de horas e horas a estudar avaliações feitas a pedido do tribunal e de saber que um daqueles nomes podia ser


responsável pela morte de dois dos seus pacientes... bem, até estava agradecida pelo intervalo e pela companhia de Jon. O apartamento estava 125 sossegado de mais. Em geral, estava à vontade com aquela calma, ou até gostava dela, mas nessa noite qualquer estalido, qualquer pequena pancada, ou até o barulho do vento contra as vidraças, a fazia dar um salto. Jon olhou-a com ar carrancudo por cima do copo de vinho. ― Claro que és capaz de tomar conta de ti mesma. Só que preferes não o fazer. Fizeste a pé dez quarteirões até ao Lemon no meio de uma chuvada gelada. Que diabo, Tess. O Robin disse que parecias um bloco de gelo quando lá chegaste. Nem sequer levavas um gorro, quanto mais um chapéu-de-chuva. Depois de Amy ter saído pela esquerda baixa, Tess tinha-se dirigido ao Blue Lemon Bistro, de Robin, que a recebera de braços abertos, como ela contava. ― Esqueci-me do chapéu-de-chuva no trabalho, com a mala. Além disso já vi Invernos muito piores. Tive frio, mas aqueci num instante. O Robin apaparicou-me e deu-me sopa. Pus-me bem num instante. ― Atirou um sorriso rasgado a Jon na esperança de que ele desfizesse o seu ar carrancudo. ― Depois, o Thomas fez-me uma massagem ao pescoço. O Robin está a desperdiçar o talento daquele homem na cozinha. Tem umas mãos magníficas. Jon fez um sorriso forçado. ― Já ouvi dizer. ― Abanou a cabeça com um suspiro paciente. ― A próxima vez que te vires no meio da rua sem dinheiro, vê se me telefonas. Deixa que eu me preocupe contigo. ― Bom, mas por hoje podes parar. O Robin emprestou-me dinheiro para o táxi e eu fui ao escritório buscar as minhas coisas e voltei para casa no meu carro. Tomei um longo banho de imersão e pus-me à vontade. Estás a ver? ― disse Tess, que estendeu os pés calçados de peúgas para mostrar do que estava a falar. Jon riu-se. ― Só tu és capaz de combinar seda e meias de desporto de maneira que fique bem. ― Mas o riso depressa morreu nos seus lábios. ― Que sarilho é este em que estás metida, Tess? Estive todo o dia preocupado contigo. Depois, quando rebentou aquela história do segundo suicídio... Passou em todos os canais na televisão e não houve jornalista que não falasse no teu nome. Tess engoliu em seco. O momento de descontracção que tinham partilhado fora-se; em seu lugar ficava de novo todo o horror dessa tarde. ― A polícia diz que já não sou suspeita. 126


― Isso é bom. Mas...? ― Mas foi horrível. Ele ali caído, agarrado ao ursinho... Metade da cabeça dele tinha desaparecido, Jon. Ele pegou-lhe na mão. ― A culpa não foi tua, Tess. Ela baixou os olhos para a mão dele. ― Toda a gente que fazia parte da vida dele o tinha abandonado. A mulher não conseguiu perdoar-lhe. Ele não conseguiu perdoar a si mesmo. Praticamente todos os amigos deixaram de conseguir olhá-lo nos olhos. Eu era a única pessoa com quem ele ainda podia falar. ― A mão de Jon transformou-se numa mancha pouco nítida. Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Era a primeira vez naquele dia que se permitia que isso acontecesse. A única coisa em que conseguia pensar era no que Winslow teria sentido ao ver aquela fotografia. ― Foi horrível ― acabou por desabafar num sussurro abafado. ― Obsceno. ― Tess, olha para mim. ― Era tão raro Jon levantar a voz que ela fez o que ele lhe disse. A expressão dele era um misto de lealdade, raiva e preocupação. Com delicadeza, limpou-lhe os olhos húmidos com o polegar. ― Tu não podes enfrentar este problema sozinha, Tess. Quantas vezes já falámos do teu envolvimento exagerado com os doentes? Deixou-se dominar pela irritação, só o suficiente para a deixar de língua afiada. ― No teu caso é diferente. Os teus doentes não se mexem. Dava o mesmo se fossem peças de carne num talho. Jon ouviu a resposta sem perder a compostura. ― E é assim que eu gosto deles. Não consigo pensar nos doentes como tu pensas, Tess. Isso dava cabo de mim. E quando voltasse a pegar no bisturi poderia hesitar. E uma hesitação minha podia custar a vida a uma pessoa. Ela suspirou. ― Eu sei. Trata-se de manter uma distância profissional. Tu és capaz e eu não. Quem fica a ganhar és tu. O sorriso dele foi malicioso. ― Muita gente diria que és tu, mas o que eu quero dizer é que tens de ter em conta os limites das tuas forças. Tu és uma boa psiquiatra porque te preocupas com os doentes, mas que custo tem isso para ti? Demasiado, parece-me a mim. Talvez devesses repensar o tipo de doentes com quem trabalhas. Esses doentes suicidas estão a dar cabo de ti. 127 De repente o rosto de Jon iluminou-se, adorável, pensou Tess. E depois ele continuou: ― E se por uns tempos tratasses umas fobiazitas para variar?


Ela olhou para ele, irritada. Jon era uma das poucas pessoas que conheciam o segredo embaraçoso da sua fobia. ― Por exemplo, uma claustrofobia... O canto da boca do amigo ergueu-se e ela percebeu que aquilo era o mais próximo de um sorriso que ele se permitia. ― Talvez. Por outro lado, podes estar só a precisar de umas férias. Quando foi a última vez que tiraste uns dias? Involuntariamente, o seu corpo ficou rígido. ― Na minha lua-de-mel. ― O cruzeiro que fizera com Amy, porque mais depressa iria à China a pé do que deixaria o estupor do Phillip levar a flausina dele e porque os bilhetes já não podiam ser cancelados. Jon ficou um pouco embaraçado. ― Desculpa. Eu e o Robin vamos uns dias a Cancún o mês que vem. Porque não vens connosco? O riso dela soou a falso. ― Não, obrigada. A única coisa pior do que ir em lua-de-mel com a nossa melhor amiga é ir pendurada noutro casal. Jon fez uma careta. ― Deixa-te disso, Tess. Vive a vida. O Robin não se vai importar. Além disso, podíamos arranjar alguém para ir contigo. Conseguiu sorrir, apesar de tudo. ― Vai para casa, Jon. Estou exausta. Ele pousou o copo e levantou-se, obrigando-a a fazer o mesmo. ― Vem comigo e... ― Fecha a porta à chave ― completou Tess, que abriu a porta. ― Tu és muito pior do que o Vito alguma vez conseguiu ser. Jon parou à saída, de olhos muito abertos. ― Telefonaste para casa? O sorriso dela desapareceu. ― Não. ― Tess... ― Vai para casa, Jon ― repetiu ela, com ar sério. Ele hesitou, a olhar para o dedo do pé. ― Eu passei por aqui por outra razão. Não foi só por o Robin estar preocupado. ― Respirou fundo e olhou para ela através de umas pestanas 128 que poderiam levar muitas mulheres ao crime. As de Aidan Reagan eram mais longas. E mais escuras. E os olhos dele também eram mais azuis. Tess pestanejou, tentando ver o rosto de Jon com mais nitidez. "Céus! Que ideia foi esta?!" Poucas horas de sono e tensão a mais. E também demasiadas noites a dormir sozinha, com um gato por única companhia.


Jon aproximou-se. ― Tess? Que aconteceu? Ficaste branca! ― Não é nada. Acho que estou mais cansada do que pensava. Que ias a dizer? ― Que a Amy me ligou há umas horas. Os lábios de Tess uniram-se numa linha. ― Ah! Ela disse-te que me despediu como cliente? ― Contou-me que te tinha dito umas coisas de que estava arrependida. Estava tão cheia de medo que aquele detective te levasse para a esquadra que não foi capaz de manter a calma. Queria que eu descobrisse se ainda estavas zangada com ela. Tess abanou a cabeça, incrédula. Era como se ainda tivessem dezasseis anos e partilhassem o mesmo quarto em casa dos pais dela. ― E não lhe passou pela cabeça telefonar-me directamente? ― Pensou que ias desligar. ― Era bem possível. ― E também disse que tinha telefonado para saber se tinhas chegado bem a casa, mas tu não atendeste. Não me apetece nada andar a transmitir recados, por isso vê se lhe telefonas. Diz-lhe que queres falar com ela e fazer as pazes. E dá-lhe ouvidos, Tess. Ela sabe mais deste assunto que tu. E mesmo que se tenha portado como uma pateta, é uma pateta bem-intencionada que não te quer ver na prisão. Jon tinha razão. A intenção de Amy era boa. Tess tinha chegado à mesma conclusão quando percorria a pé os dez quarteirões até ao bar de Robin. ― Está bem. Eu falo com ela, nós fazemos as pazes e tu não precisas de continuar a andar com recados. ― Fosse como fosse, não tencionava fazer o que Amy lhe dissera. Tinha pensado muito no assunto desde que saíra do apartamento de Winslow e estava cada vez mais convencida de que era vital colaborar com a polícia. Mas Jon estava tão preocupado... Num impulso, inclinou-se para lhe dar um beijo na bochecha. ― Obrigada. 129 No momento em que os lábios dela tocaram o seu rosto, ele endireitou-se e passou-lhe o braço de forma protectora sobre os ombros. Ela seguiu o olhar dele e o seu coração teve um sobressalto. O detective Reagan estava no patamar à frente do elevador. E não parecia muito contente. Tess agarrou na gola do robe e protegeu o pescoço. Foi um gesto puramente instintivo. Jon tinha visto a cicatriz, mas não havia muitas outras pessoas que pudessem dizer o mesmo. Devagar, Reagan aproximou-se, com os olhos nos ombros dela, onde a mão de Jon ainda se mantinha. As suas próprias mãos estavam enfiadas nos bolsos do sobretudo. Parou a uma distância que lhe pareceu respeitosa, mas suficientemente perto para ela sentir o cheiro


do oftershave dele. Sim, porque ele tinha feito a barba antes de ir ter com ela. O rosto que ainda essa tarde estava áspero com a barba a tornar-se visível tinha-se tornado macio e liso. ― Boa noite, Dr.a Ciccotelli. ― Boa noite, detective Reagan. Apresento-lhe o Dr. Jonathan Cárter, o colega de quem eu lhe tinha falado. O aceno com que cumprimentou Jon foi breve. ― Se fosse possível, gostava de falar consigo. Os dedos de Jon apertaram-lhe o braço, num aviso tão subtil como o esgar feroz do seu rosto. ― Não sem a presença da advogada dela. Os olhos de Reagan ergueram-se ao encontro dos dela, numa expressão inescrutável. ― Se realmente quiser, podemos chamar a sua advogada ― a voz dele foi suficientemente fria para a deixar apreensiva ― mas eu preciso de respostas a algumas perguntas ainda hoje. Tess deu uma pequena palmada no meio do peito de Jon. ― Eu estou bem, Jon. Mais tarde dou uma apitadela à Amy. Prometo. Vai-te embora para casa. ― Não s... ― Eu telefono-te depois de ele se ir embora, para ficares a saber que ainda estou viva ― interrompeu-o ela, esforçando-se por manter um tom ligeiro. ― Não tenciono dizer nada que ele possa usar contra mim num tribunal. ― Escapou-se ao abraço dele e deu-lhe um encontrão na direcção do elevador, sempre com o robe apertado à volta do pescoço. ― Vai para casa, Jon. O olhar de Jon ao despedir-se foi tão cortante como os seus bisturis. No entanto, não disse nada e um minuto mais tarde descia de elevador para o piso zero. 130 Tess ficou sozinha, com Aidan Reagan e as suas pestanas compridas. ― Onde está o Todd? ― A seguir outras pistas. ― Estou a ver. Bom, quer falar em minha casa ou prefere ficar no patamar? ― Como queira, minha senhora. "Com que então agora sou minha senhora..." O "minha senhora" de Reagan mais parecera um insulto. ― Nesse caso entre. Não me apetece ficar à porta de casa vestida de robe. Ele entrou e fechou a porta atrás dele. ― Desculpe ter vindo tão tarde ― disse Reagan pouco à vontade. ― Tinha esperança de ainda a encontrar acordada. Ela apontou para o monte de pastas que se encontravam sobre a mesa


da sala. ― Tenho estado a estudar os meus processos. Deixe-me mudar de roupa. É só um minuto. Não foi um minuto, mas foram menos de três. Tess voltou do quarto com uma camisola de gola alta grossa e calças de ganga. As meias de desporto tinham ficado. Encontrou-o de pé na sala de estar a observar os desenhos a tinta que ela tinha na parede. ― Posso pendurar o seu sobretudo, detective? ― Não, obrigado ― respondeu ele, acompanhando a negação com um gesto de cabeça. ― E posso servir-lhe vinho, ou ainda está de serviço? Ele voltou-se e os seus olhos detiveram-se nos dois copos de vinho que ainda se encontravam sobre a mesa. ― Não, obrigado. ― A voz dele era educada, mas fria e distante. ― Não é melhor ligar à sua advogada? Queria despachar o assunto. ― Não. Faça as suas perguntas, detective. Desde que eu possa, respondo a tudo. O brilho de surpresa nos olhos dele foi tão passageiro que ela chegou a pensar que o tinha imaginado. ― A Dr.a Ciccotelli disse ao seu namorado que lhe ia ligar. ― E vou, mas depois de o detective sair. A minha advogada e eu não temos o mesmo tipo de relação com a polícia, detective. ― A boca dela inclinou-se num sorriso malicioso. ― Seja como for, acho que ela já não é minha advogada. Tivemos uma espécie de zanga. ― Tess ergueu 131 uma sobrancelha, observando o rosto dele com atenção. ―- E o Dr. Cárter não é meu namorado. Dessa vez não teve dúvidas em relação ao brilho nos olhos azuis dele. Foi inegável. Intenso. O olhar dele deteve-se no dela por um longo momento, como se estivessem de novo na escada. E depois esse momento terminou. Ele afastou o olhar e fixou a pilha de pastas sobre a mesa. ― Descobriu alguma coisa? ― perguntou com voz áspera. Tess respirou fundo. O súbito pico de oxigénio serviu para pôr o seu cérebro de novo a funcionar. O aviso de Amy voltou a insinuar-se no seu cérebro, o aviso de que Reagan ia socorrer-se dos seus atractivos para vencer as suas defesas. Por momentos, essas defesas tinham-se rendido e a ideia deixou-a abalada. ― Antes de eu começar a responder, detective, também tenho uma pergunta. ― Esperou até ele a olhar de novo nos olhos, de sobrancelhas erguidas, à espera. ― Acha que preciso de um advogado? Ele respondeu sem hesitar. ― Não.


Ela avaliou o risco e regressou ao seu plano original. ― Pois bem, estive a estudar os meus dossiês. Primeiro, procurei os julgamentos em que a condenação tenha resultado do meu depoimento. Das trinta e uma condenações, eram cinco. Todos eram homens. Quatro foram homicídios e um foi uma violação. ― Acenou a cabeça com cepticismo, pragmática. ― Tenho a impressão que nenhum deles teria capacidade intelectual para encenar uma coisa assim. Eram brutamontes, todos. Por mais que puxe pela imaginação, não consigo vê-los no papel de génios do crime. Além disso, ainda devem estar todos na prisão, a não ser que alguma comissão de liberdade condicional tenha feito m... tenha feito algum disparate. Teve a impressão que ele se esforçara por não sorrir com o quase lapso dela. ― Nesse caso, vamos estudar as famílias deles ― disse Reagan. ― Podemos ver se algum tem feito tentativas de conseguir um novo julgamento. Tess sentiu um aperto no estômago. ― Nesse caso, devem estar a aparecer os apelos., ― Estão. Tess suspirou. ― Aposto que Patrick Hurst não está muito satisfeito. 132 ― Pois se apostasse ganhava, Dr.a Ciccotelli. Alguma vez ouviu falar de Somai A mudança brusca de assunto apanhou-a desprevenida. ― Sim, é um relaxante muscular. ― Alguma vez o tomou? Ela acenou devagar que sim. ― Tomei. O ano passado tive um acidente. ― Um facínora com algemas, cuja recordação ainda lhe fazia tremer as pernas. Concentrou-se nos olhos de Reagan, procurando vencer o pânico. ― Fiquei com dores nas costas e o meu médico receitou-me Soma. ― Durante quanto tempo tomou o medicamento? Mais uma vez, a expressão dele era indecifrável, e mais uma vez recordou a voz de Amy: "Não sejas parva, Tess." ― Tomei-o sem regularidade ao longo de uns seis meses. Porquê? ― Ainda o tem? Quer dizer, a receita. ― Não. Quis deixar de o tomar. Deixava-me um bocado aturdida. ― Apesar de a dor ser muito forte e de por vezes ainda aparecer. ― Porque me está a fazer essas perguntas? Ele hesitou, depois encolheu os ombros, e respondeu: ― Porque foram encontrados vestígios de Soma nos frascos que estavam nos apartamentos de ambas as vítimas. Tess sentiu que perdia as forças nas pernas. Agarrou-se ao canto da mesa e conseguiu sentar-se com cuidado numa das cadeiras da sala, incapaz de afastar o olhar do rosto dele.


― Os que tinham as minhas impressões digitais. ― O seu apartamento alguma vez foi assaltado? Ela fez um gesto de negação, de olhos esbugalhados à ideia de que um sádico pudesse ter estado em sua casa, no seu espaço mais íntimo. ― Não, não. Se isso tivesse acontecido, eu teria feito queixa. ― Que fez com os frascos? Tess pôs-se de pé, subitamente inquieta e cheia de frio. Afastou-se da mesa e aproximou-se da janela, a esfregar os braços e a olhar sem ver o trânsito na rua. ― Não me lembro. Devo tê-los deitado fora. Ouviu-o aproximar-se por trás dela e sentiu as mãos dele sobre os seus ombros, fortes e quentes. Sentiu o calor descer-lhe pelos braços e num momento de fraqueza desejou voltar-se para que ele a envolvesse nos seus braços. Desejou poder apoiar a cabeça nos seus ombros largos. Mas os desejos são precisamente isso. A realidade era um pesadelo, mais duro e assustador a cada nova informação. 133 ― Sente-se ― murmurou ele. ― Está a ficar pálida. ― Com delicadeza ajudou-a a sentar-se e ajoelhou-se à frente dela. ― Está a sentir-se bem? Quase inerte, respondeu-lhe: ― Isso faz parecer ainda mais que fui eu. Ele levantou-se sem dizer nada. Engolindo em seco, levantou os olhos para ele. ― Mas não fui. Reagan nem pestanejou. ― Alguma vez foi ameaçada, Dr.a Ciccotelli? ― Ameaçada quando? Alguma vez na minha vida? ― No último ano, por exemplo. O que ele queria dizer atingiu-a como uma pancada. ― Quer dizer desde o caso Green. Está a falar de polícias. ― Sentiu o estômago às voltas só de pensar. ― Meu Deus... Mais uma vez, ele não disse nada, o que queria dizer mais do que se tivesse confirmado. ― Recebi algumas cartas ― disse ela. ― Nenhuma delas vinha assinada. A maior parte eram só insultos pessoais, muitas com palavrões. "Assassina de crianças", "assassina de polícias". ― Na altura, tinha-lhe custado. Na verdade ainda custava. ― Houve uma pessoa que escreveu mais de uma. Dizia que eu ainda havia de me arrepender. Um mês mais tarde, recebi uma carta a dizer que o meu contrato não tinha sido renovado. Pensei que era isso que queriam dizer. Uma vez, andava a fazer compras, alguém partiu o vidro do meu carro com um tijolo, mas essa pessoa nunca foi apanhada. Pensei que fazia tudo parte do mesmo. Reagan parecia aborrecido.


― Fez queixa de alguma destas coisas? ― Da janela partida fiz. Das cartas não. Não havia ameaça física. ― Ainda tem essas cartas? ― Devo tê-las para aí nalgum sítio. Desculpe, mas custa-me pensar com clareza. ― Não tem importância ― disse ele com calma. ― Demore o tempo que for preciso. ― Reagan pegou na garrafa. ― Quer que lhe sirva um pouco de vinho? ― Não. ― Ela concentrou-se nos seus pensamentos, tentando reproduzir os pequenos gestos, revendo-se a receber as cartas e a arrumá-las num armário no escritório de casa. ― Espere um bocadinho. Já me lembro do que fiz com as cartas. 134 Aidan viu-a sair da sala e cerrou as mãos que descansavam junto das pernas. Sabia que se cedesse ao impulso de as levar ao rosto encontraria aí o cheiro dela. Os últimos quinze minutos tinham sido sem sombra de dúvida uma prova de que era um homem com autodomínio. Quando saíra do elevador e a vira com o robe de seda vermelho sentira uma onda de desejo percorrer-lhe o corpo. Depois, ela tinha-se inclinado para beijar o rosto do médico louro, o que o fizera sentir uma fúria de ciúme, que, por uma fracção de segundo, não o deixara ver mais nada. Ouvi-la dizer que o tipo louro não era seu namorado fizera-o ter vontade de lhe pegar e de a abraçar para descobrir se o longo olhar nas escadas tivera nela o mesmo impacto que nele. Bastara-lhe pôr as mãos sobre os ombros de Tess para desejar mais. Se lhe tivesse tocado como sentira desejo de fazer... Mas não o fizera, nem faria. Olhou à sua volta e observou o apartamento dela. Situado num dos bairros mais chiques de Michigan Avenue, o custo daquele apartamento daria para pagar os ordenados de uma fábrica durante um mês, isto sem incluir os objectos de arte, que teriam deixado a sua irmã Annie, que era decoradora, num verdadeiro delírio. Uma mulher habituada àquele estilo de vida queria mais do que Aidan Reagan podia dar, uma coisa que Aidan aprendera à própria custa. Podia ter sido enganado uma vez, mas... O pensamento não concluído desapareceu, juntamente com qualquer vestígio de humidade na sua boca. ― Encontrei-as ― disse Tess Ciccotelli, que apareceu com um envelope de grande formato onde as tinha metido e que fechava humedecendo a faixa de cola, o que deixou o corpo do detective em alerta total. Esforçando-se por se dominar, para que a sua mão pegasse apenas no envelope, Aidan estendeu-a, mas ela interrompeu-o. A exclamação dela apanhou-o de surpresa, bem como a mão dela sobre a sua. ― Que aconteceu à sua mão? Aidan respirou fundo. Os nós dos dedos estavam feridos e arranhados,


tudo graças a um dos amigos de bebedeira do pai de Danny Morris, o homem suspeito de ter morto o filho e de em seguida o ter atirado pelas escadas abaixo. Depois de sair da esquadra, Aidan tinha passado pelo pouso principal de Morris. O amigo dele estava nesse momento numa cela por ter atirado um murro embriagado ao rosto de Aidan. Quanto ao próprio Morris, de momento ainda ninguém sabia onde parava. A mulher já tinha mais um olho negro, mas continuava a negar que o marido tivesse o que quer que fosse a ver com a morte do rapazinho. 135 E Tess Ciccotelli continuava com a sua mão na dele. ― Acertei numa parede de tijolo ― disse ele, surpreendido por a sua voz continuar normal. O seu coração, pelo contrário, não continuava. Tentou libertar a mão, mas ela manteve-a firmemente agarrada. Levantou os olhos escuros para ele, uns olhos cheios de preocupação. ― Essa parede era a cara de alguém? ― Não. Era realmente uma parede de tijolo. Um suspeito resistiu e eu magoei-me quando tentava algemá-lo. ― Fez uma nova tentativa para conseguir libertar a mão. ― Esse suspeito tinha alguma coisa a ver com este caso? ― Não, fazia parte de outro em que também estou a trabalhar. Com um gesto de desânimo, Tess mostrou que sabia do que se tratava. ― O rapaz da autópsia que eu vi esta manhã. ― Sim. ― Conseguiu que a palavra atravessasse o que lhe pareceu uma bola de pasta a obstruir a sua garganta. Ela ficou a olhá-lo de lábios um pouco entreabertos, o que obrigou Aidan, pelo contrário, a cerrar com força os maxilares. Os lábios daquela mulher pareciam estar a pedir a um homem que descobrisse se eram tão macios como pareciam. ― Desculpe ― disse ela com voz tranquila ― deixa-me tratar da sua mão? É um golpe grande. ― Quando ele hesitou, ela forçou os seus lábios cheios a sorrirem. ― Não sei se sabe, mas sou médica... O melhor era ir-se embora. Naquele preciso momento. O pior é que os seus pés não queriam mexer-se. ― Sim, imagino que seja. Nunca me lembro que os psiquiatras são médicos como os outros. ― Sim, é o que acontece com a maior parte das pessoas. ― Tess foi à cozinha e voltou com uma pequena mala de pequenos socorros. ― Mas eu andei em Medicina, como os outros médicos todos. Foi lá que conheci o Jonathan Cárter, na verdade. Já somos amigos há muitos anos. A psiquiatra inclinou a cabeça sobre a mão dele e o cabelo dela formou uma cascata que a escondeu do olhar de Aidan. O cabelo ainda não estava bem seco. Via-se no sítio onde se afastava, sobre o pescoço, e


o cheiro do champô era mais um tormento para ele. Não era preciso ser um detective de alto nível para perceber que saíra há pouco do banho, o que devia querer dizer que o mais certo era ter estado nua por baixo do robe vermelho. Fechou os olhos com força à imagem das curvas dela molhadas e cobertas de espuma. 136 ― Ele é muito protector comigo ― continuou ela, e depois levantou os olhos e o cabelo voltou a cair para trás, descobrindo o seu rosto. Este estava vermelho, e fossem quais fossem as palavras que tencionava dizer perderam-se para todo o sempre. De repente voltou a olhar para baixo e pigarreou. ― Bem... ― Os ombros dela subiam e desciam enquanto respirava fundo. ― Pelo menos não está sujo. Isto é capaz de arder. Ardia, mas não onde ele pensava. ― O tipo atirou-me com uma cerveja, por isso depois de o levar à esquadra tive de tomar um duche e nessa altura lavei a ferida. O riso gutural dela provocou-lhe um arrepio e a mão teve um pequeno espasmo. Ela interrompeu o que estava a fazer e depois continuou a tratar-lhe dos nós dos dedos. ― Há quem diga que a cerveja é boa para a pele. ― Tess envolveu a mão numa ligadura fina e prendeu a extremidade. Depois recuou e voltou a olhar para ele, os olhos já frios. Dois dias atrás, ele teria confundido a sua atitude com ausência de emoções, mas nesse momento já tinha percebido que era o escudo dela. Saber que ela precisava de um despertava nele o desejo de fazer tudo o que não devia. ― Procure não molhar a ferida. Penso que não vai morrer desta. Aidan pegou no envelope com a mão esquerda. ― Vou estudar estas cartas. Entretanto recebeu mais alguma chamada? ― Não. ― Importa-se que a sua linha fique sob escuta, para podermos ouvir no caso de isso acontecer? Ela ficou imóvel por um instante. ― Não, não me importo. Eu assino a autorização, mas só para o meu telefone de casa. Para o do consultório não. Já era mais do que ele estava à espera. ― Também vamos precisar de uma amostra da sua voz, para a compararmos com a mensagem que ficou no atendedor de chamadas de Cynthia Adams. ― Posso passar pela esquadra amanhã de manhã. As duas primeiras consultas foram canceladas. ― Lamento muito. Tess encolheu os ombros. ―Já era de esperar, depois daquele artigo no Bulletin. Ele tinha-se


esquecido da lista dos doentes e com um suspiro voltou a mandar Todd Murphy para o inferno. 137 ― Isto pode voltar a acontecer. Imagino que saiba. Tess olhou-o de queixo erguido e olhos tranquilos. ― Sim, sei. ― Seria bom que pudéssemos prever os próximos movimentos dele. Vou ter de lhe pedir uma lista dos seus doentes. Ela nem pestanejou. ― O detective sabe que eu não posso fazer isso. A confidencialidade em relação aos doentes não é uma mera formalidade. É a lei. Não parecia zangada, pensou ele. Pelo contrário, parecia resignada, como se já estivesse à espera daquele pedido. ― Falou-nos de Cynthia Adams e de Avery Winslow. ― Nós podemos fazê-lo quando isso é fundamental para a detecção de um crime ou quando o doente está em risco e não está em condições de dar o seu consentimento. Em ambos os casos, pareceu-me que as condições para a quebra de confidencialidade se verificavam. Além disso, não lhe disse muito mais do que, de qualquer maneira, ia conseguir obter através da sua investigação policial, se se esforçasse o suficiente. ― Disse-me que Cynthia Adams tinha contraído uma doença sexualmente transmissível. Houve qualquer coisa que perpassou pelos seus olhos, qualquer coisa de breve e fugidio. ― Isso foi numa altura em que pensei que era ela o alvo e que isso vos podia ajudar a encontrar o motivo. De qualquer forma, tê-lo-iam descoberto pela autópsia. ― Respirou fundo. ― Hoje recebi uma visita da Ordem dos Médicos. Não foram da minha opinião. Aidan franziu o sobrolho. ― Como souberam eles que a Dr.a Ciccotelli tinha falado comigo? ― A funcionária que tratou do caso no Departamento da Saúde telefonou-lhes. Não precisa de se desculpar, detective ― disse ela com firmeza quando o viu abrir a boca com a intenção de o fazer. ― Eu sabia quais eram os riscos a que me expunha quando falei no assunto. Mas tinha sido mais um golpe, percebeu ele. Não fazia ideia das sanções que a Ordem dos Médicos podia impor. ― Eles... fazem alguma coisa? ― Desta vez não fizeram. A minha advogada estava lá e isso deve ter tido algum peso. ― Mas amanhã vão voltar ao ataque, depois de verem as notícias que sairão sobre Winslow. ― Provavelmente. E também os jornalistas que estavam acampados a porta do prédio quando eu voltei para casa hoje à noite. ― A sua voz


138 pareceu um pouco menos dura. ― Não se preocupe comigo, detective Reagan. Eu sei tomar conta de mim. Ele perguntou a si mesmo se saberia realmente. Não sabia como receberia ela a notícia de que os suicídios dos seus pacientes tinham sido gravados, talvez com o lucro como objectivo. Lembrou-se do olhar dela quando tinham encontrado o corpo de Winslow e desejou que não tivessem de lhe falar das câmaras, embora soubesse que, mais cedo ou mais tarde, isso teria de acontecer. Mas não obrigatoriamente essa noite. ― Nesse caso deixo-a ir dormir, Dr.a Ciccotelli. ― Erguendo a mão com a ligadura, acrescentou: ― Obrigado. Ela sorriu, com tristeza. ― Obrigada por não me ter metido na choldra outra vez ― disse ela. Depois mudou de posição, um pouco incomodada. ― Desculpe. Quando estou cansada o meu vocabulário degrada-se. Havia muitos outros sítios, melhores que a choldra, onde ele gostaria de a meter. Voltou-se antes que a sua libido contribuísse para materializar algum desses desejos, e, para ocupar a sua mente, deu consigo a observar os desenhos que já vira antes, enquanto ela mudava de roupa no quarto. ― T. Ciccotelli ― leu no canto inferior de todos eles. ― São seus? ― Não, foram feitos pelo meu irmão Tino. Surpreendido, ele voltou-se para olhá-la. ― A Dr.a Ciccotelli tem um irmão chamado Tino? A sério? Dessa vez o sorriso dela mostrou que estava genuinamente divertida. ― Tenho quatro irmãos mais velhos, o Tino, o Gino, o Dino e o Vito. E nenhum deles é Soprano, não vale a pena perguntar. Quatro irmãos mais velhos, e provavelmente muito protectores. A ideia era quase desencorajadora. Quase. O robe vermelho ainda estava muito vivo na sua memória. ― Algum deles vive aqui perto? O sorriso dela voltou, mas triste. ― Não, eles vivem na nossa cidade. ― Em Filadélfia. Com os olhos muito abertos, Tess perguntou-lhe: ― Como sabia que...? Esteve a investigar-me! Ele concordou, com firmeza. ― Razão pela qual neste momento se encontra no seu apartamento chique e não numa choldra no centro de Chicago. 139 Ela olhou-o por instantes e depois surpreendeu-o com uma risada que encheu a sala e voltou a acelerar o pulso dele. ― Bem-visto, detective. Boa noite. Ele permitiu-se um novo sorriso. ― Boa noite, Dr.a Ciccotelli.


Do lado de fora, esperou até ouvir os ferrolhos e depois voltou-se para o elevador. Ia para casa dormir um pouco, mas antes precisava de outro duche. E dessa vez frio. CAPÍTULO 8 Segunda-feira, 13 de Março, 23.55 Tess deixou o seu corpo encostar-se à porta da rua e pôs a mão sobre o coração. Sem um sorriso e furioso, Aidan Reagan era o homem fisicamente mais másculo e poderoso que ela tinha conhecido em toda a sua vida. Mas quando sorria... Era simplesmente lindo. E a última preocupação de que ela precisava naquele momento. Ou talvez não. Já passara muito tempo desde que o seu coração batera assim descompassado, desde que a sua pele parecia acordar depois de séculos adormecida. Desde que se sentira tão excitada como naquele momento. Na verdade, chegara a recear que isso não voltasse a acontecer. ― Diz o que tens a dizer, Chick ― murmurou ela em voz alta. "Tens de perder o medo. Tens de voltar a ir para a cama com alguém." Mas não conseguiu dizer as palavras em voz alta. Só de as pensar já se sentia perturbada. A traição de Phillip marcara-a mais do que estava ao alcance de qualquer malfeitorzeco com uma corrente. Disse a si mesma que havia de esquecê-lo, que a traição dele não tinha nada a ver com ela. Que graça... Claro que tinha. Fora ela que escolhera um homem incapaz de manter as suas promessas. Pelo menos isso, conseguira-o honestamente. Tal mãe, tal filha. E, pelo menos, ela tivera orgulho suficiente para o mandar embora com um pontapé no traseiro. Ao contrário da mãe. Mas o orgulho era um fraco substituto do contacto humano por que ansiava nessa noite. Desde que acabara com Phillip já houvera outros homens a interessarse por ela. Infelizmente, ela não se interessara por eles. Até esse momento. Reagan era terrivelmente atraente. E também estava interessado nela. E, se era uma boa avaliadora do carácter de um 141 homem, não queria estar, assim como ela não queria estar interessada nele. Mas que percebia ela do assunto? Afinal fora ela que escolhera Phillip. Que ideia tão animadora. Talvez Amy tivesse razão. "Eu devia ligar-lhe e fazer as pazes e tudo isso." Tinha prometido ajon, um facto que Reagan parecia achar importante. Um a zero a favor dos bons. Acabou por se afastar da porta e logo a seguir deu um salto, quando a campainha tocou. Espreitou pelo ralo e disse um palavrão. Lá estava a simpática Miss Carmichael, com uma caixa de piza na mão.


― Eu sei que está aí ― disse Joanna Carmichael em voz alta. ― Acabei de ver o polícia sair. ― Vá-se embora, Miss Carmichael. Não tenho nada a dizer-lhe. ― Pois eu tenho uma proposta a fazer-lhe. Tess abriu um pouco a porta. ― As suas propostas merecem ir parar ao cesto dos papéis, Miss Carmichael. Ponha-se a andar antes que eu chame a polícia. Joanna Carmichael espreitou através da fresta deixada pela porta. ― Quero um exclusivo. Tess riu-se do absurdo da ideia. ― Você deve estar completamente doida. E olhe que eu sei do que estou a falar... ― Eu vou acabar por escrever o artigo, com ou sem a sua colaboração, Dr.a Ciccotelli. Se me der um exclusivo, pelo menos as palavras vão ser as suas. Tess fez um gesto de negação. ― Como se eu acreditasse numa palavra sua. Só gostava era de saber como conseguiu chegar aqui acima. ― Disse ao porteiro que vinha entregar uma piza ao seu vizinho. A propósito, a segurança do seu prédio é uma porcaria. Nisso ela tinha razão. ― Tomo nota. Agora vá-se embora. ― Tess fechou a porta de repente e logo a seguir fechou a corrente. A seguir levantou a voz para se despedir. ― Se daqui a cinco minutos ainda estiver aí, chamo a polícia e pode contar o resto da sua história numa cela na esquadra. Cinco, quatro, três... Joanna recuou com um esgar de contrariedade. Não estava à espera que a Ciccotelli lhe concedesse o exclusivo, mas também não esperava 142 uma recepção tão agressiva. Quando a psiquiatra por fim cedesse, a entrevista seria excepcional. De momento teria de voltar a casa e comer ela própria a piza. Ainda tinha muito trabalho a fazer essa noite. A mãe dela sempre tinha dito que era mais fácil apanhar moscas com mel do que com vinagre. E o pai dizia que o papel para as moscas era a melhor maneira. Por muito que lhe custasse admiti-lo, dessa vez era o pai que tinha razão. Bastar-lhe-ia descobrir quantas moscas a Ciccotelli aguentaria ver debaterem-se agarradas ao papel até admitir a derrota. Não ia ser bonito, e a psiquiatra não ia ceder sem luta. Mas acabaria por cooperar. "E quando a poeira assentar, a assinatura vai ser minha e o Cy Bremin não passará de um zunzum nos meus ouvidos." Satisfeita, a comer uma fatia de piza, saiu do elevador e fez adeus ao


antipático do porteiro antes de voltar costas. Terça-feira, 14 de Março, 12.35 Quando estacionou à frente de casa, Aidan já se tinha acalmado, e ainda bem, porque os duches frios doem e seja como for são pouco eficazes. Esperava que Dolly não tivesse armado uma grande confusão na sala. Era uma boa cadela, bem treinada, mas nesse dia tinha ficado muito tempo sozinha. Tinha um acordo com o miúdo dos vizinhos do lado, que a levava a passear quando ele não podia, mas nesse dia tinha-se esquecido de o avisar. Entrou pela porta da cozinha e foi recebido por quarenta quilos de carne de rottweiler a abanarem-se. Aidan ajoelhou-se para lhe fazer umas festas atrás das orelhas e riu-se quando a língua de Dolly lhe lavou a cara de alto a baixo. ― És uma pateta, Dolly. ― Deu-lhe uma palmada leve, levantou-se e pegou na trela que estava pendurada no cabide. Já era tarde, mas Dolly gostava de dar um passeio, e Aidan ainda tinha de se libertar de uma boa parte da tensão acumulada ao longo do dia. ― Eu já a levei a passear. Com um sobressalto, Aidan, de arma na mão, voltou-se na direcção da voz ensonada até que reconheceu de quem se tratava. Quase esmurrou o interruptor, inundando a casa de luz. A sua irmã Rachel estava de pé junto da porta, com os olhos esbugalhados de terror e uma mão aberta sobre o peito. 143 ― Que raio estás tu aqui a fazer? ― perguntou-lhe. ― Parece-te boa ideia apanhares-me assim de surpresa? Eu podia ter-te dado um tiro! ― Eu... ― A irmã expulsou o ar dos pulmões até ao fim. ― Desculpa. Não pensei. Aidan voltou a pôr a arma no coldre. ― Lá nisso tens razão! ― Mas a irmã estava pálida e a tremer e ele acabou por se aproximar e abraçá-la. ― Estás a sentir-te bem? Ela fez um gesto afirmativo, ainda aconchegada ao peito do irmão. ― Estou. Dá-me só um bocadinho. ― Recuou e encostou-se pesadamente à parede, as sobrancelhas negras franzidas. Tal como Aidan, Rachel tinha o cabelo e os olhos do pai, mas a sua figura frágil fora inteiramente herdada da mãe, bem como a expressão imperiosa do rosto. ― Chegaste tarde. ― E tu andas fugida ― ripostou ele. ― Porque não estás em casa metida na cama? A mãe e o pai vão ficar raladíssimos se acordarem a meio da noite e não te virem. ― Não vão nada. Eles pensam que eu estou em casa da Marie. Aidan olhou para a irmã com ar severo. ― Tu mentiste-lhes? Rachel... ― Não menti nada. Fui para casa da Marie, mas ela deu uma festa e eu... decidi não ir.


Sem perder a expressão zangada, Aidan pegou num pacote de leite que estava no frigorífico. ― Queres um copo? Ela torceu o nariz e expressou a sua opinião acerca do leite em geral: ― Blhac... ― Tu precisas de beber leite, Rachel. Quando tiveres osteoporose vais arrepender-te ― disse, imitando a maneira de falar da mãe para a fazer sorrir. Mesmo assim, a sua boca recusou-se firmemente a mostrar qualquer humor. ― Então porque mudaste de ideias em relação à festa? Além disso, amanhã há aulas ― acrescentou, olhandoa através das pestanas semicerradas. ― O pai e a mãe nunca nos deixavam sair quando tínhamos aulas no dia a seguir. Ela encolheu os ombros. ― Nós só íamos estudar para um teste de História. ― Mas tu não estás a estudar... 144 ― Eu pensei que estávamos lá para estudar, Aidan ― disse ela com calma. ― Garanto-te! Mas depois o namorado da Marie apareceu e... e as coisas começaram a ficar descontroladas. Aidan bebeu um copo de leite e limpou a boca com as costas da mão. ― Descontroladas como? ― Não interessa. O que interessa é que eu não entrei. ― Levou a manga ao rosto e cheirou. ― Mas pelo cheiro até parece que sim... Aidan inclinou-se, cheirou e recuou com ar carrancudo. ― Cerveja e erva, Rachel? Quem são esses miúdos? E onde andam os pais da Marie? Rachel sentou-se numa das cadeiras velhas do irmão, compradas em segunda mão. ― Eles não estavam em casa. ― Levantou a mão no ponto em que contava que ele lhe ralhasse. ― Não, por favor. Eu sei que devia ter saído logo, mas nas primeiras duas horas só lá estivemos nós, eu e a Marie, e estivemos a estudar. ― O seu olhar era implorador. ― Juro-te, Aidan. ― Eu acredito em ti, Rachel. ― Sentou-se ao lado dela. ― Que aconteceu afinal? ― Depois, os olhos azuis da irmã encheram-se de lágrimas e ele ficou assustado. ― Rachel?! ― Eu estou bem ― disse ela, e limpou os olhos com as palmas das mãos. ― Fiquei assustada. Chegaram mais uns rapazes e... ― Rachel estremeceu. ― Saí sem dizer nada pela porta das traseiras. O coração do irmão batia em sobressalto à ideia de tudo o que podia ter acontecido. ― Porque não telefonaste aos pais? Ela fez que não com a cabeça. ― Um dos rapazes entornou cerveja por cima de mim e eu... Eu não queria que os pais ficassem a pensar que eu lhes tinha mentido, por


isso vim a pé para tua casa. ― Vieste a pé? Rachel acenou afirmativamente. ― São cinco quilómetros ― disse ela, conseguindo com esforço fazer um sorriso patético. ― Por isso não quero mais piadas sobre os jogos de vídeo e não sair do canto do sofá. A minha ideia não era ficar aqui. Só queria esperar até o cheiro sair da minha roupa. Só que a Dolly estava mortinha por ir dar um passeio, e depois sentei-me um bocadinho para descansar e acabei por adormecer no sofá. ― Devias ter-me ligado, Rachel. Eu tinha tratado de tudo. 145 A irmã revirou os olhos. ― Claro, lá vinha o mauzão do meu irmão polícia pôr tudo na ordem. Aidan, eu não me meto em sarilhos, mas gostava de manter uma pequena parte da minha vida social. ― Baixou a cabeça e olhou a medo para o irmão. ― Não contes ao pai e à mãe, por favor. Aidan ficou a pensar no assunto. O Abe e o Sean tinham-no encoberto muitas vezes quando eram todos miúdos. ― A festa já acabou? ― Já. Os pais da Marie voltavam para casa por volta da meia-noite, por isso, por esta altura, já se devem ter ido todos embora. ― Prometes que não voltas a sair com ela? Rachel estremeceu outra vez. ― Claro que prometo! ― Sendo assim, está combinado. Agora vai tomar um duche. Eu vou ver se te arranjo uma camisola e depois vamos ver se descobrimos uma maneira de tirar esse pivete a cerveja da tua roupa ― disse ele com uma careta divertida. ― Como eu também tenho roupa a cheirar a cerveja para lavar, sempre poupamos água. A irmã olhou para ele de olhos muito abertos. ― Estiveste numa festa? ― Nada disso. Numa briga de bar. ― E ganhaste? ― perguntou a irmã, cheia de expectativa. ― Querida, eu ganho sempre. ― Tocou-lhe no nariz com o dedo e ambos deram com os olhos na ligadura na mão dele. "Bom, nem sempre", pensou ele. Por exemplo, quando estava em causa uma certa médica que vivia em Michigan Avenue, que ficava fora do alcance das suas possibilidades económicas. Apesar de, na verdade, estar interessado. Muito interessado. Rachel cheirou a ligadura e depois levou a mão dele ao rosto. ― Forevermore. ― O quê? ― O cheiro nas tuas mãos. Chama-se Forevermore. E é ultramegacaríssimo. ― Olhou-o com malícia. ― Tu também estiveste


numa festa, Aidan. Também quero saber tudo! Ele riu-se, estranhamente embaraçado. ― Vai tomar banho, mafarrico. Ela levantou-se, mas quando chegou à porta voltou-se para o irmão com ar sério. ― Obrigada, Aidan. Se não fosses tu, não tinha para onde ir. 146 Aidan sentiu um aperto no coração. A sua irmã mais nova fora uma surpresa da idade madura dos pais e todos eles a tinham estragado com mimos. Mas ela era uma boa menina. Uma miúda mesmo fixe. Detestava que começasse a conhecer o lado feio da vida tão cedo. ― Podes vir ter comigo sempre que queiras, Rachel, mas por favor não me pregues sustos. ― Está combinado. Terça-feira, 14 de Março, 8.09 Aidan sentou-se na cadeira ao lado da de Murphy, evitando o olhar aborrecido de Spinnelli. ― Estás atrasado, Aidan. ― Desculpa. Tinha sido apanhado no trânsito da hora de ponta à frente da escola de Rachel, depois de ter dado uma saltada a casa dos pais para arranjar roupa lavada à irmã. O cheiro a cerveja tinha desaparecido, mas o cheiro a erva nem por isso. Jack atirou-lhe uma caixa já meio vazia de donuts. ― Foste o último a chegar, de maneira que eu e o Murphy já comemos todos os que tinham creme. ― Depois olhou para Aidan interrogadoramente. ― Conseguiste a lista de doentes dela? ― Não. ― Aidan acabou de comer um donut e lambeu o açúcar dos dedos. ― Recusou, embora com muita delicadeza. Mas depois do caso Green recebeu cartas ameaçadoras, que estão aqui. ― Com a mão limpa atirou o envelope para cima da mesa. O envelope que cheirava a Forevermore. Sentira-se ridículo a cheirar um envelope, mas a verdade é que não conseguira resistir. ― E confirmou que tomou Soma. Mais uma vez, depois do caso Green. Já não tinha nenhum dos frascos e não se lembrava se os tinha deitado fora ou não. ― Depois olhou para Spinnelli e acrescentou: ― Vai passar por aqui esta manhã para gravar a voz dela e para assinar uma autorização para lhe pormos o telefone de casa sob escuta. Spinnelli suspirou. ― Está a ajudar o melhor que pode. Se entregasse a lista dos doentes, era expulsa da Ordem. ― Parece que os da Ordem já andam em cima dela. Fizeram-lhe uma visita ontem. ― Aidan olhou de relance para Murphy. ― A tipa do Departamento de Saúde bufou.


147 Murphy resmungou. ― Raios a partam. É tudo a ajudar. ― E tu, descobriste alguma coisa no arquivo? Murphy olhou para Spinnelli, que lhe respondeu com um aceno encorajador. ― Desembucha, Todd. ― Tanto os dossiês da Cynthia Adams como os do Avery Winslow foram consultados há três meses. ― Nessa altura respirou profundamente. ― Pelo Preston Tyler. Aidan abanou a cabeça, surpreendido. ― Impossível, ele está... "Morto." Mas como é evidente todos sabiam isso. Tinha sido morto por Harold Green, pelas suas próprias mãos. O que fora muito mais compassivo que o que fizera às três meninas. Aidan fez ranger os dentes num esforço para expulsar a raiva que o enlouquecia sempre que recordava o corpo mutilado da menina que tinha encontrado. E que Harold Green escapara à justiça. Graças a Tess Ciccotelli. Que, por outro lado, tinha contribuído para a condenação de outros trinta e um homens muito perigosos. Fez um esforço para ter isso presente. Para se obrigar a recordar o sofrimento nos olhos dela quando olhara para o corpo de Avery Winslow, mostrando que por trás da fachada fria se encontrava uma mulher que se preocupava com os outros. Porque ela era humana. E por ser humana cometera um erro. Um erro terrível, trágico. Percebeu que todos o observavam em silêncio e bateu com as duas mãos na mesa antes de continuar. ― Quem ia permitir que alguém pedisse um dossiê em nome de Preston Tyler? ― Uma empregada nova. Ela não sabia da história, Aidan ― disse Murphy. ― Esteve aqui esta manhã e disse-me que foi um polícia que mostrou o distintivo. Também disse que o relatório nem sequer saiu da sala, mas o mesmo polícia voltou no turno seguinte para o consultar outra vez. ― Agora caiu nas garras dos assuntos internos ― disse Spinnelli num tom sombrio. ― Estão a mostrar-lhe fotografias. A expressão de Jack tornou-se mais dura. ― E se ela não for capaz ou não quiser identificá-lo? ― É sempre possível ― admitiu Spinnelli. ― Mas os assuntos internos têm lá os métodos deles. ― E as gravações das câmaras de segurança? ― perguntou Aidan. 148 Murphy encolheu os ombros. ― Desapareceram, muito a propósito.


― Isto diz muito da maneira como o arquivo conserva os arquivos ― resmungou Jack. ― Os assuntos internos também andam de volta disso. ― Spinnelli parecia cansado. ― Vai haver um inquérito. ― Mas tens razão, Murphy. É tudo a ajudar ― disse Aidan. ― Há boas notícias do Rick? Jack fez que não com a cabeça. ― Esteve toda a noite a trabalhar, mas o nosso homem é esperto. As transmissões estão praticamente desviadas para Marte. Mas eu também tenho notícias. Um dos meus homens encontrou fibras negras em alguns dos lírios. São de nylon. Encontrámos fibras que parecem do mesmo tipo no boneco que veio de casa do Winslow, mas o calor do forno misturou o nylon com o plástico da cara do boneco, por isso não pudemos separá-lo para o analisar com segurança. ― Parece-te que pode ser de uma mala? ― perguntou Murphy. ― De alguma coisa que possa ser usada para transportar objectos? Jack acenou afirmativamente. ― Foi o que pensámos. A pista não vai conduzir-nos necessariamente à mala, mas se a encontrarmos é quase certo que lá dentro vai haver pólen dos lírios. Aidan lembrou-se do número impressionante de lírios que cobriam o chão do apartamento de Cynthia Adams. ― Se os lírios foram transportados numa só mala, alguém teve de fazer um grande número de viagens. Podíamos bater à porta de todos os apartamentos do edifício com uma fotografia da mulher do vídeo da loja de apartados para ver se alguém se lembra de a ter visto por lá. Talvez na mesma altura encontremos Joanna Carmichael para ver se ela tem mais fotografias do local onde caiu a Cynthia Adams. Ontem à tarde não andou por lá. ― Parece-me que pode resultar nalguma coisa ― disse Spinnelli. ― Mais alguma ideia? Murphy mastigava mais um donut com ar pensativo. ― Temos a chave do cofre de Cynthia Adams. ― E uma lista de cinco condenações que a Tess acha que resultaram das peritagens dela. ― Aidan interceptou uma olhadela surpreendida de Murphy. ― Deu-ma ontem à noite. Mas continuam os cinco na prisão. ― "Porque nenhuma comissão de liberdade condicional fez 149 merda", pensou ele, recordando a maneira como Tess corara quando se apercebera do que quase lhe escapara. Murphy continuava a olhar para ele. ― O quê? O parceiro desviou os olhos. ― Nada. Quem vai intimá-la a entregar a lista de doentes, Marc? ― Vou avisar o Patrick de que avance o mais depressa possível.


― Nesse caso, pede-lhe que arranje também um mandado para o cofre de Cynthia Adams ― disse Murphy. Spinnelli tomou nota da sugestão. ― Alguém tem mais algum pedido antes que a cozinha feche? ― perguntou sardonicamente. ― Aidan, quando é que a Tess vem? ― Durante a manhã, mas não sei a que hora exactamente. Eu dou-te um toque quando ela chegar. Jack pôs-se de pé. ― Vou preparar as coisas na cabina de som. ― Temos demasiadas possibilidades ― disse Spinnelli, que continuava a observá-los, ainda de sobrolho carregado. ― Temos de excluir algumas. Murphy parou junto da porta. ― Todos sabemos que os assuntos internos não nos vão dizer quem é que a nova empregada do arquivo identificou, Marc. ― Faz o teu trabalho, Murphy, que eu falo com os assuntos internos ― disse Spinnelli com voz firme. Murphy ia abanando a cabeça em sinal de incredulidade enquanto ele e Aidan caminhavam para as suas secretárias. ― Antes ele que nós. Tens algum problema? ― Não, nenhum. Porquê? ― respondeu Aidan com ar surpreendido. ― Tens a mão numa miséria. "E ela tratou-me", foi tudo o que ele conseguiu pensar. Depois fez um esforço por se concentrar. ― O amigo do Morris lembrou-se de se armar em herói ontem à noite. Agora está a ver se se acalma lá em baixo numa cela. Ainda não acabei de preencher a papelada. Resistiu à ordem de prisão e atacou um polícia. Murphy ficou a vê-lo afastar-se. ― Continuas com uma carinha laroca. Onde é que o gajo te acertou? ― Levei uma no estômago ― respondeu Aidan com uma careta. ― O tipo tem uma esquerda e pêras. 150 ― Vais ver que não morres desta. "Foi o mesmo que ela disse." Murphy sentou-se à secretária, mas continuou a observar o parceiro, o que estava a pôr Aidan doido. Para não pensar no assunto pôs-se a procurar os impressos de que precisava. Um minuto mais tarde levantou os olhos para Murphy. O parceiro continuava a olhar para ele. ― O que é que foi?!; ― Chamaste-lhe "Tess". Aidan ainda abriu a boca para negar, mas depois lembrou-se que era verdade. ― E daí? ― E daí que também estás a ficar apanhado por ela.


Aidan lembrou-se do sonho que o tinha acordado ao nascer do dia. Tess Ciccotelli estava na cama dele e o seu cabelo negro ondulado espalhava-se por cima dele, enquanto ela ia beijando o seu corpo. Todas aquelas curvas, aquela boca... O telefone na secretária dele tocou, poupando-o à necessidade de responder. ― Era da recepção ― disse apenas. ― A Dr.a Ciccotelli está lá em baixo. Murphy sorriu pelo canto da boca. ― Nesse caso, acompanhem por favor a Dr.a Ciccotelli cá acima. Eu telefono ao Jack para lhe dizer que ela chegou. Tess estava sentada no átrio da esquadra, consciente de que não havia polícia ali presente que não observasse atentamente o seu movimento mais insignificante. Em tempos, aqueles olhares tinham sido de ódio e de desprezo. Nesse momento começava a perguntar a si mesma se não haveria ali quem estivesse determinado a vingar-se de uma maneira mais pessoal. A ideia bastara para quase a impedir de dormir nessa noite. Juntamente com a preocupação com o seu paciente que se seguiria. Parte dela desejava desesperadamente dar a Reagan a lista que ele lhe pedira na noite anterior. Sabia que se sentiria protegida, que não teria de voltar a olhar para os olhos sem vida de outro doente. Mas isso não seria ético. E Reagan sabia. A privacidade dos doentes tinha de ser protegida. Havia um estigma associado a ir ao psiquiatra. Muitos dos seus doentes estavam convencidos de que as suas vidas seriam arruinadas se alguém soubesse que precisavam de ajuda psiquiátrica. Tess só queria que em vez disso não fossem destruídas. Embora não pudesse dar os nomes deles a Reagan, podia telefonar a todos 151 individualmente. Tencionava fazê-lo mal saísse dali. Bastaria assinar a autorização e deixar uma gravação da sua voz. A porta do elevador abriu-se e Reagan apareceu. Como era de prever, o seu pulso acelerou. Ele era incrivelmente bem-parecido. Nesse momento já era capaz de o admitir. Caminhava com um poder contido que ela sabia ser uma força em que se podia confiar. E também sabia que ele era de confiança. Reagan observou a sala à sua volta até que cruzou o olhar com o dela. Estava a avaliar, tal como ela. Depois, os olhos dele fixaram-se no lenço que ela trazia à volta do pescoço e a disposição dela piorou um pouco. Ele sabia. E isso incomodava-a. ― Dr.a Ciccotelli ― disse ele com voz suave. ― Obrigado por ter vindo. ― Eu tinha dito que vinha ― observou ela enquanto reunia as suas coisas ― e faço sempre o que digo. ― Seguiu-o, com um sobressalto, quando ele parou à frente do elevador. ― Hoje falhei a minha corrida ― disse ela com um esgar. ― Havia jornalistas por toda a parte. Importa-se de subir pelas escadas?


Ele baixou os olhos para ela, as sobrancelhas um pouco erguidas. ― Até à divisão de tecnologia, onde vai fazer a sua gravação, são quatro andares. ― Não tem importância. Os olhos dele pareceram tornar-se menos severos. ― Vamos então pelas escadas. ― Depois de passarem pelo primeiro andar voltou-se para trás e perguntou: ― Ligou à sua advogada? Pareceu-lhe revelador que ele desse importância ao cumprimento da promessa dela. ― Telefonei. ― Amy estava à espera da chamada dela e pedira-lhe desculpa mais de uma vez. No entanto, a conversa entre as duas revelara constrangimento e nenhuma delas falara em reatar a relação advogada-cliente. Talvez fosse melhor assim. Ela e Amy já tinham vivido muitas coisas juntas. A sua amizade sofrera um revés e era demasiado preciosa para a arriscarem. Se viesse mesmo a precisar de um advogado de defesa, poderia recorrer a outros. ― Liguei-lhe depois de correr com a jornalista do Bulletin. Reagan olhou-a surpreendido. ― Cyrus Bremin foi a sua casa? ― Não, a pessoa que lá foi não era assim tão famosa. O nome dela era Joanna Carmichael. ― Ah, a fotógrafa. Posso ajudá-la com a pasta? 152 Ela recusou com um gesto. ― Não é preciso, obrigada. Quer dizer que conhece a Joanna Carmichael? ― Ainda não. Tentámos falar com ela depois de lermos o artigo no jornal ontem de manhã. Passámos por casa dela para ver se havia outras fotografias de Cynthia depois do suicídio. ― Hesitou e depois encolheu os ombros e contou-lhe: ― Ela vive no edifício onde vivia Cynthia Adams. ― Nesse caso foi ela que desencantou a grande história para depois ser o Cy Bremin a assinar o artigo. Não me surpreende que queira um exclusivo. ― Um exclusivo? ― A risada breve dele fez eco nas paredes entre as quais iam subindo. ― Não está boa da cabeça ― disse ele, mas depois conteve-se, constrangido. ― Desculpe. Não fui muito delicado. Tess riu-se. ― Não tem importância. Eu disse-lhe o mesmo, mas numa linguagem mais colorida. ― O seu vocabulário voltou a deteriorar-se? ― Acho que lhe falei em vaselina ― disse ela depois de uma breve hesitação. ― O mais certo é ainda vir a arrepender-me. Quando chegaram ao quarto andar ele segurou-lhe a porta para ela


passar. Ao fundo de um pequeno corredor ficava um estúdio de som onde os esperava o que parecia um elenco completo de uma peça. Spinnelli, Patrick Hurst e Murphy estavam do lado de fora do estúdio, enquanto Jack se encontrava lá dentro a falar com o técnico. ― Sendo assim só vou actuar para os galinheiros... ― disse ela, e Spinnelli sorriu. ― Onde aparece o meu nome nos cartazes? ― Queremos fazer isto de acordo com todas as regras. Para o seu e o nosso bem. ― Acho que fazem bem, Marc. Ouvi dizer que estás afogado em apelos, Patrick. O procurador fez má cara, mas era o que fazia sempre que ela estava por perto, ou pelo menos era essa a impressão que Tess tinha. Quando ele ocupara o lugar do último procurador, que se demitira por causa de um escândalo, chegara a pensar que o tinha ofendido, mas entretanto percebera que era essa a sua cara normal. ― Já havia mais dois à minha espera no fax hoje de manhã ― queixou-se ele. ― Tenho muita pena. Quem me dera arranjar maneira de fazer tudo isto desaparecer. Para bem de todos nós ― respondeu-lhe Tess, que 153 engoliu em seco. ― Especialmente por Cynthia Adams e por Avery Winslow. Mas tu sabes que não te posso entregar a minha lista de doentes. ― E tu sabes que vou intimar-te a entregá-la ― disse ele com um aceno de quem compreendia a posição dela. ― E eu vou ser obrigada a contestar. Patrick encolheu os ombros. ― E o jogo continua. Só espero que não morra mais ninguém enquanto andarmos nisto. Ela retraiu-se. Era um golpe baixo, bem apontado para doer. ― Sendo assim, o melhor é descobrirmos quem está por trás destes crimes antes que isso aconteça. Spinnelli deu um passo em frente. ― Ora aí está uma boa ideia. Eles já estão prontos, Tess. Vamos lá despachar isto. Jack apareceu à porta do estúdio. ― Sabe o que tem de fazer, Tess, não sabe? Ela respirou fundo. ― Quer que eu repita as palavras da mensagem que encontrou no atendedor de chamadas de Cynthia. Eu sei como isto funciona, Jack. ― Nesse caso, também sabe que não é uma ciência exacta. Primeiro comparamos os gráficos visualmente e depois o nosso perito faz uma análise sonora. Também vai ter de produzir uma série de outros sons. E depois disto tudo é possível que não tenhamos nenhum resultado definitivo. ― Pensei que tinhas dito que o teu homem era competente ― disse


Murphy com uma voz tensa. ― E sou. A voz saíra de dentro do estúdio e fê-los a todos voltarem-se. O homem que estava no interior abriu a porta e ficou encostado a ela à espera. ― O sargento Dale Burkhardt ― apresentou Jack. ― É o equivalente a mim na unidade de tecnologia. Faz investigação e desenvolvimento com todos os novos dispositivos. O Dale está acima do nível do FBI em avaliação de voz. É o melhor que nós temos. Os lábios de Burkhardt esboçaram um sorriso irónico. ― A graxa não te vai servir de nada, Jack. Mesmo assim ficas a deverme uma. ― Depois voltou-se para Murphy. ― Em teoria, nunca há duas vozes perfeitamente iguais. A voz é produzida pela cavidade vocal, 154 pela garganta, pelas cordas vocais e pelo movimento da boca quando são pronunciadas as palavras. Os imitadores podem ser difíceis de detectar porque, apesar de ser pouco provável que tenham uma cavidade vocal com as mesmas dimensões, estudam as posições dos lábios e da língua e imitam-nas. Esses aspectos são semelhantes, por isso temos de tocar de ouvido. ― A piada teria caído bem em qualquer outro dia. Tess até podia ter sorrido. Mas não naquele dia. Daquela análise dependiam demasiadas coisas. ― Dr.a Ciccotelli, se estiver pronta vamos começar. Tess entrou no estúdio atrás de Burkhardt e sentou-se na cadeira que ele lhe indicou. Sobre uma mesa encostada à parede estava montado um microfone. Ao lado havia um monte de fichas de cartolina. Na de cima estava escrita a mensagem que se encontrava no atendedor de chamadas de Cynthia Adams. Com um gesto incerto, Tess pegou-lhe. ― Posso começar? ― perguntou-lhe. ― Espere um pouco, por favor. Eu fico lá fora. Em seguida, sentou-se do lado de fora da cabina e fez-lhe sinal para que começasse. Ela tentou, mas quando a voz lhe saiu entrecortada fechou os olhos. Ouvir de novo as odiosas palavras pronunciadas em voz alta recordou-lhe Cynthia Adams a ouvi-las e a acreditar nelas, alterada pelas drogas. A voz de Burkhardt fez-se ouvir com interferências pelo intercomunicador. ― Comece outra vez, por favor, Dr.a Ciccotelli. ― Seguiu-se um momento de silêncio e depois de novo a voz de Burkhardt, dessa vez mais amável. ― Procure não pensar na vítima. Tente repetir como está na mensagem. Suave... "Suave..." Tess endireitou-se na cadeira e leu de novo a mensagem. ― Está melhor, mas leia outra vez. E mais suave.


Ela leu-a outra vez e a meio levantou os olhos e encontrou os de Aidan Reagan pousados nela. Ele acenou-lhe e com os lábios mudos pronunciou algumas palavras: ― Está a correr bem. Continuava com os nervos em franja, mas a impressão de náusea no seu estômago acalmou-se o suficiente para conseguir aproximar-se do tom da pessoa que ligara antes de passar às outras fichas, que continham uma série de palavras ao acaso, escolhidas pelos sons que obrigavam o falante a produzir. Leu-as todas e depois voltou ao princípio do monte. De vez em quando, olhava para Aidan Reagan, que lhe acenava 155 sempre. Nunca sorriu nem esboçou mais palavras. Mesmo assim, Tess sentiu-se um pouco menos só do outro lado do vidro. Por fim, tudo aquilo ficou concluído. Burkhardt levantou-se, mas o seu rosto não denunciava qualquer impressão. ― Obrigado, Dr.a Ciccotelli, Já pode sair. Tess saiu da cabina. As suas mãos e os joelhos só não tremiam porque ela aplicava toda a sua força de vontade ao esforço de o impedir. Mas ninguém disse uma só palavra. Os homens estavam a observar o ecrã do computador de Burkhardt. Nem um deles olhou para ela. Por fim, ela não conseguiu aguentar mais. ― Então? Jack abanou a cabeça. ― Está próximo, Tess. Muito próximo. Lentamente, deixou sair o ar dos pulmões. De que é que ela estava à espera? A voz no atendedor de chamadas era tão próxima da dela que teria enganado a sua própria mãe. ― Então e agora? O olhar de Burkhardt mostrava um misto de respeito e simpatia. ― Eu ainda nem sequer comecei a analisar a amostra, Dr.a Ciccotelli. Já estava a contar que fossem assim próximas. Não desista já. Patrick pegou no casaco dobrado e pô-lo sobre o braço. ― Quando tiveres alguma coisa telefona-me. Se conseguisses ainda de manhã era óptimo. Hoje vou almoçar com o juiz Doolittle e não gostava de fazer figura de parvo. Depois de Patrick sair, Burkhardt resmungou. ― Antes de almoço... Deve estar a brincar! ― Não me parece ― disse Spinnelli. ― Havemos de ir até ao fundo da questão, Tess. Procure não ficar preocupada. Ela acenou que sim, rígida. ― Está bem. ― Seria mais fácil tentar deixar de respirar. Spinnelli saiu a abanar a cabeça, desanimado. ― Merda. Estava a contar com isto. Tess vestiu o casaco e pegou na


pasta. ― Obrigada pela tentativa. Tenho de ir assinar a autorização para porem o telefone sob escuta e depois deixo-vos trabalhar. ― Passou por Murphy, que quase não abrira a boca durante o teste. Parecia quase tão desanimado como ela. De repente sentiu-se cansada de mais para continuar zangada com ele. Parou junto do polícia, de maneira a poder olhá-lo de frente. ― Eu percebo, Todd ― murmurou. E era verdade. 156 ― Ainda estou magoada por não teres acreditado em mim, mas percebo. Se estivesse no teu lugar, e com todas estas provas, podia ter pensado o mesmo. Quando ia a sair ouviu Murphy e Reagan falarem entre eles em voz baixa e depois Reagan aproximou-se dela por trás. Percebeu que era ele só pela maneira como andava e pelo cheiro do seu aftershave. Aproximaram-se da secretária de Reagan em silêncio. Sem dizer uma palavra, ele entregou-lhe o formulário que o autorizava a pôr o telefone dela sob escuta para ela assinar. Na sua cabeça, as palavras de Amy repetiam-se sem parar: "Não sejas parva, Tess." O que ela ia fazer era prescindir voluntariamente do seu direito à privacidade. Mas se aquela mulher voltasse a ligar, eles ficariam com uma amostra da voz dela. "Sem estar a imitar a minha." Partindo do princípio de que era sempre a mesma mulher a telefonar, uma suposição que naquele momento parecia razoável. Tudo indicava que o risco valia a pena. Assinou o documento e, quando teve a certeza que os seus olhos não deixavam transparecer a sua insegurança, levantou-os para Reagan: ― Obrigada. Ajudou-me a suportar tudo aquilo. O sorriso dele foi breve, mas bastou para que um arrepio lhe percorresse a espinha. ― Eu sei que a Dr.a Ciccotelli tem passado por muito nestes dias. Se fosse eu, não sei se teria aguentado. Isto fê-la sorrir. ― Bom dia, detective. Não precisa de me acompanhar. Eu já sei o caminho. Terça-feira, 14 de Março, 11.55 Depois de ter passado a manhã a falar com bancários, Aidan começou a perceber a popularidade dos ATM. Eram impessoais, era verdade, mas eram despachados e não tinham a mania que eram importantes. Mesmo com um mandado, levou muito tempo a descobrir onde parava o cofre de Cynthia Adams. Por fim, foram acompanhados até ao cofre por uma mulher de rosto fino, Mrs. Waller, que lembrou vagamente a Aidan a sua professora de Matemática do oitavo ano. A recordação não era das melhores. Mrs. Waller tirou uma caixa de tamanho médio do compartimento e


pô-la sobre uma mesa alta. 157 ― Tem a chave? Murphy tirou-a do bolso. ― Isto podia muito bem ser Geraldo a violar o cofre de Capone, claro ― resmungou em voz baixa enquanto abria a caixa e levantava a tampa. ― Algumas acções. O testamento dela ― disse, e deu os papéis a Aidan, que passou os olhos rapidamente pelo testamento. ― O grosso dos bens vai para a irmã. ― Não deve tê-lo actualizado. ― Murphy olhou por cima da mesa para Mrs. Waller. ― Quando foi a última vez que ela mexeu na caixa? A mulher uniu as mãos com ar devoto. ― Na última sexta-feira. ― A sério? ― Aidan franziu o sobrolho. ― E tirou ou pôs alguma coisa? ― Não registamos essas informações. Preservamos a privacidade dos nossos clientes. ― Sabe uma coisa? Estou a ficar farto da privacidade de toda a gente. ― Nesse caso, fico satisfeito por não estares a defender os meus direitos consignados na quarta emenda. ― Murphy abanou um pequeno envelope com qualquer coisa lá dentro. ― Acho que pôs qualquer coisa. ― Rasgou um dos lados do envelope e deixou cair duas cassetes pequenas na mesa. ― São minúsculas. ― São usadas em gravadores de voz, como os dos jornalistas e os das secretárias ― disse Aidan. A sua cunhada nunca ia para sítio nenhum sem o seu pequeno gravador. ― A Kristen anda sempre a tagarelar com um. Alguma das secretárias do gabinete de Patrick deve ter um leitor dessas cassetes. Murphy reuniu os objectos que tinha tirado da caixa. ― E o Burkhardt também. ― Tu queres é saber se ele já tirou alguma conclusão quanto à gravação da Tess. ― A ideia passou-me pela cabeça ― respondeu Murphy com um sorriso breve. ― Vamos comer qualquer coisa e depois vamos ter com o Burkhardt. Terça-feira, 14 de Março, 12.35 ― Estás a planear dar-me uma tampa? Tess levantou os olhos do dossiê e pestanejou para focar o homem 158 encostado à porta do gabinete e logo a seguir o relógio de parede. O relógio era uma antiguidade, bem como o homem, o seu colega de consultório, Harrison Ernst. Tinham combinado almoçar juntos nessa terça-feira. ― Desculpa, Harrison. Perdi a noção do tempo. Importas-te que não vamos almoçar hoje? Harrison tirou a mala e o casaco dela do bengaleiro.


― Na verdade importo. ― Tenho de acabar de estudar estes ficheiros. ― Estava a trabalhar no mesmo há várias horas, a tentar perceber qual dos seus doentes estava mais em risco de ser vítima de uma manipulação mental. Nesse momento pôs de parte o que estava a ler com um toque de petulância. ― Tens de fazer uma pausa, Tess. Os teus olhos estão a ficar vermelhos. Faz a vontade a um homem idoso. ― Pegou-lhe na mão e ajudou-a a levantar-se. ― Estás a ver? Não é assim tão difícil... ― Harrison, por favor... O colega mais velho olhou de relance para a secretária dela. ― Estás a ver se adivinhas quem vem a seguir, não estás? O tom um pouco indulgente dele fê-la recuar. ― Estava. ― Terias desconfiado que os dois que morreram também estariam em risco? Tess fechou os olhos e apertou a mão de veias salientes do velho homem. ― Não mais que metade dos meus outros doentes. Não consigo encontrar nenhuma ligação evidente entre eles, a não ser que ambos tinham tendências suicidas decorrentes de traumas anteriores. ― Como metade dos teus outros pacientes. Posso sugerir-te uma estratégia diferente? Como quem não quer a coisa, Harrison tinha conseguido que ela vestisse o casaco e se encaminhasse para o elevador. Eram apenas três andares, mas Harrison já não conseguia descer pelas escadas. Três andares ela ainda aguentava. Com um sorriso forçado, Tess perguntou: ― Há alguma maneira de te impedir? Ele riu-se e carregou no botão da garagem. ― Provavelmente, não. Tess, pára de tentar ler a mente dos doentes. Comporta-te como uma psiquiatra. As portas fecharam-se e o pulso dela acelerou. 159 "Dois andares. Agora já só falta um." As portas do elevadorabriram-se e ela respirou fundo, sem se ralar por o ar cheirar a óleo e a fumo. ― Que queres dizer com isso? ― Se não fosses suspeita neste caso e aqueles dois detectives não tivessem vindo falar contigo, que terias feito? ― perguntou Harrison ajudando-a a entrar no carro. ― Tinha estudado um perfil ― disse ela quando ele se sentou atrás do volante. ― Então é isso que deves fazer ― disse ele com delicadeza, tirando o carro do seu lugar de parqueamento. ― E eu posso ajudar-te. Ah, o mais certo é haver jornalistas à porta.


― Desculpa. ― Tess, olha para o que está dentro desse saco ― disse ele com um olhar reprovador. Tess abriu o saco de papel castanho que estava no banco da frente entre os dois e não conseguiu conter o riso. Lá dentro havia um chapéu de feltro e uns óculos à Groucho Marx, acompanhados com nariz e bigode. ― É o meu disfarce? ― Pareceu-me que talvez preferisses andar incógnito ― respondeu ele com um sorriso. ― E um passaporte falso e dez mil dólares, não tens também? ― Nós não vamos fugir para o México, Tess. Só vamos almoçar... Tess sentiu um aperto no coração. ― Harrison, alguma vez disse que te adoro? Ele deu-lhe uma palmada leve na perna. ― Não, mas eu já tinha adivinhado. A Eleanor não ia querer que tu ficasses para aí sem reagir e a punires-te a ti própria. Tess recordou a mulher que tanto lhe ensinara. Eleanor Brigham fora a sua mentora e a melhor amiga de Harrison. Tinham sido eles os dois que tinham aberto o consultório juntos vinte anos antes. Tess sabia que tinha sido escolhida como uma espécie de herdeira, mas fora apanhada completamente desprevenida quando Eleanor morrera de um AVC durante o sono, três anos antes. ― Sinto muito a falta dela. Quem me dera que estivesse connosco. Mas estou muito satisfeita por, pelo menos, tu estares comigo. Ele misturou-se com os outros carros que circulavam sem prestar a menor atenção aos jornalistas que tentaram detê-los. 160 ― Ultimamente dei em detestar os meios de comunicação. ― Percebo o que queres dizer. Mas afinal quem é este monstro, Harrison? ― Tu é que tens de me dizer. Estás a par de mais factos que eu. ― Mas não de todos. O detective Reagan não me conta tudo ― confessou Tess, ajeitando-se melhor no assento. ― Mas sei o suficiente para ficar com uma ideia. É uma pessoa que tem necessidade de domínio e o sentido do pormenor. Além disso, tem uma personalidade teatral. Tem a capacidade de adivinhar a vulnerabilidade e ao mesmo tempo de a explorar sem compaixão. Tem acesso aos nomes dos meus doentes e aos relatórios da polícia. ― Homem ou mulher, Tess? ― Não sei. A pessoa que já me telefonou duas vezes é sem dúvida uma mulher. A pessoa que imitou a minha voz era mulher. ― Houve uma pessoa que imitou a tua voz? ― O olhar de relance dele mostrava o seu choque.


― No atendedor de chamadas da Cynthia Adams. Fui esta manhã à esquadra para fazer uma gravação da minha voz, na esperança de excluir a possibilidade de ter sido eu, mas pelos vistos não vai ser fácil. ― Nesse caso, a pessoa que fez isto anda a planear a coisa há algum tempo. ― É o que parece. ― Como é que eles souberam os nomes dos teus doentes? ― Também tenho andado a pensar nisso. Uma das coisas que o Winslow e a Cynthia tinham em comum era eu ter-lhes sido recomendada, a ambos, no hospital, depois de terem dado entrada por causa de tentativas de suicídio. Mas isso acontece com metade dos meus pacientes. ― Nesse caso, no hospital há registos dessas recomendações. ― Sim, há. Tecnicamente, esses registos são confidenciais e estão protegidos, da mesma maneira que os nossos. Mas... ― concluiu com um encolher de ombros. ― Os teus dossiês foram violados? ― perguntou ele. ― Também pensei nisso. Não há nada fora do sítio e as únicas pessoas que acederam aos meus ficheiros fomos nós, eu própria e a Denise. ― Ela trabalha connosco há cinco anos. Está no consultório desde que tu vieste. Tess suspirou. Nunca se sentira à vontade com Denise, mas Harrison gostava muito dela. 161 ― Eu sei. Além disso, esta pessoa também tem acesso aos arquivos da polícia. Sabia da irmã da Cynthia, tinha cópias das fotografias do local da morte. Também tinha as do bebé do Avery Winslow. E eu não tinha nada disso nos meus arquivos. Também havia lírios no apartamento de Cynthia, e eu disso também não sabia nada. ― Será alguém que tem poder sobre um polícia? ― Ou um polícia que está por trás de tudo isto. Harrison respirou fundo ao mesmo tempo que ia estacionando no parque do restaurante. ― Nesse caso podia ser uma vingança. ― O detective Reagan parece achar que isso é possível. O carro parou. ― Sendo assim, temos um sociopata organizado e teatral. ― Que percebe de medicamentos. ― Ah, isso é interessante. Tess recordou a tragédia que haviam sido as duas mortes. Suicidas que haviam lutado com tenacidade para se libertarem do seu desejo de morrer. A crueldade envolvida em tudo aquilo ia para lá da mera violência. ― E que não gosta de sujar as próprias mãos. ― E a quem tu dás tesão.


Tess ficou de olhos arregalados com a palavra vulgar, tão pouco característica do colega. ― Harrison! Ele não disse nada e ela encolheu os ombros. ― Imagino que sim. ― Parece-me que já temos um esboço de perfil, Dr.a Ciccotelli ― disse ele com um sorriso. ― E eu estou mortinho por um prato de lombo de porco assado. O trânsito de Chicago ao meio-dia só tinha um aspecto positivo, pensou Joanna ao tirar a protecção da lente da sua máquina fotográfica. Ninguém conseguia andar suficientemente depressa para fugir a uma perseguição. Montada na sua bicicleta conseguiu dez boas fotografias da Dr.a Ciccotelli e do seu acompanhante. Depois de um dia inteiro no encalço da Ciccotelli, o cartão de memória da máquina estava quase cheio e o papel das moscas estava a ficar bom e peganhento. CAPÍTULO 9 Terça-feira, 14 de Março, 12.35 ― Ainda não acabei ― disparou Burkhardt antes que Aidan ou Murphy conseguissem dizer uma só palavra. ―- Não estamos aqui para te chatear ― disse Aidan, que tirou uma folha branca do bolso do casaco ― mas estamos na disposição de te subornar. Burkhardt ergueu uma sobrancelha. ― Que é que tens no saco? Aidan mostrou-o sem o aproximar o suficiente para que ele lhe pudesse pegar. ― Baclavás. Das genuínas. ― A sua intenção fora guardá-las para o seu próprio lanche, mas Burkhardt pareceu-lhe frustrado, com o cabelo em pé, como se tivesse passado a manhã a arrepanhá-lo. A mãe de Aidan sempre dissera que a melhor maneira de apanhar moscas era com mel e as baclavás estavam cheias dele. Burkhardt fez uma careta de indignação. ― Isso é uma jogada baixa, Reagan. ― Depois de uma hesitação fingida, concluiu: ― Está bem. Passa para cá o material. ― Agarrou o saco e espreitou com ar apreciador. ― Há nuances. ― O que é que isso quer dizer, "nuances"? ― perguntou Murphy. ― Quer dizer que detecto algumas diferenças em certos sons, mas eles não ocorrem com frequência suficiente na cassete do atendedor para eu poder excluir a possibilidade de ser ela. Esta imitadora é muito, muito boa. ― Depois de uma hesitação olhou para Aidan e em seguida para Murphy. ― Têm a certeza que a vossa psiquiatra não é culpada?


Aidan teve a impressão de ouvir os dentes de Murphy a rangerem ― Temos a certeza absoluta ― respondeu Murphy. 163 Burkhardt encolheu os ombros. ― Bom, pois ela tem a vossa psiquiatra encostada à parede. A palavra "imitadora" despertara qualquer coisa na mente de Aidan, que pensava com insistência em maus imitadores de Richard Nixon. ― Achas que podia ser uma profissional? Mais uma vez, Burkhardt fez um gesto de ignorância. ― Talvez. Vale de certeza a pena estudar essa possibilidade. Os melhores imitadores acabam quase sempre por trabalhar em bares e no meio profissional. Alguns fazem dobragem de animação, mas em Chicago não deve haver muitos. ― As actrizes de teatro também imitam vozes ― disse Murphy com ar pensativo. Retirou as cassetes do envelope que trazia no bolso da camisa e entregou-as a Burkhardt. ― Mas a verdade é que não viemos nem chatear-te nem subornar-te. Importas-te de nos passar estas cassetes? Burkhardt fez saltar as cassetes na palma da mão. ― Com este equipamento não é possível ― disse ele, mas dirigiu-se a um arquivador e vasculhou até encontrar um pequeno gravador. ― Por agora é o melhor que posso fazer ― disse e meteu uma das cassetes no aparelho, que pôs imediatamente a funcionar. Aidan franziu o sobrolho quando ouviu um grito muito agudo. ― Que raio é isto?! Burkhardt aproximou o aparelho do ouvido. ― Parece-me qualquer coisa como "Cynthia, Cynthia, porque o fizeste?" ― Entregou o gravador a Aidan, com um olhar perturbado no rosto. ― É sinistro... Parece uma criança, mas não é fácil de perceber. Estes gravadores pequenos não têm grande qualidade de som. Aidan ouviu, rebobinou a cassete e voltou a ouvir. ― Cynthia Adams guardou estas cassetes no cofre que tinha no banco dois dias antes de morrer. ― Cruzou o olhar com o de Murphy. -― Os altifalantes. ― Tens razão ― disse Murphy num tom sombrio. ― Levaram Cynthia Adams a acreditar que a irmã lhe falava do túmulo. Porque diabo fez ela uma gravação? ― Se calhar pensou que estava a enlouquecer e teve medo de contar a outras pessoas. A Tess disse que ela tinha tendência para negar as coisas em que não queria acreditar. E ela não queria acreditar que estava a ouvir vozes, e a gravação seria uma prova de que não estava só a imaginar. 164 Murphy voltou-se para Burkhardt.


― Se for a mesma imitadora, consegues compará-la com a imitação da voz de Tess Ciccotelli? Burkhardt acedeu a tentar.. ― A gravação é má, mas vou fazer o melhor possível. Aidan olhou para as cassetes. ― Havia mais uma mensagem gravada. Uma que dizia à Cynthia Adams que visse o e-mail. Já a analisaste? ― Não sabia nada dessa outra gravação ― disse Burkhardt, surpreendido. ― Estávamos tão concentrados na mensagem da Tess que nos esquecemos dela ― disse Murphy com irritação. ― Bom, agora que sei que ela existe vou pedi-la ao Jack; talvez com todo o material reunido se consiga alguma coisa definitiva. Terça-feira, 14 de Março, 15.15 Mrs. Lester chorava, longos e fundos suspiros de dor e raiva, que na verdade pareciam música aos ouvidos de Tess. Durante três meses, aquela mulher fizera terapia com queixas que iam de apertos no coração a insónias. A realidade é que não fora capaz de lidar com o suicídio do filho, de trinta anos. Suportara as emoções, celebrara as cerimónias, enterrara-o e chorara-o. Mas a sua raiva era muito mais funda. De uma maneira ou de outra, as mortes tornadas públicas de Cynthia Adams e Avery Winslow tinham conseguido desencadear toda aquela raiva e, por fim, Mrs. Lister admitia a que ponto se sentia enraivecida, a que ponto o odiava por tê-la deixado daquela maneira. Como o amava e sonhava que ele regressasse. Devia tê-lo protegido, mas não soubera o que se passava. Nunca desconfiara, sequer. Até que foi tarde de mais. E não teria uma segunda oportunidade. O assunto era comum entre os que ficavam para trás, mas nunca deixava de fazer os olhos de Tess arderem com as lágrimas que não se permitia chorar e a garganta cerrar-se-lhe num nó. De momento, limitou-se a passar os lenços de papel a Mrs. Lister e a deixá-la chorar tudo o que quisesse. Tess sabia que no fim de tudo aquilo ia sentir-se vazia, mas não necessariamente pronta para dar o passo seguinte. Cada doente era um caso, e as necessidades de cada um eram diferentes das de todos os outros. 165 Enquanto Tess esperava tranquilamente, o pager no bolso das suas calças largas e práticas começou a vibrar contra a sua perna. Era Denise. Mais ninguém tinha aquele número. Era uma maneira discreta de a secretária a contactar quando ela estava com um doente. "Agora não, Denise", pensou Tess, que rejeitou a comunicação. Trinta segundos mais tarde o pager voltou a vibrar. Tess levantou-se e tirou-o disfarçadamente do bolso ao mesmo tempo que fingia olhar pela


janela. Teve a impressão que o coração lhe caía aos pés. No visor aparecia uma série de "911" em cadeia. Um único "911" era o seu código secreto para "emergência". Com as mãos a tremerem, voltou a pôr o pagerno bolso. Forçando a voz a parecer tranquila, voltou-se para a mulher que chorava no sofá. ― Mrs. Lister, vou deixá-la um pouco, para lhe dar tempo de se recompor. Escapou-se do gabinete com o coração a bater descompassado. Denise estava sentada atrás da secretária, branca como a cal. ― Desculpe, mas tem outra chamada. Na linha dois. Diz que só fala consigo e que tem a certeza que a Dr.a Ciccotelli vai querer falar com ela. Tess pegou no telefone, encheu o peito de ar e fez sinal a Denise de que lhe passasse a linha dois. Denise carregou no botão correspondente e Tess ouviu a estática de um telemóvel com muito barulho de fundo. Um carro buzinou e outro respondeu. Zangada consigo mesma, lamentou não ter permitido que Reagan gravasse também as chamadas do escritório, embora ao mesmo tempo soubesse que nunca poderia permiti-lo. ― Fala Tess Ciccotelli. Em que posso ajudá-la? ― Dr.a Ciccotelli, eu sou vizinha de um dos seus doentes. Por pouco não lhe respondeu: "Deixa-te mas é de merdas", mas dominou-se. Não queria dissuadir a mulher de falar ou levá-la a pousar o auscultador. ― Qual deles, minha senhora? ― Malcolm Seward. Tess respirou fundo e fez um gesto a Denise de que lhe passasse uma esferográfica. Escreveu o nome num bloco e a seguir Denise escreveuo no computador. Aquilo não ia ser nada bom. ― Qual é o problema de Mr. Seward? 166 ― Está no meio de uma discussão violenta com a mulher ― disse a sua informadora num tom desafiador. ― Parece que... Sim, acabou de a atirar ao chão com uma bofetada. Está a dizer que a vai matar ― acrescentou, como se comentasse o estado do tempo. ― Vou deixá-la a si tratar do caso. A mulher desligou e Tess olhou para a porta do seu escritório, onde Mrs. Lister continuava à espera, sabendo o que teria de fazer. ― Telefone ao Dr. Harrison e diga-lhe que venha cá e faça qualquer coisa com Mrs. Lister. ― Que faça o quê?! ― Não sei! Sei lá o quê! ― As mãos tremiam-lhe. ― Que termine a


sessão. Que a marque para amanhã. Ele saberá o que fazer. Dê-me o endereço de Mr. Seward. ― Pegou no bloco de apontamentos, onde Denise rabiscara dois endereços. ― O quê?! ― Ele tem dois endereços ― disse ela, sem saber que fazer. ― Um no centro da cidade e o outro para lá de North Shore. Onde lhe parece que ele está? ― Ouvia-se trânsito nas traseiras ― disse Tess. ― Tem de ser na cidade. ― A menos de três quarteirões. ― Ligue para o número de emergência. E diga-lhes que se despachem. Saiu do escritório a correr, desceu as escadas, rezando para que os jornalistas se tivessem ido embora, mas consciente de que o resultado seria o mesmo. Malcolm Seward daria uma boa notícia. Uma grande notícia. Se os jornais e as televisões ainda não soubessem, não tardariam a saber. Saiu para a rua a correr, ignorando o grito indignado de uma pessoa que passava. "Reagan." O rosto dele materializou-se na sua mente. "Liga ao Reagan." Terça-feira, 14 de Março, 15.30 Felizmente, a mulher de Spinnelli era uma mecenas das artes numa grande variedade de formas. Felizmente conseguira arrastar Spinnelli para um espectáculo de vanguarda na semana anterior e o tenente tinha gostado o suficiente dele para se manter acordado, o que, ao que parecia, não acontecia com todos os espectáculos a que ela o levava. Minutos depois de ter ligado à mulher, o tenente conseguiu dar a Murphy e a 167 Aidan uma lista de contactos no Chicago Studio Theater, uma companhia experimental muito conhecida, e nesse momento os dois entravam juntos no teatro, de insígnias em punho. Estava a decorrer um ensaio e todos os olhos se voltaram para eles. ― Eu sou o detective Murphy e este é o meu parceiro, o detective Reagan. ― Que aconteceu? ― perguntou o homem mais velho que se encontrava no palco. ― Só queríamos fazer algumas perguntas ― disse Aidan. ― Andamos à procura de uma mulher que faz imitações e falaram-nos de vocês. O homem sentou-se à beira do palco e depois desceu para o chão. ― Eu sou o director de cena, Grant Oldham. ― Como dissemos, Mr. Oldham, andamos à procura de uma mulher que faz imitações. É muito boa. Pensámos que talvez trabalhasse em teatro. Oldham pôs o seu metro e setenta e cinco de pé. ― Não vos vou dar uma lista dos nossos actores para vocês poderem


começar a vossa caça às bruxas. ― Trata-se da investigação de um homicídio, Mr. Oldham, não de uma caça às bruxas ― retorquiu Aidan com calma. ― Vocês não têm qualquer obrigação de nos responder. Não têm, pois não, Murphy? ― Não, mas tenho ouvido dizer que os actores são terrivelmente boémios. Quem sabe o que podemos encontrar nos bastidores quando voltarmos com o mandado... A sala estava escura e por isso não era fácil perceber, mas ambos tiveram a impressão que Oldham ficara terrivelmente pálido. ― Vocês não podem pedir um mandado sem uma causa justa. É inconstitucional. Aidan suspirou. De repente todos pareciam constitucionalistas. ― Andamos a ver se descobrimos um assassino que já matou duas pessoas e não dá mostras de querer parar. Gostávamos que nos ajudassem de livre vontade, mas o assunto é suficientemente importante para que, se nós vos levarmos a todos para serem interrogados, ninguém nos pedisse contas. Cumpra a sua obrigação e ajude-nos, por favor. Oldham esvaziou os pulmões e disse por fim: ― Que querem saber? ― Mulheres que fazem imitações ― respondeu Murphy. ― Que sejam boas no ofício. Oldham coçou a clareira vazia no alto da cabeça. 168 ― Deixem-me ver... Há a Jen Rivers, a Lani Swenson, a Nicole Rivera... ― Por cima do ombro, voltou-se para os actores em palco. ― Lembram-se de mais alguém? ― perguntou. ― A Mary Anne Gibbs ― disse um homem com uma barbicha mal aparada. ― Faz uma grande Liza. Os outros limitaram-se a concordar com acenos de cabeça, ainda malencarados. Aidan tomou nota de todos os nomes enquanto Murphy tirava do bolso a imagem de uma mulher, tirada do filme de segurança da loja de apartados. ― Conhecem esta mulher? ― perguntou-lhes. Oldham pareceu esforçar a vista. ― Ei, Egypt, acende as luzes da sala, estás a ouvir? O actor da barbicha saiu do palco em passos lentos e de súbito o teatro foi inundado por uma luz viva que os fez pestanejar. Oldham pegou na fotografia e estudou-a com atenção. ― O cabelo não é o dela, mas... Podia ser a Nicole. Por outro lado, está tão pouco nítida... Desculpem, detectives. Aidan sentia a excitação a crescer. Estavam um pouco mais próximos. ― Sabe onde podemos encontrar a Nicole? Oldham voltou a olhar para o palco por cima do ombro.


― Algum de vocês sabe por onde pára a Nicole? ― Antigamente trabalhava num café perto da Sears Tower ― disse o homem da barbicha. ― Não sei se ainda trabalha. Já há uns meses que não vejo a Nikki. O telemóvel de Aidan tocou. ― Desculpem, é só um minuto. ― Afastou-se um pouco e viu de quem era a chamada. Tess Ciccotelli. ― Que aconteceu? ― perguntou, dispensando os cumprimentos. ― Venha ter comigo. ― Parecia ofegante e a voz denunciava um nervosismo extremo. ― Recebi outra chamada. ― Murphy ― chamou Aidan ― temos de ir. Desta vez quem foi, Tess? ― Malcolm Seward. Aidan parou de repente no átrio do teatro. Murphy seguia-o a pouca distância. ― O jogador de futebol? ― Não se tratava de um jogador de futebol qualquer. O homem era uma lenda. Malcolm Seward era doente dela? 169 ― Sim. Por favor, detective, venha a correr. Tome nota do endereço. Com o telefone preso entre o ombro e a orelha, Aidan rabiscou o endereço no seu bloco de apontamentos, por baixo do nome das quatro mulheres. Era num sítio caro, não muito longe de onde vivia a própria psiquiatra. ― Onde está agora, Dr.a Ciccotelli? ― Ouviu um carro buzinar e uma travagem brusca além de qualquer coisa que lhe pareceu a psiquiatra a gritar "filho-da-mãe". ― Tess, aconteceu alguma coisa? ― Não, não aconteceu nada. Estou agora a entrar no edifício onde ele vive. É no sétimo andar. Despache-se! ― Tess, espere. Espere por nós! ― pediu Aidan, mas ela já tinha desligado. ― Vamos embora, Murphy ― disse, e começou a correr. O coração parecia querer saltar-lhe do peito. Ressoava-lhe nos tímpanos. E era o coração que marcava o ritmo com que atravessou as portas envidraçadas do edifício residencial. O recepcionista demorou demasiado tempo a reagir para conseguir impedir-lhe o caminho. ― Pare! Não pode entrar aí! ― Eu sou médica ― conseguiu ela dizer, voltando-se para trás sem parar. ― É uma emergência. Nesse momento, a porta de um elevador abriu-se e depois de um segundo de hesitação, Tess entrou e carregou no botão do sétimo andar. O ruído das sirenes da polícia atravessou as portas metálicas e sobrepôs-se ao martelar do sangue nos seus tímpanos. A polícia estava a chegar. Deviam estar mesmo ao virar da esquina. "São só sete andares... Agora são seis", ia pensando com os olhos pregados no mostrador digital, contando as batidas do próprio coração


para evitar a ansiedade. Malcolm Seward, um jogador de futebol que gostava de terraços com vista sobre a cidade. Respirou fundo, com a impressão que os seus pulmões ardiam. Malcolm tinha sido enviado para terapia pelo médico da sua equipa depois de uma discussão que acabara mal, com outro jogador, felizmente fora do alcance das câmaras de televisão. Tess apercebera-se rapidamente da natureza do seu problema, embora ele tivesse levado várias semanas a reunir coragem para dizer do que se tratava. As portas do elevador afastaram-se e Tess encontrou-se no átrio do sétimo piso. Foi fácil descobrir qual era o apartamento de Seward pelos 170 insultos violentos que se ouviam do outro lado da porta, apenas interrompidos por gritos estridentes que lhe gelaram o sangue. ― Não, por favor, Malcolm. Meu Deus! ― Gritos de mulher. "Ele está a dizer que vai dar cabo dela", pensou Tess, o que significava que ainda não a tinha matado. "Cheguei a tempo." A porta de aço estava deformada, suspensa das dobradiças. Tess ficou parada a observá-la por um instante, a tentar perceber o que acontecera. Ele tinha-a arrombado. "Onde estarão os polícias? Deviam ter chegado aqui antes de mim..." Mas não estavam lá e a gritaria tinha parado. Nesse momento já só havia gemidos dominados pelo terror, o que era ainda pior. ― Por favor, Malcolm. ― O lamento da mulher era tenso, rouco. ― Por favor, eu não te vou deixar. Não vou contar a ninguém. ― Mentirosa! Sua vaca! Não te atrevas a mentir-me! ― Eu não estou a mentir. Eu não estou a... Em seguida, um grito abafado. Incapaz de ficar à espera mais um segundo que fosse, Tess empurrou a porta e ficou perfeitamente imóvel. A um metro dela encontrava-se Malcolm Seward, um metro e noventa e cinco de músculos sólidos e de raiva descontrolada, a segurar a mulher, baixa e magra, com a sua manápula a apertar-lhe o pescoço e uma arma apontada à cabeça dela. "Como é que ela se chama?", procurou Tess lembrar-se, desesperada. "Como diabo se chama ela? Gwen. Chama-se Gwen." Tess obrigou-se a si mesma a respirar fundo, devagar, a acalmar-se. Não era fácil, com os olhos de Gwen a quererem saltar das órbitas, esbugalhados de terror. As suas mãos, pequenas e finas, estavam agarradas aos braços dele, sem que isso parecesse produzir nele o menor incómodo. Olhava directamente para Tess numa súplica silenciosa. ― Malcolm ― disse Tess com calma. ― Solte-a. Se a soltar eu posso


ajudá-lo. Gwen tinha cada vez mais dificuldade em respirar. Esperneava freneticamente e as suas pernas batiam nas dele. Mas o homem parecia um rochedo, capaz de resistir ao ataque de três homens de cento e cinquenta quilos cada um. A mulher representava para ele uma ameaça tão grande como um mosquito. Seward levantou os olhos desvairados. Acusadores. Transpirava dos pés à cabeça. A sua camisa estava ensopada. ― A Dr.a Ciccotelli contou-lhe. Prometeu-me que não lhe contava, mas contou-lhe. 171 Tess levantou as mãos, palmas abertas voltadas para ele. Sentiu o coração de novo aos saltos, dessa vez de medo. Outra vez a mulher. A mulher que tinha deixado o recado no atendedor de mensagens de Cynthia Adams tinha voltado a imitar a voz dela. ― Solte a Gwen, Malcolm. ― Não ― disse ele, agitando a cabeça num movimento frenético..― Não. Ela vai deixar-me. Ela vai contar ― disse ele, e apertou mais a mão, ao mesmo tempo que a levantava ainda mais. ― Não admito que ninguém me deixe. ― Ninguém o vai deixar, Malcolm. ― Tess procurou que a sua voz fosse tranquilizadora, melodiosa, e viu-o começar a tremer. ― Ninguém vai contar. Seward começara a tremer sem controlo e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto sem parar. ― A Dr.a Ciccotelli contou-lhe. A Dr.a Ciccotelli telefonou-lhe e contoulhe. Tinha prometido que nunca lhe contaria, mas contou. ― Seward soluçava ao mesmo tempo que alternadamente levantava a mulher e depois voltava a aproximá-la do peito. Gwen já não lutava. O seu corpo parecia o de uma boneca de trapos inerte. ― Não, Malcolm. Eu não contei. ― Ela sabia. Ela sabia. Tess teve a impressão que o seu coração tinha parado. Sabia. Não sabe. "Sabia." ― Não lhe faça mal, por favor. ― Ela disse que me ia deixar e ia contar. E eu assim perco tudo. ― Ficou imóvel. ― Não admito que ninguém me deixe. De mim ninguém conta nada. ― Seward pronunciou estas palavras com muito cuidado. Com grande precisão. Depois puxou o gatilho. O grito ficou preso na garganta de Tess quando o corpo de Gwen Seward estremeceu antes de ficar completamente inerte. Malcolm atirou a mulher para o chão, e, incapaz de contrariar o impulso, os olhos de Tess seguiram-no. O sangue escorria do crânio da mulher e ensopava a carpete berbere da


cor da baunilha. Gwen Seward estava imóvel. Estava morta. Ele tinha matado a mulher. A lucidez voltou com um sobressalto. "Sai daqui. Foge." Voltou-se para fugir, mas ele foi mais rápido e em menos de um piscar de olhos apanhou-a. Tess esbracejava e dava pontapés, mas o braço dele já lhe rodeava o pescoço e a pistola estava 172 apontada à cabeça dela. Ouviu a voz dele, já calma, dizer-lhe junto ao ouvido. ― Ninguém conta ― disse ele. ― Nem ela nem a Dr.a Ciccotelli. Aidan cerrou ambos os punhos. O maldito elevador parecia que ia a pisar ovos. Tinha o estômago às voltas. Murphy nem se atrevia a abrir a boca ou a fazer o menor gesto. Os seus olhos, no entanto, eram eloquentes. Tinham ouvido tiros. Talvez houvesse reféns. Tess Ciccotelli. "E se tivermos chegado tarde de mais?", pensou Aidan. "Por amor de Deus! Oxalá não seja tarde de mais!" Por fim, a porta do elevador deslizou e Aidan aproximou-se do apartamento de Seward com cautela. O corredor parecia o de um hotel, e era quase igualmente longo. No patamar estavam seis polícias de uniforme, de armas em punho. Um deles aproximou-se, com expressão sombria. ― O meu nome é Ripley. Eu e o meu parceiro fomos os primeiros a chegar. ― Que aconteceu? ― perguntou Murphy num tom de voz grave e preocupado. ― Ele deu um tiro na cabeça da mulher e não deixa os técnicos do serviço de urgências verem-na. Seja como for, não nos parece que ainda respire. ― E a médica? ― perguntou Aidan, e ficou de respiração suspensa. Ripley pestanejou. ― Agarrou-a pelo pescoço e está a apontar-lhe uma arma à cabeça. Aidan pestanejou. A imagem que se formara na sua mente era nítida. Murphy engoliu em seco., ― Como da outra vez. Ripley fez um gesto de estranheza. ― Desculpe, detective... ― Já não é a primeira vez que é atacada ― disse Murphy com voz rouca. ― Da outra vez foi um preso que estava a avaliar. ― Começaram a caminhar em direcção ao apartamento de Seward. ― Já chamaram um especialista em reféns? ― Chamámos, mas vai demorar meia hora a chegar aqui. ― Ripley deteve-se a alguns passos da porta e continuou em voz baixa: ― Há uma janela grande atrás dele. Se conseguíssemos pôr um atirador no


173 apartamento do outro lado da rua talvez ele conseguisse um tiro decente. Já evacuámos toda a gente deste piso, do piso acima e do piso abaixo. ― Vou ligar ao Spinnelli ― disse Murphy, e desviou-se para o lado mais afastado do corredor, de onde não poderia ser ouvido. Aidan tirou o sobretudo. ― Deixe-me tentar falar com ele. O guarda abanou a cabeça. ― Não me parece que sirva de nada. Acho que ele está pedrado com qualquer coisa. ― Não podemos ficar meia hora à espera do negociador. O homem já matou a mulher, porque não há-de matar também a médica? Alguém sabe porque é que ele fez isto? ― Quando saímos do elevador ouvimo-lo dizer qualquer coisa, que a médica tinha telefonado à mulher dele e contado, que ela tinha prometido que não contava. A mulher tinha ameaçado que o deixava. E depois ele matou a mulher. ― O tom de voz de Ripley endureceu. ― A vossa médica ficou boquiaberta. Ainda se voltou para fugir, mas ele apanhou-a. Não pudemos fazer nada. Aidan olhou por cima do ombro para o outro extremo do corredor, onde estava Murphy a falar ao telefone. O parceiro levantou os olhos para ele, preocupado. Por fim, fez-lhe um sinal e Aidan avançou para o apartamento. A porta tinha sido arrombada de tal maneira que se diria ter sido obra de dois homens. Ou de um jogador de futebol americano de cabeça perdida. Que nesse momento tinha Tess Ciccotelli presa e com uma arma apontada à cabeça. Apesar de ser uma arma de calibre.45, parecia um brinquedo nas mãos do homem. Tess tinha os olhos fechados, o seu corpo estava imóvel, mas o seu peito subia e descia com o ar que inspirava pelo nariz. Com as mãos agarrava o braço de Seward, o que lhe permitia elevar-se o suficiente para respirar com dificuldade. Com as pontas dos pés mal chegava ao chão. Um dos seus sapatos estava caído junto da porta e o outro ao lado do corpo de Mrs. Seward. Começara por tentar libertar-se dele, mas nesse momento limitava-se a estar quieta, numa imobilidade tensa. Seward olhou para Aidan, com olhar vago, como se não o visse com nitidez. Pareceu oscilar um pouco, como se estivesse sujeito a um balanço que só ele sentia. ― Seward ― disse Aidan com calma, e os olhos dele pareceram imediatamente focados. ― Largue-a. 174 Tess abriu os olhos e Aidan pensou ver aí uma espécie de terror controlado. E súplica. E confiança. Tinha de se manter lúcido para as pernas não lhe fraquejarem. A vida da psiquiatra estava nas mãos


dele. ― Não ― respondeu Seward. ― Ela contou. Ela faltou à palavra dela. Algo na expressão de Seward levou Aidan a fazer um juízo rápido. Malcolm Seward parecia suficientemente coerente para prestar atenção aos factos. Não lhe pareceu que fosse possível acalmá-lo com banalidades e promessas. ― Não foi ela que contou. Foi outra pessoa que contou à sua mulher, Seward, fazendo-se passar pela Dr.a Ciccotelli. Os olhos dele inclinaram-se para a mulher morta, apenas um instante, antes de se erguerem de novo em direcção a Aidan. ― É mentira ― disse, com voz pouco segura. Começava a perceber a enormidade do que fizera. ― Você lê os jornais, Seward? Vê os noticiários? Ouviu falar dos suicídios desta semana? Alguma coisa pareceu fazer sentido. ― Sim, e daí? ― Essas pessoas também eram doentes da Dr.a Ciccotelli. Temos provas de que não foi ela que lhes ligou. Foi uma pessoa a imitar a voz dela. Não era bem verdade, mas dada a situação isso pouca importância tinha. O olhar de Seward voltou-se de novo para o chão, para o corpo minúsculo da mulher, rodeado do seu próprio sangue. A mão do jogador tremeu e Aidan viu que Tess respirava por fim profundamente. No entanto, os seus olhos escuros continuavam fixos nele, como nessa manhã, quando estava na cabina de som a imitar as palavras de uma assassina. ― Ela sabia ― pronunciou Seward com dificuldade. ― E ia deixar-me. ― Tenho muita pena, Malcolm ― disse Aidan, mais uma vez com grande calma. ― Mas não foi a Dr.a Ciccotelli que contou. Largue-a. Não faça disparates e deixe-a ir. Seward fechou os olhos. ― Eu matei-a. A minha Gwen. Aidan não disse nada e o homenzarrão pôs-se a chorar como uma criança. Voltou a apertar Tess, que fez um esgar de dor quando sentiu a arma pressionar com mais força a sua têmpora. 175 ― Eu matei-a e a culpa é sua. ― Fez mais pressão sobre o pescoço dela, obrigando-a a esticar-se mais para os seus pés alcançarem o chão, mas sem o conseguir. Seward continuava a chorar. As lágrimas abriam sulcos na camada de sangue e de sujidade que lhe cobria o rosto. Aidan dominou o pânico, com um nó na garganta. ―Já há uma mulher inocente morta, Seward ― disse com firmeza. ―


Não deixe que morram duas. ― Conseguira a atenção de Seward e esforçou-se por falar com mais delicadeza. ― Tenho a certeza que a Gwen não haveria de querer uma coisa dessas. Por favor, Malcolm. Largue-a, antes que seja tarde de mais. De repente, Seward endireitou-se e num só movimento empurrou Tess e caiu de joelhos ao lado da mulher. Tess aproximou-se de Aidan aos tropeções, a tentar respirar, e ele pegou-lhe pela mão e afastou-a o mais depressa que conseguiu do alcance de Seward. A médica abateuse sobre o peito dele, a tremer, desorientada, como se estivesse prestes a desmoronar-se. Ou talvez fosse o corpo dele que estivesse a tremer. Os braços de Aidan rodearam-na e continuaram a proteger-lhe o corpo, enquanto Seward pegava na mulher em peso nos seus braços poderosos e a embalava como a um bebé. Tinha deixado de soluçar, mas as lágrimas continuavam a descer-lhe pelo rosto. Atrás de Aidan, os polícias tinham tomado posição. As miras seguiam os gestos de Seward, que, ajoelhado, embalava a sua Gwen, sem nunca largar a arma que tinha na mão. Murphy apareceu ao lado de Aidan e o testemunho foi transmitido sem que tivesse sido preciso trocarem qualquer palavra. Aidan afastou-se levando com ele Tess, e Murphy tomou o lugar dele junto da porta, com a sua própria arma em punho. ― Largue a arma, Mr. Seward ― disse Murphy com voz firme. Aidan pensou que não tinha a certeza que a sua própria voz alguma vez voltasse a ser firme. Com muito cuidado, Malcolm Seward pousou o corpo da mulher e com a mão dispôs os braços dela com delicadeza ao longo do corpo. Depois meteu a arma na boca e disparou. Nos braços de Aidan, Tess estremeceu, agarrou-se à camisa dele e ficou à espera. Durante um longo momento ninguém disse nada. Depois, Murphy guardou a sua arma com cuidado e suspirou. ― Foda-se. Raios partam isto. 176 No átrio pareceu dar-se uma explosão de movimento. Os paramédicos chegaram a correr e entraram no apartamento de Seward, mas saíram logo a seguir. ― Estão ambos mortos ― disse um deles. ― Chamem o médicolegista. Tess afastou-se por fim de Aidan, encostou-se a uma parede e escorregou inerte para o chão. Olhou para o apartamento de Seward, depois de novo para Aidan, branca como uma folha de papel. Sentia a pulsação acelerada na garganta, junto de uma cicatriz vermelha e profunda.


― Obrigada ― conseguiu murmurar. Sem confiar na sua voz, tudo o que Aidan fez foi acenar. Murphy inclinou-se para pegar num objecto brilhante caído no chão. Era o lenço dela. Mas Murphy soltou-o e ele caiu para o chão. ― Está... ― começou Murphy com uma careta. ― Não me parece que vá querer voltar a usá-lo, Tess. A voz dela parecia a de um computador, mecânica e inexpressiva. ― Precisa aqui de mim ou posso ir-me embora? Aidan achou que ela não ia conseguir pôr-se de pé, quanto mais chegar a casa. ― Nós levamo-la a casa, mas primeiro precisamos do seu depoimento ― disse-lhe. Não era verdade, pelo menos não naquele momento. Só queria que ela ficasse onde estava, pelo menos até a cor lhe voltar ao rosto. Surpreendendo-o, ela conseguiu pôr-se de pé. ― Vamos a isso, para eu poder ir para casa e tomar banho. ― Agarrou no casaco, manchado com o sangue de Gwen Seward e o suor de Malcolm. Engolindo em seco, Tess deu um passo pouco firme. ― Acho que tenho sangue dela no cabelo. ― Olhou para baixo e viu as meias também manchadas de vermelho. ― E os meus pés... Oh, meu Deus. ― Estremeceu e levou a mão à boca, antes de recuar, horrorizada ao ver os dedos igualmente sujos de sangue. ― Oh, meu Deus! ― Os seus olhos ergueram-se e concentraram-se na camisa branca dele, com marcas de sangue no sítio onde ela pousara as mãos. ― Sujei-o todo. Desculpe. Aidan sentiu um nó na garganta quando recordou a maneira como ela se agarrara a ele como a uma bóia de salvação. ― Não tem importância, já vi pior ― disse ele, ao mesmo tempo que se aproximava para a segurar antes que ela voltasse a escorregar para o chão. No entanto, um dos paramédicos chegou lá primeiro. 177 ― Antes que vá onde quer que seja vamos fazer-lhe um pequeno exame ― disse ele. ― Eu estou bem ― protestou ela sem grande vigor. ― Hum ― respondeu o paramédico sem se comprometer e começando a fazer o seu trabalho. Deixou que ele lhe medisse as pulsações, a pressão arterial e até que apontasse uma pequena lanterna para os seus olhos, mas quando ele quis pôr-lhe a mão no pescoço recuou. ― É uma cicatriz antiga ― disse sem emoção. ― Se quiser eu assino um papel a eximi-lo de responsabilidade, mas eu estou bem. Só quero é ir para casa. Duas pessoas tinham ficado sem cabeça, mas deviam ter sido três. A Ciccotelli parecia um gato com vidas que nunca mais acabavam. Ainda estava viva. Continuava a respirar. Não era justo. Não era de maneira


nenhuma justo. Mas no fim de contas talvez assim fosse melhor. "Quero estar lá quando ela morrer." Para saborear todos os momentos, todos os matizes da cerimónia. Além disso, havia outra coisa que tinha corrido mal naquele dia. O detective Reagan tinha dito que tinham provas de que a voz da psiquiatra tinha sido imitada. Reagan estava a mentir. Não tinha a menor dúvida de que Reagan tinha mentido com todos os dentes. A coincidência com a voz de Tess Ciccotelli era perfeita, tinha a confirmação de um dos melhores estúdios de som da Alemanha. Nicole conseguiria enganar mesmo a mãe da médica. Talvez tivesse sido irreflectido deixar o recado no atendedor à Cynthia Adams, mas sem ele a polícia teria levado vários dias até comparar as impressões digitais na caixa com as de Tess Ciccotelli. E isso era se alguma vez tivessem ido tão longe. Não, o que não tinha saído de acordo com os planos era que a Ciccotelli ainda tinha muitos polícias do seu lado, dispostos a acreditar nela. Como era evidente, o ódio dentro do departamento da polícia não era tão profundo nem tão generalizado como eles próprios diziam. O facto de o detective Reagan se ter tornado um dos seus defensores era... desapontador. "Esperava mais dele." No entanto, a julgar pela maneira como ele se batera pela liberdade dela, não parecia que a odiasse. Au contraire. A julgar pela forma como ele a protegera enquanto Seward se matava, gostava mais dela do que ele próprio estaria disposto a admitir. 178 Era asqueroso. Que tinha aquela mulher que fazia os homens caíremlhe aos pés? Ainda por cima, homens que tinham obrigação de não se deixar enganar por uma cara bonita e por um traseiro bem feito. A verdade é que de maneira geral os homens eram fracos. "Eu não sou." Podia escolher entre dois caminhos diferentes. O primeiro era eliminar a bonita Nicole. Se a polícia desconfiasse que a voz de Ciccotelli tinha sido imitada, era uma questão de tempo até encontrarem Nicole. Felizmente podia passar sem ela. Felizmente, agora que o plano tinha de mudar, ela já não fazia falta. A Ciccotelli já não iria para a prisão. Pelo menos não no sentido tradicional. Não para uma estrutura concreta com muros altos e barras de ferro. Tinha de confessar que se tratava de um desapontamento. Tinha planeado tudo tão bem... Dedicara muito tempo a cada um dos passos, com a finalidade de ver Ciccotelli por trás das grades. Sozinha e isolada. Sem carreira e sem amigos. E por fim sem vida. Mas havia prisões de outros tipos. Outras maneiras de produzir isolamento. Medo. Sofrimento. Na prisão de Tess Ciccotelli haveria


tudo isso. Porque ela merecia isso e muito mais. Terça-feira 14, 16.45 Não tinham perguntado qual era o segredo de Seward, pensou Tess, quase sem forças, enquanto via Murphy e Reagan dirigir a actividade dentro do apartamento. Tinham aparecido meia dúzia de tipos da polícia científica, dirigidos por Jack Unger. O gabinete médico-legal também tinha mandado as macas e sacos para os corpos. Misericordiosamente, tirando o paramédico, todos a tinham deixado sozinha. Nem uma pessoa perguntara o que fora que Malcolm Seward tinha insistido que ela havia contado. Mas isso acabaria por acontecer, e ela teria de contar. De momento, o assunto parecia ter perdido importância. Malcolm tinha morrido. Gwen também tinha morrido. Como não tinham filhos, não havia ninguém vivo a quem a verdade pudesse magoar. Tess sentou-se do lado de fora do apartamento. Havia um guarda fardado junto do elevador e outro ao pé das escadas, para impedir a aproximação de pessoas não autorizadas no local. E também, imaginou 179 Tess, para a impedir de sair dali antes de ter contado à polícia o que eles queriam saber. Como se isso pudesse acontecer. Depois de ter visto Seward puxar o gatilho contra si mesmo, sentira que os seus sentimentos eram dominados por uma poderosa descarga de adrenalina. De momento, não sabia se conseguiria mover-se se... Engoliu em seco ao pensar numa expressão que tinha ouvido muitas vezes a outras pessoas: se alguém lhe apontasse uma arma à cabeça. Nesse momento, as suas mãos e os seus pés já estavam limpos. As suas meias curtas, até ao joelho, tinham sido tiradas por um paramédico com gestos delicados e um sorriso encorajador. Depois, o mesmo homem tinha-lhe dado uns protectores para usar por cima do calçado com borracha por baixo para não escorregar. Nesse momento não tinha energia para se inclinar e para os calçar. Um dos sapatos dela estava completamente inutilizado, coberto com sangue e massa cinzenta tanto de Malcolm como de Gwen Seward. O outro tinha-o atirado de qualquer maneira e tinha caído ao seu lado. Fosse como fosse, não tencionava voltar a calçá-los. Quando chegasse a casa meteria todas as peças de roupa que usava nesse momento no lixo ainda antes de se meter num duche de água a escaldar e de lavar e escovar bem o cabelo e a pele até não deixar vestígios de uma só célula estranha agarrados ao seu corpo. Mas nem isso a faria sentir-se limpa. Na verdade, o que faria quase de certeza era acabar a garrafa de vinho que Reagan lhe quisera servir na noite anterior, ou pelo menos beber até os acontecimentos da última hora desaparecerem da


sua consciência. Mas tinha a certeza que isso nada ajudaria. Quando acordasse, continuaria no meio do mesmo pesadelo. Malcolm e Gwen continuariam mortos. Bem como Cynthia e Avery. "Tudo por minha causa." Como é evidente, sabia que isto não era verdade, mas a mesma lógica dizia-lhe que isso pouca importância teria quando a cidade acordasse e lesse os jornais no dia seguinte. Ou quando ela própria tentasse adormecer nessa mesma noite. O que era verdade é que aquelas pessoas tinham confiado nela, tinham acreditado que ela seria capaz de as ajudar. O que era verdade é que quatro pessoas inocentes estavam mortas. "E tudo por minha causa." Os técnicos do gabinete médico-legal passaram pelo sítio onde ela se encontrava com os corpos. Um saco grande e outro pequeno. Encostou a cabeça à parede e fechou os olhos. Era uma imagem que não queria acrescentar às outras, mas sabia que ela ia pairar muito tempo na sua mente, por mais que desejasse que isso não acontecesse. E independentemente do que ordenasse ao seu cérebro que esquecesse. 180 ― Tess? Abriu os olhos e viu a figura enorme de Aidan Reagan à sua frente. Olhava-a na expectativa, como se lhe passasse pela cabeça a ideia de que ela pudesse partir-se. Levou os dedos frios ao rosto. ― Quer o meu depoimento agora... ― Se achar que consegue. ― Consigo ― disse ela, e esforçou-se por se pôr em pé, até que parou, quando o viu de joelhos à frente dela a tentar calçar-lhe as meias, como se ela fosse uma criança. Depois, voltou-se e apoiou-se à parede para se sentar ao lado dela. O corpo quente dele parecia irradiar calor e isso fê-la estremecer à recordação do que sentira quando se encontrava nos braços dele, de como ele a apertara contra si, de como se sentira bem, segura, de como sentira o coração dele a bater. Ele também tivera medo, mas cumprira a sua obrigação, com confiança e com calma. Devia-lhe a vida. A ideia de que as coisas podiam ter acabado de outra maneira fê-la estremecer de novo. ― Está com frio ― disse ele em tom neutro. ― Não me diga que veio do consultório até aqui sem casaco! ― Com um gesto libertou-se do sobretudo e pô-lo pelas costas dela antes que ela tivesse tempo de esboçar um protesto. ― Não me contrarie, Tess ― avisou ele quando ela tentou devolver-lhe o sobretudo. ― Quem olha para si percebe que até uma criança de cinco anos conseguia vencê-la neste momento. ― Vai ficar sujo de sangue ― conseguiu ela murmurar. Reagan pegoulhe na mão e massajou-a para conseguir que o sangue voltasse a circular. ― Não tem importância. Meu Deus, as suas mãos estão geladas.


Porque não me disse nada? Ela voltou a encostar-se à parede, de novo esgotada. ― Vi-o tão ocupado... ― Toda a actividade que se desenrolava à volta dela pareceu confundir-se numa espécie de ruído de fundo que identificou como o cansaço extremo. ― Eu já lhe agradeci? Ele pegou na outra mão dela e começou a aquecê-la também. ― Sim ― respondeu ele com delicadeza ― agradeceu. Conte-me como foi a chamada. ― Eu estava com uma doente. ― "Quem era a doente? Ah, claro, Mrs. Lister", recordou. ― Foi a Denise que atendeu o telefone. A mulher não queria falar com mais ninguém. Parecia contrariada. ― Pareceu-lhe a mesma mulher? ― Não. Desta vez não parecia nova nem velha. Só parecia aborrecida. Disse-me que Malcolm Seward e a mulher estavam a discutir. ― 181 Reagan tinha parado de lhe massajar as mãos mas conservara-as nas dele. Se quisesse, Tess poderia retirá-las, mas não o fez. Não conseguiria. Disse que Malcolm tinha acabado de a atirar ao chão. ― Quando é que isso aconteceu? ― Alguns minutos antes de eu lhe ter ligado, não sei bem. Eu disse à Denise que telefonasse para o número de emergência e saí sem olhar para o relógio ― explicou com um encolher de ombros. ― Levaram tanto tempo a chegar aqui... Pensei que iam chegar muito antes de mim. ― Levantou os olhos e encontrou os dele fixos nela. "Tem olhos de polícia", pensou. Eram inexpressivos de uma forma estudada. ― A minha intenção não era passar por heroína, detective, mas não havia mais ninguém que o pudesse ajudar. Ele tinha deitado a porta abaixo e eu sabia como ele podia tornar-se violento quando estava furioso. E também sabia que tinha receio de um dia voltar essa violência contra a mulher. Ele tinha-lhe pegado pelo pescoço... ― A voz dela estremeceu e Reagan apertou-lhe a mão. ― Não estamos com pressa, Tess. Ela endireitou as costas e forçou-se a si mesma a concluir. ― Ele gritava como louco que eu tinha telefonado à mulher e contado o segredo dele... A mulher ameaçara que o deixava, mas ele não admitia que ninguém o deixasse, dizia. E depois matou-a... ― Sentiu o corpo percorrido por um arrepio e agarrou a mão dele com mais força. ― Depois atirou com ela para o chão. Eu ainda tentei fugir, mas ele foi demasiado rápido. Depois ele... ― A respiração parecia não lhe obedecer, mas ela dominou-se. ― Apontou-me uma arma à cabeça, e nessa altura chegou a polícia. ― Porque estava a tratá-lo? Tess respondeu com uma risada nervosa. ― Ao princípio, disse-me que queria aprender a dominar a raiva. Tinha


sido castigado por partir o nariz a outro jogador durante um jogo. ― Sim, lembro-me disso. ― Ao que parece, também os directores do clube, que insistiram que ele fizesse terapia. ― Foi então que foi ter consigo. ― Não, primeiro foi ter com o médico da equipa, só para se mostrar. Depois é que veio ter comigo, porque precisava de ajuda. ― O olhar dela cruzou-se com o de Aidan. ― Ele era homossexual, detective. Há muitos anos que o escondia, que o negava a toda a gente, incluindo a ele mesmo. Só que as suas necessidades pessoais estavam 182 a tornar-se demasiado difíceis de dominar. Era casado, tinha uma carreira. E estava aterrado com a ideia de perder tudo isso se alguém descobrisse. E sendo Malcolm Seward, não podia simplesmente procurar alguém. Teria sido reconhecido, explorado. A solução dele foi não fazer nada. E com isso foi-se tornando mais violento a cada dia que passava. Os olhos de Aidan tinham brilhado de surpresa por breves instantes, mas depois tinham-se tornado de novo inexpressivos. ― Alguém estava a fazer chantagem com ele? ― Não me parece, mas duvido que ele alguma vez me contasse se isso tivesse acontecido. Para dizer a verdade, não estávamos a chegar a nada na terapia. Ele continuava a insistir que conseguiria reprimir-se. Conseguia... satisfazer a mulher vezes suficientes para ela não desconfiar de nada, mas as coisas estavam a mudar. Ela queria ter um filho e ele não, por isso andava a acusá-lo de ter uma ligação extraconjugal. ― Não deixa de ser irónico ― disse Reagan com tranquilidade. ―- É verdade. Entretanto, ele ia ficando cada vez mais agressivo e descarregando com pessoas estranhas ― disse Tess com um suspiro triste. ― Ou com Gwen. E isso estava a dar cabo dele. Ele adorava a Gwen. Realmente adorava-a. Tinham sido namorados na escola secundária. Ela era uma pessoa antiquada. Não teria aprovado a homossexualidade dele. ― Tess engoliu em seco e concluiu: ― Agora nada disto tem importância, suponho eu. Aidan voltou a apertar-lhe a mão, mas não fez nenhuma tentativa de a consolar com frases vazias, coisa que ela apreciou. ― Como é que o Seward foi ter consigo? ― Encontrou o meu nome nas páginas amarelas. Malcolm não confiava o suficiente nos amigos para lhes pedir que recomendassem alguém. Não queria que ninguém soubesse que se tratava de qualquer coisa mais do que de um tratamento para dominar a cólera, a única coisa que os companheiros seriam capazes de compreender. E, acima de tudo, não queria que Gwen soubesse. ― Tess fechou os olhos. A apatia


começava a desvanecer-se e o cérebro estava a acordar de novo. Recordou a conversa com Harrison à hora de almoço. Três horas atrás nunca lhe teria passado pela cabeça que alguém pudesse chegar aos seus doentes através da unidade de psiquiatria do hospital, mas nesse momento teve de enfrentar a verdade. ― A única maneira de alguém ter descoberto o que se passava com os três era observar a porta do meu consultório 183 vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana ou então consultar os meus ficheiros. ― A ideia bastou para a fazer sentir-se fisicamente doente. A confidencialidade dos ficheiros de todos os seus doentes comprometida... Cerrou os dentes e venceu as náuseas que a assaltaram. ― Com base em tudo o que aconteceu, estou inclinada a acreditar na segunda possibilidade. Ele ficou imóvel por instantes. ― Onde guarda os seus processos? ― Num arquivo, juntamente com os do Harrison. O Dr. Harrison Ernst. É o meu... ― Sim, o seu sócio. Nesse caso, quem tem acesso aos seus ficheiros tanto durante as horas de expediente como mais tarde? ― Só eu, o Harrison e a Denise, a nossa recepcionista. Ele soltou a mão dela e tirou o bloco de apontamentos do bolso. Tess estendeu os dedos, sentindo-se abandonada. ― Esse arquivo é uma espécie de cofre? ― Sim, um cofre grande, como uma despensa. ― Não tem ficheiros no computador? Tess olhou-o à defesa. ― Às vezes. Não de todos os doentes. ― Provavelmente não tinha ficheiro electrónico de um dos seus doentes, de cinco anos atrás, o que tecnicamente lhe permitia dar aquela resposta sem mentir. Ele olhou-a com ar duro. ― Eu não estou a tentar meter o nariz nos seus ficheiros, Dr.a Ciccotelli. O Patrick vai pedir um mandado para o fazer. Onde os guarda? ― No computador do consultório. Escrevo os meus apontamentos, imprimo-os e meto-os numa pasta, no... ― Sim, no arquivo, E costuma apagar esses ficheiros do disco rígido? Ela voltou a hesitar. ― Todas as sextas-feiras à noite. Guardo-os na pen drive. ― Ele olhou para ela com ar interrogador. ― Que guardo no meu porta-chaves ― acrescentou ela ― por isso anda sempre comigo. ― "Menos ontem", pensou. No dia anterior tinha deixado as chaves no escritório, dentro da mala. Na realidade, pensou, mais incomodada a cada momento que passava, sempre que as chaves não estavam nas suas mãos os ficheiros ficavam sem protecção.


― Há outra possibilidade, Dr.a Ciccotelli ― disse Reagan, olhando-a com intensidade. ― Alguém pode ter ouvido as suas sessões. 184 Os olhos de Tess abriram-se desmedidamente. ― Quer dizer... Está a dizer-me que o meu consultório pode estar sob escuta? Meu Deus, está mesmo convencido disso! ― Voltou-se para a porta do apartamento de Seward, de onde Murphy saía nesse preciso momento acompanhado por Jack Unger. O aceno que Murphy dirigiu a Reagan foi quase imperceptível. ― Que foi? ― Quando viu que Reagan não lhe respondia, Tess agarrou-lhe o braço. ― Diga-me. Reagan suspirou profundamente. ― Encontrámos câmaras nos três apartamentos. E microfones. Tess deixou-se cair contra a parede, mas mal sentiu a pancada que deu com a cabeça. ― Câmaras? Ele acenou afirmativamente. ― Ligadas à Internet. O almoço que estava a ter tanta dificuldade em manter no estômago subiu-lhe à boca e ela teve de se pôr de pé num salto. ― Não. Não é possível! ― Ele limitou-se a levantar-se também e a olhá-la com resignação e tristeza. ― Valha-me Deus. Porquê? ― perguntou ela num tom solene. ― Ainda não sabemos. Pensávamos que as câmaras tinham sido instaladas para gravar os próprios suicídios, mas agora já não temos a certeza. Quando vínhamos a caminho começámos a pensar que ele pode estar a usar as câmaras também para escolher as vítimas. E se está a espiar os seus doentes pode estar a espiá-la a si também. Importa-se que o Jack vá verificar o seu apartamento? Tess concordou com um gesto trémulo. ― Sim, claro que não me importo. Vamos lá agora. ― Agora não ― disse ele com delicadeza. ― Agora vá para casa, tome banho e mude de roupa. Depois vamos ao seu consultório. ― Reagan encaminhou-a suavemente para o elevador e percorreu-lhe as costas com a mão, que deixou um rasto de calor e conforto em todos os sítios por onde passava, mesmo por cima do sobretudo dele, que ela ainda trazia. O casaco ia a arrastar pelo chão. Estava na altura de ela lho devolver, o que não fez. Com um dedo sob o queixo dela, ele forçou-a a levantar o rosto e procurou adivinhar o que lhe ia pela cabeça. ― Estou a ver que está nervosa. Quer ir de elevador ou prefere descer pelas escadas? Tess baixou a cabeça, embaraçada por ele ter descoberto o seu receio com tanta facilidade. 185 ― É estúpido, não é? Uma psiquiatra com uma vulgar fobia... Devia


começar por me tratar a mim mesma... A mão dele fechou-se sobre o antebraço dela com um aperto amigável. ― Não é estúpido. Torna-a mais humana, Tess. Os olhos dela cruzaram-se com os dele. Nos dele viu apenas compreensão e simpatia. Não viu condescendência nem acusação. Sem ela estar a contar, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. ― Obrigada ― murmurou. ― Por tudo. ― De nada ― respondeu-lhe ele com um sorriso. ― Acho que estava em dívida consigo. Ela respirou fundo com um estremecimento e dominou-se. ― Nesse caso estamos quites, detective. O sorriso dele enfraqueceu quase imperceptivelmente. ― Está bem. Lá em baixo está um exército de fotógrafos. Quer sair sozinha ou precisa de ajuda? Tess fez um esforço por caminhar de cabeça erguida. ― Eu saio sozinha, mas vamos pelas escadas. Desceram as escadas sem que ele dissesse uma palavra. Parou quando Tess precisou de descansar, o que aconteceu mais vezes do que ela estava a contar. O átrio do edifício estava a abarrotar de polícias, que mantinham os jornalistas à distância. Aidan fez um gesto em direcção a um dos polícias de uniforme. ― Pode deixar os moradores evacuados voltarem para os apartamentos deles ― disse-lhe. Depois abriu a porta principal e acrescentou para Tess: ― Não faça comentários. Não diga uma única palavra. "Parece a Amy", pensou Tess. Desconfiava que nem Reagan nem Amy teriam apreciado a comparação. No entanto, os seus pensamentos perderam-se num mar de rostos e de flashes que pareceram submergi-la quando teve de enfrentar a massa de jornalistas que a esperava à saída. Eram pelo menos trinta, alguns com microfones e outros com câmaras de filmar apoiadas sobre os ombros. Câmaras. Bastou-lhe vê-las para as relacionar com as que a polícia tinha encontrado em todos os apartamentos, para captarem os últimos momentos de vida dos seus doentes. Microfones. E no seu consultório também podia haver algum. "Meu Deus!" A ideia bastou para a fazer sentir-se novamente indisposta. Vinha mesmo a calhar numa altura daquelas: vomitar em directo na televisão. Encheu o peito de ar para enfrentar o desafio. 186 Alguém lhe pôs um microfone debaixo do nariz. ― Malcolm Seward morreu? É verdade que lhe apontaram uma arma? Com a mão, apertou a gola do sobretudo de Reagan à volta do pescoço e com a outra afastou o microfone. Continuou a andar, com


Reagan sempre ao seu lado. Olhou para a rua, onde Todd Murphy esperava no carro dele. "É só mais um minuto." ― Levou algum tiro? ― Viu Gwen Seward morrer? ― É verdade que Malcolm Seward se matou? O bombardeamento de perguntas produziu uma massa informe no interior do seu crânio até que uma morena escultural se atravessou no seu caminho. Havia um brilho nos seus olhos, uma agressividade no seu sorriso que fizeram soar uma campainha de alarme aos ouvidos de Tess, um pouco tarde de mais. ― Dr.a Ciccotelli, o meu nome é Lynne Pope, do Chicago On The Town. A tragédia de hoje deveu-se a Malcolm Seward esconder um estilo de vida homossexual? O grupo que se amontoava à volta deles foi percorrido por uma onda de exclamações de surpresa, seguida de murmúrios incrédulos. Se não fosse a mão de Aidan Reagan no seu braço a empurrá-la em frente, teria ficado imóvel no sítio onde se encontrava. A recuperar. Tess forçou o seu rosto a assumir uma expressão impassível, mas tinha a certeza que mostrara o seu próprio choque o tempo suficiente para aguçar o apetite de Lynne pelo mexerico. ― De momento não tenho nada a dizer. Lynne Pope seguiu-a com o seu sorriso forçado. ― Mas Malcolm Seward era homossexual ― insistiu ela. ― Foi a própria Dr.a Ciccotelli que o confirmou ainda esta tarde. A máscara de impassividade desfez-se e o sangue pareceu fugir-lhe do cérebro até à última gota. ― Perdão?! Murphy abriu a porta do carro. ― Entre depressa, Tess, por favor. Lynne Pope atravessou-se de novo à sua frente. ― Não sei que ideia é a sua, Dr.a Ciccotelli ― disse a jornalista, entre dentes ― mas não pense que vou na sua conversa. Se pensa que me faz vir aqui com a promessa de me dar a história do ano e depois se escapa com um "sem comentários", é melhor pensar bem no que está 187 a fazer. Hoje, no noticiário das oito, a minha história vai para o ar, com a história completa, incluindo a sua afirmação de que Malcolm Seward se tinha tornado violento e perigoso por rejeitar a própria homossexualidade. Tess voltou a ficar aterrada quando percebeu a nova série de implicações de tudo aquilo. "A comunicação social." O filho-da-mãe tinha revelado os segredos dos doentes dela à comunicação social. Os seus outros doentes ouviriam falar do assunto e pensariam que os segredos deles podiam ser os


seguintes. O Dr. Fenwick e os outros directores da Ordem não iam ficar satisfeitos. "Vou ser expulsa da Ordem. A minha carreira está acabada." Naquele momento, isso pareceu-lhe o motivo de tudo aquilo. Pela sua mente passaram com grande rapidez as imagens dos seus pacientes mortos. Corpos mutilados, olhos sem vida. Teriam de morrer mais doentes? "Será que agora vão parar? Será que o objectivo era só pôr fim à minha carreira ou a ideia deles será continuar?" Quem seria o seguinte? Lynne Pope observava o rosto dela com atenção ávida, uma das sobrancelhas erguidas numa expressão sarcástica. ― Está surpreendida Dr.a Ciccotelli? Não esteja. Eu gravo todas as chamadas que recebo, para os meus próprios arquivos, como é evidente. "Isto tem de acabar. E já." Tinha de avisar os doentes, independentemente das consequências que isso pudesse ter para ela própria. Tess ergueu o rosto e respondeu-lhe: ― Miss Pope, asseguro-lhe que não tem qualquer gravação da minha voz. Aquilo que tem é uma falsificação muito cuidada. ― Dr.a Ciccotelli ― avisou Reagan, num resmungo. ― Não faça comentários. Tess olhou-o pelo canto do olho. ― Não posso deixar que isto se espalhe, detective. ― Ele acenou, conformado, antes de ela voltar a olhar para Lynne, que, diga-se em seu louvor, nesse momento já parecia mais intrigada que furiosa pelo caminho que estavam a levar os acontecimentos. ― Miss Pope, a única coisa que posso dizer-lhe é que nego categoricamente tê-la contactado alguma vez a propósito deste assunto ou de qualquer outro. Eu sou terapeuta e, portanto, não faria qualquer sentido contactá-la para lhe comunicar coisas desse tipo. Tenho muita pena, mas foi ludibriada. 188 Os olhos de Lynne brilharam de satisfação quando obteve aquela resposta. ― Por quem, Dr.a Ciccotelli? ― Não faço ideia ― respondeu Tess, que, com olhar firme e voltada para a câmara, acrescentou: ― Mas tenciono descobrir. CAPÍTULO 10 Terça-feira, 14 de Março, 17.10 Aidan voltou a meter o telemóvel no bolso. ― O Patrick vai arranjar uma ordem do tribunal para impedir Lynne Pope de transmitir a gravação hoje.


Murphy olhou para o parceiro de relance e voltou a fixar o caminho. ― Achas que ele vai conseguir a gravação? ― Acho. Assim Burkhardt vai ter ainda mais material para comparar. ― Que quer dizer com isso de ter mais material para comparar? ―a pergunta tinha partido do banco de trás, onde Tess se sentara em silêncio durante os dez minutos que haviam sido necessários para avançar dois quarteirões. O trânsito estava completamente engarrafado, graças ao que pareciam ser todas as carrinhas das cadeias de televisão da cidade. Aidan voltou-se para trás para a ver melhor. Estava pálida e a tremer, o cabelo continuava sujo e emaranhado e com a mão esquerda apertava a gola do sobretudo dele à volta do pescoço. Os seus lábios pareciam exangues, à excepção das marcas vermelhas que os dentes dela aí tinham deixado. No entanto, o olhar parecia calmo. Tinha conseguido aguentar-se com uma força interior que, antes de domingo à tarde, não teria conseguido adivinhar nela. Nesse momento conseguia perceber como ela havia conseguido despertar uma lealdade inquebrantável nos poucos que pareciam conhecê-la bem. ― A Cynthia Adams tinha feito uma gravação ― disse ele. Tess engoliu em seco. ― Da minha voz? 190 ― Não. Não se percebia bem, mas parecia ser de uma rapariga pequena. Tess fechou os olhos e desviou o rosto. ― Andavam a torturá-la. ― É o que parece. Demos a cassete ao Burkhardt para ele comparar a gravação com a do atendedor de chamadas. Nessa altura Tess abriu muito os olhos. ― O que disse ao Malcolm era verdade? Que podia provar que a voz da cassete não era minha? Aidan olhou de relance para Murphy e ela viu. Com um suspiro, concluiu: ― Só lhe disse aquilo para ele me soltar. ― Um canto da boca ergueuse num sorriso triste e malicioso que o tocou profundamente. ― Não me estou a queixar, não me interprete mal. Só fiquei um pouco desapontada. ― Não era uma mentira ― disse Murphy, olhando para ela através do retrovisor. ― Era só uma verdade incompleta ― acrescentou Aidan. ― Burkhardt identificou o que lhe pareceram diferenças, mas disse-nos que precisava de mais amostras para poder ter a certeza. ― Ele preparou as coisas para vocês encontrarem a minha voz no atendedor de Cynthia ― murmurou ela. ― Queria empurrar-vos na


minha direcção, que vocês encontrassem as minhas impressões digitais. Queria que vocês suspeitassem de mim. E podia ter resultado, pensou Aidan sombriamente, se ela não tivesse apoiantes incondicionais como Kristen e Murphy. ― Gostava de saber se ele tem alguma ideia de que a Cynthia e a Lynne Pope fizeram gravações ― continuou ela. ― Desconfio que não. ― Murphy pigarreou para limpar a voz. ― Tess, o Aidan falou-lhe das câmaras? Ela hesitou. ― Sim. Eu disse-lhe que procurasse no meu consultório. Aidan sabia onde Murphy queria chegar com aquilo. ― Se calhar era melhor também procurarmos em sua casa ― disse ele o mais delicadamente que conseguiu. Ela ficou perfeitamente imóvel, de olhos muito abertos, e ele percebeu que a ideia ainda não lhe tinha ocorrido. ― Tenho muita pena ― disse ele com toda a calma. ― Sim... está bem ― respondeu ela. Mas não estava nada bem, e isso era visível na maneira como se esforçava por manter a compostura. 191 Sem dar por isso, balançava-se para a frente e para trás e apertava a gola do sobretudo com tanta força que os nós dos dedos tinham ficado brancos, até ele ter a impressão de que ela se ia estrangular a si mesma. ― Oh, meu Deus! Meu Deus! ― Tess ― atirou Aidan, e ela levantou os olhos, ainda desorientada. ― Estamos quase a chegar a sua casa. Vai haver lá mais jornalistas. Ela acenou que sim e, ali mesmo, à frente dos olhos dele, recompôsse. De repente, o seu corpo pareceu relaxar-se, o seu rosto tornou-se inexpressivo e os seus olhos frios e impassíveis. ― Estou a ver. Talvez pudesse ir buscar meia dúzia de coisas e ir para um hotel. Preciso de... ― Os lábios dela tremeram um pouco até que os fechou com firmeza. ― Preciso de tomar um duche num sítio qualquer. Ainda sinto o cheiro do sangue no meu cabelo. ― Fica tu com ela ― disse Murphy a Aidan em voz baixa. ― Manda o Jack e o Rick revistarem o apartamento depois de ela sair. Depois leva o carro dela para a garagem da esquadra e manda o Rick revistá-lo também. Aidan acenou afirmativamente e Murphy aproximou-se do edifício de apartamentos onde Tess morava e onde se encontrava um grupo mais pequeno, mas igualmente persistente de jornalistas. ― Onde vais tu? ― O Spinnelli procurou o endereço daquela actriz, a Nicole Rivera, enquanto eu pedia um atirador. Vou ver se descubro alguma coisa dela. ― Murphy parou o carro. ― Não a percas de vista. A pessoa que planeou isto está a tornar-se cada vez mais ousada.


― Que quer dizer com isso? ― perguntou Tess. Murphy voltou-se de maneira a poder ver o rosto dela. ― Quero dizer que todos os jornalistas que estavam naquela rua ouviram a Lynne Pope dizer que a Tess deu com a língua nos dentes. ― Mas não dei! ― Tess expulsou todo o ar dos pulmões. ― Por outro lado, imagino que isso pouco importe. De certeza que vou ter muitos doentes furiosos. Aidan franziu o sobrolho. ― Ao ponto de se tornarem perigosos? ― Alguns talvez. Ninguém gosta de ver os seus segredos em directo na televisão. Toda a gente gosta de imaginar que há coisas que é possível esconder, sítios onde estamos realmente sozinhos. ― Tess encheu o peito de ar e abriu a porta do carro. ― Era o que eu também pensava. 192 Aidan saiu atrás dela e apanhou-a quando ela afastou o microfone do primeiro jornalista que se pôs à sua frente. Passou-lhe adiante e foi abrindo caminho através do grupo de jornalistas até à porta do edifício, onde a aguardava um porteiro com ar ansioso. Aidan reconheceu-o do domingo anterior. A memória do porteiro parecia tão boa como a dele, porque o rosto do homem pareceu dominado por um imenso esgar de desdém quando Aidan penetrou no pequeno átrio. O homem avançou rapidamente e parou junto de Tess, já sem vestígios de desdém no seu rosto. Este fora substituído por uma preocupação paternal. ― Dr.a Chick, sente-se bem?! Ela sorriu-lhe. ― Sinto-me perfeitamente, Mr. Hughes. Tem sido um dia tremendo, mas estou bem. ― Por mim não os deixava entrar ― disse ele com ar furioso, voltado para os jornalistas que esperavam do lado de fora. Depois atirou um olhar furioso na direcção de Aidan. ― E a ele também não, se não fosse obrigado. Tess surpreendeu-o com uma risada divertida. ― Estou tão contente por voltar a vê-lo, Mr. Hughes... ― A Ethel acha que eu devia dizer-lhe que não acreditamos numa só palavra de tudo isto. ― Diga à Ethel que agradeço qualquer coisa a meu favor, por pouco importante que pareça. Seja como for, não vejo razão para se preocupar com o detective ― disse Tess com uma expressão mais amável. ― Afinal, ele salvou-me a vida hoje à tarde. Hughes olhou Aidan de alto a baixo e por fim acenou de má vontade. ― Nesse caso está bem. Eu deixei os seus amigos subirem, Dr.a Chick. O Dr. Cárter e Miss Miller. Estão à sua espera lá em cima. Eu fiquei de ligar para o telemóvel do Dr. Cárter assim que a Dr.a Chick chegasse.


― Nesse caso pode ligar, Mr. Hughes. E mais uma vez obrigada. Dessa vez, Aidan não precisou de perguntar. Abriu a porta das escadas e esperou que ela passasse. Ela parou ao fundo das escadas e olhou para cima com um suspiro. ― Tem alguma fobia que o fragilize, detective? Ele hesitou e, por fim, respondeu com um encolher de ombros: 193 ― Não gosto especialmente de alturas. ― O que ele disse era-uma meia verdade. Na realidade tinha vertigens, embora nunca o tivesse confessado a quem quer que fosse. ― Quer tentar curar-me? O sorriso dela foi breve e pálido, mas bastou para o fazer sentir um arrepio. Sentia-se atraído por Tess em muitos sentidos. No domingo tinha-a achado uma espécie de cigana atraente com um coração de gelo. Mesmo assim, desejara-a de uma maneira quase dolorosa. Nesse momento, ao lado dele com o cabelo sujo e um rosto perigosamente pálido, atraía-o ainda mais. Era uma pessoa doce e sensível, mas, apesar disso, era mais forte que a maior parte dos homens que ele conhecia. Quando a vira à mercê de Seward, com uma arma apontada à cabeça, chegara a pensar que nunca mais na vida conseguiria voltar a respirar fundo. ― Obrigada ― disse ela com suavidade. ― Mesmo que esteja a mentir, agradeço o seu gesto. Tess subiu até meio do primeiro lanço, mas depois voltou-se, sentouse num degrau e inclinou a cabeça de maneira a apoiar-se no corrimão de ferro. Duas manchas vermelhas simétricas marcavam o seu rosto e a sua testa estava coberta por gotas de transpiração. Respirava com dificuldade e a mão que segurava o sobretudo à volta do pescoço parecia frouxa. O sobretudo acabou por se soltar e por revelar a cicatriz que ela tanto se esforçava por esconder. Nesse momento parecia cansada de mais para reparar. ― Desculpe. Não devia ir-me abaixo por causa de um miserável lanço de escadas. Ele sentou-se ao lado dela. ― Não tem importância. Foi um dia dos diabos. Acho que um pouco de cansaço é natural. Só a corrida até ao apartamento de Seward devem ter sido quatro minutos sem pausas. ― Sim, não podia parar pelo caminho. Na altura também não pensei nisso. A voz enfraquecida dela alarmou-o. ― Hoje almoçou? ― Hum. Sim, com o Harrison. ― Deixe-me fazer a pergunta de outra maneira: ingeriu alguma comida? Os lábios dela tremeram.


― Debiquei umas bolachas de água e sal. O Harrison comeu lombo de porco, mas eu estava demasiado preocupada para comer. Se calhar estou fraca das pernas por falta de combustível. 194 ― Parece-lhe? Os lábios dela esboçaram um sorriso, que foi ao mesmo tempo um golpe baixo no autodomínio dele. ― Dê-me só um minuto que eu já volto ao normal. ― Fiel ao prometido, dois minutos depois Tess estava de pé. Acabou de tirar o sobretudo e entregou-lho. ― Importa-se de o levar? É pesado ― disse ela, e depois enfrentou as escadas restantes com o olhar determinado de um alpinista. Aidan subiu dois degraus atrás, com a intenção de a agarrar se ela caísse, mas em vez disso foi presenteado com uma perspectiva privilegiada do belo traseiro dela. "Nada mal", pensou, sentindo que as mãos queriam saltar para tocar as curvas que se balançavam a cada novo degrau que ela subia. Instintivamente, sabia que o corpo dela se adaptaria de forma perfeita às suas mãos e por instantes a sua imaginação explodiu com imagens eróticas. O que ela sentiria quando ele fechasse as mãos sobre as nádegas dela e a puxasse com força para si. Como ela gemeria e se mexeria, deixando-o louco. Como se sentiria nos braços dele quando estivesse louca de excitação. Não tremeria de medo. De repente, a imagem diluiu-se e ele sentiu a mente mais clara. Já sabia como era tê-la nos braços quando ela estava aterrada. "E é por isso que aqui estás, Reagan", disse a si mesmo com severidade quando chegaram ao andar dela. "Por isso concentra-te em protegê-la em vez de fantasiares com o seu traseiro." Tess conduziu-o até ao seu apartamento e depois parou, com a mão no puxador. ― Os meus amigos estão à espera que eu fique em casa e de tomar conta de mim. Vou dizer-lhes que o detective quer que eu durma noutro sítio esta noite por causa dos jornalistas. Não lhes vou falar das câmaras. A mente de Aidan foi subitamente dominada pela imagem do sítio exacto onde ela dormiria nessa noite. "Comigo." E para sua surpresa a imagem não era inteiramente sexual. Pelo contrário. Na verdade, a sua maior preocupação era a segurança dela. Em segundo lugar, queria vêla nua. Conseguiu responder com compostura: ― Parece-me melhor. Quando entraram, os dois estavam a ver as notícias. Puseram-se ambos de pé assim que ela abriu a porta. Jon Cárter atravessou a sala em grandes passadas e envolveu-a nos seus braços, num abraço


possessivo que fez Aidan ranger os dentes. 195 "São só amigos." Fora o que dissera Tess e ela até podia pensar que assim era, mas o Dr. Cárter tinha evidentemente outras ideias. Cárter recuou, o rosto distorcido num esgar de contrariedade. ― Céus, Tess! Parece que saíste agora de uma sala de operações comigo e cheiras como se tivesses saído de um sítio ainda pior. O que é isso no teu cab... ― Quando percebeu que Tess tinha ficado rígida com a ideia interrompeu o que ia dizer. Os seus olhos horrorizados voltaram-se para Aidan, que acenou, numa confirmação" do que o homem adivinhara. Cárter ficou branco. ― Nesse caso é mesmo verdade... ― É dela ― disse Tess com voz neutra. ― Tinha ficado colado a ele e quando ele me agarrou... Cárter pôs-lhe o braço por cima dos ombros. ― Vamos já dar-te banho, querida. Ela afastou-se dele, ainda tensa. ― Sim, eu tomo, mas não aqui. Cárter franziu o sobrolho: ― E porque não? Aidan deu um passo em frente. ― O que é que ouviu nas notícias? O que ouviu exactamente? ― Que o terceiro doente da Tess matou a mulher e depois se matou ― explicou Amy Miller, que ainda não tinha saído do sítio onde se encontrava. ― E que a Tess contou aos jornais que ele era homossexual. ― Amy ergueu o queixo e olhou Aidan de frente, como se o desafiasse. ― Mas nós temos a certeza que isso não é verdade. ― Ele não pensa isso, Amy, mas alguns dos meus pacientes podem pensar ― disse Tess, e os olhos de Amy voltaram-se para Tess, inseguros. Nessa altura, Aidan lembrou-se do que Tess lhe dissera na noite anterior. "Nem sequer tenho a certeza que ela continue a ser a minha advogada." Ela e a amiga tinham discutido e isso explicava a atmosfera carregada da sala, preenchida com as coisas que as duas mulheres não estavam a dizer uma à outra. ― Agora vou para um hotel. Depois digo-vos onde estou. Amy concordou, visivelmente tensa. ― Isso é capaz de ser boa ideia ― disse Amy com um olhar desconfiado na direcção de Aidan. ― Continuas a precisar de um advogado de defesa, Tess? 196 ― Não. ― Tess engoliu em seco e pigarreou para limpar a voz. ― Mas uma amiga fazia-me falta. Nessa altura, Amy fez o mesmo que Cárter e abraçou Tess com força durante um longo momento.


― O Jon tem razão, Tess ― disse quando por fim soltou a amiga. ― Mete-te já no chuveiro enquanto eu te faço a mala. Tess abanou a cabeça. ― A sério que primeiro quero arranjar hotel. Depois de tomar banho atiro-me para a primeira cama que vir. Aidan sentiu o sangue correr-lhe mais depressa nas veias quando a viu entrar no quarto com a amiga advogada, sem fazer ideia de como expressara bem todos os pensamentos que a sua libido sobreexcitada congeminara. ― O detective deve saber que ela não fez nada disto ― disse Cárter, fazendo-o descer à Terra. ― Não posso falar consigo sobre o que sei e não sei ― respondeu Aidan com voz pausada. A seguir qualquer coisa de provocador dentro dele levou-o a acrescentar: ― Tanto quanto sei, o senhor pode estar envolvido. Estarrecido, Cárter limitou-se a olhar para ele de olhos esbugalhados. ― O senhor não está bom da cabeça! ― Nesse caso tenho sorte por ela ser psiquiatra. De repente, Cárter soltou uma gargalhada. ― Você é bom, Reagan. Durante um minuto quase me enganou. ― Ainda a sorrir, abanou a cabeça de incredulidade. ― Está a pensar que eu e ela...? ― Deixou a pergunta incompleta no ar. ― Pois bem, está enganado ― prosseguiu com toda a seriedade. ― Mas ela é uma das minhas maiores amigas e eu não queria vê-la sofrer. ― Nisso estamos de acordo. ― Ela corre perigo, detective? ― Neste momento, pelo menos, não ― respondeu Aidan com um encolher de ombros. ― Estou apenas a ser cauteloso. Cárter respondeu com um gesto aprovador. ― Espero bem que sim. ― De repente, voltou-se e abriu uma das gavetas do móvel que ficava ao lado do sofá de Tess. Estava completamente à vontade, notou Aidan, sombriamente. Cárter tirou uma folha em branco da gaveta e entregou-a a Aidan. ― Fique com o meu endereço de casa e com alguns números de telefone de emergência. Se ela precisar de ajuda, telefone-me, por favor. 197 Aidan passou os olhos pela folha. ― Ou ao Robin? ― A qualquer hora do dia ou da noite, que nós aparecemos. ― Cárter hesitou e depois olhou por cima do ombro para o lado do quarto, antes de prosseguir em voz baixa. ― A família dela vive em Filadélfia. ― Ela disse-me. Cárter olhou-o surpreendido. ― A sério? ― Depois voltou a olhar por cima do ombro. ― E também


lhe contou que eles não se falam? Aidan deu por si a olhar igualmente na direcção da porta do quarto. ― Não. Só me disse que tem quatro irmãos com nomes que fazem lembrar a Máfia. Jon sorriu. ― O irmão Vito é polícia em Filadélfia. Os outros são professores, artistas e arquitectos. A Tess é a mais nova. O único com quem ela ainda fala é o Vito. ― O sorriso de Cárter desvaneceu-se. ― Foi ele que veio quando ela foi atacada o ano passado. ― Os pais não vieram? ― Aidan pareceu chocado com a ideia. ― Foi ela que não deixou o Vito dizer-lhes. Seja como for, se ela precisar de ajuda, ligue ao Vito. Não sei o número dele de cor, mas se me ligar para casa eu ou o Robin podemos dar-lho. Por favor, tome conta da Tess. Ela é a nossa família. ― Tenciono fazê-lo. ― Nesse momento Aidan soube que o faria, desse por onde desse. As mulheres voltaram do quarto, Amy com uma pequena mala na mão. Tess continuava com a mesma roupa suja, mas já tinha mudado de meias e calçado uns ténis cómodos de pano. ― As senhoras voltaram ― disse Cárter com um gesto amplo da mão. ― Amy, eu vou voltar para o hospital. Queres que te deixe no escritório? ― Não, eu trouxe o carro. ― Amy deu outro abraço a Tess. ― Liga-me assim que arranjares hotel. ― Depois entregou a mala a Aidan e seguiu Cárter até à porta. A porta fechou-se atrás dos dois e Tess deixou descair os ombros. Abriu a boca e depois fechou-a, enquanto com os olhos procurava à sua volta lugares onde pudesse haver câmaras escondidas. ― Deixe-me só dar de comer à gata antes de saírmos. Aidan foi atrás dela até à cozinha. Quando ela se inclinou para tirar qualquer coisa do armário debaixo do lava-louças cerrou os dentes com 198 força, de novo sujeito à tortura do espectáculo do traseiro bem desenhado dela. As suas mãos fecharam-se com força, contrariando o seu desejo de lhe tocar. Não o faria. Pelo menos não o faria ali, naquele sítio onde provavelmente havia câmaras a vigiarem todos os seus movimentos. Não naquele momento, em que o choque da tarde ainda pesava sobre os olhos dela. Na altura em que ela parou à frente dele com um pacote de comida para gato na mão, Aidan já tinha dominado tanto os seus pensamentos como o seu corpo. Uma pequena gata às manchas entrou na cozinha atraída pelo barulho da comida a cair no seu prato. Tess pegou nela e encostou a sua pele


macia ao rosto. ― Quando estive doente esta gata nunca saía de ao pé de mim. Quem me dera poder levar-te comigo, Bella ― disse ela ― mas não posso. Não há nenhum hotel que esteja disposto a aceitar-te. Vou ter de te deixar num gatil. Tomou a decisão numa fracção de segundo. Não ia permitir que ela fosse para um hotel. Não ia permitir que ela ficasse sozinha. ― Tem uma gaiola para a gata? Tess pestanejou, confusa. ― Tenho, mas ela detesta-a. ― Quer levá-la consigo? ― Não posso... ― Tess, estamos a perder tempo. Quer tomar um duche ou não? Ela levantou o queixo para ele, os olhos em fúria. ― Não se ponha a dar-me ordens, Aidan. Já perdi demasiado controlo sobre a minha vida nos últimos três dias. ― Depois respirou fundo, num esforço evidente por se dominar. ― Mas sim, gostava de a levar comigo se fosse possível. Conhece algum sítio que aceite gatos? Aidan não estava a contar com aquele sentimento de posse, desencadeado pelo seu nome nos lábios dela, apenas. ― Sim, conheço um sítio. Venha. Vamos levar o seu carro. Terça-feira, 14 de Março, 18.30 Tess apertou o roupão de uma estranha à volta da cintura e percorreu a curta distância que separava a casa de banho de Aidan Reagan da cozinha onde ouviu a sua voz grave. O homem estava decididamente louco. Só esse facto poderia impedi-la de o matar. 199 Como se não chegasse tê-la levado para ali, para casa dele. Ele tinha prometido levá-la para um hotel. "Na realidade, prometeu levar-me para um sítio onde aceitassem a Bella..." Como se não chegasse tê-la levado para ali, ainda tinha entrado na casa de banho enquanto ela tomava um duche e tinha-lhe roubado o roupão... "E pensar que confiei nele!" Parou à porta da cozinha. ― Detective Reagan. Duas cabeças voltaram-se ao mesmo tempo na direcção dela e Tess deixou os seus ombros rígidos relaxarem um pouco. ― Kristen! A cunhada de Reagan pousou cuidadosamente a sua caneca na mesa, contraindo os lábios. ― Fecha a boca, Aidan, ou ainda entra alguma mosca. Reagan fechou a boca, mas os olhos continuaram a parecer prontos a saltar. Não disse nada, como se tivesse engolido a língua. Pouco à


vontade, Tess apertou melhor o cinto do roupão e uniu a gola à volta do pescoço para esconder a cicatriz. Era pena ele não engolir mesmo a língua e morrer com falta de ar! Kristen observou-os aos dois com atenção, e Tess fez o possível por não pensar na cor vermelha que lhe cobria as faces. ― Foste tu que puseste isto na casa de banho? ― perguntou Tess a Kristen. ― Fui. Há mais roupa no quarto de Aidan. Também levámos para lá a tua gata ― respondeu Kristen de olhos postos na rottweiler que descansava aos pés de Reagan. ― A Dolly é uma querida, mas não queríamos assustar a tua gatinha. Tess concordou com um aceno e lançou um olhar de relance à enorme cadela que obedecia a todas as ordens de Reagan desde que ali tinham chegado. ― Obrigada, mas onde está o meu roupão, o que vinha na minha mala? ― Está na mala do teu carro ― respondeu Kristen. ― E porque estão as minhas coisas na mala do meu carro, Kristen? A amiga olhou por cima da mesa para o cunhado. ― Aidan? Reagan estudava com interesse e minúcia o fundo da sua chávena. 200 ― Vá mudar de roupa, Tess. A Kristen fez-lhe chá e uma sopa. Quando voltar, precisa de comer. Ela abanou a cabeça. O medo tirava-lhe qualquer vestígio de sorriso do rosto. ― Diga-me já, Aidan. Preciso de saber. Ele suspirou. ― Então sente-se. Em silêncio, ela obedeceu e sentou-se ao lado de Kristen, que lhe pegou na mão. Os olhos de Reagan ergueram-se para ela, solenes e cansados. ― O Jack revistou a sua casa depois de nós saírmos. Tess susteve a respiração. ― E...? ― Havia câmaras em todas as divisões. Teve a impressão de ficar sem forças.:, ― Em todas as divisões? Ele acenou afirmativamente. Tess engoliu em seco. ― Mesmo na casa de banho? ― Ele limitou-se a olhar para ela, sem dizer nada. Não era preciso. ― Há quanto tempo lá estavam? ― O Jack não tem a certeza. Há mais tempo que as outras. Talvez há alguns meses. Alguém andava a observá-la há vários meses. Sentiu o estômago às


voltas e respirou fundo para se acalmar. ― Então porque está a minha roupa na mala do carro? ― O Jack foi muito minucioso. Algumas peças de roupa tinham microfones cosidos nas costuras. Estarrecida, Tess não conseguiu reagir. Chegou a pensar que tinha ouvido mal. Mas não tinha. Pareceu-lhe que os pulmões davam um salto e percebeu que se tinha esquecido de respirar. ― Está a dizer-me que havia uma pessoa que podia sempre saber o que eu estava a fazer, estivesse eu onde estivesse? ― Não necessariamente ― murmurou ele. ― Tudo depende da distância a que estivesse do receptor dessa pessoa. Tess voltou os olhos para o tecto. Havia demasiadas coisas a correrem em todos os sentidos na sua cabeça para que ela conseguisse que fizessem sentido. Câmaras. Microfones. Receptores. E quatro pessoas mortas. O tecto parecia às voltas num enorme círculo. Fechou os olhos, desejosa de que este ficasse quieto. 201 "Não vomites, por favor. Acalma-te." ― Nesse caso, toda a minha roupa tem de ser revistada. ― Tenho muita pena, mas tem. Kristen apertou-lhe a mão. ― O Aidan telefonou-me assim que o Jack lhe contou. Pusemos a tua roupa e a tua mala no carro. O Jack vai mandar um reboque e eles vêem o carro e a roupa. Eu mandei a Becca ao Wal-Mart para ir buscar algumas coisas para usares até as tuas coisas voltarem. Tess sentiu-se reconfortada e grata. ― Foi muito simpático da parte dela, mas quem é essa Becca? ― A minha mãe ― respondeu Reagan. Estava a olhar para ela, à espera da resposta. Tinha os maxilares unidos com força e os olhos tinham-se tornado duros. Quase como se não estivesse de acordo. ― Ela está contente por poder ajudar, por isso faça de conta que gosta de tudo o que ela trouxer. Tess franziu o sobrolho. ― E porque não havia de gostar? Kristen afastou-se da mesa. ― Acho que te vou servir a sopa agora, Tess ― disse ela, rapidamente. ― Preferes uma tigela ou um prato? ― Uma tigela, acho eu ― respondeu Tess sem tirar os olhos de Reagan, pronta a explodir. ― Diga-me uma coisa, detective. Por que razão havia eu de fingir que apreciava o gesto amável da sua mãe? Reagan nem sequer pestanejou. ― Não tenho a menor dúvida de que aprecia o gesto, mas não é segredo para ninguém que os seus gostos são um bocadinho sofisticados de mais para o Wal-Mart, Dr.a Ciccotelli. Era só isso que eu queria dizer. Tess olhou para ele de olhos esbugalhados.


― O detective pensa que eu sou uma convencida. ― Ele não disse nada. Limitou-se a continuar a olhá-la com os olhos azuis duros. Agarrando as golas do roupão, ela voltou-se para o lugar onde Kristen se encontrava ao fogão, a servir uma tigela de sopa. ― Ele pensa que eu sou uma convencida! Por alguma razão, depois do terror e da tensão que tinha vivido nesse dia, uma coisa tão simples pareceu magoá-la por fim. Embaraçada, sentiu que as lágrimas lhe vinham aos olhos. Desviou o olhar para a tigela de sopa que Kristen lhe serviu naquele preciso momento. A mão da amiga acariciava-lhe tranquilizadoramente as costas. 202 ― A sopa é de conserva, mas pelo que sei é melhor que o que comeste hoje, que, tanto quanto sei, não foi nada. Por isso come. ― Depois Kristen surpreendeu-a estendendo o braço e dando uma palmada no alto da cabeça de Reagan. ― Além disso, ela não é nada convencida, percebeste? Ele levou a mão à cabeça. ― Bolas, Kristen! Isso doeu! ― Era mesmo para doer. E agora vou para casa. O Abe está de serviço hoje e a Rachel ficou a tomar conta da Kara, mas já está na hora de a miúda ir para a cama e a Rachel tem aulas amanhã. Tess, come a sopa e depois vai vestir o fato de treino que te deixei em cima da cama do Aidan. A Becca deve estar a chegar com um par de calças de ganga daqui a uma meia hora. ― Depois parou à porta e olhou para trás com ar preocupado. ― Aidan, a Rachel está bem? Pelo canto do olho, Tess percebeu que Aidan estremecia quase imperceptivelmente. ― Porque não havia de estar? ― perguntou ele. Kristen encolheu os ombros. ― Parecia preocupada. Disse-me que estava tudo bem, mas eu percebi que anda aborrecida com qualquer coisa. ― Eu falo com ela ―- disse ele, e levantou-se para fechar a porta atrás dela. No entanto, não se voltou depois de ela sair. No sossego da cozinha, a emoção dele pareceu tomar dimensões mais amplas. Estava furioso. Não se lembrava de se sentir assim desde a primeira noite, no local do... suicídio de Cynthia. Tess voltou a olhar para a sopa. "Ao princípio pensou que eu era uma assassina. Pelo menos agora já não pensa isso. Agora pensa que sou uma snobe arrogante." Aquilo que ele pensava dela não devia ter importância nenhuma, mas tinha, e ela estava cansada de mais para fingir. Inclinou-se sobre a tigela de sopa. A mão que segurava a colher tremeu e ela lembrou-se que há mais de vinte e quatro horas que não comia o que quer que fosse. A última vez que comera fora a sopa no Blue Lemon, de Robin.


Começava a detestar sopa. O som da respiração dele fê-la levantar os olhos. Reagan estava parado a olhar, com os olhos fixos abaixo do queixo dela. Aos poucos, o olhar dele ergueu-se e ela esqueceu a sopa. O que brilhava nos olhos do detective não era só raiva. Era desejo, puro e genuíno. Enquanto o olhava sentiu o coração a bater com força, a soar-lhe nos ouvidos. Viu 203 um músculo nos seus maxilares tensos a estremecer. De repente ele voltou-se. Quando falou, a sua voz estava alterada, grossa, e a respiração pesada. ― Vou para a garagem. Quando acabar de comer e de se vestir vamos ter com ojack ao seu consultório. Ela vai de certeza querer revistar tudo, incluindo o cofre. Dolly, anda. Tess pestanejou ao olhá-lo pelas costas, enquanto ele desaparecia por outra porta com a cadela obedientemente a segui-lo. A pulsação que lhe ecoava nos ouvidos abrandou e ela voltou a baixar os olhos. O sangue subiu-lhe imediatamente ao rosto. Inclinar-se sobre a sopa fizera o roupão abrir-se de mais para qualquer critério de decência. Além de a considerar uma snobe, também a achava uma provocadora reles. Tinha visto mais do peito dela que qualquer outra pessoa depois de Phillip, diabos o levassem. Além da pessoa que andava a espiá-la em casa. Essa pessoa também tinha visto tudo o que lhe apetecera. Ao longo de vários meses. Diabos a levassem também. O melhor era não pensar no assunto nesse momento. Kristen tinha razão. Do que ela precisava era de comer, e foi o que fez. "Câmaras." Estremeceu da cabeça aos pés. "Em minha casa." Imaginou-se nos sites pornográficos da Internet, o que por pouco não fez a sopa voltar-lhe à boca. Mesmo assim, isso não era tão mau como as câmaras no consultório ou nas bainhas da roupa. A privacidade dos seus doentes fora violada sem compaixão e todas aquelas informações pessoais tinham sido usadas para os agredir e prejudicar. Afastou a tigela. Quanto mais cedo soubesse tudo, melhor. Foi vestir o fato de treino de Kristen, esperançada de que fosse de um tamanho maior que o robe. Terça-feira, 14 de Março, 18.55 Ao lado dele, Dolly estava sentada a rosnar. Meio segundo mais tarde Tess apareceu junto da porta que vinha da cozinha. ― Posso entrar? Aidan ergueu os olhos da sua mota, aliviado por ver que ela estava realmente vestida. A roupa que trazia pertencia a Kristen, o que queria dizer que era pequena de mais, mas felizmente as partes vitais da


204 anatomia dela estavam cobertas. Não estava certo de ser capaz de sobreviver a uma nova contemplação dos seios dela. Isto não queria dizer que fossem menos belos do que ele os imaginara. Eram lisos, cheios e firmes. Precisara de todas as suas forças para lhes voltar costas, para não meter as mãos no roupão para investigar melhor o assunto. Excitado e frustrado, pousou a chave que estava a usar para desapertar uma porca ferrugenta da mota. ― Claro. Esteja à vontade, mas tenha cuidado com aquilo em que mexe. Este sítio é muito sujo. A uma distância de três ou quatro metros, ela estudava a mota dele. ― Um novo projecto? Ele olhou com ar apreciador para a mota que tinha comprado uma semana antes. Preferia tudo a olhar para Tess. ― Talvez. Depende do que encontrar quando entrar dentro dela. Quando se apercebeu da escolha infeliz das palavras estremeceu. Fosse como fosse, tinha de se convencer de que nunca a teria. Tinha notado a expressão fria dela quando se apercebera de que ele não a ia levar para nenhum hotel. Mas não tinha discutido com ele. Limitara-se a caminhar em silêncio até à casa dele e depois até à casa de banho, com o porte e a atitude de uma rainha. Tinha-lhe custado, era obrigado a admitir. Tinha pensado que ela ia ficar contente por não ter de ir para um hotel impessoal e frio. Enganara-se. Mesmo assim, quando a vira com o roupão de Kristen, desejara-a. Por isso, recordou a si mesmo que ela representava Michigan Avenue e ele vivia num bairro ao lado de um Wal-Mart. Contara que ficasse um pouco irritada, mas não magoada. A intenção dele não fora magoá-la. Nesse momento, Tess estava de costas, a ver com atenção as fotografias que ele tinha tirado quando andava a restaurar o Camaro, em várias fases do processo. ― Gosta de arranjar coisas ― disse ela, com um olhar por cima do ombro. ― Carros, motas ― acrescentou, com um aceno na direcção da mota. ― O meu irmão tinha uma igual. É uma mota para andar depressa. Pensou no que Cárter lhe tinha contado, que ela não falava com a família. ― Qual deles? O Dino, o Tino, o Gino ou o Vito? Um sorriso forçado esboçou-se na boca dela. ― O Vito, o mau rapaz da família. A minha mãe andava sempre preocupada com ele. Não parava quieto, sempre de um lado para o outro a voar na mota dele. 205 ― A minha mãe era capaz de também ficar preocupada se soubesse.


― Estou a ver. A mamã não sabe tudo... Não tem vergonha, detective? Aidan ergueu uma sobrancelha. ― Está a pensar denunciar-me? ― Nem pensar. Eu sou um túmulo. ― O sorriso desapareceu. ― Só é pena que amanhã todos vão pensar o contrário. Ele não soube o que responder, de maneira que não respondeu nada. Agarrou num trapo velho e limpou as mãos sujas de óleo. ― Porque achou que eu ia magoar a sua mãe? Aidan suspirou. ― Não achei. Pelo menos não de propósito. Ouça, a Tess vive de uma maneira diferente. Faz as suas compras em lojas caras. O seu carro é um Mercedes. ― "Já o meu Camaro anda com uma capota colada com fita gomada", pensou ainda. ― O seu apartamento vale pelo menos cinco casas iguais à minha. ― Cruzou os braços sobre o peito. ― A minha mãe não percebe nada de moda e de lojas caras, mas tem bom coração e eu não gostava que ela fosse magoada. ― É da sua mãe que estamos a falar, detective? Ou de si? Ele atirou o trapo para o lixo, aborrecido por ela o ter percebido tão bem. ― Tem a certeza que não me quer apanhar no divã para resolver isto? ― Ela recuou quando ele falou num tom agressivo, com que ele próprio não estava a contar. ― Desculpe, isto foi um disparate. Está pronta para saírmos? ― Pensei que estávamos à espera que a sua mãe me trouxesse roupa. Ele olhou-a com sobranceria. ― Está bem. Espere na cozinha. Eu tenho coisas a fazer aqui. ― Vou já. ― Tess atravessou a garagem, abrindo caminho entre as peças da mota que ele já tinha desmontado, e parou quando entre os dois ficou apenas a estrutura. Estava suficientemente perto para ele lhe poder tocar, para sentir o cheiro doce da pele dela sobre o cheiro a óleo dos motores. Para ver as veias do pescoço dela a latejarem. ― Há meia dúzia de coisas que eu gostava de esclarecer consigo, detective. Eu não sou nenhuma snobe nem costumo ofender as pessoas que tentam ajudar-me. Quando era miúda, sonhava com roupa do Wal-Mart. A minha mãe foi obrigada a ter dois empregos para criar cinco filhos 206 com roupas em segunda mão. Quando queria alguma coisa nova, tinha de a fazer eu. Por isso sei muito bem o que vale o dinheiro. ― Fez uma pausa. O seu maxilar estava rígido. ― O meu Mercedes foi uma herança, e o meu apartamento também. A minha vida tem corrido bem e eu não me posso queixar do que ganho. ― Os seus dentes rangeram. ― Ou pelo menos não podia. ― Tess...


― Ainda não acabei. Não vou pedir-lhe desculpa, nem a si nem a ninguém, pela maneira como vivo. Mas também não estou na disposição de o deixar usar estas coisas para me fazer parecer uma coisa que não sou. Reagan sentiu-se levado a defender-se. ― Ficou contrariada por eu a trazer para aqui. Ela revirou os olhos e replicou: ― Claro que fiquei. Estava com um aspecto nojento, com os miolos e o sangue de outra pessoa no cabelo. O detective talvez esteja habituado a lidar com coisas destas todos os dias, mas eu não, pode ter a certeza. Não pude tomar banho em minha casa porque um filho-damãe de um assassino que gosta de espreitar pessoas desprevenidas anda a tirar-me fotografias noite e dia. Nem sequer pude explicar-lhe porque queria ir para um hotel porque estava com medo que o mesmo filho-da-mãe tivesse posto microfones no meu carro. Tudo o que eu queria era um lugar onde pudesse tomar um duche sem ter de me preocupar para não sujar a casa de banho de outra pessoa. ― Por fim deitou fora o ar que estava a reter nos pulmões sem sequer dar por isso. Lamentou ter-se deixado dominar pela irritação. ― Desculpe-me por estar tão furiosa. Ofereceu-me a sua casa e eu fui desagradável. Tendo em conta tudo o que ela tinha passado naquele dia a sua atitude era inteiramente compreensível. Achou mais uma vez que tinha feito figura de parvo. ― Desculpe. Voltei a enganar-me em relação a si. Pensei que era... ― Encolheu os ombros, pouco à vontade. ― Que olhava para mim com desdém. ― Pois bem, isso não é verdade ― respondeu ela com calma. ― Nunca faria isso. A fúria, a confusão e a mágoa desapareceram. No silêncio que se seguiu, ficaram ambos pouco à vontade. ― Obrigada. ― Ao fim de mais alguns instantes de silêncio, acrescentou: ― A propósito, gostei da sua casa de banho. ― Os seus lábios 207 esboçaram um sorriso. ― Os azulejos dos patinhos dão-lhe um toque com graça. Reagan percebeu que tinha corado. ― Já lá estavam quando comprei a casa. De vez em quando, fico com os meus sobrinhos. Como eles gostaram, não os tirei. ― Foi delicado. ― O sorriso dela desapareceu. ― Como o detective. Há uns dias não teria imaginado. Ele sentiu um aperto no peito. ― Há uns dias não lhe dei muitas razões para o pensar. ― Estava a fazer o seu trabalho ― disse ela, erguendo o queixo. ― Eu


compreendi. Tess tinha sido honesta consigo. Esclarecera tudo. Achou que tinha de fazer o mesmo. ― Não foi só isso. Há uns dias eu queria odiá-la. ― Ela tentou recuar, mas ele agarrou-lhe o braço acima do cotovelo e impediu-a de se afastar. ― Ainda não disse tudo o que tenho a dizer. ― Abrandou a força, até que a sua mão a prendeu pelo pulso, quase sem fazer pressão. ― Eu queria odiá-la porque tinha a impressão que a Tess não se ralava com nada nem com ninguém. Mas não conseguia olhar para si sem a desejar, e isso fazia-me odiá-la ainda mais. Viu a cicatriz fina do pescoço dela subir e descer quando ela engoliu em seco. ― Estou a ver. Já disse o que tinha a dizer? O tom dela era firme. Em tempos, ele teria confundido a maneira de falar dela com altivez e desprezo. No entanto, sentiu o pulso dela acelerar-se e isso deu-lhe coragem para continuar. -― Não, ainda não. Era mais fácil querer odiá-la quando pensava que a causa era Green. Depois descobri que tinha ajudado a condenar muitos culpados, alguns ainda piores que ele. ― Eu cumpro o meu dever, detective. ― Depois também foi mais fácil odiá-la quando pensei que podia ser culpada. Pensar que era fria e insensível alimentou a minha raiva por mais algum tempo. Até que ontem à tarde a vi com Mr. Winslow e deixei de acreditar que isso fosse possível. ― Desculpe-me por não ser mais prestável ― disse ela, rígida. Aidan sorriu e levou o pulso dela aos lábios. Os olhos de Tess pareceram tornar-se maiores. ― O seu coração está a bater mais depressa ― murmurou ele. Os lábios dela afastaram-se, mas deles não saiu qualquer palavra. Sentindo-se 208 encorajado, beijou-lhe o pulso, que batia acelerado, e depois pousou a mão dela aberta sobre o seu peito. Ao princípio ela tentou recuar, mas depois cedeu e abriu a mão com confiança sobre o peito dele. Com um sorriso um pouco maroto, ela respondeu-lhe: ― O seu também... ― Eu sei. Ultimamente tem acontecido bastante ― respondeu Aidan, também com um sorriso malicioso. ― E nem sempre por razões tão agradáveis como agora. ― Desculpe não colaborar mais ― repetiu ela, dessa vez com uma voz mais grave. "Vamos a ver." ― O último bastião da minha esperança era odiá-la por ser uma mulher endinheirada e sofisticada.


― Qual é o mal de ter dinheiro e de ser sofisticada? Ele enfrentou o olhar dela. ― Têm gostos caros e sofisticados. Gostam de jantar em restaurantes caros e de jóias. Os olhos dela fecharam-se um pouco. ― E...?; O maxilar dele ficou tenso. ― Eu não tenho dinheiro para... ― interrompeu quando viu o brilho de fúria nos olhos dela, como um aviso, e quando as mãos dela ficaram tensas, agarradas à camisa dele. ― Cuidado, Aidan. é melhor não voltar a dizer coisas que não quer. ― Puxou pela camisa dele e obrigou-o a olhar para baixo, directamente para os olhos dela. Apoiou com firmeza a mão livre na mota. ― Eu não sou nenhuma puta de rua que um homem tenha de pagar. Quem paga as minhas coisas sou eu. Se me apetecer jantar num bom restaurante, janto. Se me apetecer ficar em casa, também sei cozinhar. Se uma jóia me agradar, compro-a. Estamos esclarecidos? Por momentos, tudo o que ele pôde fazer foi olhá-la, fascinado. Depois enterrou os dedos no cabelo molhado dela e tomou o que estava ansioso por ter. Esmagou os lábios contra os dela, que foi ao encontro dele. A mão dela soltou a camisa e agarrou-o pela nuca, puxando-o para si. A boca de Tess era quente e ávida, como ele a imaginara, e abriu-se à dele sem hesitar. Quando ele a beijou mais profundamente sentiu um som vir da garganta dela, um misto de gemido de prazer e de queixume de frustração. Ela inclinou-se para a frente e a mota oscilou perigosamente, fazendo Dolly afastar-se com prudência. 209 Tess acabou por recuar, com ambas as mãos sobre o guiador para equilibrar a mota, o peito a subir e a descer com a sua respiração ofegante. Tinha os lábios húmidos e os mamilos, evidentemente rijos, eram visíveis através da camisola justa. Ergueu o queixo para ele num desafio, como se quisesse ver se ele se atrevia a parar, e ele teve de se dominar. Contornou a mota, sem nunca desviar os olhos dos dela. Não disse uma só palavra. Limitou-se a rodeá-la com os braços e inclinou-se para ela, preocupado com continuar no ponto em que tinham interrompido. Quando ela voltou a rodear-lhe o pescoço com os braços e entreabriu os lábios, deu graças pela sua boa fortuna. A excitação voltou, intensa. Selvagem. As mãos dele percorreram-lhe as costas, para cima e para baixo, enquanto ela se colava a ele, que sentia o peito dela esmagado contra o seu. Com um gesto elegante, Tess ergueu-se, torturando-o com o movimento das suas ancas. O corpo dele parecia latejar, as mãos demasiado vazias. Aidan afastou-se o suficiente para poderem respirar. Sentiu a respiração dela ofegante contra o seu rosto, ambos excitados,


perturbados. ― Quero sentir o seu corpo ― murmurou ele, os lábios contra os dela. ― Deixe-me tocar-lhe. Ela deixou descair a cabeça para trás, pondo o pescoço a descoberto, o que ele aproveitou para colar os lábios à sua pele. ― Onde? Aidan ficou imóvel. ― O que foi que disse? ― Perguntei onde. ― A voz dela pareceu-lhe grave, pesada. ― Onde quer tocar-me? Ele colou o rosto ao pescoço dela com um estremecimento. ― Céus, Tess! Ela soltou os braços com que lhe envolvia o pescoço e pegou-lhe no rosto entre as mãos. ― Estou a falar a sério. ― Ele ficou surpreendido por ver insegurança nos olhos dela. ― Diga-me onde. Por favor. ― O pedido era um sussurro grave e Aidan lembrou-se do que Murphy dissera. Ela tinha estado para casar e o noivo deixara-a. Tinha-a enganado. Como era possível? Como podia uma coisa dessas passar sequer pela cabeça de um homem?! Mas Aidan sabia que mais importante que quaisquer razões era apagar a vulnerabilidade dos olhos dela. A maneira como se comportasse nos momentos seguintes podia dar-lhe confiança ou enfraquecê-la ainda 210 mais num dia em que já tinha passado por vários momentos horríveis. Onde é que ele queria tocar-lhe? Por amor de Deus! Onde é que ele não queria tocar-lhe? ― Em toda a parte ― conseguiu dizer. ― Em toda a parte onde me deixar. ― As mãos dele desceram-lhe pelas costas e detiveram-se nas nádegas dela. ― Aqui. ― De olhos fechados, Tess repousava as mãos nos ombros dele, enquanto os dedos de Aidan sentiam a carne firme dela sob o tecido macio das calças. Embora a atitude dela fosse passiva, o seu corpo estava tenso e o seu rosto espelhava o desejo despertado pelas carícias dele. Aidan levou a mão ao peito dela, como se quisesse sentir-lhe o peso. ― Aqui. ― Com um polegar, sentiu um mamilo duro e o corpo dela retesou-se, bem como o dele, em resposta à reacção dela. Como não confiava em si mesmo, levou ambas as mãos ao rosto dela e beijou-a na testa. ― A sua beleza deixa-me deslumbrado, Tess. Ela abriu os olhos, húmidos de desejo não satisfeito. ― Porque não continua? Teve de dominar o impulso de o fazer. ― Porque a Tess teve um dia terrível e eu não vou aproveitar-me disso. Não olhe para mim dessa maneira ― pediu ele quando a dúvida


se instalou nos olhos dela. Ainda com as mãos nas nádegas dela, ergueu-a em peso e fê-la sentir a sua erecção uma, duas, três vezes antes de voltar a pô-la no chão e de se afastar um pouco. ― Acredite que a última coisa que me apetece fazer é parar ― disse ele num tom de contrariedade. ― Não quero apressá-la. Sobretudo nestas circunstâncias. Ela olhou para ele, os olhos ao mesmo tempo cautelosos e excitados, o rosto corado. ― Que circunstâncias?; Ele voltou a suspirar. ― Sou o primeiro depois dele, não sou? ― Sendo assim, já sabe. ― Os olhos dela tinham endurecido. ― Acerca do Phillip, diabos o levem. ― Tess, ele era um palerma. Pouco me importa a razão que ele deu. ― Com delicadeza, percorreu-lhe o rosto com os dedos. ― Mas tenho de confessar que me agrada tê-lo fora do caminho. Em certas coisas, três são uma multidão. Beijou-a na boca e nesse preciso momento Dolly começou a rosnar. 211 Aidan ficou imediatamente alerta. Pôs-se à frente de Tess e ao mesmo tempo inclinou-se para tirar a arma do coldre do tornozelo. A porta que dava para a cozinha abriu-se e uma cabeleira castanha familiar espreitou pela fresta. Aidan baixou a mão onde tinha a arma. ― Que diabo, mãe! Esta franziu o sobrolho. ― Não quero ouvir essa linguagem, Aidan! E guarda essa coisa! Ele baixou a cabeça. ― Desculpe ― murmurou. Atrás dele ouviu Tess rir-se e lembrou-se que era apenas a segunda vez que isso acontecia na sua presença. Nos últimos dias tinha sofrido demasiados choques. Não se importava que ela se risse um pouco à custa dele. A mãe dele, pelo menos, riu-se abertamente. ― Deve ser a amiga da Kristen. Tenho aqui a sua roupa. A Kristen esteve a ver as suas coisas e viu os números que usa. Espero que as coisas que eu trouxe lhe sirvam. Tess saiu detrás dele com um sorriso no rosto. ― Obrigada, Mrs. Reagan. Foi muito amável ter tido todo esse trabalho comigo. ― Aproximou-se da mãe dele para a cumprimentar, com cuidado para não tropeçar nas peças da mota. ― O Aidan andava a mostrar-me a casa. ― E a vangloriar-se da mota nova? ― disse ela com uma ponta de impertinência. ― Não se esqueça que eu não disse nada, Reagan ― lembrou Tess com um encolher de ombros. Abriu a porta à mãe de Aidan, com um sorriso divertido para a arma que ele ainda empunhava à altura da cintura. ― É como se fosse Natal, Mrs. Reagan.


― Ele ainda vai partir o pescoço com essa coisa― disse a mãe dele, enquanto Tess procurava empurrá-la para a cozinha. Aidan ficou a olhar para a porta. Depois riu-se e atravessou a garagem a saltar por cima de peças da mota. Inclinar-se para agarrar a arma com uma erecção como aquela quase dera cabo dele, mas ouvir Tess rir-se acabara por aliviá-lo. Já mais calmo, entrou em casa para ligar a Jack Unger. A polícia científica ia precisar de falar com eles no consultório de Tess. Quanto mais cedo apanhassem o assassino, mais depressa Tess poderia refazer a vida dela. "Que de uma maneira ou de outra há-de confundir-se com a minha." CAPÍTULO 11 Terça-feira, 14 de Março, 19.45 Tess olhou para a capota do Camaro de Reagan e rezou para que a fita gomada se aguentasse, pois tinha começado a chover outra vez. No entanto, não se atreveu a voltar a abrir a boca, preocupada com a possibilidade de ele pensar, de novo, que ela era uma snobe. "Alguém deve tê-lo magoado", pensou ela. Alguém que dava muita importância ao dinheiro, que o tinha feito sentir que não estava à altura. Mordeu o lábio inferior. Para achar que ele não estava à altura era porque nunca o tinha beijado. Mesmo usando um autodomínio de ferro, ele tinha-a deixado louca. Mas era ele que tinha razão. Não seria sensato envolver-se numa relação física com ele ou com quem quer que fosse. Pelo menos não naquele dia. Mas tivera necessidade de o ver mostrar-lhe que era uma mulher desejável. Até ele a ter envolvido nos seus braços não se apercebera do quanto precisava dele. Perguntou a si mesma quem teria sido a mulher. A que o magoara, a que dava mais valor ao dinheiro do que lhe dera a ele. No entanto, não se sentiu suficientemente à vontade para perguntar. Pelo menos não por enquanto. Sentiu que começava a ficar mais calma. ― Gostei da sua mãe. Aidan olhou para ela e depois voltou os olhos de novo para a estrada. ― Toda a gente gosta da minha mãe. ― Os seus lábios desenharam um sorriso. ― Mas obrigado na mesma. Ela ficou contente por ver que a Tess gostou das coisas que ela comprou. Tess acariciou a camisola de lã macia que já trazia vestida. ― Escolheu como se fosse eu. Obrigada por lhe ter dito que comprasse camisolas de gola alta. 213 ― De nada. Tess deitou fora o ar dos pulmões. ― E obrigada pelo autodomínio. Em geral, não me atiro aos homens daquela maneira.


Aidan não respondeu, mas ela viu que ele reagiu à luz dos faróis dos carros que passavam por eles. Por fim, ele suspirou e respondeu-lhe: ― Se a sua intenção é pedir desculpa, não peça. E não pense que, por eu ter conseguido parar hoje, para a próxima também vou conseguir. Sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas. ― Para a próxima? Ele olhou para ela de relance, mas com firmeza. ― Vai haver uma próxima vez, Tess. Ela ajeitou-se melhor no banco e respondeu com um sorriso: ― Ainda bem. O riso breve dele foi a única resposta que obteve. Por fim, Reagan estacionou no lugar dela no parque de estacionamento. Tess saiu do carro e observou: ― O carro do Harrison ainda aqui está e ele nunca trabalha até tão tarde. ― Sentiu o estômago às voltas. ― Oh, não! ― Correu em direcção às escadas, com Aidan no seu encalço. Quando chegaram à porta do consultório encontraram Jack à porta. Ele tirou-lhe as chaves das mãos trémulas, abriu a porta da rua e acendeu a luz. Depois bloqueou a porta com o corpo, impedindo-a de passar. ― Não entre. Tess olhou à sua volta e pareceu ficar sem respiração. ― Meu Deus! ― O gabinete de Denise estava desfeito e o computador dela tinha sido feito em pedaços. O chão estava coberto de livros e de revistas rasgados e a porta de madeira do arquivo tinha sido tirada dos gonzos. O arquivo propriamente dito estava fechado. Devagar, Reagan ejack entraram de armas em punho. ― Polícia ― ecoou a voz de Reagan. Depois fez-se silêncio. Tess apontou para a porta do gabinete de Harrison, que estava entreaberta. O colega nunca deixava a porta aberta quando saía. ― Aidan, por favor, veja o que se passa no gabinete do Harrison. Com um único gesto, Aidan abriu a porta completamente. ― Não está aqui ninguém, Tess. Mas houve aqui uma luta. 214 As portas dos armários de Harrison tinham sido rebentadas e o sofá estava feito em farrapos. O monitor do computador do colega estava no chão, partido. Jack abriu a porta do gabinete de Tess. ― O seu gabinete também está desfeito. Acho que andou aqui alguém à procura de qualquer coisa. Ela engoliu em seco. ― De câmaras? Jack abanou a cabeça. ― Não me parece. Isto está em desordem e a pessoa que pôs as câmaras é meticulosa. Disse-me que não guarda os processos no


consultório? ― Não. Só no arquivo, no cofre. Nesse momento, Reagan estudava precisamente o arquivo. ― Jack, vem cá. Apontou para uma das enormes dobradiças e Tess sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Havia uma mancha castanho-escura à vista. Sangue seco. Jack voltou-se para ela. ― Venha cá e abra-o. Mas cuidado. Há vidros partidos por toda a parte. Ela fez um gesto de acordo e procurou manter as mãos firmes enquanto marcava a combinação e abria o cofre. Por fim, ficou de boca aberta a olhar. Todas as pastas sem excepção tinham sido tiradas das prateleiras e esvaziadas. O chão estava coberto de papel, nalguns sítios até uma altura de vários centímetros. Estava tudo amontoado debaixo de uma das prateleiras. Era um monte comprido, na verdade com o comprimento de um homem. ― Harrison. ― Com o coração na garganta, Tess pôs-se de joelhos e afastou as folhas, revelando por baixo o cabelo branco do colega, manchado de sangue. Descobriu-lhe o rosto e pôs-lhe o dedo sobre a carótida. Susteve a respiração até lhe apanhar a pulsação. Estava muito débil, mas encontrou-a. Reagan baixou-se ao lado dela. ― Está vivo? Ela acenou afirmativamente. ― Mas está muito fraco. Ajude-me a tirar este papel daqui. Tenho de ver se ele tem mais feridas. Cuidado! Não o mude de sítio. ― Atrás dela ouvia a electrostática do rádio de Jack, que pedia uma ambulância. Reagan afastou todos os papéis que cobriam o homem idoso. ― Continua 215 a sangrar da cabeça ― disse ela. ― Preciso de qualquer coisa para estancar o sangue. ― Tem alguma mala de primeiros socorros? ― perguntou Aidan. ― No armário da despensa ― respondeu ela enquanto procurava à pressa as chaves, até que por fim se lembrou que ele ainda as tinha. ― É uma das chaves médias. A número sessenta. Obrigada. Reagan tocou-lhe no ombro com um gesto de carinho e afastou-se à pressa. Harrison gemeu e abriu os olhos com dificuldade. ― Tess. Ela olhou-o ao mesmo tempo que com as mãos continuava a procurar outras feridas que ainda sangrassem. ― Caluda, Harrison. Já estou aqui e vamos tratar-te. ― Tess... ― insistiu ele, e pegou-lhe na manga.


Como não encontrou mais nenhuma ferida exterior, Tess aproximou o rosto do dele. ― Quem é que fez isto? Ele fez um esgar e respondeu: ― Doente. Teu. Apanhou-me no carro. Tinha uma faca. Ela teve a impressão que o coração tinha deixado de bater. ― Desculpa. ― Está calada, Tess. Ouve. Ele levou um processo, e depois disse... ― voltou a fazer um esgar de dor ― que não queria que tu andasses para aí a contar os segredos dele. Disse que te havia de matar para não o fazeres. As mãos dela procuravam as casas dos botões do casaco dele. Fez um esforço por se manter firme e continuou o que estava a fazer. ― Eu tenho cuidado, Harrison, prometo. Reagan ajoelhou-se ao lado dela e abriu a mala dos primeiros socorros com mãos trémulas. Encontrou uma ligadura e deu-a a Tess. ― Quem foi esse doente, Dr. Ernst? Os lábios de Harrison esboçaram uma imitação patética de sorriso que partiu o coração de Tess. ― Um dos mais malucos, espero. ― Franziu o sobrolho e continuou. ― Há uns tempos que não o via. Jovem. Cabelo cortado à escovinha, orelhas grandes... ― A tosse dele era profunda. ― Raios, isto dói. ― Onde? ― perguntou Tess, tentando ignorar a descrição e concentrando-se apenas em Harrison. Acabou de desabotoar o casaco 216 dele e depois começou a desabotoar a camisa. Quando viu as feridas e as nódoas negras que ele tinha no tronco perguntou: ― Onde é que te dói? Mais uma vez, Harrison tentou sorrir. ― Onde é que não dói? ― As pálpebras cerraram-se e ele gemeu de dor. ― Costelas, costas. Não queria abrir o cofre, de maneira que ele bateu-me a sério. Acabei por ter de lhe dizer o... ― A respiração arrancou-lhe um estertor do peito. ― Telefona à Fio. Diz-lhe que... Tess sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos. ― Eu telefono-lhe, Harrison. Digo-lhe que vá ter connosco ao hospital. ― Diz-lhe que a amo. Com a ligadura fazia pressão sobre a ferida na cabeça, que continuava a sangrar. Sentiu que não conseguia conter as lágrimas. ― Não sejas pateta, Harrison. Porque não lhe dizes tu? Isto é só um corte com mau aspecto na cabeça. ― Bastou ele olhar para ela para Tess perceber que ele sabia que estava a mentir. As marcas no tronco eram sinal de uma hemorragia interna que seria muito mais difícil de tratar. ― Quem é a Fio? ― perguntou Reagan com serenidade.


― A mulher dele. Importa-se de lhe ligar? O meu telemóvel está no bolso do meu casaco. O número está memorizado em "Ernst casa". Diga-lhe que vá ter comigo ao hospital. Ligue lá fora. Aqui não há sinal. Com um gesto de acordo, ele voltou a sair, depois de lhe apertar de novo o ombro e de pegar no telemóvel dela. Os pulmões de Harrison voltaram a produzir um estertor. ― O teu polícia é atraente. Diabolicamente. Tess pestanejou, esforçando-se por ver através das lágrimas, e limpou o rosto à manga da camisola. ― Chiu! ― Vi-o contigo nas notícias. É quase tão atraente como eu ― atirou ele. Tess riu-se com uma pequena risada que mais parecia um soluço. ― Quieto, velhote ― disse ela, esforçando-se por falar num tom despreocupado. ― Guarda o charme para a Fio. Ele abriu muito os olhos. Neles transparecia a ansiedade à mistura com a dor física. ― Diz-lhe, Tess. Por favor. Ela acariciou-o ao de leve no rosto. 217 ― Eu digo. Prometo. Harrison acalmou-se. Respirava como se todo o ar que entrava nos pulmões tivesse de passar através de um lenço de papel. Não era um bom sinal. Reagan estava outra vez atrás dela e ajudou-a a pôr-se de pé. ― Os paramédicos chegaram. Deixe-os trabalhar. Desorientada, Tess viu-os levar o amigo. Reagan não saía de trás dela, sempre com as mãos pousadas sobre os seus ombros. Por fim obrigoua a voltar-se. Os olhos azuis dele, que ainda há tão pouco tempo a tinham olhado acusadoramente, eram a única coisa que a impedia de romper num pranto histérico. ― A culpa não foi sua ― disse ele. ― O pulmão dele está perfurado ― murmurou ela, ignorando-o. ― Eu disse-lhes? Ele afastou-a do cofre com delicadeza. ― Disse. Agora procure acalmar-se. Tem de pensar. ― Apertou-lhe os ombros com força. ― Tess. Ela pestanejou e ele sentiu-a ficar tensa. ― O quê? ― De quem é que ele estava a falar? Novo, com o cabelo cortado à escovinha e orelhas grandes. E há uns tempos que não vinha cá. A psiquiatra fechou os olhos e viu o rosto dele na escuridão da sua mente. Seria tão fácil. Bastava-lhe dizer um nome e ele ia preso. Seria punido. Seria tão fácil. Mas não estaria bem.


― Não posso dizer-lhe. ― Que quer dizer com isso? Ela abriu os olhos e enfrentou a expressão incrédula dele. ― Quer dizer que não estaria bem revelar a identidade de um doente sem isso ser absolutamente indispensável. Ele deixou cair os braços e deu um passo atrás. ― Está a brincar comigo! Sentindo os joelhos sem forças, ela olhou à sua volta, mas não viu nenhum sítio onde pudesse sentar-se. ― Quem me dera! ― A Tess ouviu o que o seu amigo disse. A pessoa que fez isto ameaçou que a matava! Cansada, ela caminhou em direcção à parede e inclinou-se. ― Eu ouvi-o. ― Tinha quase a certeza que sabia de quem Harrison estava a falar. Alto, jovem, maldoso, um dos poucos doentes que a tinham 218 realmente assustado até esse dia. "Era capaz de me matar sem sequer pestanejar." Sentiu as lágrimas formarem-se na base da garganta e engoliu com firmeza, procurando não ceder. ― Estou com medo ― disse num sussurro, com voz trémula. ― Está satisfeito? Reagan aproximou-se dela e levantou-lhe o queixo com um dedo. ― Então diga-me ― murmurou. ― Prometo que não conto a ninguém. Ela abanou a cabeça, num gesto de negação. Sentia-se tentada a lançar-se nos braços dele e a pedir-lhe que a abraçasse com força. ― Não posso. Hoje fui acusada de não respeitar a privacidade dos meus doentes, mas sabia que não era verdade. Agora, se lhe contar, passa a ser. ― Tess, ninguém ia saber. ― Eu ia ― respondeu ela, afastando os olhos. ― E o Aidan também. A equipa de Jack tinha chegado. Sem forças, apática, ela viu-o entrar com os colegas no cofre. ― O Jack não pode levar os processos sem uma ordem do tribunal, Aidan. Tenso, Reagan acenou afirmativamente. ― Não toques na papelada antes de termos uma ordem do tribunal, Jack ― gritou. Jack espreitou pela abertura da porta. ― A minha ideia não era essa. Tinha pensado recolher as impressões digitais. Se só entravam aqui três pessoas, deve ser fácil excluí-las. ― Isto é, se ele não tiver trazido luvas... ― respondeu Reagan. Jack encolheu os ombros. ― Já me conheces: sou um optimista. Reagan deu meia-volta de maneira a ficar de costas para a parede e


depois limitou-se a olhar para baixo, para ela. ― Não pode ao menos dar-me uma pista? Ela hesitou e por fim disselhe: ― Se conseguir as impressões encontra-as na base de dados da polícia. ― Tem cadastro? O sorriso dela não revelava boa disposição. ― Mais comprido que o seu braço, pelo menos se for a pessoa que eu penso. ― Olhou para o relógio. ― Tenho de ir para o hospital. Quanto tempo é que o Jack leva a recolher as impressões digitais? Antes de sair tenho de fechar o cofre. 219 Os olhos dele pareceram tornar-se mais sombrios. ― Não acredita que sejamos capazes de nos conter... Tess apertou os punhos, mas respondeu sem levantar a voz: Apetecia-me esbofeteá-lo por ter dito isso. Isto não tem nada a ver com a minha confiança em si. Só tem a ver com a legislação. Todos os pedacinhos de papel que estão dentro daquele cofre estão protegidos por lei, detective. Se eu lhos entregar sem uma ordem do tribunal, já estou a quebrar a lei. Isto para si tem alguma importância? Ele sentiu os dentes rangerem da força com que contraiu os maxilares. ― O que tem importância para mim é que um tipo desequilibrado com um cadastro mais comprido que o meu braço esteja a planear matá-la. Isso é que tem importância para mim. ― Aidan inspirou fundo e expeliu o ar dos pulmões. ― Nós despachamo-nos o mais depressa que podermos e deixamo-la fechar o cofre outra vez. A frustração de Tess pareceu desaparecer de um momento para o outro. ― Estou outra vez a dificultar as coisas, não estou? ― Está, mas eu compreendo. Não sou obrigado a gostar, mas compreendo ― disse Reagan, que tirou o telemóvel dela do bolso. ― Reparei que tem algumas chamadas perdidas de uma Mrs. Ernst. Tess olhou para o próprio telefone com ar alheado e depois lembrouse. ― Pus o telefone em silêncio durante as consultas de hoje à tarde. ― Pegou nele e consultou o registo de chamadas. ― Cinquenta e duas chamadas perdidas?! ― A maior parte deve ser de jornalistas. ― Onde é que eles arranjaram o meu número de telemóvel? ― Onde é que eles arranjam a maior parte das informações? ― Bem-visto. ― Olhou para o telefone de sobrolho franzido. ― É possível pôr um aparelho destes sob escuta? Foi a vez dele de ficar perplexo. ― Não faço a menor ideia. Não use os telefones daqui, mas se quiser


ouvir as suas mensagens pode ligar do meu. Aidan passou um dedo por baixo da linha do cabelo de Tess e desceu ao longo da nuca e do pescoço até encontrar, de forma certeira, o ponto onde os músculos dela estavam tensos. Tess sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas. ― Procure não se preocupar com o seu amigo ― murmurou ele. ― Acha que consegue? 220 Reagan deu-lhe o telefone dele e voltou para o trabalho. ― Cinquenta e duas mensagens... ― repetiu Tess para consigo, ao mesmo tempo que marcava o número do atendedor, esperando que isso bastasse para desviar a sua atenção de Harrison enquanto Jack fazia o seu truque de magia, mas consciente de que não o conseguiria. Terça-feira, 14 de Março, 20.50 Aidan sentou-se no lugar ao lado de Murphy e tossiu, procurando agitar o ar com a mão. ― Que diabo, Murphy! Não me digas que fumaste o maço todo de uma vez? ― Desculpa. ― Murphy desceu a janela do carro, fumou uma última baforada e apagou o cigarro num cinzeiro a transbordar. ― Porque diabo demoraste tanto tempo? Não tinha recebido a primeira chamada de Murphy porque Tess estava a usar o telefone dele, uma coisa que não contou ao colega. ― Conseguiste falar com ela? ― perguntou. Ela era Nicole Rivera, a actriz hábil com a voz. ― Não, mas ela trabalha aqui ― respondeu Murphy, que apontou para um restaurante do outro lado da rua. ― É caro ― observou Aidan, que sabia isso por experiência própria. Olhar para aquele sítio ainda lhe deixava um gosto amargo na boca. ― Vão de casaca e tudo ― concordou Murphy. ― O gerente confirmou que ela trabalha aqui, mas não estava muito contente por falar comigo. Agora ainda deve estar menos satisfeito. Está vinte minutos atrasada para o turno dela. ― Alguém a terá avisado? ― Talvez. Estive aqui há duas horas. Foi quando falei com o gerente pela primeira vez. Deu-me o endereço que ela lhes deu quando veio trabalhar para aqui. ― Era falso? ― Não, era antigo. A mulher que veio à porta respondeu que ela se tinha mudado há uns dois meses porque não tinha dinheiro para pagar a renda. ― Se trabalha aqui deve ganhar bem. Não deixou um endereço para lhe mandarem o correio? ― Deixou e eu fui lá, mas ela não estava em casa e eu ainda não tinha um mandado para esse endereço, mas agora já tenho.


221 ― Não tens estado parado. Murphy concordou. ― Não chegaste a explicar-me porque demoraste tanto tempo. ― Tive de deixar a Tess no hospital. ― Já tinha contado a Murphy que Ernst fora atacado no consultório e Tess fora ameaçada. Isto pôs fim à leve hostilidade de Murphy. ― Avisaste a segurança do hospital? ― Avisei ― respondeu o parceiro. ― Um tipo alto, com o cabelo cortado à escovinha, orelhas grandes e as mãos magoadas de espancar um velho. Nome, nenhum. ― Tess mostrara-se inflexível e, embora percebesse a posição dela, sentia-se suficientemente furioso para partir qualquer coisa, ou qualquer pessoa. Só esperava estar presente quando Jack encontrasse o nome na base de dados das impressões digitais. ― O Dr. Ernst safa-se? ― Se escapar, é à justa. Ela é que conseguiu estancar o sangue da cabeça antes de os paramédicos chegarem. Manteve a calma. ― Olhou para a própria mão e recordou como ela o tratara na noite anterior. ― Estou sempre a esquecer-me que é uma médica como os outros. Murphy esboçou um sorriso sarcástico. ― Se eu fosse a ti, não punha as coisas nesses termos à frente dela. ― Não ponho, não te preocupes ― respondeu Reagan com uma pequena gargalhada. ― É melhor irmos andando para o restaurante, pelo menos se quisermos falar com o gerente. Deve estar a começar a encher. Saíram ambos do carro. Aidan respirou o ar fresco com prazer. Murphy atirou-lhe, magoado: ― Já te pedi desculpa. ― Eu não disse nada. ― Que diabo ― resmungou Murphy ― como é que sabes que isto está a começar a encher? ― Uma ex-namorada costumava arrastar-me para aqui. Depois do concerto. Murphy assobiou ao abrir a porta. ― Uma namorada de gostos caros. "Nem queiras saber", pensou Aidan sombriamente. As toalhas de mesa imaculadas evocavam recordações, dispendiosas em mais de um sentido. Aquele restaurante fora um dos sítios preferidos de Shelley. Um jantar, incluindo o vinho, custava facilmente dois dias do seu salário nos tempos em que ele ainda trabalhava de uniforme. Fora por isso que ele pusera um travão àquilo. E ela tinha amuado. 222 Shelley poderia ganhar a vida a dar lições de amuo, mas nesse momento já não precisaria de o fazer. Conseguira o que queria, casar


com um homem que podia dar-lhe o mesmo nível económico que o padrasto lhe dera. Pobre diabo... O futuro marido, não o padrasto. O padrasto de Shelley era um filho-da-mãe rico. Respirou fundo. Shelley passara a ser um problema de outro. Aidan nunca se sentira à vontade em sítios como aquele. Estava sempre com medo de usar o garfo errado. Além disso, parecia-lhe um disparate pagar pelo privilégio de se sujeitar àquela situação. Mas Tess sentir-se-ia completamente à vontade naquele sítio, pensou, e logo a seguir lamentou que isso lhe tivesse ocorrido. Ela podia permitir-se o luxo, tinha ela dito, e, embora a atitude dela lhe tivesse parecido diabolicamente atraente, nunca na vida permitiria que fosse ela a pedir a conta. Que machista, respondeu-lhe a sua consciência. "E daí?", respondeu ele, mentalmente. "Porque havia eu de deixar que ela pagasse?" ― O caso já passou à história ― respondeu Aidan sem mais explicações, ao mesmo tempo que observava os rostos dos empregados de mesa. ― Desculpe ― disse, e conseguiu despertar a atenção de um que o olhou com sobranceria. ― Queríamos falar com Nicole Rivera. ― Pois então pode juntar-se ao clube ― disse ele de nariz empinado. ― Se a encontrar, diga-lhe que está despedida. ― Por estar vinte minutos atrasada? ― perguntou Murphy com voz inocente. ― Não, porque é a terceira vez que falta ao trabalho nas duas últimas semanas. ― Em que dias é que faltou? ― perguntou Aidan. ― Não me lembro ― respondeu o homem, um pouco impaciente. ― Faça um esforço ― aconselhou Murphy. ― Senão podemos ter de ficar mais tempo. O empregado revirou os olhos, mas acabou por responder. ― Ontem, e sábado à noite também. Agora dêem-me licença, por favor ― com esta resposta, indicou-lhes a porta da rua, o que fez Aidan ter vontade de o esmurrar. Em vez disso, deu-lhe um cartão. ― Se ela aparecer, telefone-me. O homem pegou no cartão por uma ponta e respondeu: ―Certamente. Já na rua, Murphy abanou a cabeça.:. ― Quanto custa um jantar num sítio destes? Cem dólares? 223 ― Por pessoa. ― Não conseguiu deixar de rir quando viu a expressão de Murphy. ― Vezes três, se beberes vinho. ― Razão por que se trata de uma ex-namorada... ― Vamos outra vez ao apartamento da Nicole. Talvez ela não tenha


saído de casa. Talvez tenha só decidido não abrir a porta. Terça-feira, 14 de Março, 21.40 ― Merda ― praguejou Murphy. ― Raios partam isto! Chegámos tarde de mais. Murphy nunca dissera nada mais evidente. Nicole Rivera estava realmente em casa, pensou Aidan, observando os estragos. Mas tinha uma excelente razão para não ter aberto a porta. Encontraram-na ajoelhada ao lado da cama, vestida com umas calças pretas largas e uma blusa amarrotada que em tempos fora branca, o seu uniforme do restaurante. Tinha as mãos atadas atrás das costas e o tronco assentava numa colcha que em tempos tivera um padrão bonito de flores azuis pequenas. Nesse momento, tanto a blusa como a colcha estavam cobertas de sangue. Aidan meteu o telefone no bolso. ― Os do gabinete médico-legal já vêm a caminho. ― Baixou-se junto do corpo e observou a ferida de bala na nuca. ― Foi uma espécie de execução. ― Mostrava mais compaixão que no caso de Cynthia Adams, de Winslow ou dos Seward, pelo menos. ― Parece ter sido uma bala de calibre vinte e dois. Não há ferida de saída da bala, por isso ainda deve estar lá dentro. Murphy revistava o armário. ― Já está fria? Aidan tirou um par de luvas do bolso e tocou-lhe o pescoço. ― Não está completamente fria. Não está morta há muito tempo. ― Começou a abrir gavetas da cómoda. ― Meias, blusas... Roupa interior, mais roupa interior... Olá! Que é isto?! ― Pegou numa mão-cheia de recibos que estavam escondidos num sutiã de rendas, dobrado e arrumado com outros parecidos. ― São cópias. A Toy Box. Uma boneca Baby linda. ― Remexeu em mais alguns. ― E uma frigideira e um ursinho do Wal-Mart, todos com data de ontem de manhã. Pagou tudo com dinheiro. ― Pôs os papéis de lado para serem guardados num saco de provas. ― Devem saber que identificámos o cartão de crédito. 224 ― Ou então o cartão de crédito foi um chamariz usado uma só vez ― disse Murphy, ainda enfiado no armário. ― A única coisa que tinha sido paga com esse cartão de crédito tinham sido os lírios. Caramba, para uma pessoa que não tinha dinheiro para pagar a renda esta mulher tinha muitos sapatos. ― Talvez houvesse outros cartões. Esta manhã fiz um pedido de localização de todas as transacções pagas com cartões de crédito em nome de Tess. Com sorte, já tenho o relatório no meu cacifo quando voltarmos. ― Boa ideia ― disse Murphy com a cabeça fora do armário e um saco


de ginásio preto a balançar no indicador. ― Estava enrolado e enfiado num par de sapatos. Parece-me que cheira a flores. Aidan voltou a olhar para o corpo. ― Porque a terão matado precisamente agora? ― tentou perceber, e depois suspirou, contrariado. ― Já sei. Ele estava a ouvir hoje à tarde, quando eu disse que tínhamos provas de que a voz de Tess tinha sido imitada. Fui eu que provoquei isto. ― Não tiveste alternativa, Aidan. O Seward tinha uma arma apontada à cabeça de Tess. Fizeste bem em dizer o que disseste. ― Sim, mas uma rapariga morta não pode confessar que imitou a voz de Tess. Murphy encolheu os ombros filosoficamente. ― Com sorte, o saco e os recibos chegam para fazer o Patrick feliz. Eu telefono ao Spinnelli e tu ao Jack. Terça-feira, 14 de Março, 22.55 Aidan já sabia quantas câmaras a equipa de Jack havia encontrado no apartamento de Tess, mas não estava à espera do choque que recebeu quando as viu todas alinhadas na sala de reuniões de Spinnelli. Depois de um dia inteiro de emoções violentas, por entre subidas bruscas de adrenalina, tanto pessoais como profissionais, o seu autodomínio estava no mínimo ameaçado. Que ideia estúpida chamar o Rick de parte e perguntar onde precisamente tinha sido encontrada cada câmara no consultório, em casa, no carro e na roupa de Tess! Mas a verdade é que qualquer coisa nele não podia ficar sem saber. Além disso, não perguntar ia fazê-lo parecer demasiado envolvido, algo que passara o dia a tentar evitar. Se Spinnelli achasse que ele estava envolvido de mais, arranjava outra pessoa para tomar conta de Tess. 225 "Mas eu estou envolvido de mais", pensou. Porque aquilo que ele andava a fazer, no fundo, era precisamente isso, tomar conta de Tess Ciccotelli. E por essa razão não conseguia tirar os olhos das câmaras amontoadas no meio da mesa, especialmente de uma de um modelo que se distinguia de todos os outros. Era à prova de água e começava a ficar preta da exposição à humidade. O filho-da-mãe tinha-a instalado no extractor que ficava no tecto da casa de banho, a apontar para o chuveiro. Era impossível que tivesse apanhado o som, por causa da ventoinha, mas a imagem tinha sido captada. Sentiu náuseas só de pensar no assunto, mas ao mesmo tempo a ideia de ele próprio a olhar Tess foi-se insinuando na sua mente. Quantos estupores teriam visto os filmes para se masturbarem? Não conseguia dominar os seus pensamentos, da mesma maneira que não conseguia dominar as batidas do seu coração. A privacidade dela tinha sido violada, e nem que fosse só por isso o


filho-da-mãe ia ter de pagá-las. Spinnelli ficou de pé em frente da mesa da sala de reuniões, de mãos nas ancas, a abanar a cabeça. ― Diabos levem isto! Temos mais stock que os Armazéns RadioShack. Assim parecia, de facto. Aidan esforçou-se por se concentrar e por dominar a raiva. Jack e Rick tinham reunido todas as câmaras e microfones que haviam encontrado em sete montes diferentes. Os três primeiros tinham vindo dos apartamentos das três vítimas, Cynthia Adams, Winslow e Seward. O quarto, o das câmaras tiradas do apartamento de Tess, era o maior. O quinto tinha metade do tamanho, com os aparelhos tirados do consultório. O sexto era o mais pequeno de todos ― eram microfones do tamanho de agulhas que Rick tinha encontrado nas costuras de todos os casacos dela. Mesmo no casaco vermelho que ela usara no domingo. "No dia em que eu a acusei de assassinato", recordou Aidan. ― Então diz-me o que tens a dizer, Rick ― pediu Spinnelli. ― Que sabes tu de tudo isto? Rick pôs-se de pé. ― Não sei tanto como tu querias, mas aqui vai. Para começar, não consegui seguir a pista das transmissões nem dos e-mails que encontrámos no apartamento de Cynthia Adams. Deixei uma câmara em cada um, para o caso de recomeçarem a transmitir, mas já estão todas mortas. A pessoa que as pôs lá, seja ela quem for, deve saber que as descobrimos. 226 ― Isso significa que desistimos? ― perguntou Spinnelli num tom irritado. ― A probabilidade de descobrirmos alguma coisa por aquele lado já não era grande ― animou-se Rick ― mas, apesar de tudo, consegui descobrir algumas coisas a propósito destas meninas ― disse a apontar para os dois primeiros montes. ― Os aparelhos que encontrei no apartamento da Cynthia Adams e no do Winslow são do mesmo modelo e têm números de série consecutivos. Spinnelli percebeu a ideia. ― Foram comprados na mesma altura. ― Sim, quase de certeza. Até há duas semanas este era o modelo que o fabricante vendia mais, mas há duas semanas introduziram este ― disse Rick, apontando para a pilha de Seward. ― Agora o que se vende mais é este. Isto não significa que a câmara que encontrei no apartamento de Seward tenha sido comprada mais tarde, mas é possível que sim. ― O que significa que Seward não fazia parte do plano original ― Aidan pensou em voz alta. "Concentra-te, Reagan." A vista de todos aqueles aparelhos estava a dar cabo dele. ― O chefe da Cynthia


Adams diz que o comportamento dela nas últimas semanas tinha sido estranho e a Tess disse que ela faltou a uma consulta há três semanas. Quando tudo isto começou, a câmara do apartamento de Seward ainda não tinha sido posta à venda. ― É possível. ― Spinnelli sentou-se, com os braços cruzados à frente do peito. ― Mas o que eu queria saber é como é que o nosso homem conseguiu pôr câmaras em todos estes sítios. Apartamentos, consultórios, carros... ― Pegou no saco dos microfones mais pequenos. ― E em casacos... Quem é que tinha acesso a tudo isto? ― A nossa melhor hipótese é examinar os discos de segurança do edifício de Seward nos últimos dois dias e compará-los com os de anteontem do apartamento de Winslow ― disse Jack. ― Isto supondo que o responsável nos dois casos foi a mesma pessoa. Pelo menos no caso de Winslow temos um enquadramento temporal. A boneca não podia estar no forno há mais de três horas, a avaliar pelo que se tinha derretido, por isso basta-nos verificar das onze à uma. ― Como pode alguém ter metido uma boneca no forno sem ele se aperceber disso? ― quis Spinnelli saber. ― De todo este horror, isso ainda é capaz de ser o mais sinistro. Aidan discordou profunda, furiosamente. O mais sinistro era a câmara à prova de água, mas naquele momento nem sequer queria pensar 227 no assunto. Não podia fazê-lo de maneira nenhuma, e conseguiu dominar-se. ― Se o Winslow estivesse a dormir, drogado, podia não ter ouvido uma pessoa que entrasse na cozinha, mas agora, que temos um enquadramento para a hora a que as coisas aconteceram, podemos voltar a interrogar os vizinhos. E quanto às câmaras do apartamento de Tess? ― São modelos mais antigos ― respondeu Rick. ― São de três fabricantes diferentes. ― Mais velhos quanto tempo? ― A idade do equipamento não significa que tenha lá estado desde o princípio ― avisou Rick, que depois encolheu os ombros. ― Há seis meses eram o modelo mais vendido. ― Depois hesitou. ― Excepto este ― acrescentou, apontando para o modelo à prova de água. ― Este tem cerca de quatro anos, mas não parece estar lá há mais tempo que os outros ― acrescentou rapidamente. ― Eu diria que estamos a falar de seis meses, no máximo. Aidan sentiu o estômago andar às voltas. ― Há seis meses?! Um anormal qualquer anda a observá-la há seis meses?! Spinnelli ergueu as sobrancelhas e perguntou:


― Como é que podemos saber que é um anormal? A ferver, parecendo a ponto de explodir, Aidan inclinou-se em frente e pegou no modelo à prova de água. ― Porque este estava por cima do chuveiro dela! ― atirou por entre os dentes cerrados. Estava suficientemente furioso para partir alguma coisa, por isso pousou a câmara com cautela, com a mão a tremer. Jack franziu o sobrolho na direcção de Rick. ― Contaste-lhe? Rick voltou a encolher os ombros, pouco à vontade. ― Ele perguntou. Eu não... Deixa lá. Spinnelli pareceu preocupado. ― Aidan? Aidan abanou a cabeça para cair em si. ― Desculpa. Tu não viste a cara dela quando eu lhe contei. Desculpa. ― Cobriu o rosto com as mãos. ― Foi um dia horrível. ― Não para Nicole Rivera ― disse Murphy, pausadamente. ― Revistámos o apartamento de alto a baixo, Marc, mas não encontrámos nada que indicasse que lhe pagaram para fazer isto. ― Encontraram o casaco e a peruca? ― perguntou Spinnelli. 228 Murphy abanou a cabeça. ― Não, mas encontrámos cassetes com a voz de Tess escondidas por trás de algumas caixas de Hamburger Herper na despensa. Eram gravações das sessões dela com os doentes. ― Para ela praticar. ― Spinnelli coçou a testa. ― Isso deve bastar para o Patrick recusar os apelos. Talvez os da balística consigam alguma coisa em relação à bala. E quanto ao consultório, que aconteceu? ― O colega disse que foi um dos doentes dela ― contou Aidan. ― A Tess pensa que sabe quem foi, mas não diz. E a verdade é que a admirava pelos seus princípios, embora lhe apetecesse dar-lhe um bom safanão por causa daquilo. Murphy voltouse para Jack, o rosto sombrio. ― Identificaste o estupor? ― Um dos meus homens está neste momento a consultar a base de dados das impressões digitais ― disse Jack. ― Daqui a uma hora, no máximo, já devemos ter qualquer coisa. ― Quando encontrares um nome gostava de ir. ― Murphy falou com uma voz baixa, controlada, mas por baixo da calma aparente havia violência escondida. Aidan sabia perfeitamente como ele se sentia. ― Vou mandar outras pessoas ― disse Spinnelli com um olhar de aviso na direcção de ambos. ― Vocês os dois concentrem-se no voyeur. Ouviram o que eu disse? Aidan acenou afirmativamente. ― Ouvi sim. O Patrick não vai gostar disto ― disse, mudando de assunto para, tanto ele como Murphy, terem tempo de se acalmar. ―


Por mais mandados que consiga, vão ser precisos vários dias para voltar a pôr aquela papelada toda no lugar. Naquele consultório havia um arquivo de uns vinte anos de trabalho e não havia uma única pasta que não estivesse aberta no meio do chão. O mais que ele pode conseguir é uma lista de doentes, mas isso não vai revelar quais são mais vulneráveis a uma armadilha para suicidas potenciais. ― De repente lembrou-se de qualquer coisa... ― A não ser... Spinnelli inclinou-se para a frente. ― A não ser o quê, Aidan? Aidan tirou as chaves de Tess do bolso. Tinha-as consigo desde que haviam entrado no consultório e esquecera-se de lhas devolver. Entre as chaves encontrava-se uma caneta de memória USB, do tamanho de um dedo polegar. ― Ela tem aqui uma cópia de alguns processos. 229 Murphy olhou para ele com surpresa. ― Mas que diabo é isso? ― Um dispositivo de memória ― explicou Aidan. ― É como um CD, mas tem uma capacidade muito maior. Neste cabiam uns... uns dez CD. Usei uma coisa assim nas aulas de Informática. liga-se directamente à ficha USB do computador. ― Cabiam uns dez CD nessa coisinha? Rick observou-a com atenção. ― Nesta até cabiam uns cinquenta... ― Caramba! ― Spinnelli estendeu a mão para agarrar na caneta, mas Aidan parecia ter reflectido melhor. Abanou a cabeça e acabou por dizer: ― Não. Isto é como entrar no consultório dela sem autorização e trazer algumas pastas. Não podemos fazer isto. Spinnelli olhou-o com ar sombrio. ― Pois eu tenho cinco cadáveres na morgue a dizerem-me que sim. ― Eu gostava tanto como tu de deitar a mão a essa lista. E quero apanhar o tipo que fez isto. Mas também quero que quando isto acabar ela possa voltar a exercer, e se abrirmos estes ficheiros, ela é de certeza expulsa da Ordem. Vai parecer que foi ela que nos deu acesso aos processos. Esperem até amanhã, pelo menos. O Patrick vai conseguir a ordem do tribunal e nós vamos poder consultar os ficheiros. ― Amanhã pode ser tarde de mais ― resmungou Spinnelli. Depois de respirar fundo, continuou: ― Tenho de reconhecer que tens razão. Desde quando é que começaste a ser tu o tipo calmo? ― Sem aguardar uma resposta entregou um papel dobrado a Aidan. ― O relatório toxicológico completo de Cynthia Adams. O detective leu e depois passou o papel a Murphy. ― Psilocibina? Que é isto? ―Já telefonei à Julia ― disse Spinnelli. ― Diz que é um dos cogumelos


mágicos. É um alucinogénio poderoso. Os níveis na Cynthia Adams eram para aí uns dez por cento dos de um drogado, mas ao que parece já andava a tomar a droga há algum tempo. Também a encontrámos num dos frascos comprados com receita que tu achaste no armário da casa de banho dela. ― Nesse caso para quê a fenciclidina? ― perguntou Aidan, que depois desabafou, a resposta já clara. ― Era o aniversário da morte da irmã e o nosso vuyeur deve ter ficado impaciente quando os cogumelos não resultaram. Apertar com ela nessa altura foi bem visto. 230 ― Fosse como fosse, o Winslow já andava à beira do precipício ― concordou Spinnelli. ― A Julia vai procurar a mesma coisa nas análises de Winslow. Aidan pensou em Seward, no seu olhar enlouquecido. ― E o Seward? Spinnelli abanou a cabeça. ― A Julia disse que nas análises preliminares não encontraram nada. Ela pediu que lhe dessem os resultados com urgência, mas no mínimo vamos ter de esperar até amanhã. ― Hesitou e depois voltou-se para Rick. ― Rick, preciso de falar com eles os três sozinhos. Rick levantou-se. ― Não é preciso dizerem-me duas vezes. Depois de a porta se fechar, Spinnelli fechou os olhos com ar cansado. ― Os assuntos internos já estão metidos ao barulho. A ideia bastou para fazer Aidan tremer. Os assuntos internos! ― E porquê? Spinnelli franziu o sobrolho. ― Porque nas cartas ameaçadoras que a Tess recebeu depois do caso do Green havia impressões digitais de cinco pessoas e três delas eram polícias. Todos amigos de Preston Tyler. ― E a funcionária do arquivo? ― perguntou Murphy. ― Identificou algum? ― Não. Continua a dizer que não se lembra, mas os assuntos internos acham que ela está a esconder alguma coisa. ― Ela é nova ― reflectiu Murphy. ― Deve estar com medo de falar. ― Se um deles estiver envolvido numa merda deste tipo, tem razão para estar ― disse Aidan num tom sombrio. ― Mas então quem são eles? ― perguntou Jack. ― O Tom Voight, o James Mason e o Blaine Connell. ― Spinnelli inclinou o pescoço para a frente e para trás até ouvir um estalo. ― Têm todos uma folha de serviços perfeita. Nem uma repreensão. Aidan abanou a cabeça, incapaz de acreditar no que estava a ouvir. ― Não é possível. Eu conheço bem o Blaine Connell. ― Não é possível? ― Spinnelli fez uma careta. ― Eu sei. ― Suspirou, fundo. ― Eu sei.


Murphy pôs-se a bater metodicamente com o isqueiro na mão. 231 ― Se algum deles estiver metido nisto, é porque fizeram mais do que montar suicídios. Alguém executou Nicole Rivera a sangue-frio. É difícil acreditar que possa ter sido um polícia, mas se... ― Um polícia estaria em boa posição para incriminar alguém falsamente de um crime ― observou Jack. Aidan olhou para Spinnelli com dureza. ― Agora que temos nomes o que é que fazemos? Alguém bateu à porta e os quatro homens voltaram-se nessa direcção ao mesmo tempo. Rick espreitou pela abertura da porta. ― Desculpem, mas a Dr.a Ciccotelli está aqui. Pediu para falar contigo, Aidan, e não está com boa cara. Aidan pôs-se de pé. A preocupação afastou tudo o resto da sua mente. ― Ela tinha ficado de me telefonar quando quisesse sair do hospital. Onde é que ela está? ― Aqui ― Tess empurrou Rick para o lado e depois franziu o sobrolho quando viu todas as câmaras que se encontravam sobre a mesa. Quando entrou já estava pálida, mas de repente pareceu ficar branca como uma folha de papel. ― Estas câmaras todas? ― perguntou num fio de voz. ― Apontadas para os meus doentes? Para mim? Aidan pegou-lhe pelo braço e conduziu-a até uma cadeira. Ajoelhou-se ao lado dela e com as mãos sobre o rosto dela obrigou-a a olhar para ele e a desviar os olhos das câmaras. ― Que aconteceu, Tess? Ela soltou-se das mãos dele, com o lábio inferior a tremer. Voltou a olhar para a mesa e os seus olhos detiveram-se no seu porta-chaves. Voltou-se para Aidan, uma mágoa profunda nos olhos, e o coração dele pareceu cair-lhe aos pés. ― Deu-lhe os meus ficheiros? ― perguntou com uma voz que mal se ouviu. ― Fui eu que lhos pedi ― disse Spinnelli antes que Aidan pudesse dizer uma só palavra. ― Foi ele que não mos deu. Ela acenou que compreendia e ele percebeu que a mágoa desaparecera para deixar por baixo uma dor verdadeira. Mesmo assim fez a pergunta, na esperança de se ter enganado. ― Que aconteceu, Tess? ― perguntou-lhe de novo Aidan, com a maior delicadeza de que foi capaz. Ela inspirou como se lhe custasse. ― O Harrison morreu. 232 O sofrimento dela deixou-o devastado. Quis tomá-la nos braços e abraçá-la, mas não era possível. Pelo menos não ali. Não à frente do tenente, que já achava que ele e o Murphy estavam envolvidos de


mais. Se ele soubesse... Pegou-lhe apenas na mão. ― Quando? Ela abanou a cabeça cansada, indiferente. ― Há uma meia hora. Ainda o operaram, mas a hemorragia interna era demasiado forte. Os filhos dele vieram com a Fio, por isso eu saí. ― Ergueu os olhos, sombrios, culpados. ― Acabei de ouvir o meu atendedor de chamadas enquanto estive à espera ― continuou ela, num tom apático e indiferente que fez o coração dele bater mais depressa. ― Fui expulsa da Ordem e recebi ameaças de mais três dos meus doentes. Teve a impressão que o seu coração parara. ― Sabe quem são esses doentes? ― Não. Ainda me passou pela cabeça telefonar-lhes a todos, um a um, para lhes dizer que não vou trair a confiança deles, mas aqueles que acreditam em mim nem sequer teriam telefonado a ameaçar-me, para começar. Além disso, se ela telefonar com a minha voz isso pouco efeito teria. O mal está feito. O Harrison morreu para proteger a privacidade deles. Os malditos segredos deles. ― A voz dela estremeceu. ― Mas acabou por morrer por nada. ― Com a cabeça descaída sobre o peito, Tess deixou-se ficar, a agarrar a mão dele, a chorar em silêncio. Ele próprio sentiu que as lágrimas ameaçavam começar a correr-lhe pelo rosto quando as dela começaram a humedecer-lhe a mão. ― Tenho muita pena, Tess, muita pena. ― As palavras pareciam-lhe inadequadas, mas ela fez um gesto de que compreendia e voltou a respirar fundo. Libertou a mão da dele e limpou o rosto molhado pelas lágrimas. ― Não, eu é que peço desculpa. Não devia ter vindo aqui. Vocês estão todos a trabalhar. ― Pôs-se de pé e encolheu os ombros. ― Vou deixar-vos voltar ao que estavam a fazer. Suponho que não posso ir para casa. ― Por enquanto não. Amanhã talvez ― disse Jack. ― Quero dar mais uma vista de olhos pelo seu apartamento. Ela sentiu-se amedrontada, mas assentiu. ― Obrigada. Se não se importa de me dar as minhas chaves, eu vou andando. Aidan pousou-lhe a mão no ombro e sentiu-a estremecer sob a camisola grossa de lã. 233 ― Espere por mim, por favor. ― Depois olhou para Rick, que estava à porta, e cujo rosto deixava transparecer a simpatia por Tess. ― Importas-te de ficar com ela até nós acabarmos? Rick fez um sinal afirmativo. ― Venha, Dr.a Ciccotelli ― disse ele ao mesmo tempo que lhe pegava


por um braço. ― Vamos tomar um café. Depois de a porta se fechar, Aidan voltou-se para Spinnelli. ― Temos de lhe dizer que a Nicole Rivera foi assassinada. Spinnelli massajou a parte de trás do pescoço enquanto lhe respondia. ― Sim, também me parece. Agora já não é possível convencer a Nicole Rivera a confessar, mas a Tess pode ficar mais descansada porque ela já não vai fazer mais telefonemas com a voz dela. ― Deve ser isso que ele quer que nós pensemos ― disse Murphy, lentamente. ― Foi quase fácil de mais, encontrá-la assim. Ele podia têla matado noutro sítio qualquer, para nós levarmos mais tempo a encontrá-la. Aidan passou os dedos pelo cabelo, frustrado. ― Ele sabia que nós íamos à procura dela. Estava à escuta quando eu disse ao Seward que tínhamos provas de que alguém andava a imitar a voz de Tess. Que havia ele de fazer? Agora tem uma marioneta a menos. ― Talvez isto tenha parado ― disse Jack. Aidan abanou a cabeça, numa negação. ― Não, não acabou. Mas é possível que já tenha alcançado o seu objectivo. Conseguiu enfurecer sabe Deus quantos doentes psiquiátricos. Ele gosta de manipular os acontecimentos, mas ao mesmo tempo de manter as mãos limpas. Agora tem uma série de doidos a quererem atacar Tess. ― E não podemos ter a certeza que não é um homem de uniforme. ― Murphy olhou para Spinnelli com olhos de fúria. ― Que fazemos quanto aos nossos autores de cartas anónimas? Spinnelli abanou a cabeça, hesitante. ― Ainda não decidi. Só queria que vocês ficassem de olhos e ouvidos bem abertos. Vai espalhar-se que os assuntos internos andam metidos no assunto e as coisas vão pôr-se feias. ― Pôs-se de pé. ― Assim que tiveres uma identificação das impressões digitais do escritório dela avisa-me. Vamos apanhar o tipo pelo assassinato do Dr. Ernst. Aidan, leva-a para um hotel para ela dormir um pouco. Quero vê-los a todos aqui amanhã de manhã. CAPÍTULO 12 Terça-feira, 14 de Março, 11.55 Tess viu as linhas brancas da auto-estrada aparecerem e desaparecerem. Não ia voltar para nenhum hotel. Pelo menos não para um hotel na cidade. Reagan ia levá-la para casa. Para casa dele. Com os azulejos de patinhos e o chão da garagem coberto de peças de mota. Devia dizer-lhe que a levasse antes para um hotel, mas não tinha forças. Devia era agradecer-lhe. E havia de fazê-lo. Quando aquele peso lhe saísse do peito e a deixasse respirar.


Ele partira Harrison, que tanto lhe ensinara, juntamente com Eleanor. Que tanto lhe dera. A culpa não era sua. Ela sabia, assim como sabia que a acusação nos olhos dos filhos dele era uma resposta normal à dor e ao sofrimento. No entanto, aqueles olhares começavam a ser como facas espetadas no seu coração, e combinadas com o choque de saber que mais três pessoas tinham ameaçado a sua vida... Tinha-se levantado e saído do hospital desorientada, sozinha. Apanhara um táxi e fora para o primeiro lugar que lhe passara pela cabeça. Para junto de Aidan Reagan. Tinha sido estúpida. Isto é, por sair sozinha do hospital. Se tinha sido estúpido ir ter com Aidan ainda estava por saber. Wallace Clayborn podia ter estado à espreita à porta do hospital, à espera de uma oportunidade para a matar, da mesma maneira que matara Harrison. Tess lembrava-se da maneira como Clayborn se sentava no seu consultório, a observar as próprias mãos num misto aterrador de medo e orgulho. A sua arma eram as suas mãos, apenas, e fora com elas que matara Harrison Ernst. ― O Jack conseguiu encontrar impressões digitais? ― perguntou com voz apagada. 235 Ele olhou para ela, sobressaltado. ― Pensei que estivesse a dormir. ― Não, agora não estava. ― Ultimamente nunca estava. Havia demasiadas coisas às voltas na sua cabeça. Dor. Medo. Raiva. Ódio. ― Encontrou? ― Quando saímos ainda estava a procurar impressões na base de dados para comparar. Ela olhou pela janela, a reflectir nas suas obrigações para com os seus pacientes. E para com Harrison. Para consigo mesma. Mas tudo o que via era Harrison a sangrar. E Fio e os filhos deles a chorar. ― Ligue ao Jack e pergunte-lhe se encontrou um nome ― pediu ela. ― E pergunte-lhe se já descobriu alguma coisa. Sem dizer uma palavra, Reagan tirou o telefone do bolso e marcou. ―Jack, fala o Aidan... Não, ela está óptima. Quer saber se já encontraste alguma coisa na base de dados. ― Houve uma breve pausa. ― Ele conseguiu limitar as possibilidades a uns cinquenta nomes. Que quer fazer, Tess? Sentia o ódio a ferver, a queimá-la por dentro. ― Algum desses nomes começa por C? Aidan perguntou a Jack. ― Sim ― respondeu-lhe. ― Três. A raiva impotente estava a dar cabo dela. Seria tão fácil dizer o nome! Wallace Clayborn. Mas se ele não fosse nenhum desses três teria denunciado um doente sem necessidade. Um homem inocente. Aidan


nunca diria nada. "Mas eu saberia. E ele também." De repente, isso tornou-se mais importante que dar vazão à sua raiva. Apoiou a testa no vidro frio do carro. Sentia-se esgotada. ― Desculpe, não queria estar com jogos, mas ele não pode dizer-me os nomes? Reagan fez o pedido a Jack e depois repetiu o que o colega lhe disse: ― Camden, Clayborn e... ― Sim. ― O alívio fez-lhe a cabeça andar à roda. Levantou a mão. ― Clayborn. Wallace Clayborn. ― É o Clayborn, Jack ― disse ele. ― Diz ao Spinnelli. Ele tem uma equipa pronta a sair. Tess ouviu-o fechar o telefone antes de o arrumar no bolso. ― Aidan? ― ouviu a sua própria voz trémula e não se importou. A mão dele passou-lhe por baixo do cabelo de maneira a acariciar-lhe o pescoço, como já fizera antes. 236 ― Não tem importância, Tess. Eu percebo que não tenha podido darnos simplesmente o nome dele. O Spinnelli vai já mandar alguém prendê-lo. Ela estremeceu ao contacto da mão dele. Sabia tão bem... Fazia-lhe tanta falta... ― Gostava de ter a certeza que é Paul Duncan a fazer a avaliação psiquiátrica. O filho-da-mãe do Clayborn vai tentar defender-se alegando insanidade, mas ele não é louco. É pura e simplesmente maldoso. O Paul vai assegurar-se de que o júri percebe a diferença. ― Estou a ver que quer que ele pague pelo que fez ― disse Aidan com tranquilidade. ― Isso é natural, Tess. ― Não quero que ele pague ― disse ela, ferozmente. ― Quero que ele morra. Mas sei que isso não vai acontecer. Não vai ser condenado por homicídio do primeiro grau. ― Os dedos de Aidan encontraram o ponto sensível do pescoço dela. ― Quero que o Wallace Clayborn apodreça na prisão até ser velho. ― Sentiu um soluço formar-se no peito. ― Depois talvez algum miúdo de rua lhe mostre como o Harrison se sentiu hoje. O carro abrandou e por fim parou. A mão dele desapareceu e ela quase teve de morder os lábios para não lhe suplicar que continuasse. Quando ele saiu do carro um vento frio atingiu-a. Levantou os olhos e teve a impressão que a força que lhe oprimia o peito aliviara. Estavam na garagem dele, e Aidan tinha dado a volta ao carro para lhe abrir a porta. Sem dizer uma palavra, ajudou-a a sair do carro e acolheu-a nos seus braços. Segurança. Sentiu-se segura e protegida como há muito tempo não acontecia. Na verdade, como nunca acontecera. Phillip nunca a fizera


sentir-se daquela maneira. "Não vai durar." A voz da realidade era deprimente numa noite em que não aguentaria mais más notícias. Atirou a realidade às urtigas e respirou fundo, fruindo o cheiro dele como antes não pudera fazer, quando tudo o que lhe interessara fora sentir os lábios dele nos dela. Os lábios de Aidan estavam nesse momento ocupados a beijar-lhe o cabelo, as têmporas, e ela rodeou-o com os braços e deixou-se ficar. Encostada ao peito do detective, ouviu o coração dele a bater e deixou-se ficar, a ouvir. Ele deixou que ela ficasse imóvel, até a tempestade que lhe ia dentro se acalmar. Tess continuava furiosa, magoada, mas isso deixou de a sufocar. ― Obrigada. 237 Ele apertou-a mais contra o peito. ― Foi um prazer. ― Com os dedos sob o queixo, obrigou-a a levantar os olhos para ele. ― Se quiser, levo-a para um hotel. Não queria, mas também não queria que ele ficasse com ilusões sobre o que poderia acontecer entre os dois. ― Se ficar, onde durmo? Com um sorriso ao canto da boca, Aidan respondeu-lhe: ― Na minha cama. Eu durmo no sofá. É sofá-cama. ― Com uma expressão séria, percorreu o lábio inferior dela com o polegar. Tess sentiu um arrepio descer-lhe pelas costas. ― Tess, não precisa de se preocupar mais com telefonemas a jornalistas ou aos seus doentes. Pelo menos não com a sua voz. ― Porquê? ― A mulher que a imitava está morta. Tess abriu muito os olhos. ― Tem a certeza? ― Temos a certeza, sim. Temos quase a certeza que era ela que a imitava. Não quis preocupá-la, mas também não quero que fique aqui por pensar que algum daqueles filhos-da-mãe pudesse atacá-la. ― Agradeço-lhe a atenção. ― E era verdade. Aidan Reagan estava a mostrar-se uma pessoa digna de confiança. ― O que não quer dizer que eu não a deseje ― acrescentou ele, e ela respirou fundo, sentindo-se inundada de prazer. ― Também não quero que fique aqui sem perceber isso. ― Eu... ― "Não consigo respirar outra vez", pensou. ― Eu percebo. E agradeço a hospitalidade. Ele sorriu sem ela estar à espera e isso aliviou-a imenso. ― A doutora é capaz de aprender... ― provocou-a ele. Tess sentiu o estômago a andar às voltas, o que a apanhou desprevenida. ― A doutora está esfomeada. ― E eu também. ― Deixou-a afastar-se dele, mas dirigiu-se à porta


sempre com a mão na cintura dela. Já não era apenas um gesto amigável de conforto, e ela percebeu. Era um gesto de posse. E isso agradou-lhe. ― Acho que estou a recordar qualquer coisa da nossa pequena discussão anterior. ― Apontou para as peças soltas da mota e ela sentiu que corava. ― Lembro-me muito bem dessa discussão, detective. Ele parou de repente, de sobrolho carregado. 238 ― Não gosto disso. Não gosto que me chame detective. O meu nome é Aidan. Percebeu a irritação dele, consciente de que ele começara a tratá-la pelo primeiro nome muito antes de ela ter feito o mesmo. Fora uma maneira de manter as paredes erguidas entre os dois. Mas, resultado do destino ou das circunstâncias, já haviam sido derrubadas. Talvez o mesmo se passasse com aquela última barreira. ― Lembro-me muito bem dessa discussão, Aidan ― corrigiu. O sobrolho carregado dele desapareceu. ― Disse-me que cozinhava tão bem como o cozinheiro do melhor restaurante. Os lábios dela esboçaram um sorriso. ― É verdade. Isso significa que quer que eu cozinhe para si? Os olhos dele brilharam numa declaração inequívoca. ― Sim, sem dúvida. Mas primeiro as coisas urgentes, e eu estou esfomeado. Desde o almoço que não como nada. ― Abriu a porta que dava para a cozinha e depois parou de repente e obrigou-a a esconder-se atrás dele. Uma folha de papel estava pendurada na porta sobre a sua cabeça. Aidan tirou-a. Tess ficou imóvel e tensa até que o sentiu a rir. ― Esquilinho! ― disse ele, afectuosamente. ― Rachel! Cheguei a casa. Entrou na cozinha, sem se deixar intimidar pelo enorme rottweilr que se aproximou para o saudar. Tinha dado ao canzarrão o nome de Dolly. A ideia fê-la sorrir. Uma adolescente entrou na cozinha, com a gata de Tess ao colo. Bella parecia completamente à vontade, nada intimidada por Dolly. ― Chegaste outra vez tarde ― disse Rachel, que fazia uma festa a Bella da cabeça à ponta da cauda. ― E tu desapareceste outra vez de casa sem avisar ― retorquiu o irmão. Atirou o papel para cima da mesa e Tess conseguiu ler, escrito com uma letra infantil, "Aidan estou aqui". ― Que aconteceu? A rapariga olhou para Tess com algum nervosismo. ― Estás acompanhado. ― Estou. Rachel, apresento-te a Tess Ciccotelli. Tess, a minha irmã Rachel.


Era evidente que a jovem era irmã de Aidan. Os olhos de ambos tinham o mesmo tom de azul profundo. No entanto, Rachel tinha olheiras e Tess lembrou-se de ouvir Kristen dizer que ela andava preocupada com qualquer coisa. Pareceu-lhe que isso era assunto de família e decidiu não se meter. 239 ― Gosto muito de te conhecer, Rachel. E obrigada por tomares conta da Bella. Rachel esfregou o focinho da gata no seu próprio rosto. ― Então chamas-te Bella... ― disse ela num tom ternurento. ― O nome fica-te bem. ― Em italiano quer dizer bonita. ― Eu sei ― respondeu Rachel, perscrutando o rosto de Tess. ― A Tess é a psiquiatra que tem aparecido nos noticiários. ― Rachel! ― avisou Aidan. ― Não tem importância, Aidan ― respondeu Tess, falando para a jovem. ― Sou eu, sim. Como é que os noticiários me têm tratado? ― O meu professor de Inglês era capaz de dizer que a têm vilipendiado. É uma palavra cara! ― acrescentou ela, e Tess teve vontade de rir. ― Fico satisfeito por ver que passas o tempo a estudar ― disse Aidan, secamente. ― Precisavas de falar comigo, esquilinho? Rachel olhou para Tess pouco à vontade. ― Posso voltar amanhã. O que quer que estivesse a incomodar Rachel era uma coisa importante. ― Aidan, leve-a para a sala. Eu fico aqui a fazer qualquer coisa para nós comermos. Ele voltou a acariciar-lhe a nuca e Tess fez o possível por não fechar os olhos e ronronar de satisfação. ― De certeza que não se importa? ― De certeza, sim. Vá lá. Deixe-me cozinhar. Estiveram a falar mais de vinte minutos, em surdina. Tess fizera os possíveis por não ouvir, mas, apesar de ter batido com os tachos e as panelas mais do que era necessário, ouviu o suficiente para perceber que Rachel estava metida num sarilho. O que ouviu bastou para não ficar surpreendida quando a viu voltar da sala, branca como uma folha de papel e a tremer tanto que quase tropeçou. O primeiro impulso de Tess foi largar a colher e ajudar a rapariga a sentar-se, mas o olhar dela dissuadiu-a de se aproximar. Acabou por ficar imóvel a olhar para ela. Aidan apareceu logo a seguir, talvez ainda mais branco que a irmã. ― Rachel, espera por mim no carro. ― Esperou até a irmã ter saído e depois voltou-se para Tess, com olhos duros. ― O que é que ouviu?


240 Ela hesitou. ― Não ouvi grande coisa... Pelo menos tentei não ouvir. Mas ouvi o suficiente. Houve uma festa que começou a correr mal. Ela saiu, mas depois as coisas pioraram e uma das raparigas ficou ferida. Ele ficou rígido. ― Ferida não, Tess. Foi violada. Violada repetidamente. ― Desviou os olhos, incomodado. ― Brutalmente. Ela fez um sinal de assentimento. ― Foi o que me pareceu. ― Pôs-lhe a mão sobre o braço e sentiu os músculos dele retesados. ― Está a pensar que podia ter acontecido o mesmo à sua irmã... Aidan inclinou a cabeça para trás e o sofrimento nos seus olhos pareceu insuportável a Tess. ― Meu Deus! ― exclamou numa voz entrecortada. ― Eu... Ela tocoulhe no braço para o reconfortar. ― Não lhe aconteceu nada, Aidan. Ele estremeceu e deixou cair o queixo sobre o peito. ― Eu sei, eu sei. ― Ergueu os olhos para ela. ― A rapariga não apresentou queixa. Tess pestanejou. ― Essa parte não apanhei. Que vai fazer Rachel? ― Não sei. Está assustada. Aterrada, para dizer a verdade. E eu também. ― Como sabe a Rachel que a rapariga não apresentou queixa? ― Ela hoje não foi à escola, mas já corriam boatos. ― Os seus lábios pareceram ficar mais finos. ― Imagino que os rapazes não tenham conseguido manter uma história destas secreta. A Rachel foi lá ver como ela estava e ainda não tinha contado nem sequer aos pais. Estes pensavam que ela tinha estado nalguma festa e tinha ficado doente por ter bebido de mais. Puseram-na de castigo durante um mês. A Rachel tentou convencê-la a chamar a polícia, mas ela não quer. Está demasiado assustada. ― Isso acontece muito, Aidan, como sabe. Aidan descarregou a raiva batendo com a mão aberta na bancada da cozinha, surpreendendo-os aos dois. ― Raios partam isto tudo. Claro que sei. ― Os seus ombros pareciam descaídos em consequência do desânimo. ― Mas também sei que eu tenho de comunicar o que aconteceu. ― E se o fizer, a Rachel também passa a estar envolvida. Ele olhou-a nos olhos. 241 ― Ela está com medo que os rapazes descubram que ela contou e que se vinguem nela.


Tess conseguia adivinhar o medo dele, frio e metálico. Percebia perfeitamente como Rachel se sentia. ― Nesse caso, tem de se assegurar de que eles não descobrem quem fez queixa deles. Ele concordou com um gesto nervoso. ― Tenho de a ir levar a casa. Os meus pais devem estar preocupadíssimos. ― Meteu a mão por trás das costas e tirou uma pistola semiautomática do coldre, mais pequena que a que trazia no da perna. ― Sabe usar esta arma? Fazendo um esforço para que as mãos se mantivessem firmes, Tess agarrou nela e pousou-a na bancada da cozinha ao lado do molho que acabava de fazer para a salada. ― Sei. O meu irmão Vito ensinou-me. ― A Dolly não deixa entrar ninguém. A casa dos meus pais fica a menos de dez minutos daqui, mas eu vou ter de falar com o meu pai. É possível que me demore um bocadinho. ― Depois olhou para as panelas que ferviam ao lume. ― Desculpe. O cheio é óptimo, mas eu não posso... ― Não se estraga. Vá, Aidan. Eu fico bem. Aidan abotoou o casaco e depois parou junto da porta. ― Eu ligo para o telefone de casa quando estiver a entrar na garagem para a Tess saber que sou eu. Dolly, quieta. Depois saiu. Ela ouviu a porta da garagem abrir-se e depois voltar a fechar-se quando ele saiu com a irmã. ― Bella ― murmurou ― lembras-te quando a Eleanor dizia que havia dias em que mais valia não termos saído da cama? Era de um dia como hoje que estava a falar. A recordação levou-a irresistivelmente a pensar em Harrison e a tristeza voltou. "Começa a comportar-te como uma psiquiatra", dissera ele. "Ao trabalho, Tess." Quarta-feira, 15 de Março, 6.00 A mãe dele estava a fazer o pequeno-almoço. A casa cheirava melhor que o Céu. Aidan atirou-se para um sofá e enterrou a cabeça numa almofada. Teve de se esforçar por manter os olhos abertos. 242 Depois deu por si a olhar um pequeno gato acastanhado nos olhos. A mãe não tinha gato, mas Tess tinha. Sentou-se de um salto, com o cérebro a tentar acompanhar, e o gato escapuliu-se. Estava na sua própria sala, no seu próprio sofá. Tinha chegado tarde na noite anterior, depois de ter levado Rachel a casa e de ter falado com o pai a altas horas da noite. Ao chegar a casa, encontrara Tess adormecida em cima da mesa da cozinha, com o rosto rosado sobre o braço dobrado, a Dolly aos pés.


Tinha adormecido quando escrevia qualquer coisa num dos seus blocos de notas, com uma esferográfica na mão, a pistola a jeito. Lembrou-se de como o seu coração batera mais depressa com medo quando ela não atendera o telefone, e de como o medo acabara por se transformar em excitação, numa excitação que o deixara com falta de ar. Estava quente e despenteada e precisara de um domínio sobrehumano para não se atirar com ela para a cama macia. Mas conseguira deitá-la e depois deitar-se sozinho no sofá da sala. Chegou à conclusão de que era um santo. Sentiu o estômago a andar às voltas. Era um santo esfomeado. Pôs-se de pé num salto, dirigiu-se à cozinha e ficou a olhar, de olhos esbugalhados. Tess Ciccotelli estava de pé à frente do fogão, com um par de calças de ganga e a sua sweatshirt velha da polícia, com as mangas arregaçadas até aos cotovelos. O cabelo escuro caía-lhe pelos ombros em caracóis e os pés batiam ao ritmo da música dos Aerosmith, que vinha do rádio, com o volume baixo. Enquanto isso, ia dançando a acompanhar o ritmo, ao mesmo tempo que virava a massa dos crepes na frigideira. Aidan pensou que nunca tinha visto nada tão belo em toda a sua vida. Em duas passadas largas alcançou-a e, antes que ela tivesse tempo de dizer uma única palavra, tinha o cabelo dela nas suas mãos e a boca dela na dele, quente e exigente. O gritinho de surpresa transformou-se num ronronar de satisfação que por pouco não o fazia perder a cabeça. As suas mãos entraram por baixo da velha sweatshirt da polícia e começaram a acariciar a pele macia das costas dela, enquanto os braços dela se uniam por trás do pescoço dele e ela abria a boca para encontrar a língua dele. Continuava com a espátula dos crepes na mão, mas ele não se importou. Em bicos de pés, Tess esforçava-se por alcançar o rosto dele. O seu peito fazia força contra o de Aidan, as suas ancas moviam-se de encontro às dele e a única coisa que ele conseguia pensar era: "Agora, agora, agora." As mãos dele procuraram o fecho do soutiã dela ao mesmo tempo que introduzia os dedos por baixo das copas, até que por fim percebeu que o fecho ficava à frente. 243 Tess gemeu e as mãos dele estremeceram. ― Depressa ― sussurrou ela contra os seus lábios. ― Por favor. Torceu, puxou, insistiu e por fim sentiu o peito dela livre nas suas mãos. Ela ficou imóvel, de olhos fechados, a cabeça descaída para trás. Os lábios afastaram-se, os olhos fecharam-se de novo, e ele percebeu que ela estava de respiração suspensa, à espera. A espera que lhe tocasse. E de repente a coisa mais importante do mundo passou a ser que a espera dela valesse a pena. Soltou-a e retirou as mãos de baixo da sweatshirt. Ela abriu os olhos,


confusa, ansiosa, excitada. ― O que foi? Que aconteceu? Ele beijou-a, pegando-lhe no ombro com a mão direita e desligando o fogão com a outra. ― Quero fazer as coisas devagarinho, levar o tempo que for preciso. Devagar, Aidan encaminhou-a para a sala, até que as pernas dela tocaram o sofá. Ali deitou-a e depois deitou-se junto dela. Pousou a cabeça de Tess na almofada macia e a seguir instalou as suas ancas entre as pernas dela. Ela retesou o corpo contra o seu e isso quase anulou a determinação dele. Com uma risada profunda, ajustou-se a ela, deixando-a na posição que lhe convinha. ― Mais devagar ― disse ele, mais para si mesmo do que para ela. De repente, tirou-lhe a sweatshirt pela cabeça e prendeu-lhe os braços, deixando o peito à vista. Ficou sem respiração. O peito começou realmente a doer-lhe. ― Meu Deus ― conseguiu pronunciar. ― Deixame olhar para ti, Tess. E foi o que fez. Olhou para o peito perfeito dela, redondo, firme. Os mamilos dela estavam duros, a suplicar pela boca dele. Aidan preparou-se para responder ao apelo, mas no último instante afastouse, arrancando um queixume de frustração da garganta dela. Tess tentou libertar os braços e com isso o peito estremeceu à frente dele, que quase trocou os olhos. ― Solta-me. ― Não ― ele percorreu com a língua o contorno do peito esquerdo fazendo-a estremecer. Estremecer a sério. ― Ainda não, Tess. Fecha os olhos. Ela obedeceu e ele repetiu a carícia do outro lado, antes de mergulhar o rosto entre os peitos dela e sentir o seu aroma. 244 ― Aidan... ― Tess arqueou as costas, mas ele voltou-se e acariciou-lhe o peito direito, mas mais uma vez interrompeu antes de completar o gesto. Tess sentia a respiração quente dele contra a pele. Estava louca de desejo. Todos os nervos do seu corpo ansiavam por que ele lhe tocasse. Queria sentir as mãos e a língua dele sobre a pele. Precisava de o sentir. Tentou erguer as ancas, mas ele impediu-a. Sentiu a erecção dele a vibrar contra o corpo dela. Num impulso, libertou os braços e atirou a t-shirt dele pelos ares para o outro lado da sala. Sentindo a cabeça dele entre as palmas das mãos, puxou-o para si e deu um pequeno grito quando, por fim, a boca dele se fechou sobre o seu mamilo. Por fim ele chupou, de boca entreaberta, e o prazer começou a subir pelo corpo dela. ― Meu Deus! Não pares, por favor!


Ele levantou a cabeça e olhou-a. Os olhos azuis dele pareciam negros. Os seus lábios estavam húmidos. ― Não sou capaz ― balbuciou. ― Não vou... Depois deixou cair a cabeça sobre o peito e deu o mesmo tratamento erótico ao outro peito, até ela gemer, longa e profundamente, contorcendo-se para se aproximar do alto duro que sentia nas calças dele. Ele pegou-lhe na cabeça com fúria e beijou-a de maneira feroz. As ancas dele aproximavam-se e pressionavam-na, enquanto ela pressionava as pernas dele com os pés, de maneira a aumentar ainda mais a pressão. O peito dela fazia força contra a camisa dele, com o algodão grosseiro a tocar-lhe os mamilos sensíveis. Com as mãos a tremer, desabotoou a camisa até esta se abrir e não ficar nenhum obstáculo entre a pele dos dois. Contorceu-se, fruindo do prazer de tocar a pele dele. Ele respirava ruidosamente, com a testa coberta de suor. ― Faz isso outra vez ― pediu ele com voz rouca, e ela fez, a olhar o seu rosto, a maneira como o músculo do maxilar se retesava, como os olhos dele se fechavam. O movimento das ancas de Aidan abrandou, tornou-se profundo e ritmado de encontro a ela. Sem a barreira da roupa, ele já estaria dentro dela, a enchê-la até ao limite, a levá-la ao orgasmo que ela há tanto tempo não tinha. Meu Deus, como ela ansiava por que ele o fizesse. Aidan abriu os olhos e tentou dizer qualquer coisa. Quando conseguiu, a sua voz era grave e profunda e fê-la estremecer de excitação. ― Que queres fazer, Tess? ― Inclinou-se sobre ela e percorreu-lhe o maxilar com os seus lábios. ― Queres fazer amor? 245 Não havia nada que ela desejasse tanto como dizer que sim, mas quando o momento realmente chegou, a voz do pai pareceu ecoar na sua mente. Apesar da hipocrisia dele, as suas lições estavam firmemente plantadas na mente de Tess, deixando-a insegura. Tinha andado vários meses com Phillip, diabos o levassem, e só então tinha dormido com ele, e antes dele tinha tido poucos namorados. Ele fez mais um movimento por cima dela e ela gemeu, numa excitação desesperada. ― Quero ― respondeu-lhe ao ouvido. No entanto, na realidade, hesitava. Ele pressentiu e parou. ― Não te mexas ― ordenou ele, a voz trémula. ― Nem um músculo. ― Agarrado às costas do sofá, pôs-se de joelhos e depois parou, os olhos a beberem avidamente dos dela. ― És linda, Tess. Isto foi dito por um homem de tronco nu e um rosto magnífico, que podia facilmente ganhar a vida a fazer fotografia publicitária. Mas escolhera ser polícia. Proteger e servir. Até ao momento, tinha feito


ambas as coisas maravilhosamente. Procurou falar com clareza. ― Tu também. Com cuidado, Aidan pôs-se de pé e com uma careta pegou na sweatshirt que ela tinha tirado. Entregou-lha e depois voltou-se com uma resolução sombria, voltando-lhe as costas enquanto abotoava a camisa. Ela apertou o sutiã e voltou a vestir a sweatshirt. Continuava a sentir o sangue a pulsar, entre as pernas e por todo o corpo. ― Desculpa. ― Não digas isso. ― Ele olhou para ela por cima do ombro com ar bem-disposto. ― Eu seria incapaz de me aproveitar de ti. ― E não o fizeste. ― Tess pôs-se de pé e deu-lhe um beijo no rosto, onde a barba começava a despontar. ― Recordaste-me o que era ser desejada. E desejar. Obrigada. Os olhos dele brilharam. ― Acho que o melhor é tomarmos o pequeno-almoço ― disse ele afastando-se, ao mesmo tempo que ia refilando qualquer coisa em que se distinguiu "santo". Tess foi atrás dele para a cozinha. ― Senta-te. Eu faço-te uns crepes. ― Olhou para os restos de massa de crepes. ― O melhor é aquecermos os que sobraram de ontem no rnicroondas. Ele concordou e sentou-se à mesa. ― Não precisavas de te pôr a cozinhar para mim ― disse ele, e estendeu as pernas por baixo da mesa. 246 Ela dominou um sorriso trocista e retorquiu: ― E tu não precisavas de te mostrar tão satisfeito contigo mesmo... ― Gosto de cozinhar quando estou tensa ― explicou Tess, ao mesmo tempo que punha a mesa e lhe servia o café. ― A minha mãe é igual. ― Quando acrescentou isto fez um esgar de contrariedade. Não tinha intenção de dizer aquilo. Ele olhou-a com curiosidade. ― O teu amigo Jon diz que tu não falas com os teus pais., Tess rangeu os dentes, contrariada. ― O meu amigo Jon fala de mais. ― Depois fez uma careta. ― Esqueci-me de telefonar ao Jon e à Amy e de lhes dizer que estou bem. ― Pegou no telemóvel. ― Desliguei-o ontem à noite. Como ias ligar para o telefone de casa, e eu comecei a ficar paranóica com a ideia de que o telefone também podia ter escutas ou algum aparelho localizador... Já é ser estúpida, não achas? ― O microondas apitou e ela pôs o prato dos crepes na mesa. Aidan serviu-se de vários.


― Estúpida não digo. Provavelmente pouco razoável, mas, tendo em conta tudo o que passaste, estúpida de maneira nenhuma. ― Começou a comer e suspirou. ― Crepes, Aerosmith é boa até dizer chega. A doutora é uma mulher e pêras. Tess riu-se ao mesmo tempo que ligava o telemóvel. ― Que poético... Merda! ― Olhou para o telefone de sobrolho franzido. ― Tenho outra vez para cima de um milhão de mensagens, mas a maior parte parecem do Jon e da Amy. ― Viu de quem eram os números. ― Dois números desconhecidos. Aidan ficou visivelmente tenso. ― Vamos tentar localizar as ameaças de ontem à noite. Ela tentou não se deixar dominar pelo pânico. ― Obrigada. E... ― Quando viu o número seguinte pestanejou. ― Vito?! ― O teu irmão? ― Sim. ― Apressadamente, marcou o último número. ― Vito? Fala a Tess. ― Onde diabo te meteste? ― rosnou o irmão. Ela encolheu os ombros. ― É um prazer ouvir-te... ― Não te armes em esperta comigo, Tess. Tenho andado louco de ralação. E a mãe também. 247 ― Como soubeste? ― Tens aparecido em todas as televisões. Tu e aquele jogador de futebol que se suicidou. A mãe viu um noticiário ontem à noite e ligoume, desesperada. Onde tinhas tu a cabeça, Tess? Valha-me Deus! Não podes andar por aí a deixar que te apontem armas à cabeça sem sequer nos falares disso! A mãe pensou que tinhas morrido. Há horas que estamos a tentar ligar-te para o número de casa. ― Eu não estou em casa. ― Quem diria! ― atirou-lhe o irmão, numa verdadeira fúria. ― É uma verdadeira surpresa, tendo em conta que passei a noite no átrio do teu edifício à tua espera. Tess ficou boquiaberta. ― Estás aqui? Em Chicago? ― Sim, estou aqui. Em Chicago. Apanhei o último avião que saiu de Filadélfia ontem à noite. ― Oh, Vito! Não devias ter feito isso! ― Recordando os acontecimentos do dia anterior, sentiu-se dominada pela ansiedade e a voz pareceu engrossar-lhe na garganta. ― Mas estou muito contente por teres vindo. Ontem à noite arrombaram o meu consultório. ― Eu sei. Há uma foto de primeira página no Bulktin com o teu colega a sair de ambulância. Tess sentiu a raiva apoderar-se dela, tanto contra Wallace Clayborn


como contra o jornal que, com tanta insensibilidade, beneficiava da infelicidade da família do amigo. ― O Harrison morreu. O silêncio de Vito estava carregado de tensão. ― Que aconteceu? ― Que diz o artigo? ― Só diz que o assaltante foi um desconhecido e que a polícia ainda está a investigar as pistas ― respondeu Vito. ― Mas que aconteceu, afinal? ― Um dos meus doentes viu-me nas notícias e... ― Tess foi obrigada a respirar fundo ― foi ao meu consultório para ver se me apanhava. Não me encontrou, mas encontrou o Harrison. ― Oh, meu Deus. ― A voz dele deixou de soar com indignação para deixar transparecer o medo. ― Onde estás? ― Estou segura. Vou ter contigo, mas não ao meu apartamento. ― Porquê? ― perguntou ele, preocupado. ― Digo-te quando chegar. E tu, onde estás? 248 ― No Holiday Inn, no centro. Tess tapou o auscultador. ― Podes deixar-me lá de caminho para o trabalho? Aidan fez um sinal afirmativo. ― Posso, claro. ― Tess?! ― trovejou a voz do irmão. ― Tu estás com um homem?! Tess suspirou. Por mais anos que passassem, fosse qual fosse a sua idade, seria sempre a irmã mais nova de Vito, e todos eles continuavam a ser filhos do mesmo pai, quer isso lhes agradasse, quer não. ― Estou, Vito. ― Nesse caso não é só largar-te ― continuou Vito. ― Ele sobe e vem falar comigo. Tess suspirou de novo. ― Está bem, Vito. Vemo-nos daqui a uma hora. ― Desligou o telefone e encolheu os ombros. ― Importas-te de subir e de conhecer o meu irmão? Aidan abriu muito os olhos num pânico simulado e divertido. ― Achas que ele me quer bater? ― Não me parece. Ele nunca bateu mesmo em nenhum dos meus namorados. Mas uma vez deixou o Phillip a sangrar do nariz. ― O Dr. Diabos o Levem? ― perguntou ele, e isso fê-la sorrir. ― Suponho que esse merecia. ― Pois merecia. ― Quando se lembrou de como Aidan estava preocupado com a sua própria irmã ficou séria. ― Que aconteceu ontem à noite, Aidan, com Rachel? O sorriso abandonou os olhos dele. ― O meu pai disse que tomava conta do assunto. É um polícia


reformado, mas ainda tem amigos que podem receber uma denúncia anónima. ― E se alguém relacionar a denúncia com Rachel? Aidan empalideceu. ― Se isso acontecer, eu e o Abe havemos de arranjar maneira de dar a entender na escola dela que, se alguém tocar num cabelo que seja de Rachel, vai acabar por morrer. ― Voltou a servir-se. ― Estes crepes estão incríveis. Ainda melhores que os da minha mãe. Mas ficas a saber que se alguma vez lhe disseres, eu vou chamar-te mentirosa com todas as letras. Percebendo que ele queria mudar de assunto, Tess alinhou no jogo. ― De mim não vai ouvir uma palavra. Ontem à noite fiz-te linguini. Se quiseres podes comer o jantar de ontem aquecido, logo à noite. 249 Ele olhou para ela surpreendido. ― O meu jantar hoje à noite? E o teu? Não me parece boa ideia andares por aí sozinha hoje à noite. Tess voltou a sentir o pânico na base do estômago, mas recusou-se a deixar-se dominar por ele. Com um gesto de desafio, respondeu-lhe: ― Tu queres é convencer-me a fazer-te outra vez o jantar... Ele respondeu com um sorriso lento, que fez o coração dela bater mais depressa outra vez. ― Sim, confesso... Desarmada, desviou os olhos e viu o bloco de apontamentos onde tinha escrito na noite anterior. ― Tenho uma coisa para te mostrar ― disse ela, inclinando-se para lhe pegar. ― Ontem não quis usar o teu computador sem te ter pedido, mas tirei um dos teus blocos novos da tua secretária. A propósito, tens uma biblioteca muito interessante. Há de tudo no teu escritório, de história da antiguidade a matemática. Com uma boa colecção de livros de psicologia, de filosofia e de poesia pelo meio. Ler as lombadas nas estantes fora um exercício fascinante. Ele demorou uma fracção de segundo a mais do que teria sido razoável. ― Eu só acabei o liceu ― respondeu-lhe, e o seu olhar pareceu tornarse indiferente, imperscrutável. O que em si já era eloquente. O suspiro de Tess foi de exasperação. ― Não faças isso, por favor. ― Não faço o quê, doutora? ― Não se arme em esperto, defectível ― ripostou ela. ― Como tenho mais alguns diplomas na minha parede, partiste logo do princípio de que vou desdenhar dos teus estudos. Ele olhou-a friamente e depois encolheu os ombros. ― Desculpa ― disse, mas nem a sua voz nem os seus olhos mostraram calor.


― Porque estás a fazer-me isto? Porque pensas sempre o pior de mim? ― Tess levantou-se da mesa num assomo de indignação. ― Há uns minutos tiveste-me deitada, agora estás a ver-me num pedestal acima de ti. Vê se te decides. Tanto posso olhar para cima como para baixo. A escolha é tua. Qualquer coisa respondeu nos olhos dele e Tess fechou parcialmente os dela, preenchendo o silêncio quando ele não respondeu. 250 ― Muito bem. Conversa encerrada ― disse por fim, e começou a passar em revista as notas da noite anterior. ― Enquanto estiveste fora ontem à noite fiz um esboço do perfil da pessoa de quem andamos à procura. Tinha começado a fazê-lo no meu computador do consultório ontem, antes de receber o telefonema por causa do Seward. ― Com decisão, Tess evitou pensar no terror que a história ainda evocava nela e fez um gesto para pôr fim ao tremor dos joelhos. ― Ainda não tinha feito nenhuma cópia de segurança e de momento duvido que consigam ir buscar isto ao meu disco rígido. ― Isto porque o disco rígido dela estava feito em pedaços no chão do escritório. ― Agora vou mudar de roupa. Quando estiveres pronto podemos sair. ― Tess. Já ia na sala, mas parou e voltou-se para trás. Viu-o a ler a página que ela tinha marcado. Ele olhou para ela, perturbado. ― Obrigado por isto. ― Era o que o Harrison queria que eu fizesse. Ontem almocei com ele. Falámos deste assunto. ― Apontou para o bloco que se encontrava nas mãos dele. ― E aí está. Gostava que me fizesses uma cópia. Tess passou pelo sofá e continuou para o átrio antes que Aidan chamasse de novo. ― Tess. Ela parou, mas dessa vez não se voltou para trás. ― Que foi? ― Desculpa. Não devia ter dito o que disse. ― Ouviu-o aproximar-se dela e estremeceu quando ele lhe pousou as mãos nos ombros. ― Eu já tenho um passado. ― Beijou-a no pescoço, de lado, um pouco acima da cicatriz. ― Talvez ambos tenhamos. ― Como é que ela se chamava? ― Shelley. ― Parou e depois acrescentou com um sorriso na voz: ― Diabos a levem. ― Afastou o cabelo dela e continuou a beijá-la. ― Vou tomar um duche, mas despacho-me em vinte minutos. Explicas-me o teu perfil no carro. Há alguns termos que eu não conheço. Passou por ela e desapareceu na casa de banho dos patinhos. Tess percebeu que admitir a ignorância lhe tinha custado mais que pedir desculpa. Pôs-se a divagar sobre quem seria a tal Shelley e sobre o que lhe teria feito, e depois foi-se preparar. Vito não gostava nada de


esperar. CAPÍTULO 13 Quarta-feira, 15 de Março, 7.20 Não foi difícil identificar Vito Ciccotelli, pensou Aidan, que localizou o homem ao primeiro olhar quando chegou ao átrio cheio de gente do Holiday Inn. Era de certeza o tipo alto com cabelo ondulado castanhoescuro e um olhar intimidante. Mesmo sem o alto do coldre a aparecer por baixo da roupa, o homem parecia ter "polícia" escrito na testa. Depois, quando os seus olhos escuros e penetrantes viram Tess, o letreiro pareceu mudar para "irmão mais velho loucamente preocupado". Ela deu um passo na direcção dele e depois os dois começaram a correr. Vito abraçou-a como se se tratasse de algo precioso que tivesse estado prestes a perder. Aidan sentiu um nó na garganta. Ambas as coisas eram verdade. No carro, Tess tinha-lhe contado que não via o irmão desde que ele tinha acorrido em seu auxílio da última vez, dez meses atrás. A primeira vez, tinha ido vê-la ao hospital depois do ataque do preso com as algemas, como ela referira o episódio de que tinha resultado a cicatriz. Aidan perguntou a si mesmo se ela se teria apercebido de que tocava na cicatriz quando falava do que tinha acontecido, como se isso tivesse acontecido a outra pessoa. A segunda vez fora seis semanas depois de ela ter deixado Phillip, quando Vito lhe tinha partido o nariz. Vito olhou para a irmã de sobrolho franzido. ― Continuas muito magrinha. Estiveste doente outra vez? E porque não estás em casa? ― Olhou por cima do ombro dela na direcção de Aidan. Os seus olhos castanhos tinham-se tornado frios. "Deve ser de família." ― É ele o polícia? ― perguntou Vito.. Tess olhou para trás, os lábios a abrirem-se num breve sorriso. 252 ― Não, não estou, não estive, é uma longa história, e sim, é ele. ― Voltou-se de maneira que o braço de Vito ficou à volta dos seus ombros. ― Vito, apresento-te o Aidan Reagan. Aidan ― acrescentou para ele ― o meu irmão Vito. Vito apertou-lhe a mão com firmeza, mas sem brutalidade. ― Anda a dormir com ela? ― perguntou. ― Vito! ― exclamou Tess, sinceramente chocada. ― Ainda não ― respondeu Aidan, e Vito ficou tenso. Durante uns momentos, ninguém disse nada e depois Vito perguntou, com agressividade. ― Porque é que ela não dormiu em casa? Aidan olhou à volta. ― Não podemos falar aqui. ― Olhou para o relógio. Spinnelli tinha marcado uma reunião para as oito em ponto. ― Tenho uns dez minutos. Tem quarto?


― Tenho ― respondeu Vito já a andar, ao mesmo tempo que empurrava a irmã para as escadas. ― São só dois andares, miúda. Estás com sorte. ― Deixou-os entrar no quarto, fechou a porta e encostou-se a ela, de braços cruzados à frente do peito, como uma sentinela. ― Desembuche. Sem perder tempo, de maneira concisa, Aidan contou-lhe o que achou que podia contar à frente de Tess, que estava sentada na cama, irritada por ter sido deixada de lado. Quando ele acabou, disse com sarcasmo: ― Não sei se reparaste que ainda estou aqui. Vito olhou para ela com ar seriamente ameaçador. ― Pois estás, e é aí que vais ficar. ― Depois voltou-se para Aidan. ― Quem lhe parece que está por trás disto? Aidan abanou a cabeça. ― Não posso. A frustração de Vito era visível. ― Porque não sabe? "Porque é possível que sejam polícias." ― Tenho de ir andando. ― Olhou para Tess pelo canto do olho e depois de novo para Vito. ― Quanto tempo pensa ficar, Vito? Ele hesitou. ― Tenho alguns dias. ― Ainda bem. ― Voltou aolhar para Tess e depois de novo para Vito. ― O Clayborn ainda anda à solta. 253 Tess ficou surpreendida. ― Pensei que o Spinnelli tinha mandado alguém prendê-lo. ― Ainda não o encontraram. Fica com ela? ― Fico ― respondeu Vito num tom sombrio. ― Tess, como é que te meteste numa coisa destas? Ela pôs-se de pé e deu um murro no braço do irmão, com tanta força que por instantes ele se desequilibrou. ― Eu não tive culpa nenhuma disto, atrasado mental! Aidan ainda estava surpreendido com a rapidez com que ela respondera e também com a força do golpe, ambas pouco próprias de uma vítima. ― Não sabia que havia disso dentro de si, doutora. Ela olhou para ele com cara de poucos amigos. ― Agora que sabes, não te esqueças. E despacha-te, vai andando. Ainda te atrasas. Quando eu puder voltar para o consultório liga-me. Tenho de começar a arrumar o arquivo. ― Fez um gesto de impotência. ― O Patrick vai pedir-me os processos com um mandado. ― Quem é o Patrick? ― O procurador. ― Aidan pegou na mão de Tess. ― Preciso de falar


contigo. ― Arrastou-a para o corredor e fechou a porta na cara intolerante de Vito. ― Estou a começar a ter pena de Rachel... Os lábios de Tess esboçaram um sorriso. ― Ela tem muita sorte por ter um irmão que gosta dela. ― Aproximouse dele e deu-lhe um beijo rápido. ― Não faças o Spinnelli esperar. Ele fica impaciente. Ele passou-lhe a mão por baixo do cabelo e deu-lhe o beijo que queria dar. Ficou contente quando viu que ela ficou perturbada. ― Também eu. ― Voltou a beijá-la, numa atitude possessiva. ― Desculpa pelo que aconteceu esta manhã. Eu não queria magoar-te. ― Não tem importância ― respondeu ela. E não tinha, percebeu ele pelos olhos dela, e o seu coração acalmou-se. Começou a recuar, mas praguejou e deteve-se. Antes que ele pudesse respirar de novo, ela encontrou-se nos braços dele, os braços à volta do pescoço dele e a beijá-lo como nessa manhã na cozinha. Teve o sangue-frio de se surpreender por alguma vez ter pensado que ela era uma mulher fria. A tremer, enterrou a cabeça no pescoço dela. ― Cuidado ― sussurrou num tom sério. ― Se precisares de alguma coisa, telefona-me. ― Prometo que telefono. 254 Beijou-a de novo abaixo da orelha. ―Janta comigo hoje. ― E o Vito? ― Trá-lo contigo. Desde que ele não fique toda a noite... Tess respondeu com uma pergunta: ― Eeu? Ele mordiscou ao de leve o lábio inferior dela. ― Tu é que sabes. Agora é que já estou seriamente atrasado. Até logo. Tess passou a mão pelos lábios. Céus! Nunca ninguém a tinha beijado daquela maneira. Nunca. Nem Phillip, diabos o levassem. Ninguém. Deu um passo incerto na direcção da porta, que se abriu antes que ela tivesse tempo de bater. ― Estiveste a espreitar pelo buraco da fechadura ― acusou ela, e Vito fez uma careta divertida. ― Sempre tive esse hábito. Se não fosse isso como é que havia de saber quem merecia uma sova por se meter com a minha mana? ― Quando voltaram para dentro do quarto pôs um ar sério. ― A mãe quer vir visitar-te. Todo o prazer desapareceu. ― Então que venha. ― Ela quer que sejas tu a convidá-la. ― Já convidei. ― Demasiadas vezes nos últimos cinco anos. ― Não te metas nisto, Vito. ― Eu já estou no meio disto, Tess.


― Só tu ― murmurou ela. Só Vito tinha ficado do lado dela, só ele tinha feito frente ao pai. ― Como estão eles? ― Não precisou de explicar melhor. "Eles" eram a família de ambos. ― A mulher do Dino está outra vez grávida. É mais um rapaz. ― Pobre Molly. ― Seria o quinto rapaz do seu irmão e da mulher. Seriam dois sobrinhos que ela nunca tinha visto e mais três que não a conheceriam se a vissem. ― O Gino teve uma encomenda importante, um projecto novo para uma casa. O Tino vai casar-se. Tess sentiu um aperto no coração. ― Gostas dela? ― Gosto. ― Vito engoliu em seco. ― É muito boa pessoa, Tess. E também quero que tu venhas para casa. "Casa." A ideia deixou-a nostálgica. 255 ― Porquê? ― Porque sinto a tua falta. Todos sentimos. ― Sentou-se na cama. ― O pai está doente. Tess sentiu um aperto no coração. ― É grave? ― Teve um ataque de coração. Ela olhou para ele com ansiedade. ―Já não é o primeiro. ― Mas este foi pior. Já decidiu vender o negócio. Ela voltou-se para a janela. ― Ele quer que eu volte? Vito não respondeu, o que era uma resposta. Tess voltou-se de novo para o irmão, já recuperada. ― Tenho de falar com a Fio Ernst ainda esta manhã. Tenho um recado para ela do Harrison. Vens comigo? Vito pôs-se de pé. ― Claro que sim, Tess. Diz-me uma coisa, este polícia... ― Aidan? Ele é uma boa pessoa, Vito. Adora a mãe. Vito sorriu. ― Ainda bem. Assim não tenho de o matar. Tess respondeu-lhe com outro sorriso. ― Ainda bem que vieste. Quarta-feira, 15 de Março, 8.03 Aidan pestanejou quando abriu a porta da sala de reuniões e quatro pares de olhos se voltaram para ele. ― Desculpem ― conseguiu dizer, e sentou-se rapidamente entre Jack e Murphy. ― Perdi alguma coisa? ― Não, mas o Rick está a ponto de explodir ― respondeu Spinnelli com secura ― por isso vamos deixá-lo falar em primeiro lugar. ― Encontrei uma pista para uma das câmaras. ― O sorriso de Rick ia de orelha a orelha. ― Para a mais antiga.


A que estava no chuveiro de Tess. Aquela que não lhe tinha saído da cabeça toda a manhã. Nem quando a beijava, quando a acariciava. Havia sempre uma parte do seu cérebro ocupada com a ideia de que alguém a tinha visto, a tinha espiado. ― Como? 256 ― Lembrei-me que estes modelos possuem um interruptor lá dentro que tem de ser activado, de maneira que verifiquei. ― Rick mostrava a câmara com a tampa levantada. ― Lá dentro havia uma impressão parcial. Murphy fez-lhe um gesto de que se despachasse. ― Estou aqui a fazer-me velho, Rick. ― Comparámos a impressão com a base de dados e encontrámos várias com semelhanças ― disse Jack. ― O Rick lembrava-se de um dos nomes da lista. ― Era um tarado que tinha instalado câmaras de filmar no vestiário das raparigas numa escola secundária ― explicou Rick. ― Fora contratado para fazer a instalação eléctrica da escola e decidiu fazer também um trabalhinho por conta própria. Usou uma câmara do mesmo modelo. ― David Bacon ― disse Spinnelli, que pôs uma fotografia no meio da mesa. ― Foi condenado a cinco anos e cumpriu três depois do incidente do balneário. Acabou por ser condenado por fazer pornografia infantil porque as miúdas eram menores. Saiu há oito meses. ― Quando foi condenado chorou como um bebé ― contou Rick com desprezo. ― Merdoso... Aidan estava a olhar para a fotografia e para a descrição de Rick, procurando forçar-se a ser lógico. ― Chorou? Isso não bate certo. ― Tirou a folha escrita à mão por Tess e mostrou-a aos colegas. ― Ontem à noite, a Tess fez um esboço do perfil do criminoso. Spinnelli olhou para ele de olhos semicerrados. ― Quando é que ela te deu isso? Aidan manteve uma expressão impassível. ― Encontrei-me com ela hoje de manhã antes de vir para aqui e foi nessa altura que me deu isto. Spinnelli acenou afirmativamente sem convicção. ― Hum, hum. Em que hotel é que ela está? ― No Holiday Inn do centro. ― Hum, hum. E que diz o perfil, Aidan? Tudo indicava que Spinnelli não ia dizer mais nada sobre o assunto. Aidan procurou relaxar um pouco. ― Disse que nunca viu esta combinação de traços em doentes, o que é


muito raro, sobretudo por ser uma pessoa tão concentrada e com tanto sucesso. Com base no número de pessoas mortas, é provavelmente um homem. Também é provável que não seja muito jovem, 257 porque dedicou muita paciência e tempo de planeamento a isto. É um viyeur anti-social, educado e que gosta de gestos teatrais. Pode ser um actor ou uma pessoa que vá muito ao teatro. Podia ser uma pessoa com assinatura para uma temporada, por exemplo. Percebe de vozes e de imitadores e também de tecnologia de vigilância. Percebe de medicamentos, especialmente de psicotrópicos, e sabe usá-los com pessoas sugestionáveis. Sabe de psicologia. Escolheu três dos doentes mais vulneráveis dela e descobriu formas pessoais de os torturar. Também é possível que seja uma pessoa capaz de reconhecer estas características noutras pessoas e de obter a cooperação delas. Aidan pôs o papel na mesa para que Murphy também o pudesse ver e continuou: ― Gosta de ver os outros sofrerem. É provável que não seja a primeira vez que infringe a lei, embora seja possível que nunca tenha sido apanhado. É esperto de mais para ser apanhado. Por enquanto. Além disso, não gosta de sujar as próprias mãos, mas se for preciso pode fazê-lo. É uma pessoa com objectivos claros, que não se desvia do caminho que traçou. É possível que tenha uma empresa ou trabalhe por conta própria. Está habituado a delegar e sabe fazê-lo. Não é provável que seja uma pessoa com um trabalho humilde. ― Franziu o sobrolho. ― É o tipo de pessoa que podia matar a própria mãe sem perder um minuto de sono se isso o aproximasse do seu objectivo. ― É um perfil muito completo ― observou Spinnelli, pensativamente. ― Ela deve ter perdido muito tempo com isso. Aidan lembrou-se dela sozinha em sua casa com a arma dele ao alcance da mão e o cão aos pés, preocupada, até acabar por ser vencida pelo sono. ― Ontem à noite estava inquieta. Depois do dia que teve é natural. ― David Bacon montou uma instalação eléctrica ― disse Murphy. ― Além disso, sabia montar um esquema de transmissão sem fios. Isso mostra que é uma pessoa com formação. ― Mas fez tudo sozinho ― disse Rick. ― Gostava de ver as raparigas e de saber que era ele o único a poder fazê-lo. Foi uma das razões por que só levou cinco anos. Nada indica que tenha tido cúmplices ou que tenha divulgado os filmes. ― Talvez Bacon seja apenas uma das pessoas com formação em quem ele está a delegar ― disse Jack. ― Seja como for, só saberemos quando o encontrarmos.


― Havemos de encontrar ― disse Aidan com firmeza. 258 ― Bem, eu também descobri uma coisa ― disse Spinnelli. ― Os assuntos internos conseguiram que a empregada do arquivo confessasse que entregou as pastas da Cyntha Adams e de Winslow ao Blaine Connell. Aidan fechou os olhos. ― Não é possível. Os dois nunca tinham sido amigos, mas Connell sempre lhe parecera um tipo decente. ― Os assuntos internos vão trazê-lo hoje. Depois de eles acabarem é a nossa vez. ― Se sobrar alguma coisa ― murmurou Jack. ― Que diabo... Aidan rompeu o silêncio. ― E o Wallace Clayborn? Já o encontrámos? Spinnelli abanou a cabeça. ― Mandei dois polícias de uniforme à procura dele mas não o encontraram. Hoje de manhã entreguei o assunto ao Abe e à Mia. A Tess ficou sozinha? Aidan sentiu-se reconfortado por saber que o irmão e o parceiro estavam a tratar do assunto. Abe sabia bem do ofício, e Mia também. Enquanto não encontrassem Clayborn não iam deixar nada por verificar. ― Não. O irmão chegou de Filadélfia esta manhã. Ao que parece a ligação dela com a morte de Seward foi notícia em todo o país e a família ficou preocupada. ― Eu vi as notícias no ESPN ontem à noite ― confirmou Rick. ― Tu também apareceste, Aidan. ― Vê lá se não te sobe à cabeça ― retorquiu Spinnelli com secura. ― Que mais nos falta ver? Jack estudou o bloco de apontamentos. ― Ainda estou à espera dos números de série das armas que encontraste em casa da Cynthia Adams. Se à hora de almoço ainda não tiver sabido nada telefono-te. ― Temos os recibos que encontrámos em casa da Nicole Rivera ― disse Murphy. ― Quando encontrarmos o Bacon podemos ir à loja ver se alguém se lembra dela. ― Além disso, temos de investigar se há alguém com acesso a todos os apartamentos. ― Aidan olhou para Spinnelli. ― Podes pedir a alguém que estude as cassetes de segurança? ― Posso. Vocês concentrem-se no David Bacon. Eu trato do Connell e dos assuntos internos. Quando soubermos alguma coisa telefono-vos. 259 Eu conheço bem o Connell. Até acredito que ele possa ter tirado os


processos, mas não acredito que fosse capaz de matar friamente a Nicole Rivera. Mas posso estar enganado, não seria a primeira vez. Ao trabalho. E vão-me dizendo o que descobrirem. Ah, e tu, Aidan? Aidan voltou-se para a porta. ― Sim? ― Diz à Tess que precisamos de organizar os processos. O Patrick telefonou esta manhã. Tem um mandado para os processos e quer estudá-los connosco. Enquanto não conseguirmos apanhar o tipo, podemos ao menos tentar impedir a próxima jogada dele. Diz-lhe que vou mandar um polícia de uniforme para a ajudar com a arrumação e para levar os papéis e a caneta USB. O Patrick pode usar os ficheiros de computador enquanto os processos em papel não estiverem organizados. ― Estás com medo que ela não te entregue os processos? ― Não, eu sei que ela vai fazer o que for preciso. O que acontece é que temos de documentar o processo. Não quero pontos fracos que algum advogado espertalhão possa aproveitar. Mas aqui entre nós, Aidan, o polícia de uniforme é mais para protecção dela. Tenho medo que o Clayborn esteja a observar o consultório à sua espera. A ideia deixou Aidan doente. ― Eu digo-lhe. Obrigado, Marc. Abe estava à espera dele sentado à secretária. ― Preciso de falar contigo. ― Inclinou-se de maneira a falar sem ser ouvido por mais ninguém. ― O pai apresentou queixa. O estômago já indisposto de Aidan deu sinal. ― A Rachel vai à escola hoje? ― Achámos que dava mais nas vistas não ir. ― És capaz de ter razão ― respondeu com um suspiro conformado. ― Valha-nos Deus, Abe. Em parte, preferia que ela tivesse voltado costas e nunca mais tivesse pensado na amiga. Abe deu-lhe um aperto amigável no ombro. ― Eu sei. Ela disse-me o mesmo. Depois disse-me que nunca mais teria coragem para se olhar a si mesma no espelho se tivesse feito isso. O orgulho quase fez desaparecer a sensação de náusea. ― É uma miúda maravilhosa, Abe. ― Aidan engoliu em seco. ― Se um daqueles filhos-da-mãe se lembrar de... ― Eu sei ― disse Abe num tom lúgubre. ― Eu e a Mia andamos à procura do Clayborn. Tenta descontrair-te. Aidan esfregou a testa sem saber que fazer a seguir, quando o telefone de Murphy tocou. 260 ― O Murphy deve estar lá fora a fumar. Estou tentado a atender eu. Tenho a impressão de ser o alvo de setas que vêm para mim de todas


as direcções. ― Sim, eu sei como tu te sentes. Aidan sabia que o irmão o entendia. Não muito tempo atrás fora Kristen que fora alvo de assassinos em fúria. ― Concentra-te em encontrar o Clayborn. ― Já andamos de volta do assunto. Assim que souber alguma coisa telefono-te. ― O telefone de Aidan começou a tocar e Abe olhou para ele de sobrancelha erguida. ― Anda alguém a querer mesmo falar contigo. Vemo-nos mais tarde. Deixando-se cair na cadeira, Aidan atendeu o telefone. ― Fala Reagan. ― Procurou na agenda o número de telefone do responsável da liberdade condicional de Bacon, que tinha de certeza o último endereço dele. ― Detective Reagan, o meu nome é Stacy Kersey. ― A voz era quase um sussurro. ― Sou assistente de Lynne Pope, do Chicago On The Town. ― Não tenho nada a dizer ― disse Aidan, tenso, e começou a baixar o auscultador para desligar. ― Espere, caramba! ― quase gritou a voz do outro lado. ― Ouça o que tenho a dizer-lhe. ― Ainda não acabámos de tratar a sua cassete. ― A última imitação que Rivera tinha feito da voz de Tess era uma prova. ― Não é acerca da cassete ― sussurrou ela. ― A Lynne Pope voltou agora mesmo de um encontro com um tipo que diz que tem filmes pornográficos da sua psiquiatra num CD. Aidan pôs-se de pé num salto, com o pulso acelerado. ― O quê? Consegue mantê-lo aí? ― Um pouco, mas ele está a começar a ficar nervoso. Está só à espera que eu vá buscar cinquenta mil dólares em dinheiro para lhe dar em troca do vídeo, mas não acredito que espere muito tempo. ― Como é o tipo? ― Perto de um metro e oitenta, cabelo grisalho. Talvez uns cinquenta anos. Um bocado repugnante. "Era Bacon." ― Demoro uns quinze minutos a chegar aí, mas vou mandar um carropatrulha para o apanhar à saída se ele tentar sair antes de eu chegar. Obrigado. ― Saiu a correr para o escritório de Spinnelli. ― Temos uma pista do Bacon. 261 Spinnelli levantou os olhos para Aidan. ― Pode ser que por fim esteja a aparecer alguma coisa interessante. Vai andando. Eu vou telefonar à Tess para lhe dizer que comece a trabalhar nos ficheiros. Aidan encontrou Murphy à porta a dar a última baforada.


― Vamos embora. Quarta-feira, 15 de Março, 8.55 ― Raios partam! ― praguejou Murphy como louco. Aidan fechou os olhos procurando dominar a sua própria raiva. Tinham chegado cinco minutos atrasados e tinham deixado partir David Bacon com o maldito CD. ― Desculpem. ― Lynne Pope parecia desolada. ― Eu tentei mantê-lo aqui. Devia ter ligado para o número de emergência. ― Abanou a cabeça incrédula. ― Tenho muita pena. Murphy forçou um sorriso. ― Pelo menos tentou e ficamos-lhe agradecidos por isso. Ele disse alguma coisa antes de sair? Alguma coisa que nos possa ajudar a encontrá-lo? ― Não. Começou a ficar nervoso. Era quase como se funcionasse como uma espécie de radar. Começou a transpirar e de repente deu um salto e disse que nos voltava a contactar. Ainda chamei a segurança, mas ele já tinha saído a correr. ― Como é que ele a contactou a primeira vez, Miss Pope? ― perguntou Aidan, tentando não pensar em David Bacon com um CD de imagens de Tess. ― Ligou para o número geral depois das notícias de ontem. Disse que tinha mais informações sobre as actividades pouco éticas da Dr.a Ciccotelli. Encontrei-me com ele esta manhã e ele mostrou-me o CD. Disse que, como ela se tinha tornado uma celebridade, queria cinquenta mil dólares por ele. ― Porque é que não o comprou? ― perguntou Aidan. ― Estava ao seu alcance. ― Ouvi dizer que os polícias não gostam de coincidências -― disse ela. ― Pois bem, eu também não. E também não gosto que me façam passar por parva. Eu vi como ela ficou chocada ontem, detective. Tenho a certeza que não passa de um peão num jogo que não é dela. Pois bem, por mim não quero sê-lo. 262 Aidan deu-lhe o cartão dele. ― Ela ia querer que eu lhe agradecesse. Ligue-me se ele voltar a contactá-la. Já fora do gabinete de Lynne, Murphy apressou-se em direcção ao elevador. ― O gabinete de liberdade condicional abriu agora mesmo. Vamos pedir o endereço do nosso voyeur. ― Enquanto dizia isto carregava no botão com mais força que a necessária. ― Depois pedimos um mandado. Alguma coisa há-de resultar. Quarta-feira, 15 de Março, 9.45 ― Que confusão.


Tess olhou para Vito, que estava do lado de fora do cofre a olhar para tudo aquilo. Ao lado dele estava um polícia de uniforme enviado por Spinnelli para supervisionar o trabalho de arrumação, embora Aidan lhe tivesse dito a verdadeira razão de Nolan, o polícia, ali estar e isso a fizesse sentir-se muito mais segura. Clayborn teria de passar tanto por Nolan como por Vito para a atacar. E mesmo que conseguisse apanhála, Tess ainda tinha a arma de Aidan na bolsa que a mãe dele lhe levara na noite anterior. ― Obrigada, Vito. Se não fosses tu, eu nunca teria reparado. ― Vê se és simpática comigo, miúda. Lembra-te que estou aqui a gastar as minhas férias. O tom dele era descontraído, mas o rosto deixou transparecer a tensão quando os seus olhos pousaram no papel manchado de sangue que ainda se encontrava no chão do arquivo. O coração de Tess batia de tal maneira que chegava a ser doloroso. Era o sangue de Harrison. Calçou um par de luvas de látex e começou a reunir os documentos inutilizados. ― Não me parece que isto venha a ter outra utilidade qualquer, guarda Nolan. Vou metê-los num saco para levar como prova. Nolan fez um gesto de concordância. ― Acho bem, Dr.a Ciccotelli. Tess sabia que ele não gostava dela. Tinha passado tantas horas com Aidan, Jack, Murphy e Marc Spinnelli que quase tinha esquecido que os outros a odiavam. Ela e Vito trabalharam duramente durante quase uma hora antes de serem interrompidos pela voz de Amy. Ali estava uma boa altura para fazerem um intervalo. 263 ― Tess? ― O rosto de Amy iluminou-se. ― Vito! Meu Deus! Que bom ver-te! Ele retribuiu as boas-vindas. ― Estás com bom aspecto, Amy. ― Quando chegaste a Chicago? ― Ontem à noite. Estava preocupado com a Tess. Amy pareceu igualmente preocupada. ― Estamos todos. Ela esqueceu-se de telefonar a dizer que estava bem. ― Já pedi desculpa ― resmungou Tess. ― Vieste aqui para me aborrecer? ― Vim saber se estavas bem. ― A expressão de Amy pareceu suavizar-se. ― A propósito, como estás? ― Já estive melhor. ― A visita a Fio Ernst não tinha corrido bem. Ainda profundamente infeliz e revoltada, tomara um sedativo receitado pelo seu médico. Um dos filhos de Ernst tinha-a aconselhado a voltar depois do funeral, que seria sexta-feira. Respeitando a dor deles,


pusera de lado o seu próprio sofrimento e saíra sem dizer mais nada. ― Mas suponho que também já estive pior. Amy perceberia melhor que qualquer outra pessoa, uma vez que já passara por tudo aquilo. ― Eu sei, querida ― disse Amy num tom amável. ― E hás-de deixar tudo isto para trás, como deixaste outras coisas. ― Olhou à sua volta e perguntou: ― Onde está a Denise? ― No gabinete de Harrison. ― Tess olhou na direcção da porta fechada, mas na sua mente via a mobília partida e o sangue na esquina da secretária. ― Está a limpar. Eu não consegui. Amy passou a mão pelo cabelo de Tess. ― Deixa isso. Não precisas de ser uma supermulher. ― Dr.a Ciccotelli? ― Um jovem com um colete de uma empresa de entregas expresso meteu a cabeça pela abertura da porta. ― Tenho uma coisa para si. ― Entrou com o capacete da bicicleta debaixo do braço É um envelope de cartão debaixo do outro. ― Tem de assinar o recibo. De sobrolho carregado, Tess assinou, mas Vito pegou no envelope antes dela.; ― Deixa-me ver o que é isto ― disse, e começou a apalpar o envelope. ― É um CD. Estavas à espera de alguma coisa? Ela olhou para o remetente. 264 ― Da Smith Enterprises? Não. Mas estão sempre a enviar-me capítulos de manuais em CD para eu fazer recensões. Achas que posso abrir? ― Eu abro. Chega-te para trás. ― Afastando-se para o canto onde ficava a recepção, abriu o envelope e tirou lá de dentro uma folha de papel e um CD. E empalideceu. ― Liga ao Reagan. Já. ― Que é isso? ― perguntou Tess, que se aproximou do irmão. Quando viu que ele o voltava, para ela não conseguir ler, pediu: ― Deixa-me ver isso, Vito. Agarrou na folha, sem saber bem do que estava à espera. Não era de certeza daquilo que viu. Imóvel, olhou para si mesma. A cores, completamente nua. Uma linha por baixo da imagem dizia: "Deposite 100 mil dólares na conta abaixo ou o vídeo que vem no CD será vendido à comunicação social e distribuído em grande escala. Tem até hoje à meia-noite." Num gesto mecânico, devolveu a folha a Vito, voltou-se e caminhou em direcção ao átrio, onde caiu de joelhos, e vomitou. Quarta-feira, 15 de Março, 11.15 Aidan saiu do elevador antes de as portas se terem aberto completamente e correu pelo corredor até ao sítio onde um polícia de uniforme guardava a porta dela. ― Onde está? ― pediu Aidan. O polícia de uniforme, chamado Nolan, apontou para a secretária da


recepcionista: ― Ali. Foi um tipo que faz entregas que o deixou. Pediu-lhe que assinasse e tudo. ― Obrigado por ter tomado nota da empresa de entregas ― disse Murphy. ― Conseguimos mandar um carro-patrulha e apanhámo-lo quando ele ia fazer a entrega seguinte. O rapaz estava à espera deles na esquadra. Nem Aidan nem Murphy estavam a contar obter mais dele do que tinham obtido da empresa. O pacote fora entregue com um pedido pago em dinheiro nessa mesma manhã. A descrição feita pelo empregado correspondia aproximadamente a Bacon, mas a verdade é que também se aplicaria a metade dos homens de meia-idade de Chicago. 265 ― O tipo que fez a entrega parecia um miúdo da faculdade ― disse Nolan. ― Duvido que tivesse alguma ideia do que estava a fazer. Se soubesse o que trazia no pacote tinha ficado com ele. ― Pouco à vontade, olhou por cima do ombro. ― Ela ajudou-nos em tudo o que se relacionou com os papéis. Não estava à espera que fosse tão prestável. Murphy olhou para dentro do escritório. ― Quem é que esteve aqui esta manhã? ― O irmão, a recepcionista e a amiga advogada. Ela ficou pálida e nervosa quando viu o CD e o irmão queria ligar para o número de emergência, mas ela não o deixou. A advogada telefonou para o amigo médico, que queria dar-lhe uma coisa para ela se acalmar, mas também não aceitou. Depois mandaram uma pessoa dos serviços de manutenção do edifício para limpar o tapete onde ela vomitou. Aidan fez um aceno breve de assentimento na direcção do polícia. ― Obrigado. Lá dentro, Vito estava junto da secretária da recepcionista. Tinha os braços cruzados sobre o peito e no seu rosto um músculo retesado mostrava a sua tensão. Olhava Tess, sentada no que restava de um sofá quase desfeito no seu próprio gabinete. Tinha o aspecto de uma pessoa em choque. Igualmente horrorizados, Amy Miller ejon Cárter estavam sentados um de cada lado da psiquiatra, enquanto uma mulher jovem estava na passagem, de porta aberta, para o gabinete de Ernst, claramente pouco à vontade. Devia ser Denise Masterson, pensou Aidan, lembrado de ter passado em revista o consultório de Tess e os seus empregados. ― Tem alguma ideia do que eu dava para o matar? ― murmurou Vito sem tirar os olhos de Tess. Aidan suspirou tranquilamente. ― Tenho, pois. Vito voltou-se num gesto brusco, furioso até ao seu limite.


― Você já sabia? ― Só soube esta manhã. Não sabia que ele tinha mandado uma cópia. Os olhos de Vito fecharam-se. ― Uma cópia. Sendo assim há mais. Murphy pigarreou para limpar a garganta. ― Falta muito para se ter a papelada toda metida em caixotes? Os olhos de Vito abriram-se muito e ele pestanejou, como se só então se tivesse apercebido de que Murphy se encontrava ali. 266 ― Apresento-lhe o meu parceiro, Todd Murphy ― disse Aidan com voz calma. ― Tínhamos começado há pouco. Peça ao seu tenente que mande alguém que acabe isto ― disse Vito, o maxilar protuberante em tom de desafio. ― Eu vou levá-la para casa. ― Ela não pode voltar para o apartamento dela ― disse Murphy, embora numa voz que não era de desafio. Vito rangeu os dentes. ― Não estou a falar do mausoléu em Michigan Avenue. Estou a falar de casa. Vamos para Filadélfia no próximo avião. ― Não. ― Tess levantou-se do sofá, devagar, aos poucos, como se quisesse testar a capacidade das pernas para a manterem de pé. Amy Miller e Jon Cárter, ambos, pararam por trás dela, prontos para a agarrarem se ela caísse. Tess afastou com delicadeza as mãos de Amy. ― Eu estou bem, Amy. ― Atravessou o gabinete e foi pôr-se ao lado de Vito, com Amy e Jon atrás. ― E não vou para sítio nenhum, Vito. ― Tinha o rosto pálido, mas os olhos estavam límpidos. Ergueu o queixo e o seu olhar cruzou-se com o de Aidan, o que fez o orgulho jorrar dentro dele. ― Isto não foi feito pelo mesmo tipo. Aidan sabia-o, mas estava interessado na razão por que ela também estava convencida disso. ― Porque dizes isso? ― Este ataque não foi preparado com a frieza dos outros. Este é de natureza mais... oportunista. É como se um dos cães de fila dele tivesse roído a coleira e fugido. ― Franziu o sobrolho. ― Os outros ataques foram feitos com a intenção de aterrar, de subjugar. Para explorar as fraquezas de pessoas doentes, vulneráveis, até elas cederem. Na pior das hipóteses, o que isto pode conseguir é que eu fique embaraçada. E mesmo isso só se eu deixar. Coisa que já decidi não fazer. ― Nós vamos apanhá-lo, Tess ― disse Aidan. ― Tenho a certeza que sim. Ele é a única ligação com um assassino de quatro pessoas. Eu sou uma simples peça no tabuleiro. Era nessas pessoas que vocês deviam concentrar-se. Eu estou bem, Aidan. Ao


princípio fiquei muito afectada, mas agora estou bem. Vai-te embora, faz o teu trabalho. ― A sua postura de desafio sofreu um abalo quando ele pegou no envelope que se encontrava sobre a secretária de Denise. ― Precisas mesmo de levar isso? ― São provas, Tess. Mas prometo-te que ninguém vai olhar para isto a não ser que precise mesmo de o fazer. ― Aidan olhou para Vito. ― Vai voltar para Filadélfia? 267 ― Já apanharam o filho-da-mãe que fez isto? ― Ainda furioso, Vito indicou com a mão o escritório desfeito à sua volta. Clayrborn continuava à solta. ― Ainda não. ― Nesse caso, fico. ― Então jante connosco hoje. Podemos conversar mais um pouco. Ligo-te mais tarde, Tess. ― Estava tão ocupado com os próprios pensamentos que já estava a entrar no carro do parceiro quando percebeu que este há muito não dizia uma só palavra. ― O quê? ― Nada ― respondeu Murphy, com os lábios comprimidos numa linha. ― O quê?! Murphy olhou para ele antes de se meter no trânsito. ― Trataste-a com intimidade. Aidan revirou os olhos. ― E daí? ― E ela fez-te o jantar. "Pois fez." As recordações dessa manhã voltaram e ele remexeu-se no assento. ― Vê mas é se prestas atenção ao que fazes. ― Deu uma espreitadela ao bloco de apontamentos. ― A casa da mãe de Bacon fica perto de Cicero. Já tinham estado ambos no endereço que Bacon tinha dado ao seu responsável de liberdade condicional, um homem sobrecarregado de trabalho que não tivera tempo de verificar que o endereço que Bacon lhe havia dado era, na realidade, o de uma loja de animais num pequeno centro comercial. ― E se não o encontrarmos a tempo? ― perguntou Murphy, desaparecido qualquer vestígio de leveza da sua voz. ― Basta uma única cópia daquele CD ser divulgada para ninguém poder garantir que ele não é divulgado num sítio qualquer. Agora ou daqui a dez anos. Ela vai ter de viver com isso. E tu, achas que consegues? Aidan não tinha a certeza, e isso incomodava-o. ― Eu vou só jantar com ela, Murphy. Murphy abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa, mas concluiu com um encolher de ombros. ― Está bem. 268


Quarta-feira, 15 de Março, 11.55 David Bacon era um homem inocente perseguido pela polícia. Tinha de ser. Foi o que disse a mãe dele por trás da porta. Era uma mulher amargurada de uns 70 anos, com cabelo pintado de preto a deixar ver as raízes brancas e os lábios finos de um vermelho-vivo de batom. Através da porta chegava a Aidan o cheiro a bolas de naftalina e a gatos. ― Nós não estamos aqui para o perseguir ― assegurou Murphy. ― Podemos entrar? ― Ele não está cá ― ripostou ela, muito rígida. ― E não vos autorizo a entrar. ― Nós viemos agora do endereço que ele deu ao agente de liberdade condicional, Mrs. Bacon ― disse Aidan com calma, enquanto os seus olhos iam observando tudo o que a porta envidraçada deixava ver da sala de estar. ― É uma loja de animais. Isso já é uma violação da liberdade condicional dele. Ela empalideceu, deixando duas manchas de um vermelho sintético visíveis no seu rosto. ― Vocês não podem mandá-lo outra vez para a prisão. Isso ia matá-lo. "Não, esse prazer de facto devia ser meu." E talvez de Vito Ciccotelli. ― Onde está ele, Mrs. Bacon? Está a viver consigo? ― Não, juro que não está. Ele foi-se embora. ― E de caminho magoara a mãe, percebeu Aidan. ― Disse-me que precisava de espaço. Mas eu não sei para onde foi. Por favor, vão-se embora. Aidan e Murphy trocaram um olhar e Murphy acedeu. ― Tenho muita pena, Mrs. Bacon, mas a senhora tem de vir connosco ― disse Murphy. A pobre mulher ficou de boca aberta. ― Vão prender-me? ― Não, minha senhora ― respondeu Murphy com uma voz enganadoramente amável. ― Só queríamos que viesse connosco para responder a umas perguntas, uma vez que o seu filho não está. E para ela não poder telefonar-lhe e avisar que a polícia andava à procura dele. Os seus lábios finos tremeram. 269 ― Mas eu não posso ir ― respondeu ela com voz trémula. Com um gesto inseguro apontou à sua volta: ― Quem vai dar de comer aos gatos? ― Não vai ser por muito tempo, minha senhora ― respondeu Aidan. ― Se quiser pode deixar-lhes alguma água e comida, mas temos de ir consigo enquanto estiver a preparar as coisas. Seguiram-na até à cozinha e depois à cave onde ela tinha as máquinas e onde se pôs a deitar comida para gato em quatro pequenos pratos.


O cheiro da divisão era horrível. O lixo transbordava de um caixote enorme. "Desconfio que vou desmaiar", pensou Aidan. Com a respiração suspensa, percorreu a divisão à sua volta com os olhos, até que se deteve no cesto da roupa lavada pousado sobre a máquina de secar. Havia vários pólos dobrados e passados a ferro. Pólos de homem. Bordado do lado esquerdo via-se o logotipo da wires-n-widgets, uma cadeia local com uma grande variedade de aparelhos electrónicos. Delicadamente, Aidan pigarreou para limpar a garganta. Murphy seguiu o olhar dele. ― Vá buscar um casaco, minha senhora ― disse Murphy. ― Lá fora está frio. Quarta-feira, 15 de Março, 12.15 ― Mais café? ― perguntou a empregada atrás do balcão. Era um pequeno restaurante caro, com uma decoração muito anos 40 que trazia à mente cenas de filmes clássicos a preto e branco. Ficava perto do Institute of Art e atraía uma clientela de homens de negócios e de professores universitários. Era um sítio onde as pessoas iam para conversar. Ninguém prestava atenção a uma pessoa sozinha a tomar café a meio de uma tarde fria. Normalmente, aquele sítio era adequado para reflectir em paz. Nesse dia era um sítio para ruminar uma fúria. ― Sim, por favor, mas só meia chávena. Uma coisa correra mal. Um fio solto tinha-se escapado e ameaçava todo o plano. Uma câmara no duche de Ciccotelli. Quem podia ter adivinhado uma coisa assim? "Eu! Eu devia ter adivinhado. Devia ter investigado. Devia tê-lo matado." No entanto, aquele tipo de assassinato obrigava a dispor de um corpo, o que por sua vez deixava mais pontas soltas. Recorrer a Bacon fora um risco calculado, e às vezes os riscos tinham consequências desagradáveis. 270 E agora andavam em circulação filmes com um conteúdo... sem controlo. "Quando se lembrará ele de fazer chantagem comigo?" Aquele fio teria de ser rematado. E sem demora. O café deixou-lhe um sabor amargo na boca, mas não tão amargo como saber que a Ciccotelli tinha mais uma vez aparado o golpe e caído de pé. Os polícias tinham formado um muro protector em volta dela. Ela tinha passado a noite com Reagan. Cabra. "Recordaste-me o que era ser desejada. E desejar." Até dava vontade de vomitar. Reagan estava interessado nela. Mais um fio que teria de ser cortado. "E eu sei como fazê-lo." Mas por ordem. Primeiro, tinha de resolver o problema de Bacon. Ia


ser bom limpar aquele estupor nojento. Mas o mais satisfatório seria a reacção de Ciccotelli à sua última perda. Ele tinha sofrido tanto, a suplicar pela sua Ethel. A suplicar por compaixão, por respostas. "Porquê?" Tinha sido patético, e os gritos dele só tinham servido para incitar ainda mais os Blades à violência. Os rapazes do gangue tinham-se portado bem. As feridas dele iam mostrar que fora agredido repetidamente, mas não se encontraria nenhuma pista. Alguns poderiam chamar "chantagem" ao arranjo que tinha com eles. "Prefiro chamar-lhe uma proposta de negócios mutuamente vantajosa." O dia começou a parecer-lhe menos sombrio. Tinha de acabar com aquela atitude. Pôr um ponto final nas lamúrias. Havia trabalho a fazer. ― A conta, por favor. "CAPÍTULO 14 Quarta-feira, 15 de Março, 15.10 Aidan olhou para o letreiro da loja com um suspiro. Era a terceira Wires-N-Widget que visitavam na zona de Chicagoland. A mais próxima a seguir ficava no Milwaukee, a uma hora de distância. Sentia-se desencorajado. A cada hora que passava, a probabilidade de algum vuyeur dar com imagens de Tess na Internet aumentava. Não lhe apetecia nada ter de lhe dizer que não conseguira, ver a preocupação nos olhos dela. Entraram na loja e dirigiram-se ao balcão principal, onde um tipo grandalhão arrumava peças em caixas. O nome no pólo dele era GUS. Murphy pôs uma fotografia de Bacon em cima do balcão e Aidan percebeu um sinal de reconhecimento em Gus. ― O Bacon já não trabalha aqui ― disse Gus e voltou-se para um monte de pequenas peças. Murphy inclinou-se por cima do balcão. ― Porquê? O homem pousou um monte de sacos de plástico pequenos em cima do balcão e começou a meter uma peça em cada um. ― Porque o patrão despediu-o. Aidan pôs a mão por cima dos sacos e Gus olhou para ele, aborrecido. ― Tenho de acabar de fazer isto antes de acabar o meu turno. Aidan aproximou-se até ficar a poucos centímetros do nariz do outro. ― Isto é uma investigação de homicídio. Tanto se me dá que consiga meter os seus zingarelhos em sacos como não, mas se não falar connosco já, garanto-lhe que não vai conseguir. Responda à pergunta, se faz favor. Porque é que o seu patrão despediu o David Bacon? 272


O homem olhava-o de olhos esbugalhados. ― Homicídio? O Bacon matou alguém? ― Não foi isso que nós dissemos ― respondeu Aidan. ― Ele pode é conhecer uma pessoa que matou. Gus suspirou e baixou o tom de voz. ― Nós só não queríamos publicidade em volta do assunto. Aidan e Murphy olharam um para o outro. ― Roubou alguma coisa? ― perguntou Murphy. Gus abanou negativamente a cabeça. ― Pior. Encontrámos câmaras na casa de banho das senhoras. Depois, o patrão foi ver a ficha de inscrição de Bacon e viu que ele tinha mentido. Disse que nunca tinha sido preso, mas na verdade tinha estado na prisão por... ― inclinou-se para a frente e acrescentou em voz ainda mais baixa: ― Espiar miúdas do liceu. ― Nós sabemos ― disse Murphy, muito conciso. ― Vocês não investigam os empregados antes de os contratarem? Gus corou. ― Isso sai muito caro ― murmurou, atrapalhado. A situação era clara. ― O seu patrão decidiu poupar uns tostões e agora está com medo de ficar malvisto ― resumiu Aidan. Gus olhou-o com antipatia. ― Mais ou menos. ― Então quando é que o Bacon foi despedido? ― perguntou Murphy. ― Há um mês, mais ou menos. ― A mãe ainda tem todas as camisas do uniforme dele ― disse Murphy, e Gus respondeu com um esgar. ― Pois que fique com elas. O tipo parecia que cheirava a mijo de gato. Nunca voltaríamos a usar essas camisas, mesmo depois de as mandarmos limpar. O meu patrão só queria que ele se fosse embora. Não queremos ser processados pelas clientes. ― Ele não deixou nenhum endereço para lhe mandarem o último ordenado? ― insistiu Aidan. ― Não, desculpem. ― Gus franziu o sobrolho quando o olharam, incrédulos. ― Não estou a mentir. O meu patrão disse-lhe que não lhe pagava o último ordenado, e que se ele voltasse a pôr aqui os pés chamava a polícia. Bacon ficou branco como a cal e desapareceu mais depressa do que se tivesse visto uma patrulha. Foi pena não terem assistido. 273 ― Estou a ver ― disse Aidan. ― Sabe onde ele vive? Gus concentrouse. ― Um dia disse-nos que estava farto de viver com a mãe e ia arranjar um apartamento só para ele. Passou a manhã a ler a secção de anúncios do jornal e a fazer telefonemas. Quando descobriu, o patrão


deduziu-lhe as chamadas no ordenado. Aidan sentiu um arrepio de excitação. ― Lembra-se quando é que isso aconteceu? Gus concentrou-se de novo e depois animou-se. ― Espere. ― Remexeu por baixo do balcão e apareceu com um programa de basquetebol universitário. ― Na segunda segunda-feira de Dezembro... ― disse ele enquanto procurava. Depois levantou os olhos: ― Nessa noite havia um jogo importante e um tipo apareceu aqui desesperado porque precisava de uma televisão nova, pois havia um jogo e a dele tinha-se avariado. Tive de ser eu a ajudá-lo porque o Bacon estava ao telefone. Isso serve de alguma coisa? O sorriso de Aidan revelava alívio. ― Tremendamente. ― Deu-lhe um cartão. ― Se se lembrar de mais alguma coisa sobre o Bacon telefone-me. Gus olhou para o cartão e depois de novo para Aidan. ― Agora lembro-me onde o vi. O senhor é o detective de ontem da televisão. Estava a sair da casa de Seward depois de ele se ter matado. ― Olhou-o com um novo interesse. ― Pode dar-me o seu autógrafo? Murphy ainda se ria uma hora mais tarde, quando estudavam em conjunto os números marcados na Wires-N-Widgets na segunda segunda-feira de Dezembro. Aidan não via onde estava a graça. ― A propósito, o que é um rectificador de corrente? ― perguntou Murphy. ― Aquelas coisas que o Gus estava a meter em sacos. ― Servem para manter a voltagem absolutamente constante. ― Aidan olhou para a lista de apartamentos. Estavam espalhados por toda a cidade. Seriam precisas várias horas para os verificar a todos. Olhou para Murphy, que o observava com ar interrogativo. ― Tirei uma disciplina de Electrónica, como... ― Parte do teu curso ― completou Murphy, a sorrir. ― Eu sei. Spinnelli aproximou-se e deixou-se ficar ao lado deles, a observá-los. ― Qual é a graça? Aidan revirou os olhos. 274 ― Nada. Temos uma pista para o sítio onde Bacon pode estar a viver ― explicou e mostrou a Spinnelli uma lista de vinte números de telefone para onde Bacon tinha telefonado à procura de apartamento. ― Já ligámos para uma dúzia e ninguém se lembra dele. ― O mais certo é estar a usar um nome diferente ― disse Murphy, já sério. ― Vamos ter de mostrar a fotografia dele, mas os sítios estão espalhados pela cidade toda. Vamos demorar um bom bocado. ― Vão cada um a metade ― ordenou Spinnelli, tenso. Aidan observou o rosto do tenente com atenção. ― Que aconteceu, Marc? Spinnelli abriu a boca para responder precisamente quando Abe e a


parceira, Mia Mitchell, entraram. Ambos tinham expressões sombrias que combinavam com a de Spinnelli. Lentamente, Aidan pôs-se de pé, com o coração a bater cada vez mais forte. ― Clayborn? Abe abanou negativamente a cabeça. ― Seguimos várias pistas durante a manhã, mas ele escondeu-se. Tivemos outra chamada e fomos obrigados a responder. O coração de Aidan voltou a disparar. ― Foi a Rachel? Mia baixou os olhos. ― Que aconteceu com Rachel? Abe abanou a cabeça com mais determinação. ― Nada. A Rachel está óptima. Aidan, conheces um tipo chamado Hughes?? Aidan pôs-se a pensar e por fim a sua memória produziu resultados. ― É o porteiro do edifício de apartamentos de Tess. Porquê? Mia abriu o fecho do casaco e ajeitou o lenço do pescoço. ― Porque ele está morto. Foi encontrado num beco perto do apartamento. Levou uma sova que o deixou feito numa papa. Aidan quase se deixou cair na beira da secretária. Fora uma coincidência, um acaso. Tinha de ser. No entanto, no fundo, sabia que não era. ― Roubaram-no? ― Não havia dinheiro na carteira. Só a carta de condução ― respondeu Abe. ― A pessoa que fez aquilo queria que ele fosse identificado, e pela cara era impossível. Foi agredido com brutalidade, Aidan, realmente com brutalidade. ― Respirou fundo. ― Tinha duas coisas 275 presas à roupa. Uma delas era uma folha impressa numa impressora. Dizia: "Serás julgado pelas tuas companhias." ― A segunda era um artigo de jornal acerca de Tess ― acrescentou Mia, rapidamente. Aidan esfregou os lábios com as costas da mão, pensativo. As implicações de tudo aquilo eram tremendas. ― Ele era amigo da Tess. Isto vai deixá-la desfeita. Houve um momento de silêncio, interrompido por um suspiro de Spinnelli. ― Tinhas razão, Aidan. Ele ainda não acabou. Mas pelo menos, finalmente, temos um motivo. Não é para conseguir apelos nem é uma encenação de suicídios com a finalidade de obter dinheiro. ― É para destruir a Tess ― concluiu Aidan num tom de voz calmo. ― Seja como for.


Spinnelli tinha cara de poucos amigos. ― E a nossa única pista é um polícia que não quer falar com os assuntos internos e Bacon. Abe abriu muito os olhos e trocou um olhar com Mia. ― Um polícia? ― A que horas morreu o porteiro? ― perguntou Spinnelli. ― Há dez horas ― respondeu Mia. ― Mais meia hora menos meia hora. Que polícia, Marc? Porquê? ― Um polícia que passou o dia com os assuntos internos e que por isso não pode ter morto Hughes ― respondeu Spinnelli sem responder realmente. ― De maneira que estamos reduzidos a Bacon. ― Bateu com os nós dos dedos na lista de apartamentos. ― Vão procurá-lo. ― Nós os dois temos de ir falar com a mulher de Hughes ― disse Abe, ― Ela ainda não foi avisada. ― E eu tenho de dizer à Tess ― disse Aidan. ― Não quero que ela saiba pelos noticiários. ― E também temos de continuar a procurar Clayborn ― acrescentou Mia. ― Por onde começamos, Marc? Spinnelli reflectiu. ― Mia, tu vais avisar a viúva. Abe, tu vais a alguns apartamentos e depois dois de vocês voltam para continuar a procurar Clayborn. Os filhos de Ernst já ligaram várias vezes para saber quando é que o assassino do pai vai ser preso. ― Esfregou as têmporas com ambas as mãos. ― Ao que parece, Harrison tinha amigos muito bem colocados porque também tenho recebido chamadas de cima. Murphy, tu pegas em metade 276 da lista e o Aidan na outra metade. Primeiro vai contar à Tess e depois começa a procurar. ― Com um esgar que era uma imitação de sorriso sem o menor humor, acrescentou: ― O último a chegar é um ovo podre. Quarta-feira, 15 de Março, 17.10 David Bacon abriu com um esgar o cadeado com que fechava a porta do apartamento onde vivia. A casa havia de cheirar a fumo de cigarro para todo o sempre, desconfiava, deslizando para fora do casaco. Era da carpete. As fibras sintéticas absorviam os cheiros como esponjas. Mesmo assim, era melhor do que viver com a mãe. Os cigarros sempre eram melhores que a naftalina e o mijo de gato. Além disso, não teria de se preocupar muito tempo com a carpete. Mesmo sem o dinheiro de Lynne Pope. O primeiro pagamento da chantagem da Ciccotelli ialhe chegar para um apartamento numa zona melhor da cidade. Os pagamentos seguintes iam assegurar-lhe uma boa vida durante muito tempo. A sua ideia era estafar o cavalo até ele morrer de cansaço. Já tinha dado dois passos dentro do apartamento quando parou de


repente. Alguma coisa estava diferente. Atirou com o casaco e correu para o computador, com o coração a bater-lhe nos ouvidos. Tudo. Alguém tinha atirado o monitor para o chão e partido o resto. ― Meu Deus! ― sussurrou. ― Oh, não! Tinha sido roubado. O portátil tinha sido arrancado da base e o teclado arrancado. O disco rígido tinha desaparecido. Desaparecido! Fez um esforço para respirar, para pensar. Era mau, mas não era o fim do mundo. Nunca deixava nada no disco, sobretudo depois de os polícias o terem apanhado da última vez por causa dos ficheiros que lá tinham encontrado. Tudo o que tinha algum valor estava em CD. O coração parou por instantes. "Meu Deus, os CD! Se alguém me tiver roubado os CD..." Correu para a casa de banho, mas de repente parou. O esconderijo continuava em segurança. Respirou fundo e suspirou de alívio. De repente percebeu que o cheiro a fumo de cigarros era mais forte. Devagar, voltou-se para tentar descobrir porquê. A razão era o cigarro continuar aceso numa mão enluvada que já não via há muito tempo. Bacon franziu o sobrolho, momentaneamente inseguro. 277 ― Que está a fazer aqui? ― Vim falar contigo, David. Bacon ficou a olhar para o cano de uma pistola fina de calibre.22. Com um silenciador. ― Não estou a perceber. ― Tu enganaste-me. Eu contratei-te para fazer um serviço, para montar câmaras em circuito no apartamento da Ciccotelli e tu instalaste uma por conta própria. Achavas que eu não ia descobrir? Ele abanou a cabeça em negação veemente. O pânico enviava-lhe o sangue em catadupas para o cérebro. ― Você não me contratou! ― Claro que contratei. Só que não o fiz pessoalmente. Dá-me os filmes. ― Não ― respondeu ele. Quando a dor o atingiu no braço direito, abriu a boca para respirar mais fundo. Agarrou no braço direito com a mão esquerda e ficou a olhar para a arma. Deixou de sentir a mão direita e a esquerda estava quente e molhada de sangue. Incrédulo, levantou os olhos: ― Você deu-me um tiro! O sorriso divertido lançou um arrepio de pânico pelas suas costas. ― Estás a pensar chamar a polícia, David? Não sei porquê, desconfio que não... Se eles viessem aqui, que iam encontrar? Vídeos com gravações clandestinas. Parece impossível... A maior parte são novos, mas muitos tinham ficado com a tua mamã enquanto estiveste na prisão. Vai já buscá-los. Neste preciso momento.


― Como sabia? ― perguntou Bacon, a tentar desesperadamente encontrar uma saída para tudo aquilo. ― Eu sabia que quando visses que o disco rígido desaparecera ias a correr para o sítio onde tinhas os teus tesouros escondidos. Sherlock Holmes usou um expediente semelhante em Um Escândalo na Boémia. Devias ler mais os clássicos, David, em vez de perderes tempo a ver filmes de mulheres nuas. Bacon arrancou um pedaço do papel de parede e estremeceu quando ouviu o riso seco atrás dele. ― Tu és esperto, David. Sempre foste. Infelizmente, não és esperto que chegue. Acabou-se. Com gestos desajeitados, arrancou o papel deixando tudo à vista. Tudo. ― Mas que é isto?! Além do mais és trabalhador... Isto devem ser... Quantos? 278 ― Quinhentos ― disse ele, pesadamente. Estava tudo acabado. ― Quinhentos CD. Deves ter levado vários anos a juntar isto tudo, David... Quarta-feira, 15 de Março, 17.15 Aidan marcou encontro com Tess em casa dele, para lhe poder dar as notícias num sítio onde ela pudesse chorar a sua dor sem ser observada. Ela esperou por ele no lugar do passageiro de um carro que ele não conhecia, até que percebeu que era um carro alugado e Vito estava ao volante. Tess saiu do carro e caminhou em direcção à garagem, o rosto inexpressivo de ansiedade. Vito foi atrás dela, com as mãos carregadas de sacos de compras. Ela sentou-se à porta da cozinha e Vito pousou os sacos no chão. Alerta, Dolly avaliava Vito, de pêlos eriçados e a rosnar. ― Quieta, Dolly ― disse Aidan com calma, e a cadela obedeceu. Não havia maneira de atenuar a notícia que tinha para lhe dar, de maneira que se limitou a dizer o que tinha a dizer. ― Tess, Mr. Hughes morreu. Tess ficou sem pinga de sangue. ― O quê?! Aidan ajoelhou-se à frente dela e pegou-lhe nas mãos. ― Desculpa, querida. ― Teve algum acidente? ― perguntou, mas a sua voz era trémula e ele percebeu que ela tinha adivinhado. ― Não ― respondeu ele, com a voz mais suave que encontrou. ― Foi espancado até à morte, Tess. ― Nessa altura olhou para Vito e pelo horror no rosto dele viu que tinha percebido. ― Mas há pior. Mais cedo ou mais tarde vais saber, por isso é... ― Diz-me de uma vez, por favor! ― quase gritou ela. ― Diz-me. ― Havia uma mensagem com o corpo. "Serás julgado pelas tuas


companhias." ― Expulsou todo o ar dos pulmões antes de continuar. ― E um artigo de jornal sobre ti. As mãos dela ergueram-se até cobrirem a boca. Tinha os olhos secos, muito abertos, cheios de horror contido. ― Meu Deus! ― exclamou quase em surdina. ― Meu Deus! Ele abraçou-a no sítio onde ela estava, sem se mover. Tess não tentou impedi-lo, mas também não o aceitou. Parecia uma estátua de mármore, imóvel. 279 ― Tess? ― Aidan passou uma mão por baixo do cabelo, de modo a acariciar-lhe o rosto. ― Ouve o que eu tenho para te dizer. ― Aumentou a pressão dos dedos na nuca dela até ela o olhar, com os olhos vidrados de horror. ― Ouve ― repetiu ele. ― Não foste tu que fizeste isto. Não foi por tua causa que isto aconteceu. Tess limitou-se a olhar para ele, sem dizer nada. Frustrado e desamparado, Aidan olhou para Vito. ― Eu não posso ficar. Só não queria que ela recebesse a notícia num sítio público por outra pessoa qualquer. ― Obrigado ― disse Vito com voz incerta. ― Apanharam o Clayborn? ― Ainda não. Mas temos uma pista sobre o CD. Agora tenho de ir ― repetiu. No entanto, não foi capaz de se levantar e de sair. ― Tess ― murmurou. ― Vamos, Tess, reage. Ela pestanejou. ― A Ethel já sabe? ― Uma das detectives ia lá agora falar com ela. A Mia Mitchell. Tess sabia de quem se tratava. ― Eu conheço a Mia. Ela... ― engoliu em seco. ― Tenho a certeza que vai ser delicada. Aidan pôs-se de pé e obrigou Tess a fazer o mesmo. Ela inclinou-se para ele. Não era um abraço, mas um gesto de desamparo. Quando o detective a envolveu nos seus braços ela deixou os dela ficarem caídos ao longo do corpo. Aidan beijou-a no rosto, um pouco acima da gola da camisola de lã que ela trazia. ― Agora tenho mesmo de ir. Tess fez um gesto desajeitado de assentimento e recuou um passo. ― Para onde hei-de ir? Para minha casa? ― Não, ainda não. Podes ficar aqui, se quiseres. ― Aidan olhou de relance para Vito. ― Eu posso pôr a Dolly no quintal. Ela avisa se alguém se aproximar. O problema é que se sair ela não o deixa voltar a entrar. ― Estou a perceber ― disse Vito, ainda abalado. Aidan dirigiu-se à porta e depois voltou-se para um último olhar. Tess estava sentada com os olhos fechados e a mão no pescoço de Dolly. Pareceu-lhe frágil. Depois abriu os olhos e ele percebeu que isso não era verdade. Havia


nela uma enorme decisão à mistura com uma dor terrível. 280 ― Vai andando ― disse ela, rígida, as lágrimas a transparecerem-lhe na voz. ― Descobre-o. ― A voz dela vacilou e as lágrimas começaram a correr-lhe dos olhos e a descer-lhe pelo rosto. ― Por favor. Quarta-feira, 15 de Março, 18.45 Já estava. Joanna Carmichael releu o artigo uma última vez antes de o imprimir. Queria falar com a Ciccotelli, mas de momento teria de se contentar com uma das moscas que tinha apanhado com o papel peganhento. Talvez a maior amiga dela começasse a pressioná-la para ela dar o tal exclusivo. Fosse como fosse, tinha ali um bom material e o artigo já fora aprovado pelo editor do suplemento de fim-de-semana. A porta abriu-se atrás dela e ela voltou-se. Keith entrou, com ar cansado e desgastado. Detestava o trabalho no banco. E ela sabia. Tinha recusado a oferta de um emprego fabuloso em Atlanta para vir consigo para Chicago, onde ela poderia fazer carreira por si mesma, longe da sombra do seu famoso pai e do seu jornal. Mas nesse dia a culpa de o sorriso dele não passar dos lábios para os olhos não era do emprego. Era dela. Ele continuava magoado pela conversa de segunda-feira de manhã. ― Desculpa, Keith. Tu é que tinhas razão. Ele aproximou-se e beijou-a na testa. ― Eu sei, querida. Não tem importância. Mas tinha. Ela pressentiu a tensão na voz dele. Começou a imprimir o artigo. ― Queres sair para jantar? ― Estou cansado, Jo. Vamos antes pedir uma piza. ― Enquanto tirava a gravata leu por alto o título da primeira página que ia saindo da impressora. ― Este artigo não é sobre a Dr.a Ciccotelli, Jo. Que é isto? Ela seleccionou o endereço de e-mail do editor e escolheu o ficheiro que queria enviar. ― Chamemos-lhe exercer uma pressão subtil. A expressão da boca dele tornou-se mais dura. ― Chamemos-lhe extorsão. Não podes fazer uma coisa dessas, Jo. Ela carregou no botão do enviar. ―Já fiz. Keith recuou. Os seus olhos tinham-se tornado inexpressivos. 281 ― Não tenho a certeza de saber quem diabo tu pensas que és, mas quando decidires voltar ao normal, chama-me ― disse ele, e voltou-se para a porta. ― Onde é que vais? ― Vou dar um passeio antes que diga alguma coisa de que me arrependa. Quarta-feira, 15 de Março, 19.25 ― Merda ― resmungou Murphy. ― Chegámos outra vez tarde de mais.


Aidan estava parado à porta da casa de banho de Bacon, com os braços cruzados sobre o peito a olhar para o corpo caído na banheira, com um sentimento de que a má sorte o perseguia realmente. Fora ele a dar com o apartamento certo. Tinha sido o quinto na sua lista. Era um apartamento numa cave remodelada de uma velha casa pertencente a um casal de reformados que não faziam ideia de que tinham em casa um homem condenado por crimes sexuais. O marido reconhecera imediatamente a fotografia de Bacon, a quem chamara Mr. Ford. Aidan pedira um mandado e ficara à porta à espera de reforços, progressivamente impaciente a cada minuto que passava. Murphy tinha chegado ao mesmo tempo que o mandado, de maneira que tinham entrado juntos. O computador de Bacon tinha sido destruído, o monitor tinha sido esmagado e o disco rígido fora desfeito numa tina com ácido sulfúrico, pelo menos a julgar pela etiqueta no frasco que havia sido abandonado ao lado. Bacon flutuava numa banheira cheia de água manchada pelo vermelho do sangue. Tinha cortado os pulsos, o filho-da-mãe. Ao lado da retrete amontoavam-se algumas peças de roupa. Aidan pegou no casaco e na camisa. As cuecas estavam ensopadas de água que tinha escorrido da banheira para o chão. Cheirou a roupa, e franziu o sobrolho. ― Cheira isto, Murphy. Murphy encolheu os ombros. ― O único cheiro que reconheço é o do tabaco. ― O casaco cheira a fumo, mas a camisa não. Murphy voltou a fazer um gesto de desinteresse. ― Desculpa, não tenho bom olfacto. ― Olhou à volta com estranheza. ― Porquê hoje? Porque se lembrou ele de cortar os pulsos logo hoje? 282 ― Estava a pensar o mesmo. Ele achava que a Tess ia pagar o dinheiro da chantagem, por isso é estranho que se tenha lembrado de se matar. ― Desculpem, detectives. ― O fotógrafo da polícia científica tinha chegado e Aidan teve de se afastar para o deixar passar. ― Vou fazer isto o mais depressa possível. Jack e Rick vinham logo atrás do fotógrafo e Rick já estava a olhar à volta e a abanar a cabeça. ― Temos de encontrar o sítio onde esconde os filmes ― disse Rick. ― Estes tipos coleccionam sempre filmes e têm sempre esconderijos especiais. Aidan foi ter com eles à sala. ― Ainda se consegue tirar alguma coisa desse disco? Rick olhou com ar céptico para o disco mergulhado em ácido. ― Não me parece. O tipo deve ter tido lá alguma coisa importante. Se não me engano, foi assim que o apanhámos da primeira vez. Tinha


tudo guardado no disco, todos os filmes das raparigas. Sem isso, não tínhamos conseguido a condenação. Murphy olhou para o tecto. ― Vamos ver se encontramos câmaras. ― Não me parece que ele tivesse câmaras aqui ― disse Jack. ― Mas podemos ter sorte e encontrar alguma que possamos usar para a troca. Seria irónico. ― E pouco provável ― acrescentou Rick. ― Bacon gosta de ver. Ou gostava. Ser visto ia fazê-lo sentir que não dominava as coisas. Mas eu vou verificar para termos a certeza. ― Por agora, vamos procurar o esconderijo dele ― decidiu Jack. ― Estamos a falar de quantos filmes, Rick? ― Alguns destes tipos chegam a ter centenas, e o Bacon já andava nisto há uns anos. "Centenas", pensou Aidan sombriamente. "Mas eu só preciso de encontrar um." Depois sentiu-se culpado. Cada filme representava uma vítima como Tess. ― Eu procuro neste quarto. Cada um escolheu uma divisão para procurar, enquanto o técnico do gabinete médico-legal, que acabava de chegar, pescava Bacon da banheira. Aidan já tinha procurado em todas as gavetas e também no colchão quando por fim abriu o armário. Ficou a olhar, boquiaberto. Depois gritou: 283 ― Murphy! ― O que é que... Caramba! ― exclamou Murphy quando Aidan tirou um casaco de cabedal do armário, com a cruzeta. ― O casaco da Nicole Rivera. E a peruca também. Aidan voltou a pendurar o casaco no armário. ― Porque diabo tem o Bacon o casaco e a peruca? ― E a arma. Voltaram-se e viram Jack com uma pistola semiautomática. ― É do mesmo calibre que a bala que matou a Nicole Rivera ― disse Aidan num tom neutro. Jack concordou. ― Estava escondida com outras coisas que vocês também têm de ver. As outras coisas eram fotografias, cópias de fotografias tiradas pela polícia de Cynthia Adams e do filho de Avery Winslow. Também havia listas dos doentes de Tess Ciccotelli e das actividades diárias dela: exercício, compras, pequeno-almoço de domingo com os amigos. Como preferia as escadas aos elevadores. ― Recibos ― murmurou Aidan. ― Os recibos da boneca e do urso. ― E um cartão de memória para uma máquina fotográfica digital. ― Rick pousou estes objectos na mesa da cozinha, ao lado das


fotografias e dos recibos. ― Vamos levar isto para o laboratório para ver se há aqui alguma coisa. E ainda encontrei estas ― disse Rick, que tirou duas fotografias do fundo do monte. Murphy suspirou. ― Blaine Connell. Era uma fotografia tirada à noite, mas viam-se perfeitamente dois homens. A segunda fotografia, um grande plano, mostrava a mão de Connell sobre um monte de notas com a imagem de Benjamin Franklin. ― Conheces o outro tipo? ― perguntou Aidan, e Murphy hesitou, de sobrolho franzido. Depois abriu muito os olhos e assentiu. ― Não me lembro do nome dele, mas já o vi. Aparecia no vídeo de segurança do edifício onde vivia o Seward. Estava vestido com um uniforme de segurança. Bacon deve tê-lo contratado. ― Murphy encheu o peito de ar. Parecia perplexo. ― Foi o Bacon que orquestrou isto? Tudo isto? Aidan olhou para as fotografias, para a arma. Para tudo aquilo. 284 ― Isto não está a bater certo. ― Tudo aquilo lhe parecia uma espécie de anticlímax. ― Porque teria ele feito uma coisa assim? Qual seria o motivo dele? Jack mostrou-lhes uma folha de papel. ― É a avaliação psiquiátrica de Bacon. Murphy estudou o papel de sobrolho franzido. ― Foi a Tess que fez a avaliação dele em tribunal. ― Mais uma coisa. ― Jack levantou o papel de maneira que todos pudessem vê-lo. ― É uma nota de suicídio. Diz que foi ele que fez tudo. Quarta-feira, 15 de Março, 20.15 Ao lado dela, Dolly rosnava, sentada, as orelhas arrebitadas. Tess ouviu a porta da garagem a abrir-se. Aidan tinha chegado a casa. Devia trazer notícias do homem que a tinha filmado. E que àquela hora talvez já tivesse vendido as fotografias dela a vários sites pornográficos da Internet. Era possível que a imagem dela se encontrasse em vários onde todos a pudessem ver, e não podia fazer nada para o evitar. Mas, apesar de ter o estômago a andar às voltas, esforçou-se por pensar noutra coisa. Sentia-se envergonhada por estar preocupada com aquele assunto quando a vida de Ethel Hughes tinha sido arruinada. Mr. Hughes. "Espancado até à morte." Recordou a voz de Aidan, tão delicado. "Não foi por tua causa que isto aconteceu." Pois não... "Serás julgado pelas tuas companhias." Mr. Hughes tinha morrido por ser amigo dela. Quem seria o próximo? Amy? Jon? Tinha de lhes ligar, de


lhes dizer que tivessem cuidado. Que não saíssem sozinhos. Não tinha conseguido ligar a Ethel, para lhe dizer como se sentia desolada. Teria de o fazer, mas por enquanto não conseguia. "És uma cobarde, Chick." Esta verdade queimava-lhe a garganta. Os amigos dela corriam perigo, mas ela estava escondida. Não tinha feito nada. Aidan entrou em casa e ficou surpreendido quando Dolly lhe saltou para cima e ficou a lamber-lhe o rosto com as patas sobre o peito dele. Afectuosamente, coçou as orelhas da cadela. Os seus olhos cruzaramse com os de Tess por cima da cabeça da cadela. ― Onde está o teu irmão? Tess pôs o dedo sobre os lábios, a dizer-lhe que não fizesse barulho. 285 ― Está a dormir no teu sofá. Antes de vir fez dois turnos seguidos e depois não dormiu nada durante a noite por estar preocupado. Aidan esticou-se para espreitar pela porta o sítio onde Vito estava estendido no sofá, a ressonar suavemente, com os pés de fora, pendurados. A Bella estava enroscada nele. ― Cheira bem. Aidan desabotoou o casaco e aproximou-se da mesa. Inclinou-se para ver melhor e cheirou a comida com ar apreciador. ― São cannolí? Tess abriu a boca para responder. Havia no tom em que ele falou uma reverência que alegrou um pouco o coração dela e a aliviou. ― São. E ravioli. Tudo fresco e caseiro. Aidan provou os cannoli de olhos fechados. ― Meu Deus, tão bom. Estou esfomeado. Onde arranjaste os ingredientes para fazer tudo isto? ― A loja do bairro entrega em casa. ― Quando ele a olhou com ar aborrecido ela fez um gesto com a mão de que não dissesse disparates. ― Foi o Vito que abriu a porta. Eu não sou estúpida, Aidan. ― Eu não disse que eras. Como estás, Tess? Tess respondeu com um encolher de ombros e começou a abrir uma garrafa de vinho tinto que tinha comprado essa tarde. O gesto pareceu-lhe catártico. ― Queres? Faz bem ao coração... ― É por isso que bebes? ― perguntou ele. ― Na verdade é. O meu pai tem problemas de coração, de maneira que eu corro três vezes por semana, tomo uma aspirina todas as manhãs e um copo de vinho tinto todas as noites. ― "Para não acabar como ele, em muitos sentidos", pensou. ― Queres ou não, Aidan? ―- Um bocadinho. Também foi a loja que entregou o vinho? ― Esta? Não. Esta veio de uma garrafeira que fica perto do meu consultório. Passei por lá hoje depois de acabar de arrumar o arquivo e


de praguejar com a Joanna Carmichael. Aidan olhou para ela surpreendido. ― A Carmichael passou pelo teu consultório hoje? Porquê? ― Continua a querer um exclusivo. ― Já passei várias vezes pelo apartamento dela e nunca a encontrei. ― Porque ela tem andado a seguir-me. ― Tess recordou a jovem de trança e ar inocente e o brilho predatório nos seus olhos. ― Ameaçou fazer um artigo a expor publicamente os meus amigos, de maneira que agora tenho de os prevenir em duas frentes. ― A exposição pública 286 e o perigo. "Por serem meus amigos", pensou Tess. Desde manhã que o assunto a roía por dentro. Aidan franziu o sobrolho. ― Que têm os teus amigos a esconder, Tess? Ela encolheu os ombros, irritada com a pergunta. Irritada por os amigos serem vulneráveis. ― Toda a gente tem coisas que preferia esconder, Aidan. Até tu, imagino. Ele olhou-a atento, perscrutador. ― Assim, foste às compras? Um reccord pouco subtil, mas Tess decidiu não chamar a atenção para o assunto. ― Fui. Comprei sapatos e uma prenda para a tua mãe, e também algum vinho. ― Voltou a aplicar-se a abrir a rolha, mas a irritação tornava-a pouco hábil. ― A dona da garrafeira era casada com o administrador de uma empresa importante, até que um dia... ― Por fim conseguiu tirar a rolha da garrafa, com um pop sonoro. ― Um dia o marido disse-lhe "Marge, está tudo acabado", e trocou-a por uma flausina toda elegante acabada de sair da faculdade. ― As palavras saíram-lhe tão amargas que ela ficou furiosa consigo mesma. ― Ele enganava-a ― resumiu Aidan num tom neutro. ― Enfim, devo ser um bocado transparente nesta matéria. Seja como for, a Marge pôs tudo o que tinha na nova loja. ― Tess cheirou o aroma que se desprendia da rolha. Era bom. ― Agora só compro na garrafeira dela. Acho que ela merece. Ele estudava-a com atenção. ― Como te sentes, Tess? As mãos dela tremiam, o que a fez entornar um pouco de vinho. ― Estou assustada. Passei o dia a tentar adivinhar quem será o próximo. Sinto-me uma cobarde, aqui escondida. ― Senta-te. Ela fez isso. Quando ele lhe pôs a mão sobre o ombro e se aproximou, suspirou. Aidan representava a força e o calor, num momento em que ela não tinha o suficiente de nenhuma das duas coisas. Encostou-se a


ele, confiante. ― Tu não és cobarde ― disse-lhe ele ao ouvido. ― Não penses uma coisa dessas. ― Os meus amigos estão em perigo porque... ― engoliu em seco e forçou as palavras num murmúrio áspero. ― Por causa das companhias. 287 E eu não posso pôr fim a isto porque nem sequer sei o que fiz para desencadear tudo isto. Ele beijou-a na cabeça, depressa e com força. ― Não fizeste nada. Tess, alguma vez ouviste falar de David Bacon? Ela levantou a cabeça, forçando o cérebro a funcionar. ― Acho que sim. Parece-me que era um dos que foram avaliados pela Eleanor, mais ou menos na altura em que ela morreu. Já foi quase há quatro anos. ― Há três anos e oito meses. ― Sim, parece-me mais ou menos isso. ― Inclinou a cabeça, estudando-o. Os olhos dele tinham-se tornado inexpressivos. ― Porquê? ― A Eleanor era a tua antiga parceira, não era? ― perguntou ele. ― Sim. Foi ela que me protegeu e ajudou quando eu ainda estava a fazer a especialidade. Ensinou-me o ofício e passou-me o consultório. Sempre pensámos que ainda lhe restava muito tempo de carreira, só que um dia teve um AVC, sem nenhum aviso prévio. Depois da sua morte fui eu que apresentei as avaliações dela em tribunal. E lembrome do David Bacon. A Eleanor já tinha feito a maior parte do trabalho, de maneira que eu só tive de falar com ele uma vez e depois assinei o relatório dela. Não tive sequer de ir a tribunal. ― Tess estremeceu. ― Ele era um bocado sinistro. ― Pareces lembrar-te bem dele. Foi o primeiro caso relacionado com o tribunal que tu tiveste? ― Não, quando trabalhei com ele já tinha tido outros, mas ele foi o primeiro em que tive de trabalhar com dois organismos policiais. O FBI esteve envolvido nesse caso porque... Meu Deus! Claro! Ele tinha posto câmaras num balneário de raparigas. Foi considerado pornografia infantil porque elas ainda não tinham dezoito anos e o FBI fez a acusação. Foi ele que pôs a câmara no meu chuveiro? ― Tudo indica que sim. Tess perguntou a medo: ― Conseguiste apanhá-lo? Ele fez um gesto afirmativo e ela sentiu-se invadida por um imenso alívio. O limite temporal que estabelecera na sua mente, o da meianoite desse dia, deixou de fazer sentido. Bacon já não poderia vender essas imagens à comunicação social, nem a quem quer que fosse. Mas havia qualquer coisa errada.


― Ele está morto, não está? ― Completamente. 288 ― Foste tu que o mataste? ― Não. ― Pensei que me estavas a dar uma boa notícia. Eu devia sentir-me aliviada, não devia? Então porque não sinto? Os olhos azuis dele mostravam a sua perturbação. ― Porque há qualquer coisa que não bate certa. Encontrámos todas as provas de que foi ele que preparou as coisas com Cynthia Adams, Winslow e Seward. Encontrámos uma arma do mesmo calibre da que matou a actriz que imitava vozes. Encontrámos a avaliação assinada por ti. Até encontrámos uma prova de que um dos polícias da minha esquadra está envolvido. ― Então foi assim que ele arranjou as fotografias feitas pela polícia ― disse ela. ― Esse pormenor sempre me surpreendeu. Onde encontraste tudo isso? ― Tudo convenientemente escondido atrás de uma viga do tecto. ― Muito conveniente, de facto ― concordou Tess. ― Mas não estás convencido de que tenha sido ele. ― Não, não estou. ― Eu só o vi uma vez, Aidan, mas do que recordo, ele não me pareceu tão implacável e... organizado. Aidan suspirou. ― Sim, eu pensei o mesmo. Amanhã vamos ter de estudar o caso de Mr. Bacon com mais atenção. Agora tenho de ir. ― Vais voltar para o trabalho? ― Não, vou a casa dos meus pais. Tenho de falar com a Rachel. ― Ela está bem? ― O meu pai diz que sim, mas eu quero falar com ela. ― Encolheu os ombros. ― Preciso de a ver com os meus olhos. Tess recordou a maneira como o irmão a abraçara nessa manhã, como o seu amor fora palpável, tangível. ― Tenho uma prenda de agradecimento para a tua mãe. Importas-te de lha levar? ― Vem comigo e dá-lha tu pessoalmente. Deixa uma nota ao Vito. Quarta-feira, 15 de Março, 21.00 Em comparação com outros detectives particulares alcoólicos, Destin Lawe não era dos piores. Tinha sido um bom profissional e depois reformara-se, antes da idade. 289 Entrou no carro com ar impressionado. ― Rodas novas? ― Mais ou menos. ― Era uma pena. Apesar do seu nome, Lawe, tão


parecido com "lei", não tinha a menor dificuldade em contornar ou desrespeitar a mesma em caso de necessidade. Sempre fora um intermediário perfeito; um homem amoral com dívidas de jogo e grandes contas em bares, além de uma habilidade invulgar para apanhar cidadãos respeitadores em momentos de fraqueza. Não seria fácil substituí-lo. ― Para quê o impermeável? ― perguntou Lawe, com um olhar de relance à feia gabardina, demasiado cara para ser usada só uma vez. ― O homem do tempo disse que nos próximos dias vai fazer frio, mas não vai chover. ― Parece-me que vai arrefecer muito. Encontrou-a? ― Claro que sim, embora não perceba por que razão quer uma miúda da faculdade. Está aqui o nome dela, o endereço e o horário das aulas. ― Tirou um papel do bolso e entregou-o ao mesmo tempo que examinava o rádio do Mercedes, um modelo caro, que tinha sido muito fácil de roubar. "Ao fim destes anos todos ainda sei fazer as coisas." O facto de ser um modelo mais recente que o da Ciccotelli tornava as coisas ainda mais agradáveis. A estudante vivia numa residência perto da sapataria onde a Ciccotelli tinha estado nesse dia. Pobre miúda. Estava no sítio errado à hora errada para ela. Lawe também tinha devolvido a fotografia dela. Óptimo. Joanna Carmichael andara atrás da Ciccotelli por toda a cidade a tirar fotografias, o que eliminava a necessidade de muito trabalho de sapa. ― Não tem gosto nenhum em sapatos. Os olhos de Lawe ficaram imóveis, em pânico. A sua boca abriu-se para uma resposta que não deu. Mesmo à luz fraca dos candeeiros de rua era óbvio que não ficara pinga de sangue no seu rosto. O cano de uma arma com silenciador costumava ter esse efeito nas pessoas. ― Porquê? ― conseguiu perguntar, a voz distorcida pelo medo. Achou que os seus movimentos eram imperceptíveis, mas o gesto da sua mão em direcção à arma foi tão óbvio como a sua palidez. Uma bala acertou-lhe no pulso e deixou-o aos gritos agarrado ao próprio braço. Voltou-se rapidamente, a tentar encontrar o puxador, para descobrir que ele desaparecera. Assustado, encolheu-se contra a porta, a respiração ofegante. 290 ― É para o teu próprio bem, acredita. O Blaine Connell vai falar. Respondeu entre gemidos. ― Ele não faria uma coisa dessas. Os polícias não descobriram nada sobre ele. Garanto. ― Agora já descobriram. Abriu muito os olhos. Tinha percebido.


― Porquê? ― Porque és tu ou eu. ― Os seis tiros seguintes acertaram-lhe no coração e o oitavo e o nono nas costas, já ele tinha caído para a frente. ― Numa situação destas não havia nada a fazer, Mr. Lawe. Nesses casos sempre escolhi o meu lado. A gabardina podia enrolar-se numa pequena bola, como dizia a publicidade. Provavelmente, essa característica procurava agradar aos campistas, que, por razões que só Deus conhecia, gostavam de enfiar os seus pertences em mochilas, completamente enxovalhados. A pequena gabardina ensanguentada perder-se-ia facilmente numa das lixeiras da cidade. "Um bónus para mim." Um último olhar ao espelho retrovisor proporcionou-lhe uma última imagem do Mercedes, que não correspondera às melhores expectativas. O seu interior estava sujo de uma maneira irreversível. Felizmente, os proprietários tinham seguro contra todos os riscos. De momento era o local de repouso de Mr. Lawe. Cerca de trinta segundos mais tarde o lugar de repouso terreno de Mr. Lawe teria uma temperatura próxima da do seu lugar de repouso eterno. Três, dois, um... Muito bem. A explosão iluminou o céu por breves instantes, antes de se transformar numa chama lenta, mais modesta. Aquilo rematava praticamente todos os fios soltos. Rivera, Bacon e Lawe. Os rapazes do bando que tinham matado Hughes teriam de ser vigiados, embora a possibilidade de algum deles sucumbir a uma fraqueza ser, na melhor das hipóteses, remota. Mas a negligência em mostrar-se leal aos interesses do empregador quase permitira que Bacon afundasse o navio. Os polícias já o tinham encontrado. Mais cedo do que seria de esperar. Não devia subestimar o Reagan. Mas tinham encontrado as pistas certas para fecharem o caso com tranquilidade antes de passarem para o seguinte. Fotografias, relatórios, a arma... A ideia de deixar a arma fora brilhante. Iam pensar que tinham 291 resolvido o caso. Iam dizer à Ciccotelli que estava segura e ela ia acreditar. Talvez nessa noite até conseguisse dormir. Até a próxima vítima cair. E não tardaria muito. "Serás julgado pelas tuas companhias." "Quando eu tiver acabado com ela ninguém estará do seu lado. Vai ficar sozinha, e por fim vulnerável. E nessa altura ficará à minha mercê." CAPÍTULO 15 Quarta-feira, 15 de Março, 21.45


― Que é isto? ― Os olhos da mãe de Aidan iluminaram-se quando ele entrou na cozinha e depois mostraram-se curiosos e interessados quando Tess apareceu atrás dele. Becca e Rachel estavam sentadas à mesa, a mãe a recortar receitas e Rachel a estudar Química. Aidan pôs os ravioli cozinhados em cima da bancada e deu um beijo à mãe. ― A Tess fez o jantar. Becca deu um beijo a Tess. ― Foi muito amável ter pensado em nós, Tess. Tess trazia uma caixa embrulhada em papel de alumínio e entregou-a com uma vénia espalhafatosa. ― Isto é para si, Mrs. Reagan. Um agradecimento por me ter ajudado ontem à noite. ― Não precisava de me ter dado nada! Apesar da resposta, a mãe de Reagan apressou-se a abrir a prenda. O seu rosto não escondeu o prazer que sentia. ― Meu Deus! ― Retirou uma camisola de caxemira da caixa, mas voltou a pô-la lá dentro rapidamente. ― É cara de mais. Não posso aceitar. ― Claro que pode ― disse Tess com à-vontade. ― Estava em saldo ― disse com um piscar de olhos cúmplice a Aidan. ― E esta cor é a mais bonita para si, Mrs. Reagan. Vá, experimente-a. Se não lhe servir, ainda tenho o recibo. Becca saiu rapidamente, deixando Reagan perplexo. ― Não fazia ideia que ela gostava de caxemira... Tess fez um estalido de censura com a língua. ― Aposto que lhe dás tachos e panelas no Dia da Mãe! ― Abanou a cabeça, desaprovadora. ―Já vi que sim. Que vergonha, Aidan Reagan. 293 ― O telefone de Tess tocou e ela ficou tensa. ― Outra vez, não! Mais um jornalista e eu juro que... ― Viu quem estava a ligar e ficou mais descontraída. ― É o Vito. Deve ter acordado e não me encontrou. Desculpem. Afastou-se para a casa das máquinas e Rachel olhou para ela com ar curioso. ― A Tess esteve a cozinhar em tua casa? ― E fez cannoli frescos. Rachel arrebitou o nariz. ― Cannoli? E onde estão? ― Em minha casa. Não estavas a pensar que eu te ia trazer os meus cannoli, pois não? Ela olhou para ele com ar zangado. ― Malvado! Achas que a camisola que ela trouxe custa o mesmo que as do Wal-Mart? Aidan fez sinal de que não. ― Claro que não, mas não digas nada à mãe. Ela parecia tão contente. ― Sentou-se ao lado da irmã a estudar o seu rosto. Parecia cansada.


― Tiveste um dia difícil? ― Tive. Passei o dia a pensar que alguém ia desconfiar que fui eu que disse, mas ninguém me falou do assunto. Os polícias vieram na última aula da manhã e levaram três rapazes. ― Nesse caso, a Marie disse à polícia quem a violou? Rachel fechou os olhos. ― Deve ter dito. Voltou a faltar à escola hoje, mas dizia-se que o pai esteve lá e tinha feito um escândalo no gabinete do director, por isso os pais já devem saber. ― Abriu muito os olhos, com um olhar triste. ― Achas que procedi bem, Aidan? Ele abraçou-a. ― Acho que sim, irmãzinha. ― Só esperava estar a dizer a verdade. Tess voltou, com o telefone na mão. ― O Vito quer falar contigo. ― Quem é o Vito? ― ouviu ele a irmã perguntar a Tess, que se tinha sentado ao lado dela. ― É o meu irmão mais velho ― respondeu Tess. Pegou no livro de Rachel. ― Que é isto? ― Acertar equações ― respondeu Rachel com uma careta. ― Não consigo perceber como se faz. Tess inclinou-se para o livro. 294 ― Há muitos, muitos anos, numa galáxia distante, eu soube fazer isto. Vamos a ver se ainda consigo... Aidan fechou a porta que dava para a casa das máquinas. ― Vito? Que aconteceu? ― O miúdo dos vizinhos acordou-me. ― Um miúdo de doze anos? O Freckles? Costuma levar a minha cadela a passear quando eu não estou. ― Bom, desta vez não a veio passear. Quando tocou à campainha e eu abri não queria acreditar que eu era convidado. ― Ele quer ser polícia ― disse Aidan num tom afectuoso. ― É um bom miúdo. ― Pode ser ― respondeu Vito com um riso sarcástico. ― Para si. Comigo só falou depois de eu lhe mostrar todos os documentos de identificação que tinha comigo. Depois, contou-me que estava um tipo dentro de um carro, um pouco mais à frente. Um tipo com o cabelo rapado. Aidan ficou alerta. Era Clayborn. ― Merda! Como é que ele soube que a Tess estava em minha casa? Como terá arranjado o endereço? ― Não faço ideia. O miúdo disse que ficava aqui à sua espera para lhe contar, mas ficou agarrado a um jogo de vídeo e perdeu a noção do tempo.


― Imagino que o carro não esteja lá agora. ― Já dei duas voltas ao quarteirão e não vi nada. Ouça, eu estou a precisar de fazer meia dúzia de coisas. Ela fica consigo. ― Não deixo que se afaste nem um minuto, não se preocupe. ― Já apanhou o filho-da-mãe que mandou o CD? ― Por assim dizer. O tipo está morto. Parece ter-se suicidado. Vito ficou imóvel por um instante. ― Parece? ― De momento. Digamos que ainda há algumas perguntas por responder. Onde é que fica? Quer dizer, esta noite? ― Fico no meu hotel. ― O tom de Vito modificara-se, tornara-se mais pesado. ― Diga à Tess que daqui a duas horas passo para a vir buscar. Reservei-lhe um quarto no meu hotel, por isso pode ficar comigo. Aidan sorriu à tentativa mal disfarçada de o avisar de que tirasse as patas de cima da irmãzinha. ― Eu digo-lhe. Se ela prestaria atenção aos avisos de Vito já era outra história. 295 Voltou para a cozinha e encontrou Tess e Rachel embrenhadas numa conversa animada. Tess tinha o lápis na mão e estava a ajudar a irmã dele com o trabalho de casa. A mãe voltou, a ajeitar a gola da camisola de caxemira. ― Fica bem? Aidan respondeu-lhe com um sorriso. ― A Tess tem razão. É a sua cor, mãe. Na rua, a porta de um carro bateu. ― Vem aí o teu pai ― disse Becca, franzindo o sobrolho. Aidan apanhou o olhar que ela lançou a Tess antes de o pai entrar em casa com grande espalhafato. O olhar de Becca também não passou despercebido a Tess. Olhou preocupada e viu um homem entrar. Era alto como Aidan, de cabelo grisalho, mas os olhos de ambos eram da mesma cor azul intensa. De repente sentiu-se a tensão na cozinha. ― Pai ― disse Aidan. ― Apresento-lhe a Tess Ciccotelli. Tess, o meu pai, Kyle Reagan. Kyle Reagan, o polícia reformado. Kyle Reagan, que nesse momento a olhava com desdém, com os olhos cobertos pelas espessas sobrancelhas negras. Tess respirou fundo. ― Prazer em conhecê-lo. Ele deixou-se ficar no mesmo sítio por um minuto e depois voltou-se para Aidan. ― O que é que ela está aqui a fazer? ― Kyle! ― ralhou Becca. ―Já chega. Com um rosnido, o marido passou em direcção à sala.


― Não se preocupe ― disse Rachel, despreocupadamente. ― Ele ao princípio também era assim com a Kristen. ― Depois levantou os olhos para Aidan. ― E tu também! Aidan não respondeu. Tinha o rosto vermelho e os maxilares rígidos. ― Eu volto já. Tess levantou-se e pôs-lhe uma mão sobre o peito. ― Não faças isso, Aidan. Não tem importância. Não quero meter-me entre ti e o teu pai. ― Tem importância, sim ― replicou ele, e entrou na sala de estar, determinado. ― Valha-me Deus ― murmurou Becca. ― Senta-te, Rachel ― acrescentou quando Rachel se levantou para ir escutar à porta. Rachel 296 revirou os olhos, contrariada, mas obedeceu. Os dois homens falavam num tom de voz baixo, mas Tess apanhava uma palavra de vez em quando. Conseguia perceber a maior parte do que eles diziam. O mais importante de tudo aquilo era que os dois discutiam por causa dela. E, por mais interessada que ela estivesse em Aidan Reagan, não queria estar na origem de outra guerra familiar. Ser a causa da guerra na sua própria família já lhe bastava. Tranquilamente, vestiu o casaco. ― Muito obrigada por tudo, Mrs. Reagan ― disse, com um gesto cúmplice para Rachel. ― O teu irmão está muito orgulhoso de ti ― murmurou. ― Portaste-te muito bem. Depois avançou para a sala, onde o pai de Aidan estava sentado num velho cadeirão com os braços cruzados à frente do peito e o rosto fechado numa carranca. Aidan estava à frente dele, de pernas afastadas e mãos nas ancas. A expressão dos dois era semelhante, o tom das vozes quase não se distinguia. Pigarreou para limpar a garganta. ― Meus senhores. ― Eles acalmaram-se e voltaram-se para ela. ― Mr. Reagan, não sei o que pensa que sabe de mim, mas o senhor soube criar os seus filhos, por isso imagino que eles tenham aprendido consigo. Eu não sou a pessoa que o senhor imagina que sou, e se me desse uma oportunidade acabaria por perceber que assim é. No entanto, não quero ser causa de tensão na sua família. Acredita em mim, Aidan, não vale a pena. Fico à tua espera. Quando quiseres vir... Deu meia-volta e saiu, a tremer por dentro mas decidida a não deixar que isso transparecesse. Disse adeus a Becca antes de atravessar a casa das máquinas e de sair para a rua, onde o vento frio lhe agitou o cabelo. O carro de Aidan estava estacionado junto do passeio. Mais meia dúzia de passos e... Uma mão de homem agarrou-a pelo cabelo e puxou-a até ela ficar em bicos de pés. Um segundo mais tarde e a outra mão tapava-lhe a boca e uma pistola estava apontada à sua cabeça.


― Nem uma palavra, doutora. "Clayborn. Filho-da-mãe." Quando sentiu uma arma apontada à cabeça pela segunda vez em dois dias alguma coisa desesperada explodiu dentro dela que a fez arranhar-lhe o rosto e tentar escapar-se das mãos dele como um animal selvagem. O sangue escorria-lhe de um golpe no couro cabeludo para os olhos, mas Tess abriu e fechou os olhos rapidamente até que se libertou dele e deu alguns passos a correr. Clayborn soltou um rugido de surpresa 297 e agarrou-a pelo ombro com uma força brutal. Tess teve a impressão que era o piloto automático que reagia por ela. Com a mão aberta, acertou-lhe no nariz de baixo para cima e, antes que ele tivesse tempo de gritar de dor, acertou-lhe com um joelho entre as pernas. Com uma respiração ofegante, que mais parecia um rugido, Tess viu-o cair e levar a mão esquerda às virilhas enquanto a direita continuava a pegar na arma. Com todo o seu peso, Tess pisou-lhe o pulso da arma com a bota. Depois tirou-lhe a pistola da mão e caiu sentada na relva. Sentiu a humidade atravessar-lhe as calças de ganga, e isso fê-la reagir. Recuou apoiando-se nos saltos para se levantar, enquanto os dedos frios procuravam ajustar-se à arma, ao gatilho. Já de pé, recuou mais um passo. Clayborn esforçava-se por se pôr de pé. Tinha sangue a escorrer-lhe do nariz e a sujar-lhe o casaco de napa. Cuspiu sangue para o chão molhado. ― Maldita putéfia ― grunhiu. ― Partiste-me o nariz, mas vais morrer por isto. "Respira, Tess. Respira." Conseguiu que as mãos deixassem de tremer e apontou-lhe a arma com as duas mãos, como Vito a ensinara a fazer, já há muitos anos. E forçou-se a falar com voz fria. Com autodomínio. Apesar de o sangue parecer pulsar-lhe nos ouvidos, ensurdecendo-a. ― Se se aproxima nem que seja um passo, juro que lhe rebento os miolos. ― Afastou o cabelo dos olhos e sentiu que o domínio regressava, e com ele uma resolução fria. ― Pensando melhor, aproxime-se. Assim posso matá-lo já aqui. Pelo Harrison. Vá. Dê um passo em frente. Estou mortinha por acabar consigo. ― Não era capaz ― disse ele, olhando-a intrigado. Afastou o sangue do rosto com a manga do casaco, mas o nariz não parava de sangrar. ― Não era capaz de atirar. ― Depois de cuspir de novo, fez um esforço por se pôr de pé e ela atirou. Clayborn parou e ficou a olhar para o chão, para o sítio onde a bala acertara, a poucos centímetros do seu pé. ― Acha mesmo que não? ― Sentia o coração a bater com violência contra as costelas. Levantou a pistola e apontou-lha ao peito. ―


Apostava a vida nisso? Olhe que eu tive um dia mesmo mau, Mr. Clayborn. Quer tentar, é consigo. Mas aviso-o que está a fazer a jogada errada. As suas probabilidades são muito más. ― Tess? Meu Deus, pai! ― Aidan saiu de casa a correr e em poucos segundos pôs-se ao lado dela de arma em punho. Segundos mais 298 tarde, Clayborn estava de joelhos com as mãos algemadas atrás das costas. Mesmo imobilizado, o olhar que deitou a Tess deixou-a aterrada. Se ele pudesse, ela estaria morta. Era assim, sem tirar nem pôr. ― Tess ― disse-lhe Aidan com delicadeza. ― Já podes baixar a arma. Ela olhou para a pistola que ainda tinha nas mãos e depois de novo para Clayborn. ― Ele matou o Harrison. ― Eu sei, querida. E tu apanhaste-o. Agora já não pode fazer-te mal. ― Ele matou o Harrison ― repetia ela, com a arma ainda nas mãos. Nesse momento, com Clayborn de joelhos, apontava-lhe à cabeça. A porta bateu outra vez e ela ouviu uma voz dizer a Becca que ligasse para o número de emergência. Um minuto mais tarde, uma mão tiroulhe delicadamente a arma de Clayborn das mãos e um braço rodeoulhe os ombros. ― Venha para dentro ― disse-lhe Kyle Reagan com doçura. ― Já está tudo bem. Tess olhou por cima da cabeça de Clayborn e os seus olhos cruzaramse com os de Aidan. ― Liga ao Abe e à Mia. Diz-lhes que apanhámos o Clayborn. Aidan respondeu: ― Eu ligo. Quarta-feira, 15 de Março, 22.45 O coração de Aidan continuava a bater com brutalidade quando arrumou o Camaro na garagem. Apesar de nesse momento ela estar sentada em segurança ao seu lado, não conseguia apagar a imagem de Tess no jardim da casa dos pais a apontar a arma ao estupor, as mãos firmes e o rosto resoluto. Mais tarde, Abe e Mia tinham chegado e levado Clayborn, que respondera de forma seca e concisa às perguntas que lhe haviam feito. Tess estava furiosa. E nesse momento continuava furiosa. Não tinha aberto a boca a caminho de casa, mas ele continuava a sentir a raiva dela. Aidan desligou o carro e ela saiu a correr e entrou em casa. Com um suspiro, Aidan seguiu-a. Encontrou-a no quarto dele, de pé ao fundo da cama, de costas para ele, a tirar os jeans. A camisola já 299 estava no chão, o que lhe deixava as costas nuas, exceptuando o sutiã de renda que ele já lhe despira nesse mesmo dia. Dominando o


desejo, Aidan apanhou a camisola. Voltou a engolir em seco e de repente sentiu o sangue seco na manga. Era sangue de Clayborn, que tinha jorrado do nariz dele. Era a segunda vez em dois dias que ela se sujava com o sangue de outras pessoas. Podia tão facilmente ter sido o dela... Tess acabou de tirar osjeans sujos de lama e disparou em direcção à casa de banho. De repente parou, de cabeça baixa. Teve um arrepio violento e depois respirou fundo. ― Eu sei que te devia agradecer por me teres impedido de o matar. Se não fosses tu, era o que eu tinha feito. Ele percebeu como ela se sentia. ― Nunca o terias matado. Não assim, a sangue-frio. Ela levantou a cabeça e riu-se com amargura. ― Gostava de acreditar em ti. Tu não ouviste, mas eu provoquei-o. Incitei-o a atacar-me. Estava louca por lhe dar um tiro. Aidan ficou sem pinga de sangue ao ouvi-la dizer aquilo, à ideia de ela ter incitado um assassino enlouquecido, mas continuou a falar num tom natural ao mesmo tempo que deixava cair a camisola em cima dos jeans. ― Mas não o fizeste, Tess. Achas que eu não sei como te sentes? Há alturas em que nem sei como não arranco a cabeça a alguns tipos, mas é por não o fazer que sou um bom polícia. O facto de o desejar faz de mim um ser humano. Tu estiveste frente a frente com o homem que matou o teu amigo. Se não tivesses ficado transtornada, não serias uma pessoa normal. ― Agora pareces um psiquiatra a falar. ― Tess abanou a cabeça, lentamente. ― Eu estava ali, de frente para ele... E de repente o problema deixou de ser só o Harrison. Era... era tudo. A Cynthia e o Avery. A Gwen e o Malcolm. ― A voz dela falhou. ― Mr. Hughes... ― acrescentou num sussurro. ― Valha-me Deus, Aidan. Mr. Hughes morreu. Por causa de... Ele agarrou-a pelos ombros e obrigou-a a olhar de frente para si. ― Pára com isso. Não te atrevas a dizer que foi por tua causa. Ela olhou-o, desafiadora. ― Mas a verdade é essa ― murmurou. Frustrado, ele apertou-a com mais força. ― Caramba, Tess. Hoje podias ter morrido! O desafio nos olhos dela tinha desaparecido, deixando atrás uma fragilidade que fez a raiva dele desaparecer como por encanto. 300 ― Achas que eu não sei? ― disse ela num murmúrio. Era a adrenalina a voltar ao normal depois de uma situação de perigo extremo. Tinha visto aquilo acontecer com centenas de vítimas de agressão ao longo da sua vida profissional. Mas dessa vez era


diferente. Era Tess que estava ali. Havia medo nos olhos dela, e ele queria que esse medo desaparecesse. ― Felizmente estás viva ― murmurou ele. Depois mostrou a sua satisfação da melhor maneira que conseguiu, cobrindo os lábios dela com os seus. Ela não recuou, por isso ele continuou, o coração a bater cada vez mais depressa. Depois de um momento de aceitação tranquila, ela pareceu explodir de desejo. Rodeou o pescoço dele com os braços e pôs-se em bicos de pés para aproximar o corpo do dele. Um beijo deu lugar a outro e a outro e depois as mãos dele desceram-lhe pelas costas macias, por baixo da renda que escondia as curvas dela. Ela ajustava-se o mais que podia ao corpo de Aidan, gemia baixinho ao ouvido dele. De repente afastou-se um pouco para olhar o rosto dele, uma paixão quase desesperada nos olhos. ― Hoje, Aidan. Por favor. Ele não fingiu que não tinha percebido. ― Não me parece q... ― Sentiu a boca seca e deixou de conseguir pensar quando ela mesma recuou um passo, desapertou o sutiã e depois tirou as cuecas. Nua, era de cortar a respiração. Tinha uma pele dourada e curvas, muitas curvas. Toda ela era feita de curvas. Engoliu em seco e isso ouviu-se. ― Meu Deus, Tess... Sem afastar os olhos dos dele, ela tirou-lhe a camisa das calças e começou a desapertar-lhe os botões com uma deliberação que o deixou quase hipnotizado. Quando ela ia a meio, os sentidos dele despertaram com a violência de uma tempestade. Com dedos desajeitados, tirou o cinto, as calças, as cuecas, enquanto ela continuava devagar a abrir-lhe a camisa. Com uma risada grave, abriu com rapidez o último botão, tirou a camisa e caiu com ela na cama. Fê-la rebolar até ficar de costas, instalou-se entre as coxas dela e pensou que o coração lhe ia saltar do peito. ― Podes ter a certeza... ― começou numa voz distorcida pela emoção. ― Podes estar calado... ― ripostou ela, arqueando-se contra o corpo dele, mergulhando as mãos no cabelo dele, dando-lhe o beijo mais erótico que alguma vez lhe tinham dado. As suas pernas ergueram-se 301 para rodear as ancas dele e com uma exclamação abafada ele entrou dentro dela, fazendo-a estremecer e por fim gritar. Ele parou, tenso. ― Magoei-te? ― Não. ― De olhos fechados, Tess respirou fundo. ― Já há muito tempo que... ― Com as mãos agarrou-o fortemente e obrigou-o a entrar ainda mais dentro dela. ― Que nem te passe pela cabeça parar. O alívio fê-lo estremecer e a avidez dela fê-lo continuar. Enquanto se movia dentro dela olhava-lhe o rosto, cada vez mais excitado, a


cabeça deitada para trás na almofada. Viu a maneira como os dentes marcavam o lábio inferior e as ancas se retesavam para responder a cada novo movimento dele. Ela era incrível, mas vê-la cada vez mais entregue... Nunca tinha visto nada mais erótico, nenhuma mulher mais bela. Depois, os olhos dela abriram-se e no fundo da sua escuridão viu um desejo e uma surpresa que o fizeram perceber que alcançara qualquer coisa pela primeira vez. ― Aidan ― era uma súplica, e percebeu que ela estava num limiar. Determinado a que ela o alcançasse, introduziu as mãos por baixo do corpo dela, afastou-lhe mais as ancas e penetrou-a com uma determinação clara. O prazer dela. O seu prazer. Mas o seu limite aproximava-se. Ainda não. Mordeu o lábio com força, procurando conter-se. Por fim, quando pensou que não aguentava mais, ela respondeu numa explosão de prazer, elevando ainda mais o prazer dele. Gritou o nome dela, e deixou-se ir. Quarta-feira, 15 de Março, 23.35 Tess acordou com a boca dele num mamilo e estendeu-se como um gato, ajeitando o corpo para se adaptar ao dele. Aidan estava entre as pernas dela, o peito duro contra a sua pélvis, e isso fazia-a sentir-se bem. Não tão bem como quando o sentira dentro dela, mas muito bem. Sobretudo melhor que dentro do sonho de que ele a arrancara. ― Estava a sonhar. Ele levantou a cabeça. ― Eu sei. Estavas a gritar. Pregaste-me um susto. ― Com um sorriso astuto, acrescentou: ― Acho que estás a ganhar o hábito. Ela alisou-lhe o cabelo na nuca. ― Desculpa. 302 ― Que estavas a sonhar, Tess? ― Um sonho que tenho todos os dias, e em que a cada dia que passa vão entrando mais pessoas. ― Cynthia, Avery Wilson, os Sewards. E agora também Harrison e Mr. Hughes. ― Lembras-te do teledisco do Thriller, com aqueles zumbis todos? Bom, os meus não estavam a dançar. ― Afastou o cabelo do rosto com a mão. ― Os sonhos começaram domingo à noite. Era a Cynthia. E tu também entravas. Ela estava caída... ― Fez um esgar ao recordar o que acontecera. ― O corpo dela estava rasgado e o coração ainda lhe batia no peito. E tu estavas de pé ao lado dela e agarraste no coração dela para mo dares. ― Engoliu em seco. ― Disseste-me que lhe pegasse. Ele olhou para ela, horrorizado. ― Meu Deus! ― Pois foi. Deve ter sido então que gritei, porque o Jon acordou-me. ― Ele esteve no teu apartamento? Ela acenou afirmativamente. ― Ele tem uma chave. Aidan franziu o sobrolho. ― Além dele, quem é que tem a chave do teu apartamento, Tess?


― A Amy, o Robin. O Phillip é capaz de também ainda ter. ― Levantou a cabeça da almofada para olhar bem de frente para ele. O tom da pergunta não lhe tinha agradado. ― Nem pensar! É impossível que eles tenham o que quer que seja a ver com isto. ― Eu não disse que tinha. ― Mas pensaste. ― O meu trabalho é esse, Tess. ― Sentiu a tensão formar-se no corpo. ― A minha missão é manter-te segura. E hoje fiz uma triste figura. Ela deixou cair a cabeça de novo na almofada. Não lhe apetecia discutir por causa dos amigos. Com o tempo, ele acabaria por perceber que não tinha razão. ― Impediste-me de matar o estupor. Imagino que deva agradecer-te. ― Dá tempo ao tempo. Porque há tanta gente com a tua chave de casa, Tess? Não é muito seguro ter tantas chaves espalhadas por aí. Alguém teve acesso livre ao teu apartamento durante tempo suficiente para pôr todas aquelas câmaras. O medo voltou a dominá-la. 303 ― David Bacon. ― Pode ter sido ele a pôr as primeiras, mas e os microfones na tua roupa? Há quanto tempo tens aqueles casacos? ― Não os comprei todos na mesma altura ― respondeu com um amargo de boca. ― Depende da altura em que fui aos saldos. Encontraste algum microfone no casaco vermelho que eu trazia no sábado? ― Sim. ― Só o comprei há um mês, numa promoção do Dia de S. Valentim. ― Fechou os olhos. ― Alguém esteve em minha casa durante o último mês. ― Talvez não. Mandaste algum dos casacos para a lavandaria? ― Todos menos o vermelho. Era novo em folha. Meu Deus, Aidan... Ele beijou a depressão entre os seios dela. ― Chiu! Não vamos pensar nisso agora. Fala-me dos teus amigos. Ela abriu muito os olhos. ― Não é possível. Achas que eu não percebia? ― Aidan não disse nada, o que a deixou exasperada. ― Conheço o Jon desde os tempos de faculdade. O Robin também. Eu e a Amy somos amigas desde a escola primária, por amor de Deus! ― É possível que alguém tenha usado a chave de um deles. Feito uma cópia. Tess reflectiu. ― Podia ser. ― Mas afinal porque é que eles têm chaves? ― O Phillip deu-lhes chaves a todos quando eu estive doente.


― Estás a falar de quando foste agredida o ano passado? Ela fez um gesto com a cabeça, incomodada por ter de recordar o assunto. ― Sim, depois do preso com as algemas. Estive alguns dias no hospital e o Phillip estava fora numa conferência, mas voltou mais cedo. Levoume para casa, meteu-me na cama. ― Tess olhava fixamente o tecto. ― Ficava parado a olhar para mim como se eu fosse explodir. O Phillip nunca teve jeito para pessoas doentes. ― O que é que ele fazia? Em que trabalhava? ― Também é médico. Conheci-o na faculdade ao mesmo tempo que ao Jon. Ele franziu o sobrolho. ― E não gosta de doentes? Isso não é necessário para ter essa profissão? 304 ― Foi por isso que ele escolheu a investigação. ― E como foi que adoeceste? Era isso que o Vito queria dizer quando falou de tu estares muito magra? ― Ele acha sempre que eu estou demasiado magra. ― Estás a fugir à pergunta, Tess. Ela suspirou. ― Eu estou aqui deitada, oferecida, e tu queres falar de doenças? Não é normal, Aidan. Ele tocou-lhe o peito e aproximou a boca o suficiente do mamilo para a fazer estremecer. ― Se me disseres o que quero saber, passo a outro assunto. Ela riuse. ― É esta a tua técnica de interrogatório habitual? ― Estou a falar a sério, Tess ― avisou ele. Ela voltou a suspirar. ― É uma coisa embaraçosa. E não gosto de falar do assunto por ser embaraçoso. Depois de o Phillip me ter levado para casa, eu devia ter recuperado numa semana, mais ou menos, e depois já devia poder voltar para o trabalho, mas quando saía da cama sentia-me sempre mal-disposta e com vómitos. Voltei para o trabalho e passava a maior parte do dia a vomitar na casa de banho. ― Qual era o problema? Ela olhou para ele com ar sombrio. ― Nenhum. Fizeram-me todos os testes que possas imaginar e ninguém conseguiu descobrir nenhuma razão que justificasse o malestar físico. ― Nesse caso era psicossomático. Ela revirou os olhos. ― O médico acabou por lhe chamar stresse pós-traumático. Foi humilhante. Eu era psiquiatra e o problema estava todo na minha cabeça. Estava demasiado assustada para trabalhar... ― Encolheu os ombros. ― Mas pouco importou, porque três semanas mais tarde perdi


o contrato com o tribunal. Deixei de ter de me ralar com psicopatas que me atacavam com algemas. ― E melhoraste? Ela voltou a olhar para o tecto. ― Na realidade, piorou muito. O Phillip estava a ficar impaciente comigo. Ao princípio tinha sido muito solícito, mas queria que eu melhorasse. Queria... sexo. E eu não podia. Não tinha energia nem apetite. 305 Quase não era capaz de me vestir sozinha, quanto mais de viver noites escaldantes de sexo. ― Nessa altura mudou de assunto. ― Como ele nesse tempo tinha de viajar muito, deu chaves de casa ao Jon e ao Robin. A Amy já as tinha há muitos anos. Quando eu estava fraca de mais para ir trabalhar eles passavam lá por casa, para ver como eu estava. ― Fez uma careta. ― Obrigavam-me a comer sopa. A verdade é que detesto sopa. A do Robin pelo menos é boa. As sopas da Amy eram um horror. Ela está longe de ser uma boa cozinheira. ― Não me vou esquecer. Nada de sopas para ti ― concluiu Aidan num tom de encarregado da sopa de um campo de concentração. ― Mas afinal que aconteceu ao Dr. Diabos o Levem? ― Ao fim de uns meses de abstinência forçada decidiu procurar o que queria noutro sítio. ― A dor voltou, mas com menos força que antes. ― E foi logo na minha cama. Aidan ficou imóvel, os olhos igualmente parados. ― Foi de muito bom gosto. Ela riu-se outra vez. ― Pois foi. Dele e dela. Ela deixou um brinco debaixo da minha almofada e as cuecas enroladas ao fundo da minha cama. Tudo enquanto eu tinha ido ao médico. Quando voltei, ele já se tinha ido embora, mas o perfume dela tinha ficado. ― Falaste-lhe no assunto? ― Sim, e ele nem sequer negou. Limitou-se a fazer as malas e saiu nessa mesma noite. Não disse uma única palavra. E desde essa altura que não falo com ele. E é tudo. ― Quando começaste a sentir-te melhor? ― Depois da minha lua-de-mel. Ele olhou-a, interrogador. ― Desculpa?! ― Os bilhetes do cruzeiro não podiam ser devolvidos nem trocados, de maneira que eu e a Amy subimos e descemos a costa do México de barco. Algures a meio do caminho as náuseas desapareceram e quando voltei consegui regressar ao trabalho. Todos os nossos amigos souberam o que aconteceu. Não é possível cancelar um casamento daqueles duas semanas antes da data sem dar uma explicação às pessoas. O Phillip tornou-se persona non grata no nosso pequeno grupo. A última vez que ouvi falar dele tinha uma namorada nova.


Uma galdéria rica da North Shore. Ele sorriu. 306 ― Tess, tu és rica. ― Hum... Vivo bem. A Eleanor era rica. No próximo Verão, o meu contrato da casa termina e eu tenciono trocá-lo por um apartamento numa zona menos chique da cidade. Aidan olhou-a de novo intrigado. ― A tua casa é arrendada? ― Sim. A Eleanor gostava de pagar as coisas antecipadamente. Pagou vários anos de arrendamento do apartamento e quando morreu deixou-me os últimos meses, tanto do apartamento como do Mercedes. À meia-noite do dia trinta de Junho o prazo expira e tudo se transforma numa abóbora. ― Ele pareceu surpreendido e isso agradou-lhe. ― Eu sempre te disse que não sou nenhuma snobe. Sou mais uma espécie de ocupante. Mas com pinta. Ele riu-se, surpreendido. ― Sim, hoje percebemos todos isso. É verdade, como é que conseguiste partir-lhe o nariz? Ele não disse. Tess fez uma demonstração, erguendo a mão aberta por baixo do nariz dele. ― Assim. Ele beijou o pulso dela. ― Foi o Vito que te ensinou? ― perguntou-lhe num murmúrio,. Ela hesitou. ― Não. O Vito só me ensinou a usar a arma. Ele pressionou os lábios contra o queixo dela. ― Estás outra vez a fugir ao assunto. ― Isso foi o meu pai ― disse ela, contrariada com a persistência dele. ― Nós vivíamos num bairro duro. O meu pai não me deixou sair com rapazes antes de eu ter aprendido alguns golpes de autodefesa. De qualquer maneira, nenhum rapaz era suficientemente estúpido para se meter comigo. Eu tinha quatro irmãos mais velhos... ― São todos tão grandes como o Vito? ― Mais ou menos. ― Tess suspirou. ― Tenho saudades deles. Muitas. O Vito quer que eu volte para Filadélfia de vez. ― Viu-o franzir o sobrolho. ― O meu pai está doente. Gostava de não me ralar com isso, mas ralo. Quando hoje te vi com os teus pais... ― Tess fechou os olhos para evitar as lágrimas. ― Há muito tempo que não vejo a minha família. ― Quanto tempo? ― Cinco anos. 307 ― Porquê?


― Afastámo-nos. ― Tess... Ela encolheu os ombros com ar cansado. ― O meu pai foi sempre muito severo. Muito católico e muito severo, íamos à missa todos os domingos. Tirando o Pai Natal e a fada dos dentinhos, sempre imaginei que nunca me tinha dito uma única mentira. ― Mas disse. ― Disse... à minha mãe. ― Enganou-a? ― Sim, ele e a mãe tinham vindo a Chicago, de visita. Na altura, eu não tinha a casa da Eleanor. Dividia um estúdio minúsculo com a Amy perto do hospital onde fiz o internato, de maneira que eles ficaram num hotel. Eu e a minha mãe costumávamos ir às compras juntas. ― A tristeza era perceptível no rosto de Tess. ― Foi o que fizemos um dia, mas quando chegámos à loja a minha mãe percebeu que se tinha esquecido do cartão de crédito do meu pai, de maneira que eu voltei ao hotel para o ir buscar. ― E encontraste-o com outra pessoa. ― Uma flausina com idade para ser filha dele ― confirmou Tess com amargura. ― Acho que nesse dia perdi a minha infância. Eu sempre tinha sido a menina do meu pai. De um momento para o outro deixei de saber quem era aquele homem. Ele negou que tivesse feito o que quer que fosse de errado, disse que era tudo um mal-entendido. ― Não há possibilidade nenhuma de ele ter dito a verdade? Tess ficou nervosa com a pergunta. ― Ela estava nua agarrada a ele. A conclusão pareceu-me fácil. Ao princípio não contei à minha mãe, mas quando por fim contei, ela acreditou nele. Foi uma crise familiar. O pai ficou tão furioso por eu ter contado que se pôs aos gritos e acabou por ter um ataque de coração. Literalmente. ― Engoliu em seco. ― Pensei que ele estava a fingir e não o ajudei. Dei a volta e fui-me embora. ― Mas não estava a fingir. ― Não. Tinha mesmo tido um ataque de coração. Não foi dos piores, mas bastou para a vida dele mudar. E a minha também. Deixou de me falar. A filha dele, a médica, voltou-lhe as costas e deixou-o a morrer. ― Deve ser muito dramático. 308 Ela concordou. ― Às vezes é. Seja como for, o Vito diz que ele agora está pior. Vai ter de vender o negócio dele, a oficina e as ferramentas. Ele faz armários de cozinha. É um dos últimos grandes artesãos de Filadélfia. Já fez móveis para as melhores famílias da cidade. Para as famílias de sangue azul, como ele diz. Sempre achou graça comprarem-lhe um


armário por milhares de dólares, mas fingirem que não o conheciam quando se cruzavam com ele na rua. Quando era miúda odiava-os. Aidan percebeu a ideia. ― Porque eram uns snobes. ― Não era difícil de adivinhar, detective. ― Era mais difícil do que eu imaginei ― disse ele com calma. ― Mas valia a pena. ― Aidan cobriu-lhe a boca com um beijo terno. ― Ontem foi tudo rápido de mais. Perdi algumas coisas... Tess fingiu que reflectia, muito concentrada, e respondeu-lhe: ― Não teve importância. ― Acho que podemos fazer melhor ― disse ele com um sorriso. Pousou os lábios sobre a cicatriz marcada no pescoço de Tess e ela afastou-se numa espécie de reflexo. Num tom autoritário, pediu-lhe: ― Não faças isso, Tess ― o tom era suave, mas as palavras eram firmes. ― Não te escondas de mim. Phillip sentira repulsa. Na verdade, mais de metade dos lenços de Tess tinham sido oferecidos por ele entre o mês em que ela regressara e a altura que ele trouxera outra pessoa para casa. ― É feia. ― Tu és linda. ― Beijou a cicatriz dela em toda a sua extensão, arrancando-lhe um suspiro. ― Nalguns sítios mais que noutros ― explicou Aidan enquanto a sua boca percorria o caminho até um mamilo dela. ― Deixa-me mostrar-te. E mostrou. E foi melhor que antes. Aidan prestou tributo a todas as partes do corpo dela, com os olhos, as mãos, a boca. E Tess fechou os olhos e deixou-o fazer tudo isso. Deixou-o brincar com os seus mamilos, primeiro um e depois o outro, até cada movimento dele despertar qualquer coisa de forte no seu interior. Deixou-o percorrer com a boca o caminho que levava ao interior das suas coxas, e mais uma vez ele mostrou-lhe como ela era sensível e arrancou à sua garganta súplicas desesperadas. Com as mãos a suportarem as nádegas de Tess conseguiu tocar-lhe mais intimamente, até a enlouquecer. Com a língua levou-a ao clímax e depois, com os dedos hábeis, voltou a fazer o mesmo percurso, até a deixar com a impressão de ser feita de água por dentro. 309 Por fim, penetrou-a devagar, com uma reverência que encheu os olhos dela de lágrimas, ao mesmo tempo que gemia de puro prazer ao fim de tantos meses sozinha. Ele preenchia-a, mais profunda e longamente que qualquer outro antes dele. Abriu e fechou os olhos e as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto até à almofada. Ele deixou de se mover, parou, e permaneceu assim, completamente imóvel. ― Estou a magoar-te? ― a voz dele surgiu-lhe vinda do peito, grave e


funda, ansiosa. ― Não, não. Não pares. ― Ela dobrou os joelhos, de maneira que ele a penetrasse ainda mais profundamente, e ouviu a respiração acelerada dele. ― Tu sabes-me tão bem... Ele não parou. Continuou até a ver vibrar. Até que o grito que ela ouviu foi o dela mesma. O rosto de Aidan tinha algo de feroz na sua intensidade quando terminou, os braços a tremerem e os dentes cerrados. Deixou-se cair em cima dela, forçando-a a expulsar todo o ar dos pulmões. A respiração dele afastou-lhe o cabelo do rosto. Estava transpirado e sentia-se pesado como uma rocha, mas quando se ia afastar, ela abraçou-o e não o deixou. Sentiu o coração dele a bater contra o seu peito. ― Ainda não. Deixa-te estar. Ele encheu o peito de ar. ― Sou pesado de mais para ti. A entrada de casa, Dolly rosnou e Aidan levantou a cabeça nessa direcção. Um minuto mais tarde a campainha tocou, o que deixou a cadela num frenesim louco. ― Reagan! Abra! Tess abriu muito os olhos. ― É o Vito! Que diabo está ele aqui a fazer? Aidan afastou-se dela com um salto como o de uma truta que tivesse acabado de ser pescada. ― Provavelmente a assegurar-se de que não faço o que acabei de fazer. Não tenho forças para me levantar. No entanto, Vito pôs-se a bater à porta como um louco e Dolly ladrava cada vez mais. ― Ainda acorda a vizinhança toda ― resmungou Tess. Saiu da cama e experimentou pôr-se de pé. Quando as pernas pareceram dobrar-se como se fossem de borracha riu-se, divertida. Vestiu rapidamente umas calças de ganga e a sweatshirt de Aidan e foi abrir a porta. 310 Vito olhou-a como um louco. Deu um passo em frente e Dolly rosnou, mostrando os dentes. ― Dolly, senta ― ordenou Aidan. ― Não gosta de ver homens aqui durante à noite. Vito não lhe prestou a menor atenção. Pôs as mãos sobre os ombros de Tess e perguntou: ― Ele magoou-te? Ela pestanejou. ― Quem, Aidan? ― Não ― respondeu ele com nervosismo. ― Wallace Clayborn. Estou farto de te ligar para o telemóvel, mas tu não atendes. Pregaste-me um susto de morte. ― Procurou perscrutar o rosto da irmã. ― Estás muito vermelha ― passou-lhe o dedo no rosto e depois os seus olhos


desviaram-se para Aidan, com o rosto escuro da barba já crescida. Diga-se em sua defesa que Aidan ficou impassível. Tess deu uma palmadinha no braço do irmão. ― Entra. Eu conto-te tudo sobre Clayborn. Vais ficar orgulhoso de mim. CAPÍTULO 16 Terça-feira, 16 de Março, 18.15 ― Tess, a tua gata está no lavatório da casa de banho. Tess rebolou preguiçosamente na cama e viu-o de pé à frente do lavatório, e do gato. Ainda nu e molhado depois do duche, Aidan Reagan era uma visão reconfortante para os olhos, logo pela manhã. ― Abre a torneira. Ela está com sede. ― Pensei que os gatos não gostavam de água. ― Ela gosta. ― Tess entrou na casa de banho com andar incerto e sentou-se de lado na banheira, a sorrir-lhe enquanto ele enxotava a gata do lavatório e ensaboava o rosto. Ofendida, Bella saltou por cima da banheira e deitou-se no colo dela. ― A culpa de não termos tempo de tomar o pequeno-almoço é tua. Só mais uma, disseste tu. Uma rapidinha. Pois... ― Há dez minutos não te ouvi queixares-te... ― observou ele com um esgar irónico. Ela respondeu no mesmo tom e sentiu-se bem a fazê-lo. ― Pois não. ― Observou-o mais um minuto, ao mesmo tempo que ia acariciando Bella, que ronronava, encantada. Depois falou-lhe num tom sério. ― Que vais fazer hoje, Aidan? ― Unir os fios soltos que vão dar a Bacon. E ver se a polícia científica descobriu mais alguma coisa. ― Não estás convencido de que tenha sido ele... ― Não, mas também tenho outros casos. Tess recordou o relatório da autópsia que tinha visto em cima da secretária dele. ― O rapazinho. ― Sim. Continuo a não encontrar o pai dele. E desconfio que a mãe sabe onde ele está. 312 ― Um pai que mata o próprio filho... ― disse com um suspiro. ― Nunca consegui habituar-me a esses casos. ― Nem eu. E tu, que vais fazer hoje? ― Não sei. O Bacon está morto, o Clayborn está na prisão... Se calhar vou para o consultório começar a limpar e a arrumar. Além disso, o velório do Harrison é hoje. ― A tristeza voltou, dolorosa. ― O funeral é amanhã. ― Avisa-me para eu também ir.


A dor aguda dela pareceu atenuar-se. ― Obrigada. Também vou ter de falar hoje com Ethel Hughes. Vais falar-lhe da nota que ele deixou no casaco do marido? "Serás julgado pelas tuas companhias", recordou. ― Vamos discutir isso hoje de manhã. Depois digo-te. ― Aidan secou o rosto e depois voltou-se para ela com ar sombrio. ― Ontem aconteceu uma coisa de que não te falei. Anda cá. Tess sentiu-se dominada pelo medo. Pôs-se de pé e deixou Bella correr para o chão. ― Diz então. ― O Rick tem a certeza que o Bacon tinha um esconderijo de CD, mas não conseguiu encontrar nenhum. Ela engoliu em seco. No fundo sempre soubera. Só que tinha sido mais fácil não pensar no assunto. ― Nesse caso, o filme que ele fez de mim ainda por aí anda... ― Sim, algures. É possível que ele o tenha levado para outro sítio. Temos um ou dois sítios para procurar, mas isso não tem a mesma prioridade que os homicídios. Vai passar para a divisão de crimes electrónicos. São eles que tratam de pornografia na Internet e de outras coisas do mesmo tipo. Tess não conseguiu dominar um arrepio. ― E se o vídeo for parar à Internet... Tu importas-te? Aidan respondeu num tom solene. ― Sim, um pouco. Eu não engano ninguém e o que é meu não é dos outros e reconheço que há em mim algum orgulho, o suficiente para não me agradar que haja outros tipos a verem o mesmo que eu. Que pensas fazer? Ela tentou um sorriso, que lhe saiu amargurado. ― Fazer um calendário e marcar uma digressão promocional?? Ele riuse e beijou-a nos lábios. ― Veste-te. Se eu não te entregar ao Vito às sete e meia vou chegar atrasado à reunião, além de que vou aparecer com a cara feita em papas 313 Quinta-feira, 16 de Março, 7.30 Com o braço firmemente à volta da cintura dela, Aidan bateu à porta do quarto de Vito e aguentou em silêncio o olhar inquiridor dele. ― Reagan. Tess. Tess revirou os olhos e beijou o irmão no rosto. ― Por amor de Deus, Vito. Pára com isso. ― Depois passou a mão por trás do pescoço de Aidan e despediu-se dele com um beijo casto. ― Despacha-te, senão ainda te atrasas. ― Ele pode esperar uns minutos. Aidan pestanejou quando sentiu as unhas de Tess cravarem-se no


pescoço. Ao mesmo tempo, voltaram-se para o sítio onde se encontrava um homem mais velho, de braços fortes cruzados sobre o peito sólido. O homem tinha a consistência da rocha e todo o seu corpo da cintura para cima era testemunha de uma vida de trabalho manual pesado. O rosto abria-se numa expressão feroz, o que seria de esperar de alguém que enfrentasse um homem que tivesse passado uma noite com a filha. ― Mr. Ciccotelli ― Aidan estendeu a mão para o cumprimentar. ― O meu nome é Aidan Reagan. O pai de Tess olhou para a mão estendida e a pausa foi-se tornando cada vez mais constrangedora. Com um suspiro cansado, Tess tomou a mão de Aidan na dela. ― Pai, não estava à espera de o ver. Ele olhou-a com olhos frios e Aidan percebeu de onde ela tinha herdado as suas atitudes mais distantes. ― Imagino que não ― disse ele por fim. ― Posso falar contigo, Tess? Em particular? Ela olhou para Aidan pelo canto do olho, cautelosa. ― Vai andando. Eu depois telefono-te. Aidan afastou-se e por fim respirou fundo, quando lhe fecharam a porta na cara. Depois desceu as escadas a correr. Não queria chegar atrasado dois dias seguidos. Quinta-feira, 16 de Março, 7.30 Joanna franziu o sobrolho quando observou o interior da sua gaveta da secretária. Andava à procura de papel para imprimir as fotografias 314 que tirara para o seu relatório acerca do Dr. Joanathan Cárter e descobriu que metade da sua reserva desaparecera. ― Keith, andaste a imprimir fotografias? Ele continuou a fazer o nó da gravata e nem sequer levantou os olhos. ― Não. ― De pasta na mão, dirigiu-se para a porta. A voz dele parecia de gelo. Joanna franziu o sobrolho quando o ouviu. ―Já te pedi desculpa, Keith. Ele parou, de mão no puxador. ― Não tenho a certeza de saber o que significa essa palavra, Jo. Acho que já nem sequer sei quem tu és, na verdade. Até logo.! A porta fez um clique quando ele a fechou, calmamente. Teria sido melhor que batesse com ela, mas Keith não era pessoa para fazer uma coisa dessas. Depois encolheu os ombros. Aquilo acabaria por lhe passar. Passava sempre. E agora mais uma volta com o papel de caçar moscas. Já tinha descoberto algumas histórias e tinha a certeza de estar a chegar a qualquer coisa grande. Sentia-o no ar. Quinta-feira, 16 de Março, 7.40 Michael Ciccotelli era um homem intimidante. Do quarto ao lado saiu a mãe dela, com ar cansado, perturbado, como se tivesse sido apanhada


no meio. Tess olhou para os dois, cansada. ― Quando chegaram?: ― Ontem à noite ― respondeu a mãe. A visita de Vito à meia-noite começava a fazer sentido. Tess sentou-se. ― Não sei que dizer. A mãe esfregou as mãos uma na outra, incomodada. ― Como não vinhas ver-nos, nós... ― Senta-te, Gina. ― Com delicadeza, o pai dela encaminhou a mãe para uma cadeira e depois deixou-se ficar atrás dela, com as mãos apoiadas nos ombros magros da mulher. ― Que se passa aqui, Tess? Estava pálido, os lábios não tinham cor. As mãos grandes tremiam-lhe. ― Sente-se, pai. 315 ― Eu sento-me quando me apetecer. Acabei de te perguntar que está a acontecer aqui. Podes começar com este Reagan. ― Ele é uma boa pessoa. Nós estamos... ― As palavras tinham-lhe escapado. Ele tinha tomado conta dela, mas não era essa a imagem dele que ela queria projectar. ― Nós namoramos ― acabou por dizer. O pai olhou para ela de sobrancelhas erguidas. ― Estou a ver. Ela respondeu com uma expressão semelhante à dele. ― Tenho a certeza que está ― disse friamente. ― Tess ― ralhou a mãe, e Tess voltou os olhos abruptamente para o chão. ― Que é que vocês aqui vieram fazer? ― Não sejas desagradável ― murmurou Vito. ― Ora, estejam mas é calados. Era o que faltava estarem a tratar-me como uma mulher perdida. Eu tenho trinta e três anos, por amor de Deus! E ele é o primeiro homem com quem eu... com quem eu namoro num ano. ― Depois de Phillip ― rosnou o pai dela. ― Diabos o levem. Tess teve de reprimir uma risada que pareceu formar-se vinda de lado nenhum. ― O Aidan chama-lhe Dr. Diabos o Levem ― disse ela, e teve a impressão que os lábios do pai queriam sorrir. Um recanto do seu coração amoleceu e a sua voz tornou-se mais suave. ― Pai, o Vito diz que o pai tem andado doente. Para que fizeram esta viagem tão grande? O pai engoliu em seco. ― Tu estavas com problemas e a tua mãe quis vir, de maneira que nós viemos. A mãe de Tess olhou por cima do ombro para o marido e disse com ar triste: ― Tu prometeste!


Ele fechou os olhos. ― Está bem. Eu é que quis vir. Quis ter a certeza que está tudo bem. Ver-te com os meus próprios olhos. ― Abriu os olhos e Tess ficou surpreendida com as lágrimas que ali viu. Em toda a sua vida nunca tinha visto o pai chorar. Nunca. ― O ano passado foste atacada e não pudemos vir porque na altura não soubemos. Não nos disseste nada. E agora estás outra vez com problemas e nós temos de saber o que se passa pelos noticiários. Fazes ideia do que isso nos custa, Tess? A mãe dela deu uma palmadinha na mão do marido. 316 ― Nas notícias disseram que tu tinhas revelado segredos dos doentes ― disse ela. ― Disseram que o teu comportamento foi posto em causa e tu foste expulsa da Ordem por causa disso. ― São todos uns mentirosos! ― quase gritou o pai dela, com a voz a tremer do esforço de conter a raiva. De queixo levantado, acrescentou: ― Tu nunca farias uma coisa dessas! Outro recanto do coração de Tess amoleceu mais um pouco. ― A direcção da Ordem suspendeu-me, pai. Como é que o pai sabe que eles não tinham razão? Ele olhou-a com os olhos castanhos duros. ― Porque te conheço. E acima de tudo sei que tu não mentes. Não foi assim que eu te criei. ― Assim sem mais nem menos? ― perguntou, com voz sarcástica, amarga. ― Acreditam em mim? ― Sempre acreditámos em ti, Tess ― disse a mãe com doçura. ― Nós adoramos-te. O pai suspirou. ― E eu sei que as coisas nem sempre são o que parecem. Tess fechou os olhos, numa recusa de se deixar levar. ― Eu sei o que vi, pai. ― E o que viste não parecia nada bom, Tess. Mas eu garanto-te que não fiz nada. A mulher fez-se passar por empregada e antes que eu soubesse o que estava a acontecer ela estava no meu quarto e... Tess endireitou-se na cadeira, a imagem demasiado viva. ― Eu lembro-me, pai. Eu estava lá. O pai puxou uma cadeira da pequena mesa que havia no quarto. ― Acho que realmente o melhor é sentar-me. Tu sempre foste a mais difícil, Tess. Sempre a fazer perguntas a que eu não sabia responder. Nunca tive dúvida de que havias de ser advogada ou médica... Uma coisa importante. ― Depois desta introdução, respirou com dificuldade. ― Eu estou bem, só que às vezes tenho falta de ar. ― Reuniu forças e continuou, de olhos fixos nos dela. ― Mas a verdade, Tess, é que nunca me perguntaste o que aconteceu. Eu fiquei sempre à espera que o fizesses, mas isso nunca aconteceu. Esperei anos a fio.


A mãe de Tess pegou na mão do marido e deixou-se ficar com ela entre as suas. ― Eu vi o que aconteceu ― disse Tess, entre dentes, subitamente insegura e furiosa com a sua fraqueza, da mesma maneira que sempre se sentira furiosa com a fraqueza da mãe. 317 ― O que tu viste foi só uma peça do que aconteceu ― insistiu ele. -― Sempre me surpreendeu que, depois de tantos anos, da tua vida inteira, tivesses acreditado numa coisa assim tão má sobre mim. Como um só momento pode ter apagado uma vida inteira. ― Depois de dizer isto, desviou os olhos. ― Nunca pensei que isso me magoasse tanto. Tess olhou para as mãos dadas dos pais. Apesar de a solidariedade entre os dois a enfurecer, não podia deixar de a invejar. ― Nem eu. Continuei à espera que o pai admitisse que não tinha razão, como sempre nos ensinou a fazer, mas o pai nunca o fez. ― Viu o pai ficar tenso, mas dominar-se para não dizer nada. ― E a mãe... ― Olhou para o rosto desgostoso da mãe. ― A mãe sempre disse que acreditava em mim, mas a verdade é que não acreditava. Deu-me uma estalada por eu estar a mentir e voltou de rastos para ele. O pai voltou apenas a cara para a mulher e perguntou, chocado: ― Bateste-lhe? ― Estava furiosa ― suspirou ela. ― Não fiz bem em ter-te esbofeteado, Tess. Mas estava furiosa, e com medo, também. Mas não rastejei nem para o teu pai nem para ninguém. Perguntei-lhe o que tinha acontecido e acreditei na explicação que ele me deu. ― Os seus lábios esboçaram um sorriso sem alegria. ― Deves achar que sou uma inocente. ― Não foi isso que eu disse. ― Mas fora o que pensara. E ainda era. ― Achas que sou uma inocente por acreditar em ti agora? ― Não ― respondeu Tess com um aceno violento de cabeça. ― Porque eu sei que não fiz nada de errado. O sorriso do pai não tinha ponta de alegria. ― Não te parece interessante como os nossos percursos se assemelham? Porque eu também não fiz nada de mal. Se eu dissesse que nunca tinha olhado para outra mulher, estaria a mentir. Mas juro que nunca toquei em mais ninguém. Nem nesse dia nem noutro. Nunca. A comparação abalou Tess, que começou a vacilar, insegura. ― Ela estava agarrada a si, pai ― recordou num sussurro. Ele olhou-a nos olhos. ― Ela sim, mas eu nunca lhe toquei, Tess. A voz dele deixava transparecer convicção e sinceridade. Além disso, estava ali quando nada o obrigava a isso. Acreditara nela quando mais ninguém parecia acreditar. Seria possível que tudo não passasse de


um mal-entendido? Recordou aquele dia, o que então vira. A flausina agarrada 318 a ele como uma lapa. E ele? Estaria também agarrado a ela? Não conseguia lembrar-se. No entanto, sabia que antes desse dia nunca o apanhara numa mentira. Nem uma vez. O pai parecia aterrado e ela teve consciência de que aquele momento podia abrir a ferida de maneira irreversível ou encerrar o assunto para sempre. ― A verdade é que eu devia ter perguntado e não o fiz. Que aconteceu naquele dia? O pai respirou fundo e os seus ombros largos pareceram descontrairse com o alívio. Tess percebeu que o pai não esperava uma aceitação cega: apenas confiança. ― Ela entrou e disse-me que era uma prenda. Eu tentei convencê-la a sair. Em menos de um ai ela tinha-se despido e eu fiquei sem saber por onde lhe havia de agarrar para a pôr na rua. Ela dizia-me que não me fizesse difícil. Cinco segundos depois entraste tu. Depois de tu saíres disse-lhe que se ela não saísse por ela eu chamava a polícia. Ficou aborrecida. Disse que a tinham avisado de que eu ia ser duro de roer, mas que a caução não estava incluída nos honorários, de maneira que saiu. ― O pai de Tess encolheu os ombros e concluiu. ― E foi tudo. "E foi tudo." Tess esforçou-se por fazer descer o nó que se formava na garganta, enquanto o pai esperava. O sofrimento da expectativa era visível no seu rosto, e de repente a verdade daquele momento horrível foi eclipsada pela desse novo momento que estavam ali a viver. Ele acreditava nela, aquele homem que tinha sido o seu herói. E isso porque a amava. Teria a coragem de não corresponder? Os olhos de Tess encheram-se de lágrimas e o rosto do pai tornou-se enevoado. ― Desculpe, pai ― disse num sussurro. ― Acha que me pode perdoar? ― Anda cá. ― O pai sentou-a num joelho e apoiou o rosto num ombro da filha. ― Não podemos voltar atrás, ao ponto em que as coisas estavam antes? Ela aspirou o aroma de cedro que sempre ressumara da roupa dele. As suas lágrimas foram absorvidas pela roupa de trabalho do pai e desapareceram. ― Parece-me boa ideia. Ele apoiou o rosto na cabeça dela. ― Senti muito a tua falta, minha filha. A mãe apertou o ombro dele. ― Primeiro vais-te deitar um bocadinho. Tu prometeste. 319 ― Vai já, Gina ― disse ele com firmeza olhando para a mulher. Com um gesto desaprovador, a mãe desapareceu na porta que dava para o


quarto contíguo e voltou com uma máscara de oxigénio e uma bomba. Tess abriu muito os olhos. ― O pai tem de andar com oxigénio? E veio de avião? Que loucura é esta? ― Precisava de te ver, filha ― explicou ele, revirando os olhos quando a mãe o obrigou a pôr a máscara. ― Agora é a tua vez, minha filha ― disse ele. ― E podes começar pelo Reagan. ― Ele salvou-me a vida, pai ― contou ela, e viu que o pai empalidecia por baixo da máscara. ― Respire, pai ― disse-lhe, e beijou-o na testa. ― E para a próxima vez veja se lhe aperta a mão... Ele esforçou-se por respirar fundo. ― Está combinado. Quinta-feira, 16 de Março, 8.00 ― Sendo assim o caso está encerrado ― disse Spinnelli com um olhar à volta da mesa. ― Acabou-se. Murphy e Aidan estavam sentados de um dos lados da mesa, Patrick Hurst e Spinnelli do outro. Rick e Jack estavam sentados às cabeceiras. Ninguém parecia satisfeito. Spinnelli franziu o sobrolho. ― Bacon está morto, e nós temos as fotografias, a confissão. Clayborn vai esta manhã a tribunal. A vida de Tess Ciccotelli pode voltar ao normal. ― Embora toda a cidade esteja convencida de que ela é uma falabarato sem respeito pela privacidade dos doentes ― resmungou Murphy. ― Não sei, Marc. Há qualquer coisa que não bate certo. ― Talvez porque não foste tu que prendeste Bacon ― disse Patrick. ― Isso fez-te perder o entusiasmo. ― Isso pode explicar em parte esta impressão ― concedeu Aidan,; recordando como se sentira impotente ao ver Bacon a flutuar morto na banheira. ― Mas não é só isso. Há realmente qualquer coisa que não bate bem. Eu li a avaliação psiquiátrica de Bacon. A propósito, não foi a Tess que fez o trabalho todo. Ela só falou com ele uma vez. A parte principal foi feita por Eleanor Brigham, que morreu antes de o concluir. 320 Murphy pareceu perturbado. ― Acho difícil que ele ficasse a odiá-la assim tanto depois de um só encontro. ― É o que eu penso também ― disse Aidan. ― Bacon era um desequilibrado com um vício específico, que era espreitar. Nunca teve um verdadeiro trabalho. Não era uma pessoa determinada, implacável. O único objectivo dele era espreitar mulheres nuas sem elas se aperceberem disso. ― Não corresponde ao perfil ― disse Jack, pensativo.


― Que perfil? ― perguntou Patrick. ― Ao perfil feito por Tess ― respondeu Aidan. ― Um vuyeur antisocial. Organizado, com objectivos claros e habituado a delegar. Bacon não bate certo. ― Talvez seja esse perfil que não esteja correcto ― sugeriu Patrick. ― Ela tem andado muito perturbada. Aidan encolheu os ombros. ― Mesmo assim ficamos com coisas por explicar. Por exemplo, não se percebe porquê agora. ― Talvez tenha visto o carro-patrulha à frente do edifício do jornal de Lynne Pope ― disse Spinnelli. ― Percebeu que estávamos a aproximarnos e entrou em pânico. ― A pessoa que temos em mãos é fria e calculista, Marc ― argumentou Aidan. ― Andou a torturar Cynthia Adams mais de três semanas. Não me parece do tipo de entrar em pânico. ― Não te parece... ― observou Patrick. ― Queres dizer com isso que não acreditas que tenha sido Bacon. ― Não, não acredito. ― Aidan olhou para a pasta das provas com um sentimento de frustração. ― Mas é só um pressentimento. Spinnelli parecia tenso. ― Aidan, não deixa de ser um facto que temos uma confissão assinada. Temos provas que nunca mais acabam a apontar para Bacon. Até temos fotografias de Hughes morto, no beco, no cartão de memória que tu encontraste. Se não tiveres alguma coisa além de um pressentimento, temos de fechar o caso e avançar para outros. ― Eu continuo incomodado por não termos encontrado o esconderijo dos filmes dele ― observou Rick. ― Ou a máquina fotográfica que tirou as fotografias de Hughes ― acrescentou Jack. Todos se voltaram para olhar para ele. ― O cartão de memória que encontrámos com as fotografias de Hughes não serve para 321 a máquina digital que estava no apartamento de Bacon. As fotografias foram tiradas por uma máquina diferente. ― Merda ― desabafou Spinnelli com ar francamente aborrecido. ― Além disso, ainda há o tipo na fotografia com Connell ― disse Murphy. ― Foi ele que plantou a máquina no apartamento de Seward. São muitos fios soltos, Marc. Spinelli olhou para Patrick. ― O que tens chega-te para arrumares os apelos? ― Para isso as cassetes que encontraste no apartamento da rapariga, da Nicole Rivera, já chegavam. O casaco e a peruca que apareceram ontem foram um bónus. ― Muito bem ― disse Spinnelli, com um dedo no ar, imóvel, na


postura de quem faz um aviso. ― Têm mais um dia. Vejam se arranjam alguma coisa concreta. Tu, Aidan, fica. ― Todos saíram deixando Aidan e o tenente a sós. ― Aidan, gostava de ter a certeza que esta tua impressão vem da tua cabeça, e não de outro sítio qualquer. Quero-te a pensar com a cabeça certa. Aidan respondeu com irritação. ― Não sei a que propósito vem isso, Marc. ― Vem a propósito do meu trabalho. Tu estás envolvido com Tess. Ela ficou em tua casa esta noite. Não é nenhuma suspeita, por isso o problema é teu e dela. Mas não quero estar a desperdiçar os meus esforços a correr atrás de fantasmas só porque tu estás demasiado envolvido para deixar as coisas morrerem. Aidan procurou dominar a irritação. ― Não sou só eu a ver os fios soltos. ― E só por isso é que eu consenti em dar-vos mais um dia, mas tu sabes perfeitamente que tens outros casos à espera, Aidan. Vê se não te esqueces disso. Dessa vez, a resposta do detective foi breve: ― Sim, tenente. Quinta-feira, 16 de Março, 8.15 Tess fechou a porta que dava para o quarto do pai. ― Já adormeceu. De facto, tinha adormecido, mas não ressonava ruidosamente como em tempos, como ela recordava da sua juventude. O sono do pai era 322 frágil, do peito dele saíam quase sussurros intermitentes. Durante o internato passara por um serviço de cardiologia. Recordava a pele cinzenta, a luta por respirar dos doentes. O seu desânimo quando os corações fraquejavam e eles ficavam simplesmente à espera de morrer. Em breve, o seu pai seria um desses doentes. Sentiu a tristeza como uma vaga poderosa que se abatesse sobre ela, deixando-a com um sabor amargo a desânimo. ― Não fazia ideia que ele estava assim tão em baixo ― disse num sussurro. Voltou-se para o sítio onde a mãe e Vito estavam sentados, à janela, a beber café. A mãe parecia calma, mas a angústia nos seus olhos dizia tudo. ― Ele não queria que eu te dissesse. Deus sabe que tens a quem sair com a tua teimosia. Tess sentou-se na cama do irmão, esgotada. ― Ele disse-me que estava na lista de espera para um transplante. ― Sim, é verdade ― respondeu a mãe com um encolher de ombros desanimado. ― Mas na idade dele... Olhou para o lado, procurando esconder as lágrimas. Vito apertou-lhe a mão.


― Mãe, não chore, por favor. Gina olhou para Tess. ― Quando te viu nas notícias... Ficou muito preocupado. ― Tenho muita pena. A mãe abanou a cabeça. ― Agora está feito. Ultimamente, ele tem reflectido muito, tem pensado no que aconteceu convosco, contigo e com ele. Às vezes, quando pensa que está sozinho, chora. Tess sentiu os olhos encherem-se de água. ― Pare com isso ― pediu com voz embargada pelas lágrimas. ― Desculpa. ― Com calma, a mãe bebeu o café. ― Não queria fazer-te sentir pior. Só queria que soubesses como estão as coisas. Os médicos dizem que tanto pode viver um ano como seis meses. O médico dele não ia gostar nada de saber que está aqui. ― Ele não devia ter vindo ― respondeu Tess. ― Não havia nada no mundo capaz de o impedir de se meter naquele avião. Tinha necessidade de fazer as pazes contigo, Tess. Já tinha deixado as coisas prolongarem-se demasiado tempo. ― Depois de respirar fundo, a mãe de Tess pousou a chávena e pôs-se de pé. ― O que ele disse hoje foi absolutamente verdade. 323 Tess fez um gesto de assentimento. ― Eu sei. Mas a mãe acreditou logo nele e eu não. O riso de Gina foi amargo. Tess olhou para a mãe de sobrolho franzido. ― Não percebo, mãe. A... ― Eu sei o que te disse, e também sei o que fiz. Tive de viver com isso nos últimos cinco anos. Eu sabia que nesse dia tinha acontecido qualquer coisa horrível. Voltaste para a loja para me ires buscar e a tua cara estava mais branca que a cal. Mas na altura não me disseste nada. ― Não sabia que fazer. E não a queria magoar. ― Eu sei. O que tu não sabes é que eu já sabia da mulher antes de te ter levado a contar tudo, mais ou menos um mês mais tarde. ― Não estou a perceber ― disse Tess, de novo. A mãe caminhou em direcção à janela. ― Sabias que as prostitutas de luxo têm cartões de visita? Mais tarde, encontrei o cartão dela nas calças do teu pai. Disse a mim mesma que não era nada, que o mais certo era ela ser só uma nova cliente e tu naquele dia teres-te sentido mal, como tinhas dito. Quando por fim te fiz contar o que tinha acontecido... Não sei o que me passou pela cabeça. Fiz uma coisa terrível de que me arrependo desde esse dia. Esbofeteei-te e chamei-te mentirosa e depois confrontei o teu pai com as tuas mentiras. No entanto, ele confirmou o que tu havias dito. Contou-me uma história rebuscada acerca de uma mulher que tinha aparecido no nosso quarto de hotel, que começou a despir-se, e disse-


me que nunca lhe tinha tocado. E, como uma boa mulher, eu disse-lhe que acreditava nele. ― Mas não acreditou ― concluiu Tess num murmúrio. Gina olhou por cima do ombro. ― Qual era a mulher com um mínimo de amor-próprio que acreditaria? ― Mãe! ― O rosto de Vito mostrava como ele estava chocado. Ela suspirou. ― Eu sei, Tess. Depois de ter confrontado o teu pai com o assunto, ele confrontou-te a ti. ― Eu lembro-me. ― A mãe pedira-lhe que fosse a casa. Tinha-lhe dito que precisavam de falar. O pedido começava a fazer sentido. ― Foi nesse dia que ele teve o primeiro ataque de coração. O seu rosto parecia ter-se fechado. ― Tomei conta dele, mas cheia de ódio. Odiava-me a mim mesma por o odiar e por aquilo que te tinha feito a ti. Por fim, quando ele ficou 324 suficientemente bem para isso, disse-lhe que ia a casa da minha irmã para descansar um pouco. Em vez disso, vim aqui. Tess abriu muito os olhos. ― Aqui a Chicago? A mãe nunca me tinha dito. ― Não quis que ninguém soubesse. Ainda tinha o cartão e encontrei a mulher. ― A mãe de Tess voltou-se para a janela. ― Ela lembrava-se do teu pai e confirmou tudo o que ele me tinha contado. Depois de ele a ter posto fora do quarto naquele dia telefonou para a agência. Eles ligaram ao verdadeiro cliente, que pediu desculpa e disse que a prenda dele era, na realidade, para o homem que estava no mesmo quarto, mas no andar de cima. Fui à agência e eles mostraram-me o recibo do cliente. Tess respirou fundo, aliviada e ao mesmo tempo com uma profunda tristeza. ― Foi um erro. E eu perdi cinco anos da minha vida por causa de um erro. ― Depois olhou a mãe com olhos perscrutadores e perguntoulhe: ― Por amor de Deus, mãe, porque não me contou? Por um minuto, a mãe não disse nada. Depois respondeu em voz pausada: ― Porque isso ia obrigar-me a admitir que também não tinha acreditado nele. E quando o olhava nos olhos percebia que não seria capaz de o fazer. Era demasiado importante para ele acreditar que eu tinha acreditado. ― Então porquê contar-lhe agora? ― perguntou Vito com voz pouco firme. ― Porque ela ia ficar furiosa a pensar que devia ter acreditado nele, como eu ― respondeu Gina como se a filha não estivesse ali a ouvir. ― Que não tinha razão e teria atirado com o teu pai para o túmulo com a


teimosia dela. ― Sorriu a Tess com tristeza. ― É verdade ou não? Tess acenou que sim, o nó na garganta ainda a impedi-la de engolir. ― É verdade, sim. ― Sempre foste a menina dos olhos do teu pai, Tess, mais que dos meus. Nestes últimos cinco anos, em que esteve zangado contigo... Isso quase o matou, e não estou a exagerar. Mas lá porque ele tem esse carinho especial por ti não quer dizer que eu te compreenda ou ame menos que ele. Quando ele fez as pazes contigo, eu percebi que também precisava de as fazer. Custa-me mais, porque, ao contrário do teu pai, que não fez nada de mal, eu fiz, e muito. Tenho muita pena, Tess. Houve um longo momento de silêncio durante o qual Vito pregou os olhos no chão, imóvel, e Tess e a mãe se olharam de frente. 325 ― Sabe, mãe, não estou certa se devo sentir gratidão por a mãe ter tentado que eu não me sentisse tão mal, ou se devo sentir-me furiosa por ter escondido tudo isto de mim durante tanto tempo ― murmurou Tess, e Vito levantou a cabeça e olhou as duas com tristeza. ― Suponho que ambas as atitudes têm justificação ― respondeu a mãe num tom calmo. ― Seja como for, a verdade é que antes do dia de hoje quase de certeza não teria acreditado no que me contou. Depois de hoje, não preciso que acredite. Assim, as coisas como que ficam equilibradas. Os seus olhos voltaram-se para a porta do quarto do pai quase sem ela querer. ― Estou com a impressão que devia ficar aqui, vê-lo respirar... Qualquer coisa... ― Ele não ia querer que tu fizesses uma coisa dessas. Quando voltares ele vai estar acordado. Tess olhou para Vito. ― Tenho de limpar o consultório e de lutar contra a Ordem. Bacon está morto e Clayborn está preso, por isso se vocês quiserem ir-se embora podem ir. Tu, Vito, já perdeste muitos dias de trabalho. Vito fez sinal de que não ia. ― O Reagan não acredita que tenha sido Bacon a planear estas mortes. Ele não disse nada, mas eu percebi. Tess sentiu um peso no peito. ― Não, ele não acreditou. E há outra coisa que ainda não sabes. O homem que encontraram morto tinha posto câmaras no meu consultório e em minha casa. Gina fez um sinal de assentimento. ― Sim, e foi por elas que ele soube dos teus doentes. Tu já nos tinhas contado. Tess levantou os olhos para o tecto.


― O que eu não vos contei foi que ele pôs uma câmara na minha casa de banho. Por cima do chuveiro, para dizer a verdade... A chávena que Gina estava a pousar na mesa chocalhou. ― Valha-me Deus! ― disse ela, e foi pouco mais que um sussurro. ― É verdade. Ontem tinha ameaçado que ia vender filmes meus aos jornais. ― Nesse caso fico contente por ele ter morrido ― disse a mãe com satisfação ― O problema é que a polícia não chegou a encontrar os CD. Os CD originais. 326 Vito franziu o sobrolho. ― O Reagan disse que o Bacon destruiu o próprio disco rígido. ― E destruiu. Mas eles estavam à espera de encontrar uma colecção de CD e não encontraram. Estas imagens minhas ainda podem vir a público. Temos de preparar o pai para o caso de isso acontecer. Não vai ser nada bom para o coração dele. ― Tem calma, Tess ― aconselhou Vito. ― Ainda é possível que venham a encontrá-los. Tess pôs-se de pé. ― Está bem, eu vou ter calma. Mas agora vou arrumar o meu consultório e fazer compras para o jantar de hoje. Ajuda-me a cozinhar, mãe? Gina concordou de boa vontade, satisfeita por perceber que a filha lhe oferecera um ramo de oliveira e aceitara o dela. ― Não me parece que precises de mim, Tess, mas é com muito prazer que te ajudo. Quinta-feira, 16 de Março, 8.45 ― Não há dúvida que vocês sabem como proporcionar um bom bocado a uma rapariga ― observou Julia Vanderbeck quando Aidan e Murphy entraram na morgue. ― Convosco não há um só momento aborrecido. ― A autópsia de Bacon mostrou alguma coisa interessante? ― perguntou Aidan, impaciente. Julia sorriu com malícia. ― Mr. Bacon mostrou-me coisas que nunca mais acabam. Se vocês não tivessem aparecido eu tinha-vos ligado. Venham ver. Levantou o lençol que cobria Bacon e Aidan voltou a sentir raiva ao homem, e também ao facto de ele ter conseguido escapar à justiça. Esforçou-se por dominar esse sentimento, ouvindo Murphy perguntar na sua voz tranquila: ― Qual foi a causa da morte? ― Digamos que o teu Bacon podia ter a alcunha de Rasputin. ― Pegou nos braços de Bacon e pô-los numa posição em que se tornaram visíveis lacerações no lado interior. ― Foi cortado, provavelmente pelo


abre-latas que vocês encontraram a um canto da banheira. Aidan levantou a cabeça, atento. 327 ― Foi cortado? Ela fez que sim. ― Foi cortado. Não foi ele que fez isto, embora tudo tenha sido preparado para que pensássemos que foi. Olhem para os braços dele. Os cortes são direitos, de baixo para cima. Isto em geral significa que a vítima quer realmente matar-se, se é que tal coisa é possível. ― Mas...? ― perguntou Murphy, e Julia sorriu. ― O teu rapaz é canhoto. ― Julia pegou-lhe na mão esquerda. ― Tem calo no dedo médio da mão esquerda, de escrever, por isso seria de esperar que o corte no braço direito fosse mais direito e mais fundo. O normal seria que tivesse usado a mão dominante em primeiro lugar, para conseguir fazer mais força. Em geral, o corte no outro braço é menos direito. A pessoa já está com dores e, além disso, já começa a ter menos força no braço que já está cortado, e, por outro lado, também não é a sua mão dominante. Começa e pára. Depois, o corte é menos fundo. ― E Bacon não obedece ao padrão ― resumiu Aidan. ― Pois não. Os cortes são igualmente profundos, e isso é coisa que até hoje nunca vi. Estranhei que fosse possível cortar um homem adulto desta maneira, sem ele dar luta, mas não vi feridas defensivas. ― Estava inconsciente quando foi cortado ― sugeriu Murphy com ar pensativo. ― Não me parece. Lembram-se do relatório toxicológico de Cynthia Adams? ― Cogumelos mágicos ― respondeu Aidan. ― Fenc... ― Fenciclidina ― ajudou Julia. ― Isso não aparece no sangue de Bacon, mas eu encontrei vestígios de uma planta diferente. Ingerida, causa paralisia em certos pontos. Se for inalada, o efeito é mais rápido e alargado. Tenho a impressão que ele estava consciente quando lhe cortaram os pulsos, e penso que sentiu tudo. ― Ainda bem ― disse Aidan num tom sinistro, e Julia quase sorriu. ― Nisso concordo contigo, Aidan. A certa altura perdeu sangue suficiente para ficar inconciente e deve ter deslizado para dentro de água. Com base na quantidade de água na banheira e no tamanho de Bacon, no peso dele, não seria de esperar que a cabeça tivesse submergido, mas a verdade é que tinha os pulmões cheios de água e de sangue. ― Alguém o manteve debaixo de água à força. ― Sim, é o que parece. Mas as feridas dele não se ficam por aqui. Vejam. ― Julia ajustou o braço direito de Bacon para deixar o ombro a vista. ― A certa altura, durante esse dia, foi apanhado por uma bala. 328


― Alvejado, esfaqueado, envenenado e afogado. ― Murphy abanou a cabeça. ― Tens razão. É o Rasputin. De todas essas coisas, qual é que o matou? ― Oficialmente? O afogamento, muito provavelmente. Seja como for, podem ter a certeza que este tipo não se matou. CAPÍTULO 17 Quinta-feira, 16 de Março, 9.35 Jack encontrou-se com Aidan e Murphy no apartamento de Bacon. ― O Rick diz que temos de continuar a procurar o esconderijo dos filmes, que ele tem de ter um, algures. ― Nós continuamos, mas primeiro vamos ver se descobrimos o que aconteceu aqui. ― Aidan dirigiu-se à casa de banho e parou à porta. ― Alvejado, esfaqueado, envenenado e afogado. Como? ― Sabemos que a última coisa foi o afogamento ― disse Murphy. ― O envenenamento foi antes de ter sido cortado, senão as feridas dos cortes não tinham sido tão direitas e regulares. Isso deixa-nos os tiros. Aidan considerou o cenário do crime. ― Estou convencido de que a primeira coisa foi o tiro. ― Porquê? ― perguntou Murphy. ― Lembras-te onde encontrámos a roupa dele ontem? ― Aqui ― Murphy apontou para os pés. ― Uma camisa, uma gravata, cuecas, calças e meias. O casaco do fato estava na sala. ― O casaco cheirava a naftalina e a fumo de cigarro. ― Como a casa da mãe. ― Mas não a urina de gato. Não tinha pensado nisso. Custa-me acreditar que um fato possa ser guardado naquela casa sem ficar com um bocado de cheiro a gato. As camisas da Wires-N-Widets ficaram. ― Ontem encontrámos caixas de roupa na sala ― disse Jack. ― Cheiravam muito a naftalina, mas não encontrámos vestígios de cheiro a urina de gato. ― Ele tinha um armazenamento de CD ― disse Murphy, com um aceno de cabeça. ― Mas porquê o tiroteio primeiro? ― Porque o fato dele também cheirava a suor, mas a camisa cheirava a uma mistura de fumo de cigarro e amaciador de roupa. 330 Murphy olhou-o surpreendido. ― Era uma camisa lavada. ― O homem tem bom faro ― riu-se Jack. ― Eu, por outro lado, tenho bom olho. Vejam isto. Aidan seguiu com os olhos a direcção para onde apontava Jack, para o lado mais distante da parede da casa de banho. ― Um buraco. ― No primeiro dia não tinham reparado nele, induzidos em erro pelas falsas pistas.


Jack passou por eles e observou o pequeno orifício. ― Pode ter sido feito por uma bala. Se assim for, alguém a tirou. Agora só se vêem restos do estuque. ― Voltou-se para trás e olhou para Murphy. ― Entra para aqui. ― Murphy fez o que Jack lhe tinha dito, de costas voltadas para as dobradiças da porta. ― Eu sou Bacon e tu tens uma arma ― disse ele a Murphy e traçou uma trajectória imaginária pelo ar. ― Se raciocinarmos a partir da altura a que está esse buraco na parede e a partir da altura de Bacon e do sítio onde a bala o atingiu no ombro, o agressor estava mais ou menos no sítio onde tu estás agora. E tu és mais baixo que Bacon uns seis a dez centímetros. O Bacon tinha um metro e setenta e cinco, e tu deves ter um metro e sessenta e cinco, mais ou menos. Aidan sorriu desagradavelmente. ― Nesse caso, temos um voyeur com um comportamento anti-social e um complexo de Napoleão. Agora vamos a ver. Tu entras aqui e Bacon está de costas para ti e dás-lhe um tiro no braço. Porquê? ― Para o obrigar a entrar na banheira ou para o obrigar a inalar o veneno? ― sugeriu Murphy. ― Ou ambas as coisas ― disse Aidan. ― E tu levas um tiro no ombro direito, Jack. Que fazes a seguir? Jack agarrou o ombro direito com a mão esquerda. ― Ai! ― disse sem expressão. Aidan riu-se. ― E agora ficaste com uma mão esquerda ensanguentada. ― Vou buscar o Ijuminol ― disse Jack. Meia hora mais tarde, Jack apagou as luzes e no chão tornaram-se visíveis marcas de sapatos e numa das paredes, entre a retrete e o lavatório, apareceu uma mão inteira. Aidan comparou um dos seus sapatos com uma marca. ― Eu calço quarenta e seis. Isto deve ser... Um quarenta e um, talvez... 331 ― Sim, mais ou menos ― confirmou Jack. ― Não parecem sapatos práticos. Sendo assim, o nosso homem mede à volta de um metro e sessenta e cinco e calça quarenta e um. Já é um começo. Também tenho curiosidade em relação à marca da mão. ― Na casa de banho havia uma ripa decorada com flores azuis. Em cima, a parede estava pintada de azul e, em baixo, era forrada com papel de parede. A marca da mão ficava na parte de baixo. ― Se eu fosse Bacon e tivesse uma mão ensanguentada, a minha mão devia apoiar-se num ponto mais alto. Vamos ver porque é que isso não acontece. Jack passou uma lâmina metálica por baixo da ripa e o papel de parede destacou-se numa só folha, sem se rasgar. ― Não estava colado ― disse Murphy. Jack olhou por cima do ombro. ― Os cantos estão gastos. Não somos os primeiros a fazer isto. Aidan


sentiu o pulso acelerar-se. ― O esconderijo dele. ― Iam evitar a Tess muitas situações embaraçosas. ― Depressa, Jack. ― Queres que faça isto depressa ou que faça bem? ― As duas coisas ― respondeu Aidan. ― Este já parece o Spinnelli ― atirou Jack, e Murphy riu-se. ― Agora que o dizes, também me parece. Despacha-te, Jack. Jack alcançou um ponto da parede em que havia um buraco. ― Acende a luz, Aidan ― pediu Jack, que afastou um painel coberto com papel de parede de um metro por setenta centímetros e deixou à vista os encaixes de madeira que suportavam a parede. ― E então? ― perguntou Aidan, depois de Jack ter espreitado com a lanterna. Jack voltou-se, a abanar a cabeça. ― Está vazio. Aidan ficou a olhar para ele de boca aberta, tal era o seu desapontamento. ― Não gostava nada de ter de lhe dizer isto. Mais uma vez, lamentou que Bacon não voltasse à vida para poder matá-lo pelas suas próprias mãos. Jack suspirou. ― Ela já é uma menina crescida. Tenho a certeza que aguenta mais do que tu imaginas. Aidan encolheu os ombros, recordado de que isso era realmente verdade. Tess era uma mulher forte. Só esperava ser ele próprio igualmente forte. 332 ― Tens razão. ― Os cantos da sua boca pareciam descaídos com o desapontamento. ― Disse-me que, se os vídeos fossem divulgados, fazia um calendário e uma digressão promocional. Jack pareceu reflectir. ― Eu não lhe toco, nem sequer olho para ele, Reagan. ― Olhou para os punhos de Aidan. ― Além de prezar o meu casamento, também dou valor à minha cara. Murphy tossiu. ― Vamos acabar isto, aprendiz de Sherlock ― acrescentou secamente. ― Muito bem. Eu sou Bacon ― concentrou-se Aidan. ― Voltei para casa depois de ter falado com Lynne Pope, e estou à espera que Tess me pague cem mil dólares pelos filmes. Depois sou surpreendido por um visitante. ― Olhou Murphy e de repente compreendeu. ― O assassino veio pelos filmes. ― E veio preparado. Deixou todas aquelas provas porque tinha a certeza que íamos andar de nariz no ar à procura de câmaras. Que haverá naqueles filmes que assuste o nosso rapaz? ― Temos de descobrir. Depois tu chegas, dizes-me "Mostra-me onde


tens os teus filmes", e eu respondo que vás para o diabo. ― E eu dou-te um tiro para te obrigar a mostrar-me. Tu agarras-te ao braço e eu repito: "Mostra-me." Jack bateu na parede. ― As tuas mãos estão sujas de sangue quando o fazes. Murphy apontou para a banheira. ― Agora mete-te dentro da banheira, porque eu ainda tenho a minha arma. ― Eu meto-me lá dentro e tu obrigas-me a inalar o veneno. ― Nós encontrámos beatas de cigarros na banheira ― disse Jack. ― Vou mandá-las analisar o mais depressa possível. Aidan concordou. ― Não posso mexer-me, de maneira que tu cortas-me os pulsos, abres as torneiras e ficas a ver-me sangrar. ― Mas demora demasiado tempo ou então eu sou simplesmente um filho-da-mãe cruel ― concluiu Murphy. ― De maneira que mantenho a tua cabeça debaixo de água até tu estares morto e deixo o corpo para os estúpidos dos polícias encontrarem. Aidan olhou para a banheira. ― Depois limpas a parede, mudas de camisa e espalhas as provas falsas para lançar os estúpidos dos polícias numa direcção errada. E assim 333 ficas de mãos livres para planear o crime seguinte. ― Voltou-se para Murphy e disse num tom sombrio: ― As tuas companhias. Quinta-feira, 16 de Março, 11.00 ― Caramba! ― Murphy assobiou quando entrou no consultório de Tess. ― O Clayborn fez um serviço asseado neste sítio. ― Pois fez ― disse Aidan num tom sombrio. ― E ontem à noite quase fez um serviço asseado com a Tess. Murphy fez um trejeito malicioso. ― Gostava de o ter visto depois de ela ter dado conta dele. Denise, a recepcionista, saiu do gabinete de Harrison com um caixote de tarecos. Ficou surpreendida quando os viu. Por fim perguntou: ― Que desejam, por favor? ― Queremos falar com Tess ― disse Aidan, estudando o rosto da recepcionista. Apercebera-se da surpresa dela ao vê-los, mas também lhe pareceu que ela ficara um pouco assustada, e Aidan queria saber porquê. ― Ela tem estado no gabinete dela toda a manhã. ― Com a cabeça apontou-lhes a porta entreaberta do gabinete da psiquiatra. ― Entrem, por favor. Aidan empurrou a porta e os dois deram com Tess de pé no meio da sala, com um bloco de apontamentos na mão e o cabelo apanhado em


rabo-de-cavalo, o que lhe dava ao mesmo tempo um ar jovem e atraente. Quando os ouviu voltou-se e o medo momentâneo deu lugar à satisfação. ― Aidan! E o Murphy! ― acrescentou, quando Murphy fez uma cara de amuo. ― Temos algumas novidades ― anunciou Aidan. ― Por fim, conseguimos ver-nos livres dos móveis partidos ― contou Tess, que mostrou a pequena máquina fotográfica digital que trazia na mão. ― Estou a tomar notas para fazer a participação ao seguro. ― Estás aqui sozinha? ― perguntou Aidan, de sobrolho franzido. ― A Denise está no gabinete do Harrison e o Vito está lá em baixo com os homens que vieram buscar as coisas mais pesadas. O Jon também passou por aqui. ― Com um sorriso, acrescentou: ― O Robin mandou sopa. Aidan correspondeu ao sorriso. 334 ― Sopa para ti, não. Tess riu-se e corou um pouco. Ele percebeu que ela estava a recordar a noite anterior, quando lhe dissera a mesma coisa numa altura em que estava em cima dela, com as suas coxas a rodearem as ancas dele, o peito a tocar o rosto dele sempre que voltava a cabeça. Aidan teve de mudar um pouco de posição para aliviar a pressão na zona da braguilha. Tess pigarreou. ― A Amy trouxe uma planta. Ela tem jeito para as verduras, mas eu vou quase de certeza conseguir matá-la. ― Por fim, mordeu o lábio e perguntou: ― Afinal que aconteceu? ― O Bacon afinal não se matou, Tess ― respondeu Aidan. ― Foi assassinado. Tess expulsou o ar dos pulmões lentamente. ― Estou a ver... Nesse caso, isto não está terminado, não é verdade? ― Não. E tu tens de ter muito cuidado. Tens de estar atenta, sempre em guarda. E não podes ficar sozinha nem um minuto, percebes? ― Sempre me pareceu que era bom de mais para ser verdade. E tu pensaste o mesmo. Vou avisar a Amy, o Jon e o Robin para eles voltarem a estar alerta. Aidan teve vontade de beijar os lábios e o rosto assustado de Tess. ― Avisa o Vito. ― Avisa-me de quê? ― perguntou Vito, que apareceu nesse preciso momento por trás deles. ― Que a saga continua. O rapaz das câmaras foi assassinado. Os meus amigos continuam em risco. Vito ficou irritado. ― Óptimo. E que pensam vocês fazer a respeito do assunto?,


― Investigar ― respondeu Aidan com calma. ― Quando se vai embora? O sorriso de Vito pouco mais foi que uma exibição de dentes:,, ― Aposto que não vou tão depressa como você queria. Tess revirou os olhos. ― Vito! Aidan, os meus pais gostavam de te conhecer hoje à noite. Posso cozinhar em tua casa? Fiquei de fazer eu o jantar. Aidan sentiu um desejo tão forte de lhe tocar que quase não se conteve. No entanto, o olhar de Vito levou-o a manter as mãos nos bolsos. ― Ainda tens a chave? ― Tenho. A Dolly não me come? 335 ― Provavelmente não. Se ela rosnar, chama a Rachel. Ela volta da escola às três. Eu vou ter contigo a casa por volta das sete. Pode ser? ― É melhor ser às oito. ― Os olhos de Tess pareceram ficar mais escuros. ― O velório do Harrison é a partir das sete. ― E eu vou contigo. Agora temos de ir andando. ― Atirou um olhar na direcção de Vito. ― Investigar. Quando caminhava em direcção ao elevador, Murphy atirou um olhar divertido a Aidan. ― Os pais...? ― Podes doar o meu seguro de vida a uma instituição de solidariedade. Combinado, Murphy? Murphy riu-se. ― Combinado. Quinta-feira, 16 de Março, 11.00 Andrew Poston era filho do juiz local e por isso já estava em liberdade sob fiança, enquanto os outros rapazes que tinham violado Marie Koutrell, os que vinham de famílias pobres, continuavam na prisão do condado. Tinha respondido com um breve "inocente" ao juiz, na audiência preliminar, e ouviram-no dizer que se pusesse as mãos na pessoa que o tinha denunciado a mataria com as próprias mãos. Poston tinha mãos grandes, de maneira que a sua ameaça não foi considerada de ânimo leve. O advogado disse-lhe que não falasse de mais e Poston lembrou vários sítios onde ele poderia meter os seus conselhos. Bem feitas as contas, o miúdo tinha um certo estilo. Talvez daqui a alguns anos viesse a ser alguém, desde que conseguisse não os passar na cadeia. Ora isto era capaz de não ser fácil. A vítima tinha dado especificamente o nome dele. Se não houvesse mais nada, isso ainda podia ser contornado ― havia meia dúzia de tipos que confirmariam que tinha sido consensual. O problema é que uma segunda testemunha, anónima, corroborara de forma independente que ele estivera em casa da vítima, embriagado, descontrolado e fizera


avanços sexuais à vítima. Se essa testemunha anónima não recuasse, Andrew Poston tinha boas probabilidades de vir a ter cadastro. Uma noite de borga com uma putéfia que estava mesmo a pedi-las não devia poder dar cabo da vida de um jovem. A testemunha tinha de calar a boca. O facto de essa testemunha também ser a melhor maneira de atingir Aidan Reagan era pura sorte. Era realmente um bom carma. Isso porque 336 Aidan Reagan também tinha de ir. Estava demasiado próximo da Ciccotelli. Pela primeira vez desde que o namorado a deixara, ela... tinha alguém na cama dela. Não podia ser. Reagan também tinha de desaparecer. Matar um polícia era perigoso e não passaria despercebido nem ficaria por punir. O mais prático era assustá-lo e correr com ele. Nesse momento estava em casa, isto é, Andrew e o pai, o juiz. Mrs. Poston parou à porta no seu todo-o-terreno Lexus e entrou em casa com uma expressão preocupada no rosto e um envelope almofadado na mão. Tinha sido entregue nessa mesma manhã, endereçado a Andrew. Como é evidente, se a mãe o tivesse aberto, o impacto não teria sido o mesmo. Ela teria sem dúvida comunicado o que recebera. Ou talvez não. Fosse como fosse, Andrew tinha o envelope nas mãos e, a avaliar pelo ruído transmitido pelo microfone escondido no interior do envelope, estava a abri-lo e encontrara já o CD com opost-it que dizia: "Ouve-me." Houve uma longa pausa. A gravação era má, pouco clara, mas ia dizer-lhe precisamente o que ele queria saber. Dos lábios do rapaz escapou-se uma expressão grosseira bastante criativa. Tinha descoberto o que acontecera. Óptimo. Ouviram-se mais uns ruídos e depois a voz do rapaz. ― Ei, sou eu ― disse ele, com voz abafada. ― Já sei quem me denunciou... Foi a Rachel Reagan. Cabra, a espiar-nos. ― Ficou a ouvir o que lhe diziam do outro lado e depois riu-se. ― Nisso tens razão. Ela tinha sido muito melhor que a Marie. Faz-me um favor. Mostra-lhe a minha gratidão pelos telefonemas dela aos polícias. Quero que a Rachel saiba que nós sabemos que foi ela e que se não recuar vai acabar por se arrepender. E quero que faças o que te disse ainda hoje. Obrigado. Eu não me importava de lhe telefonar, mas durante uns dias tenho de ter juizinho, pelo menos até o assunto morrer. Seguiu-se uma explosão de rock com um volume violento que assinalou o fim da conversa. A cacofonia teve fim com um comando no interior do carro. O motor estava em andamento, no sentido literal e figurado. Um toque no acelerador pôs o carro em andamento ao longo da rua de Poston, em direcção à rua principal. Estava na altura de


voltar ao trabalho. E também de ligar a televisão local para ver se Marge Hooper já tinha sido encontrada. Dessa vez, a Ciccotelli ia ficar realmente perturbada pelas notícias. Em Hughes tinha perdido um amigo, em Hooper uma conhecida. Em breve perderia Reagan, o namorado. 337 Tinha a certeza que ele não ficaria com ela quando soubesse que a segurança da irmã estava em causa. Assim que Rachel fosse devidamente avisada pelos amigos de Poston, o detective Reagan receberia uma mensagem muito mais ameaçadora para a irmã por causa das companhias com que ele andava. Era suficientemente esperto para escolher o melhor para a família. A jogada seguinte seria muito mais rebuscada. Uma desconhecida que tivera a pouca sorte de se cruzar casualmente com Tess Ciccotelli. Isso ia deixá-la louca. Ia sentir-se monstruosamente culpada. Começaria a ter medo de sair de casa, de dizer nem que fosse "bom dia" a alguém. Que ideia deliciosa... Como é evidente, o golpe de misericórdia teria de acertar mais perto. Alguém da família. Com a chegada dos pais e do irmão de Filadélfia as escolhas tinham-se tornado mais variadas. Fora um desenvolvimento inesperado. Uma daquelas facas de dois gumes. Por um lado, os problemas familiares dela tinham-se resolvido, e deixara de ser uma mulher só na grande cidade. Isso era mau. Por outro lado, era deliciosamente irónico. Mal a família se encontrasse novamente reunida, a desgraça batia à porta. Qual deles devia escolher? O irmão ou os pais? Qual a magoaria mais? Mas primeiro um estranho. Quinta-feira, 16 de Março, 12.15 ― Isto não é justo ― murmurou Tess, de pé, à frente do gabinete do Dr. Fenwick com o irmão Vito ao lado. ― Eles sabem que eu não fiz nada errado, mas insistem em suspender-me. Isto faz-me sentir ainda mais culpada. ― Devíamos ter trazido a Amy ― disse Vito. ― Ela podia resolver isto mais facilmente. ― Tens razão, mas eu realmente não estava à espera que ele fosse tão injusto. ― Tess não voltaria a tentar falar com Fenwick sem um advogado ao lado. Era a única linguagem que aquele homem parecia perceber. ― Vamos andando. O pai já deve estar a pé e está na hora de almoço. A caminho das escadas, passou em frente do elevador. ― Dr.a Ciccotelli? Tess, com a mão já no puxador, ficou imóvel ao ouvir a voz atrás de si. 338 ― Jornalistas ― resmungou Vito. ― Era só o que nos faltava.


― Espere. ― Era uma mulher jovem, vestida de executiva. ― A senhora é a Dr.a Ciccotelli? ― Sim ― respondeu Tess. ― E a senhora, quem é?, A mulher, de rosto inexpressivo, entregou-lhe um molho de folhas de papel. Surpreendida, Tess aceitou os papéis e folheou-os. ― Vou ser processada. Vito agarrou nos papéis. ― Por quem? ― Rapidamente, leu a primeira página. ― Os teus doentes estão a processar-te por teres entregado os arquivos à polícia. ― Depois olhou a irmã, intrigado. ― Foste obrigada por um mandado. Não podias ter recusado. Tess pegou nos papéis e riu-se com nervosismo. ― Dor e sofrimento. Cinco milhões de dólares. Não têm hipótese, mas vão causar-me problemas. ― Como é que eles sabiam que tinhas entregado os processos? Tess fez sinal de que não sabia. ― Não faço ideia. Não saiu nas notícias. Que diabo... Que virá a seguir? Como em resposta à sua pergunta, o telemóvel tocou. Era um número local que ela não reconheceu. Sentiu-se tentada a não atender, mas acabou por fazê-lo, não fosse a mãe a ligar-lhe do hotel. ― Tess? É Rachel ― disse a voz da irmã de Aidan do outro lado. Parecia estranha, indiferente. ― Preciso da tua ajuda. É uma emergência. Tess ouviu o pedido de Rachel e lançou-se a correr para as escadas. ― Depressa, Vito. Quinta-feira, 16 de Março, 13.30 Aidan levantou os olhos quando o saco de papel castanho lhe caiu em cima da secretária. Spinnelli estava à sua frente, a olhar para ele, com um sorriso pouco alegre no rosto. ― Parabéns. Aidan abriu o saco e espreitou lá para dentro. ― Baclavás. Sinto-me tocado. Obrigado, Marc ― disse ele com secura. 339 ― Ouvi dizer que é a melhor maneira de te subornar. ― O seu sorriso foi breve. Depressa foi substituído por uma expressão fria e pragmática. ― O teu pressentimento acerca de Bacon estava correcto. E também tinhas razão quando disseste que o meu comentário era inapropriado. Acho que, dadas as circunstâncias, te revelaste muito circunspecto e sensato. Aidan corou e por fim encolheu os ombros. ― Para dizer a verdade, em parte tinhas razão. O meu interesse neste caso também é pessoal. ― Apontou para uma pilha de papéis. ― Há dois dias que não pego no caso do Danny Morris. Com isto, o pai já teve tempo de fugir para o México, se lhe apetecer.


― Mas não fugiu. Está escondido sabe Deus onde. Mais cedo ou mais tarde há-de aparecer. ― Pareces muito seguro do que dizes. Spinnelli sentou-se num canto da secretária de Aidan. ― E estou. O pai de Danny não queria saber do filho para nada. Para ele era um objecto que lhe pertencia, uma coisa com que podia fazer o que entendesse. E não acredita que haja quem se rale com o assunto se ele próprio não ralava. Mas tu ralas-te, e quando ele sair do esgoto onde se escondeu, tu vais estar à espera dele. Hoje, de caminho para casa, procura saber notícias. Vai-te mostrando, para os amigos ficarem nervosos. Algum há-de acabar por falar. ― Obrigado. Foi um bom conselho. ― Nos últimos dias tinha-se esquecido do caso da criança vítima dos maus-tratos do pai e sentiase culpado por não se ter ocupado mais. Spinnelli cruzou os braços sobre o peito. ― Mas diz-me o que tens até agora, Aidan. ― Quando encontrámos o esconderijo do Bacon vazio, no apartamento dele, chamámos o Rick. O Rick disse-nos que estes tipos têm muitas vezes cópias de segurança. O Murphy está neste momento a trabalhar nisso. Achámos que não éramos precisos dois para investigar o assunto. Eu voltei para aqui para ver se descubro alguma coisa sobre a ligação de David Bacon e de Nicole Rivera ao nosso homem. ― Bom trabalho ― disse Spinnelli. ― Procurar as cópias de segurança. ― Não era difícil. Quando arranjámos o mandado para a casa da mãe, encontrámos os recibos da arrecadação em cima da mesa da cozinha. ― Aidan cheirou a manga e concluiu: ― Nunca mais hei-de conseguir tirar este cheiro ao fato. 340 Spinnelli riu-se. ― Eu não queria dizer nada, mas talvez fosse boa ideia passares por casa para mudar de roupa antes de ires buscar a Tess hoje à noite. ― O seu olhar tornou-se mais duro. ― Descobriste mais ligações? Aidan olhou para o monte de papelada com ar contrariado. ― Ainda não. A Nicole Rivera era actriz e empregada de restaurante. Bacon era um antigo presidiário que ganhava a vida a trabalhar numa loja de produtos de electrónica. Verifiquei os movimentos das contas bancárias de ambos e também os registos telefónicos e não encontrei nenhuma ligação entre os dois. A única coisa que tinham em comum é que ambos precisavam de dinheiro. A Nicole Rivera teve de deixar o apartamento onde vivia antes por não ter dinheiro para o pagar, e mudou-se para uma zona degradada da cidade. Se por acaso o nosso homem lhe dava dinheiro pelas imitações, ela não estava a usá-lo para pagar a renda. Hoje à tarde vou falar com a amiga com quem ela, anteriormente dividia o apartamento. Tenho esperança que ela me dê


alguma pista. ― Mantém-me a par. Quando Spinnelli saiu, apareceu Abe, carregado de papelada. ― Estou a acabar os relatórios do Clayborn ― informou com uma careta. ― A Tess chegou-lhe bem. O homem parecia que tinha perdido um combate com o campeão do mundo de pesos pesados. Aidan abanou a cabeça. ― Acho que foi o maior susto que apanhei na minha vida. ― Sim, percebo que tenhas sentido isso. Eu e a Mia estivemos a interrogá-lo até às tantas, ontem à noite, e ele acabou por confessar porque é que não queria que o processo dele fosse conhecido. É que tinha-se candidatado à Academia de Polícia e não queria que a história psiquiátrica dele o prejudicasse. Aidan rangeu os dentes. ― Sim, o perfil psicológico tê-lo-ia afastado de certeza. ― Espero bem que sim. Também queríamos saber como é que ele sabia que a Tess tinha estado contigo em casa dos pais. Acabou por confessar que alguém lhe tinha ligado para lhe dizer que procurasse em tua casa e até lhe deu o endereço. Não quis dizer quem tinha sido, mas eu pedi a identificação das chamadas do telemóvel e do telefone fixo de casa dele. Tens alguns dos números dos conhecidos da Tess? Aidan procurou no meio dos papéis que tinha em cima da secretária, até que encontrou a lista dos números de telefone que tinham ligado para o consultório de Tess. 341 ― Ela só recebeu um telefonema em casa. Foi na primeira noite, de Cynthia Adams. Os outros dois foram no telefone do consultório. ― Levantou os olhos para Abe. ― Não nos deixou pôr o telefone do consultório sob escuta, para manter a confidencialidade dos doentes. ― O teu rapaz sabe isso ― disse Abe. ― E aproveita para explorar a preocupação dela com a ética profissional. Aidan comparou os números de telefone na lista de Clayborn com os da lista de Tess. Sentiu o pulso acelerar-se. ― Há um número que aparece nas duas. O da chamada que ela recebeu a propósito do Seward. Foi a Nicole Rivera que fez essa chamada. ― Levantou os olhos para o irmão. ― Nunca chegámos a encontrar nenhum telemóvel em casa dela. ― O assassino levou-os. ― Nessa altura ainda não tínhamos comunicado o nome de Clayborn à imprensa, Aidan, mas apanhámos o número dele. Havia uma chamada para ele. Aidan sentiu o sangue a ferver. ― Nesse caso, ele sabe que ela está comigo. Acenou com carne suculenta à frente dos olhos de Clayborn. Filho-da-mãe. Consegue


sempre alguém que lhe faça os servicinhos sujos. ― Voltou a olhar para os números de telefone na lista do consultório. E franziu o sobrolho. ― Há aqui uma coisa em que ainda não tinha reparado. Tenho estado tão preocupado com as chamadas entradas, que ainda não tinha olhado para as que foram feitas de lá. Abe pôs-se atrás do irmão e inclinou-se sobre o ombro dele. ― Estavas a falar da chamada para o número de emergência? ― Sim. A Tess recebeu a chamada a avisá-la do Seward às quinze e quinze e disse que saiu e pediu à Denise que ligasse para o número de emergência. ― Denise é a recepcionista? ― Sim. ― As rugas na testa de Aidan eram cada vez mais pronunciadas. Pegou na lista das chamadas feitas do consultório. ― A Tess ligou-me às quinze e vinte e dois, sete minutos mais tarde. Abe endireitou-se. ― Mas ela só ligou para o número de emergência dez minutos depois de a Tess ter saído. Aidan olhou por cima do ombro. ― A Tess disse-me que não sabia por que razão a polícia tinha levado tanto tempo a chegar a casa de Malcolm Seward. A intenção dela 342 não era intervir, mas Seward tinha uma arma apontada à cabeça da mulher. Estava à espera que os polícias chegassem mais depressa. ― E era o que tinha acontecido, se a Denise tivesse ligado logo. Porque diabo não terá ela ligado logo a seguir? Aidan reviu mentalmente a imagem da recepcionista. Denise tinha acesso aos processos dos doentes de Tess e mesmo aos próprios doentes. Às histórias deles e também aos endereços e aos números de telefone. Estava lá quando o carteiro tinha entregado o CD, por isso também tinha conhecimento dos filmes não autorizados de Bacon. Quando ele e Murphy tinham estado no consultório de Tess, nessa manhã, para lhe contar do assassinato de Bacon, não conseguira olhálos nos olhos. Aidan espalhou vários papéis pela secretária e começou a estudá-los. ― Denise Masterson, aqui está. Já recolhi os elementos dela. Não tem cadastro. ― Releu rapidamente as poucas coisas que soubera da secretária. ― Já trabalha para o consultório há seis anos. Antes disso, andou na faculdade. Não está endividada. Tem um carro com dez anos e divide a casa com uma amiga. É tudo o que sei dela. ― Tamborilou os dedos enquanto reflectia. ― Daqui a uma hora tenho de sair para ir falar com a amiga da Nicole Rivera. Depois dou um salto ao consultório para falar com a Denise. ― Talvez pudesses perguntar à Tess. ― Perguntar-lhe o quê? Tess viu os homens voltarem-se, com a surpresa espelhada nos rostos


de ambos. De costas pareciam gémeos, de ombros largos, camisas brancas e calças pretas. Tinham a mesma cor de cabelo e coldres iguais. Mesmo assim, Tess teve a certeza que seria capaz de identificar Aidan numa sala cheia de homens com o mesmo aspecto. As suas mãos tinham percorrido o corpo dele a noite anterior. E nesse momento aproximava-se para lhe dar más notícias. Aidan olhou-a com olhos ansiosos. ― Que aconteceu? ― Senta-te. Sentem-se ambos. ― Tess... Ela levantou a mão. ― Por favor. ― Aidan sentou-se na cadeira e Abe na secretária. Ambos tinham a mesma expressão preocupada. 343 ― Foi a Rachel. ― Puseram-se os dois de pé de um salto, ambos pálidos e ansiosos. Com um sorriso silencioso, Tess apressou-se a tranquilizá-los. ― Ela não ficou muito magoada. ― Onde é que ela está? ― A voz de Aidan estava carregada de raiva ― Não te ponhas a brincar connosco, Tess. ― E parece-te que estou com cara de brincadeiras? ― perguntou ela num tom cortante. ― Sentem-se, por favor, os dois. Para começar, já foi por causa disto que ela não vos ligou, a nenhum de vocês. ― Devagar, ambos acabaram por se sentar. ― Ela está à espera lá em baixo, no átrio, com o Vito. Telefonou à Kristen e à outra cunhada, mas as chamadas foram para os atendedores. Ela não queria que vocês nem os pais a vissem como ela está e eu ontem tinha-lhe dado o meu número, quando estive a ajudá-la com o trabalho de casa, de maneira que hoje telefonou-me para eu a ajudar a arranjar-se antes de vocês a verem. Aidan engoliu em seco, ainda pálido. ― Mas tu... Nós vamos precisar de provas... ― Eu fui com ela às urgências ― explicou Tess quando percebeu como eles estavam tensos ― mas não por ela estar muito mal. Precisou de alguns pontos, e foi tudo. Liguei a um polícia que fez um relatório e tirou algumas fotografias e depois trouxe-a para aqui. ― Baixou-se ao lado da cadeira de Aidan e pegou-lhe na mão. ― Deram-lhe uma sova e rasgaram-lhe a roupa, mas parece pior do que é na realidade. Não lhe fizeram mais nada, percebes? Ainda tenso, ele acenou afirmativamente. ― Quem foi? ― Dois rapazes da escola dela. Lembra-te que ela já passou por um mau bocado esta tarde. Não tornes as coisas ainda mais difíceis. Vê se não fazes essa cara. ― Depois olhou para Abe e acrescentou: ― E tu também. Vocês estão os dois com cara de quem vai matar alguém, e ela está assustadíssima com a ideia de que vocês vão perder a calma e


ficar sem emprego. Abe respirou fundo e fez um esforço por se acalmar. ― Vai lá abaixo buscá-la. Quando percebeu que não podia fazer mais nada, Tess foi ter ao sítio onde Rachel esperava com Vito. Tinha o casaco novo de Tess à volta dos ombros e a gola levantada para lhe proteger as orelhas. ― Já os preparei tanto quanto isso é possível, Rachel ― disse-lhe ela. ― Vamos lá a isto. ― Eles vão ficar tão furiosos... ― sussurrou Rachel, com os lábios a tremerem. 344 ― Claro que vão. E têm o direito de ficar assim, mas eles são boas pessoas. Não vão fazer nenhum disparate. ― Pegou no braço de Rachel e levou-a para a sala ampla onde ambos tinham as secretárias. Bastou olharem para a irmã para cerrarem os punhos de raiva. Rachel tentou sorrir. ― Não é tão mau como parece. Na verdade, graças a algumas pedras de gelo e a alguns truques de primeiros socorros, já não tinha o aspecto com que ficara depois de ter sido agredida. Aidan forçou-se a sorrir. ― Não sei, esquilinho. Não me pareces muito bem. ― Afastou a cadeira da secretária. ― Senta-te. ― Rachel aproveitou para fazer o que o irmão lhe dizia, aliviada. ― Conta-nos o que te aconteceu. ― Fui apanhada numa das escadarias interiores da escola. Agora que penso, acho que eles planearam tudo, porque, logo a seguir, a campainha tocou e toda a gente desapareceu. Apanharam-me por trás e taparam-me os olhos. Ainda lhes dei luta, mas eles eram muito mais fortes que eu. Tanto Aidan como Abe iam ficando mais pálidos, e Rachel estremeceu ao recordar tudo o que acontecera. ― Pensei que me iam fazer o que tinham feito à Marie, mas não fizeram. Enfiaram-me um trapo na boca e bateram-me. Rasgaram-me a blusa e atiraram-me contra uma parede e fizeram-me estas feridas na cara. Depois disseram-me que contasse até cinquenta antes de me levantar. Decidi não ir falar com o director porque sabia que ele ia chamar o pai e a mãe, e eu não queria que eles ficassem preocupados. Acabei por fugir pelas traseiras e fui para casa a pé. Aidan abriu as palmas das mãos e esmagou-as contra as pernas abertas. ― Porque não tocaste o alarme? ― Não funciona. Os alunos estão sempre a tocá-lo para não terem aulas. ― Eles disseram alguma coisa, Rachel? ― pediu Abe. Ela estremeceu.


― Disseram que não abrisse a boca. E também me chamaram nomes. Abe levantou-lhe o queixo com delicadeza. ― Achas que eras capaz de os identificar? ― Acho que sim ― respondeu Rachel. ― Quando eles se iam embora eu vi-os. Posso identificá-los. 345 ― Ela já deu os nomes ao polícia que fez o relatório ― disse Tess..― Eles já saíram para os ir buscar. O sorriso de Aidan mostrava insegurança. ― Assim é que é. ― Com o dedo, tocou o penso que a irmã tinha por cima do olho. ― Quantos pontos levaste, miúda? ― Só três. ― O ano passado quando caíste a patinar no gelo levaste mais. Quantos foram? Nove? ― Onze. ― Rachel respirou fundo, aliviada. ― Estás mais calmo do que eu estava a contar. O sorriso de Aidan desapareceu. ― Isso é porque eu sei muito bem fingir. ― Porque não nos telefonaste? ― perguntou Abe. Rachel olhou para os dois à vez. ― Porque me parecia muito pior e eu não queria que o pai e a mãe ficassem preocupados, por isso lembrei-me de ir para tua casa. ― Desviou os olhos e continuou: ― Eu sei que foi estúpido pôr-me a caminho sozinha, mas não estava a pensar com clareza. ― Não tem importância ― disse Aidan. ― Acontece aos melhores. Quando é que os viste? ― Olhei para trás e vi que eles vinham atrás de mim, e foi nessa altura que me assustei mesmo. ― O sorriso de Rachel era triste. ― Devem ter pensado que eu ia falar e tiveram medo. Vieram a correr atrás de mim, mas eu fui mais rápida. Cheguei a casa e soltei a cadela. ― A última parte foi contada num tom importante com a intenção de os fazer rir, mas a situação era demasiado grave para isso. ― A Dolly pregou-lhes um grande susto ― concluiu ela. ― Essa parte foi gira. O sorriso de Aidan foi feroz. ― Chegou a apanhar algum? ― Não. ― Os lábios de Rachel abriram-se num sorriso que lhe chegou aos olhos. ― Mas um deles teve de ir a casa trocar de calças. A Dolly foi o máximo. Tentei ligar à Kristen e à Ruth, mas as chamadas foram parar ao atendedor. A Tess tinha-me dado o telefone dela por causa do trabalho de casa de ontem, de maneira que acabei por lhe ligar. Como ela é médica, achei que devia saber o que fazer. ― Como é que conseguiste que ela fosse cosida sem ninguém de família? ― perguntou Abe. ― Ela é menor. Tess olhou para Rachel.


― Fui eu mesma que a cosi. Até terça-feira tinha autorização para entrar no County a qualquer hora, de maneira que tenho um distintivo 346 e ninguém me perguntou nada. Além disso, foi lá que fiz o internado, por isso sabia onde estão guardadas as coisas. O hospital não tem responsabilidade por nada. Só eu. ― Piscou o olho a Rachel. ― Mas se quiserem processar-me vão ter de ir para a fila. Aidan franziu o sobrolho. ― Que significa isso? ― Três dos meus doentes decidiram processar-me pessoalmente por lhes ter infligido sofrimento ao entregar-vos os processos deles. ― Os seus lábios esboçaram um esgar sombrio. ― E embora antes eu tivesse dinheiro, agora estou sem um cêntimo. ― Passou a mão pela cabeça de Rachel. ― Mostra-lhes o resto, querida. Eles vão ter de ver, de qualquer maneira. Com um suspiro, Rachel baixou a gola do casaco. O seu cabelo forte e negro estava transformado numa carapinha desarranjada que mal lhe cobria a nuca. ― Na verdade, até gosto ― disse ela num tom ligeiro. ― Devo ter perdido dois ou três quilos de cabelo. Chocado, Aidan levou os dedos ao cabelo da irmã. ― Céus, Rachel, que pena... ― Deixa-te disso ― respondeu-lhe a irmã com brusquidão, pegando na mão dele com as dela. ― É cabelo, Aidan. Só cabelo. Além disso, já marquei uma ida ao cabeleireiro para resolver isto. Tess concordou. ― Um dos empregados do Robin faz uns biscates como cabeleireiro. Ele vai deixar-te maravilhosa. Um bom corte, umas madeixas... Rachel deu uma palmadinha na mão de Aidan. ― Ainda vou sair deste caso melhor do que entrei. ― Parece-me que tomaste bem conta do assunto, Tess ― observou Abe. ― Só mais uma coisa. Qual foi o polícia que recolheu o depoimento dela? ― Tess olhou através da sala para a secretária vazia ao lado da de Abe, que suspirou. ― Eu devia ter calculado que tinha acontecido alguma coisa para ela se demorar tanto à hora de almoço. Onde está a Mia agora? ― Recebeu outra chamada quando vínhamos a sair das urgências. Não deve ter sido há mais de vinte minutos. Pedi-lhe que não te dissesse nada, que me desse tempo de falar contigo. Ela disse-me que depois lhe ligasses. ― Nesse caso, devo ter um serviço à espera. ― Abe passou o dedo pelas feridas do rosto de Rachel. ― Para a próxima, telefona-nos. Nós já somos crescidos e sabemos dominar-nos. 347


― Está bem. ― Com as coisas terminadas, os olhos azuis de Rachel encheram-se de lágrimas. ― Desculpem. ― Abe ajoelhou-se ao lado dela e abraçou-a longamente. ― Meu Deus, Abe, tive tanto medo... ― Eu sei, mas também foste muito corajosa. Não quero que voltes a ser tão corajosa como desta vez, está bem? Com um arrepio, Rachel fez um gesto afirmativo e Abe abraçou-a uma vez mais antes de se pôr de pé e de abraçar igualmente Tess. Beijou-a na cabeça. ― Obrigado ― disse ele, e deixou-a com um sorriso sem alegria. ― Quando isto tiver passado, gostava que lhe ensinasses tudo o que fizeste a Clayborn ontem à noite. Foi mesmo, mesmo fixe, Tess. ― Eu ensino, mas agora vai andando. A Mia está à tua espera. Aidan sentou-se à beira da secretária e cruzou os braços sobre o peito. ― Que hei-de fazer contigo, esquilinho? Tenho algumas chamadas para fazer. ― Podíamos levá-la connosco para casa, eu e o Vito ― sugeriu Tess. Aidan viu Vito de pé, encostado à parede, como se só então se recordasse de que ele ali estava. ― Obrigado, eu... ― O telefone de Aidan tocou e Tess admirou as linhas do corpo elegante dele quando se estendeu para o atender. ― Fala Reagan... Sim. ― Os olhos dele voltaram-se para Tess, que teve a impressão que ele tinha ficado ainda mais pálido que antes. ― Vai chamar Spinnelli ― pediu. Tess foi a correr, mas na altura em que voltou com o tenente, Aidan já tinha desligado e estava a fazer outra chamada, para pedir que a que acabava de receber fosse identificada. Os olhos de Spinnelli ficaram presos a Rachel. ― Meu Deus, que aconteceu? Tess observava Aidan, cada vez mais inquieta. Ele estava claramente alterado, mas parecia evitar os olhos dela. ― Aidan? Quem era? Que disseram? ― Tess abanou-lhe o braço e insistiu. ― Aidan? Olha para mim, por favor! Ele acabou por fazê-lo, devagar, e segundos depois o músculo do maxilar dele parecia repuxar o rosto. Depois, os seus olhos voltaramse na direcção de Rachel e detiveram-se nela. E Tess percebeu. Cobriu a boca com as duas mãos e recuou um passo. 348 ― Não! ― Pensou na maneira como encontrara Rachel, ferida, a sangrar e com medo. Já era mau pensar que fora uma vingança por causa da denúncia dela... Engoliu em seco, mas teve a impressão que o ácido do estômago lhe queimava a garganta. ― Serás julgado pelas tuas companhias? ― sussurrou. Aidan acenou afirmativamente. ― Que diabo ― exclamou Spinnelli. Depois pegou na cadeira de


Murphy e contornou as secretárias com ela a deslizar pelo chão. ― Sente-se, Tess, antes que desmaie. E quem é o senhor? ― Vito Ciccotelli. ― Atrás de Tess, a voz pareceu grossa, e as mãos dele pousaram nos ombros dela e ajudaram-na a sentar-se. ― Sou da polícia de Filadélfia e sou irmão dela. Spinnelli apertou os lábios com força. ― Vou ligar ao teu pai para ele te vir buscar, Rachel. ― Não ― pediu Rachel. ― Serás julgado pelas tuas companhias? Que quer isso dizer? ― Quer dizer que foste magoada por me conheceres ― explicou Tess num tom de voz infeliz. ― E não és a primeira. Rachel voltou a abanar a cabeça num gesto de negação. ― Aqueles rapazes são amigos dos estupores que violaram a Marie. Não tinham nada a ver contigo. Tess voltou-se para olhar de frente para Rachel. ― Como é que achas que eles descobriram que tinhas sido tu, Rachel? Rachel abriu a boca e voltou a fechá-la quando percebeu o que Tess queria dizer. ― Aquelas pessoas todas... Morreram só porque te conheciam?! ― perguntou, de olhos esbugalhados. Horrorizada. ― O teu colega médico também? Tess fez um gesto afirmativo, a cabeça a andar à roda e o corpo inerte e sem forças. ― E o porteiro que também era meu amigo. Spinnelli hesitou. ― Tess. Os seus olhos pareceram atravessar o espaço vazio em direcção aos dele. Spinnelli abanou a cabeça com tristeza, e Tess teve a impressão que o coração lhe parava de bater no peito. Os seus lábios não queriam pronunciar a pergunta. ― Conhece uma mulher chamada Marge Hooper? 349 Ela pestanejou, devagar, sem perceber. ― A dona da garrafeira. ― Tenho muita pena, Tess. A Mia tinha acabado de me ligar quando a Tess me foi chamar. Está no local neste preciso momento. O Abe também vai a caminho. A sala começou a andar à roda e Tess fechou os olhos, procurando concentrar-se na força das mãos de Vito nos seus ombros. ― Como? Spinelli pigarreou. ― Não me parece... Tess abriu muito os olhos e enfrentou Spinnelli. ― Deixe-se de merdas ― pareceu silvar, entre dentes. ― Diga-me imediatamente, Marc! Ele olhou de relance para Rachel, que continuava a ouvir, boquiaberta.


― Aqui não. E agora também não. Rachel, vou ligar ao teu pai para ele te vir buscar. Aidan pôs-se de pé. O seu rosto estava imperscrutável. ― Eu levo-a a casa, Marc ― disse num tom sombrio. ― De qualquer maneira tenho de sair. Vem, Rachel. A irmã pôs-se de pé, com a impressão que lhe faltava a força nas pernas. Aidan teve de a ajudar pegando-lhe num braço. Começou a tirar o casaco de Tess, que lhe disse: ― Podes ficar com ele. ― Olhou para os olhos inexpressivos de Aidan e acrescentou: ― Seja como for, devo uma ao teu irmão. Ele não disse o que quer que fosse. Limitou-se a acenar-lhe e afastouse. Magoada, Tess nem sequer se mexeu. Ele tinha saído. Sem uma só palavra para ela. De qualquer maneira, que poderia ter dito? "Adeus, Tess. Obrigado por uma bela noite de sexo, mas por tua culpa a minha irmã quase morreu." Aidan tinha razão para se afastar. Não tinha o direito de lhe querer mal por isso. Só por ser visto com ela pusera em risco a irmã, toda a sua família. Todos os que tinham sido alvo da atenção do criminoso estavam mortos. Rachel também podia ter morrido. E nesse momento nada tinha mais importância que a segurança de Rachel. "Nem sequer o teu coração, Tess", pensou. Nem sequer isso. ― Aquele filho-da-mãe! ― resmungou Vito. ― A minha vontade era... 350 ― Pára com isso, Vito. Que podia ele fazer? Vamos limitar-nos a marcar mais pontos para o assassino ― respondeu Tess num murmúrio. ― Ele já conseguiu que os meus pacientes tenham medo de mim. Agora as pessoas de quem gosto também começaram a recearme. Vito ajoelhou-se ao lado dela e pegou-lhe na mão fria entre as suas mãos quentes. ― Vem comigo para Filadélfia, Tess. O teu lugar é lá. -― Não posso. Pelo menos não antes de tudo isto estar terminado. Não vou fugir e esconder-me. ― Levantou os olhos para Spinnelli e pediu-lhe. ― Conte-me o que aconteceu com a Marge. ― Cortaram-lhe a garganta algures entre a meia-noite e as quatro da manhã. Tess fechou os olhos, depois voltou a abri-los, incapaz de olhar a imagem que a recordação evocara. ― A Marge tem dois filhos. Estão os dois na faculdade. O rosto de Spinnelli era amável. ― Nós vamos procurá-los e dizer-lhes o que aconteceu. E outra coisa, Tess. Acerca do Aidan. Ele não quis ser brusco. O problema é que ele ficou em choque, como a Tess.


Ela levantou-se com as pernas a tremerem e disse: ― Vito, podemos ir embora. Leva-me a casa do Aidan. Vito ficou boquiaberto. -― Depois daquilo? Depois de ele te ter tratado daquela maneira?! Ela fez-lhe sinal de que sim. ― Acho melhor ir buscar as minhas coisas ― disse ela, e relaxou uma fracção de segundo. ― As minhas coisas e a Bella. Se o hotel não me deixar levar a Bella, talvez a Amy possa ficar com ela até eu poder voltar para casa. ― Não faça disparates, Tess ― pediu Spinnelli. ― Por favor. Ignorando o pedido dele, ela encolheu os ombros e levantou os olhos para ele. ― Marc, alguém que estava a observar-me sabia que a Rachel teve alguma coisa a ver com a participação daquela violação à polícia. Isto já foi para além de prejudicar a minha reputação ou de quaisquer outros motivos doentios que este estupor possa ter tido. Alguém quer atingir-me e não se importa com quem tem de sofrer para isso. ― Tess suspirou. ― E eu não faço ideia de quem possa odiar-me a esse ponto. CAPÍTULO 18 Quinta-feira, 16 de Março, 14.00 Aidan meteu-se no trânsito, com o telemóvel colado à orelha. ― Kristen? ― Aidan. ― Kristen parecia irritada. ― Eu hoje estou pelos cabelos. Isto é demorado? ― A Rachel foi agredida. ― Ao lado dele, Rachel olhava pela janela do carro abanando a cabeça, desaprovadora. ― Valha-me Deus! ― A actividade de fundo interrompeu-se subitamente. ― E é grave? ― Levou alguns pontos. Estou a levá-la para casa neste momento. ― E ali estava uma coisa que detestaria fazer. Só de pensar na maneira como os pais iam olhar para ele... Na preocupação e no medo. E na acusação. Não que fizessem de propósito, mas ele e Abe tinham garantido ao pai que ela não correria nenhum risco. Tinha sido estúpido fazer uma promessa daquelas. ― És capaz de me dizer se algum dos rapazes que ela denunciou saiu sob fiança? Aidan ouviu o teclado a matraquear. ― Só um. O Andrew Poston saiu esta manhã sob fiança. O Andrew é filho de um juiz. Isto não vai ser bonito, Aidan. ― Não quero saber quem é o paizinho dele. Quero um mandado para revistar a casa dele. ― Aidan... ― Kristen hesitou. ― Tu não devias estar envolvido neste assunto. Não é do teu departamento. ― Eu recebi uma chamada depois de Tess me ter trazido a Rachel, Kristen. A pessoa que ligou disse que para a próxima seria pior, a não


ser que a minha irmã mudasse de companhias. A exclamação de Kristen foi audível através do aparelho telefónico. 352 ― O Abe falou-me do porteiro e da nota. A pessoa que ligou era um homem ou uma mulher? ― Não consegui perceber. A voz estava distorcida. Kristen suspirou. ― Está bem. Eu vou tentar arranjar-te um mandado. Promete-me que levas o Murphy. ― Prometo, fica descansada. Tenho outra chamada em linha. ― Carregou noutra tecla e atendeu. ― Fala Reagan. ― Sou eu, o Murphy. Encontrámo-los. Aidan levou um segundo a perceber. ― Os vídeos de Bacon? Encontraste-os? Todos? ― Devem ser as cópias de segurança. Estavam todos organizados por ano. Mulheres e... miúdas. Meu Deus ― Murphy parecia indisposto. Nunca tinha visto uma coisa assim. ― Murphy, os de... ― Da Tess? ― perguntou ele, percebendo a preocupação do amigo. ― Eu arranjo uma mulher-polícia para ver esses. ― Obrigado. Vai ter a minha casa que eu estou a chegar. Temos muito que fazer, além disso prometi à Tess que ia com ela ao velório do Harrison Ernst hoje à noite. ― Meteu o telefone no bolso e olhou para Rachel, que o olhava de olhos muito abertos. ― O que é? ― Hoje à noite vais sair com ela? Com a Tess? ― Não é uma saída romântica. é um velório. Mas vou, sim. Vou sair com ela hoje à noite. Porquê? ― Porque acabaste de sair de ao pé dela como se não tivesses a menor intenção de voltar a vê-la. ― Que disparate! Ela não pensou uma coisa dessas. ― Pensou sim, Aidan. Eu vi a cara dela quando ias a sair. Foi como se achasses que a culpa tinha sido dela e tu tivesses ficado aborrecido. Eu nem soube o que havia de lhe dizer. Ela tinha sido tão simpática comigo e tu ficaste tão aborrecido com ela... ― Eu não estava aborrecido com ela. Ela tem obrigação de perceber isso ― protestou Aidan. ― Eu só sei o que vejo. Se eu fosse a ti telefonava-lhe, ou então ela ainda te deixa. Ela é muito mais simpática que a Shelley, Aidan. A Shelley achava-se melhor que nós. Já a Tess... A Tess é como nós. ― Como é que tu sabes? Até agora, passaste menos de quatro horas com ela. Rachel olhou-o com uma compreensão de adulta. 353 ― Ontem à noite e hoje ela falou-me da família dela. Em parte, foi para eu não sentir tanto as dores quando me estava a coser, mas, em


parte, acho que ela também precisava de falar com alguém. Tem piada. Nunca tinha pensado que os psiquiatras também podem precisar de falar com pessoas. A família dela parece ser como a nossa, só que o pai está doente. Ela acabou de saber que o pai precisa de um transplante de coração, senão pode morrer. Aidan sentiu um aperto no próprio coração. ― Pobre Tess. A juntar a tudo o mais... ― Telefona-lhe, Aidan. Não a deixes escapar-se, ou então dou-te um pontapé no rabo. Pensando bem, digo-lhe que te aplique o mesmo tratamento que ontem aplicou ao outro. Foi o máximo! Era verdade, tinha sido o máximo. E depois de ter apanhado um susto de morte, o sexo fora ainda melhor, ainda mais excitante. O melhor de sempre. Tess era definitivamente muito diferente do que ele começara por imaginar. ― Como é que saíste tão esperta, miúda? Rachel sorriu-lhe e Aidan ficou sem saber quando é que ela teria crescido. ― Tenho bons genes... Quinta-feira, 16 de Março, 14.55 ― Tess! Que aconteceu que nunca mais te despachas? ― gritou Vito da cozinha. ― Não consigo meter a Bella na caixa. ― Tess estava sentada num canto da cama de Aidan, exausta. Olhou para a coberta que ela e Aidan quase tinham destruído nas quatro vezes que tinham... Nesse momento teve distanciamento para ser honesta consigo mesma. O sexo fora realmente bom. E um dia, depois de tudo aquilo ter terminado e ela já não ser uma ameaça para ninguém, talvez pudessem voltar a experimentar. No entanto, não lhe parecia possível, pelo menos nesse momento. Aidan tinha-se afastado como se ela estivesse contaminada com a peste. De resto, era precisamente o que acontecia. Fosse como fosse, tudo parecia pior num dia daqueles. O dia de Marge Hooper fora francamente pior. A Marge tinha morrido. A ideia começara a penetrar na sua mente a caminho da casa de 354 Aidan. Ela e Marge não tinham sido realmente amigas. Eram maisconhecidas. Mas agora estava morta e a mensagem era clara. Ninguém que conhecesse Tess estava livre. ― Hoje foi mesmo um dia de merda, Bella ― disse Tess à gata, que estava sentada ao pé dela, mas preparada para se escapulir outra vez. As revelações dos pais, o processo dos doentes, ter de coser a cabeça a Rachel e depois ver Aidan afastar-se... E como pano de fundo Marge, Mr. Hughes e Harrison. ― Ontem pensei que já nada podia piorar, mas não tinha razão. ― Pôs-se de pé e continuou a falar para a gata. ― Por


isso, vê se paras de me chatear e vem cá para eu te meter dentro da caixa. ― Estendeu-se, mas isso só serviu para a gata se escapar outra vez, desta vez para cima da estante que ocupava uma parede inteira do quarto de Aidan. As prateleiras estavam todas elas vergadas com o peso dos livros. De repente ouviu vozes exaltadas de dois homens e apercebeu-se de que Vito e Aidan discutiam na cozinha. Com um gesto cansado, Tess decidiu não intervir. Afinal já eram os dois meninos crescidos. E ela tinha de apanhar a gata. Em bicos de pés, esticou-se em direcção ao pescoço de Bella no preciso momento em que Aidan apareceu à porta do quarto, com ar furioso. ― Que diabo estás tu a fazer? ― Estou a tentar apanhar a maldita gata, e isto não está a correr bem. ― Tess... Cuidado! Sentiu a estante ceder e as mãos dele apanharem-na, ao mesmo tempo que os dedos dela se cerravam à volta da coleira da gata; depois teve a impressão de que tudo se desmoronava à sua volta. A gata saltou e a estante oscilou, atirando um monte de livros para o chão. Bella conseguiu escapar, nervosa. Tess ficou parada, com a coleira presa na mão, o coração a bater a cem à hora, porque Aidan protegera-a da queda da estante com um braço e o corpo dela tinha ficado encostado ao corpo duro dele. ― Magoaste-te? ― perguntou ele com a sua voz grave e áspera. ― Estou desorientada, Aidan ― disse ela com uma voz calma. ― Que queres tu de mim, Aidan? ― Ainda não sei. ― Voltou-a nos seus braços e tomou-lhe o rosto entre as mãos. ― Mas sei que não quero que te vás embora, sobretudo desta maneira. Se sentires necessidade de voltar com os teus pais, é diferente. Mas não te vás embora por causa do que eu disse. ― Tu não disseste nada. Aliás, o problema foi esse. ― Tess abanou a cabeça, cansada. ― Mas isto não muda nada. E a Rachel? 355 ― Está em casa, a salvo, com os meus pais. ― Aidan expulsou o ar dos pulmões, sem uma ponta de alegria. ― Ela tinha razão, o esquilinho. Disse que eu te tinha magoado, e eu nunca quis fazer isso. Pelo menos essa parte posso garantir-te. Achei que tu... ― Encolheu os ombros. ― Ias perceber como eu me senti. Não estava zangado contigo, Tess. ― Nesse caso com quem estavas zangado? ― Com a situação. Comigo. A ideia era protegê-la e não foi o que fiz. Mas não estava zangado contigo. Tu não és responsável por nada do que aconteceu. ― Tens a certeza que não estás a dizer isso só para eu ficar e te fazer


o jantar? Aidan sorriu, mas só com os cantos da boca. ― A propósito, já que falaste do assunto, os cannoli já acabaram. ― Beijou-a com doçura e ela pareceu derreter-se. ― Fica comigo, Tess. ― Está bem, desde que faças uma coisa por mim. Ele olhou para a cama. ― Não posso. O Murphy deve estar mesmo a chegar. Ela franziu o sobrolho, trocista. ― Não era o que eu queria dizer. Aidan, eu sou psiquiatra, não sou vidente. Espero que percebas a diferença. Com o polegar, Aidan cobriu-lhe os lábios. ― Desculpa, ainda estava a pensar naquela cama. Ela riu-se. ― És do tipo obsessivo... ―Já séria, franziu o sobrolho e acrescentou. ― Eu não posso adivinhar o que tu pensas se não me disseres. Não sou nenhuma vidente, Aidan. O meu trabalho é levar as pessoas a falarem comigo para eu perceber o que lhes vai na cabeça. Mas tu não falas comigo. ― Falo constantemente contigo. ― Não acerca do que é importante. Eu contei-te tudo acerca da minha vida, mas tu parece que não confias em mim. ― Queres que fale contigo agora? ― Não, agora não. Mas mais tarde quero, sem falta. Porque voltaste a casa? ― Tinha de me encontrar com Murphy. Vamos revistar a casa de um dos palermas da escola de Rachel. Depois tenho um encontro do outro lado da cidade com uma testemunha. ― Beijou-a a sério. ― Conto estar aqui a tempo de te levar ao velório do Emst. 356 Tess agarrou-o pela camisa e não o deixou afastar-se quando ele tentou. ― Tu também és uma das minhas companhias, Aidan ― disse ela muito a sério. ― Eu sei. Eu tenho cuidado. ― Tenho andado a tentar descobrir quem me odeia desta maneira e não consigo. ― Eu sei, Tess. ― Tenho estado a pensar que o assassino pode aparecer no velório do Harrison hoje à noite. ― Os seus dedos contraíram-se involuntariamente. ― Mas se eu for, todas as pessoas que lá estiverem se tornam um alvo. Se eu for às compras, tornam-se um alvo. Tu és um alvo. A tua família é um alvo. E a minha. ― Tess fechou os olhos. ― Isto está a dar comigo em doida. ― É o que eles querem que aconteça ― murmurou Aidan. ― Mas nós não vamos permitir. ― Voltou a beijá-la, dessa vez sério e lento. A


respiração de ambos alterou-se. ― Agora tenho de ir. Vem comigo até à porta e tranca-a. Ela acompanhou-o até à porta e acenou-lhe quando ele entrou no carro de Murphy. Continuava excitada. Fechou a porta e encontrou Vito a olhá-la com desdém. ― Deixa-te disso, ouviste? Não te atrevas! Ele foi atrás dela para a cozinha. ― O rapaz deve ser bem-falante... ― disse o irmão de Tess com sarcasmo. Tess deu uma sapatada na gata, irritada. ― Qual é o teu problema, Vito? Desembucha de uma vez. ― O meu problema é que conheces este tipo há três dias! Ela começou a descascar os tomates com a atitude de quem queria vingar-se neles. ― Quatro, mas percebo a ideia. Sou uma rameira que vai para a cama com qualquer um ao fim de três dias! É isso que tu pensas. Não te atreves a dizer, mas é o que pensas. ― Pois bem: é isso mesmo. É cedo de mais.: Tess agitou a faca na direcção dele. ― Tu vais para a cama com mulheres que conheceste no próprio dia, e não me venhas com histórias porque eu sei que vais. Vito respondeu prontamente: ― Ultimamente, não. ― Então é melhor recomeçares. Talvez isso te acalme! ― Tess pousou a faca e começou por se acalmar a si mesma. ― Vito, tu não 357 tens nada a ver com isso, mas eu adoro-te e o que tu pensas tem importância para mim, por isso vou dizer-te de qualquer maneira. Houve quatro homens na minha vida. Quatro. Obriguei-os a todos a esperar muito tempo, a todos menos ao Aidan. E isso não teve nada a ver com eles. Teve a ver comigo. Com aquilo de que eu precisava. E neste momento preciso dele. Por isso vê se consegues ser simpático com ele. Por mim. ― E não te importas que ele tenha tentado magoar-te? ― Onde? Na esquadra? Isso foi um mal-entendido. ― Deixaste que um mal-entendido te mantivesse cinco anos afastada do pai, Tess. Este tipo chega, e de um dia para o outro vais viver com ele. Ele magoa-te e tu perdoas-lhe sem hesitar. ― Talvez o mal-entendido com o pai me tenha ensinado alguma coisa. Perdi muitos anos. Além disso, vou ser honesta contigo. Desde que o Phillip se foi embora que me tenho sentido sozinha. Tinha saudades de ter um namorado. Não me parece que isso seja uma coisa assim tão errada. Vito encostou-se à parede e ela viu que os ombros do irmão se iam relaxando.


― Só não queria que ele te magoasse. ― Se magoar, eu hei-de sobreviver. ― Bella espreguiçou-se e Tess pegou-lhe. ― Segura nela. Tenho de voltar a pôr-lhe a coleira. ― Pegou nela e começou a apertar a fivela. Depois parou de repente e olhou para Vito. ― Meu Deus! Vito parou igualmente e depois levantou os olhos, furiosos. Tess pousou a coleira na bancada e correu para a rua, a marcar um número freneticamente no telemóvel. ― Aidan? Já sei como é que ele descobriu a Rachel. Quinta-feira, 16 de Março, 15.15 Kristen estava à espera deles à frente da casa de Poston, com o mandado na mão. ― Que aconteceu? ― perguntou, quando viu a expressão de fúria no rosto do cunhado e do colega. ― A maldita gata da Tess tinha uma escuta ― murmurou Aidan. ― A Rachel teve a gata ao colo durante todo o tempo que me esteve a contar a história. Foi assim que ele soube. Que estás aqui a fazer? ― Andrew Poston Sénior é juiz. O Patrick chamou a isto uma atitude preventiva de danos mais graves. 358 Mrs. Poston estava à espera à porta. No rosto transparecia a preocupação. ― Que querem os senhores? ― Temos um mandado de busca, Mrs. Poston ― anunciou Kristen, que seguiu Aidan e Murphy quando eles entraram na casa. ― Como pode ver, está tudo em ordem. Aidan tentou entrar no quarto do filho do juiz. ― Está fechada ― disse para Murphy. ― Deixa-nos entrar, Andrew. ― Quando o rapaz não respondeu, Aidan meteu o ombro à porta. Ouviuse o barulho da madeira a ceder, seguido por um grito de indignação de Mrs. Poston. Logo a seguir, Aidan entrou no quarto, onde o rapaz o esperava com um CD nas mãos. ― Dá-me esse CD ― exigiu Aidan. ― Não. ― Andrew partiu o CD em dois. O barulho fê-los a todos pensar num tiro de pistola. O olhar assustado transformou-se num sorriso malicioso. ― Desde que o meu advogado me tirou da esquadra esta manhã que não saí daqui. Aidan olhou para o CD partido nas mãos do rapaz e para o sorriso de satisfação que ele tinha no rosto e teve vontade de lhe partir o nariz, apesar de saber que isso poria em risco tanto o caso como a sua carreira. Mesmo assim, quando pensou em Rachel achou que talvez valesse a pena. ― Não sei se estás a perceber que a pessoa que te mandou esse CD é responsável pela morte de oito pessoas. Quando te tornares


dispensável, esse número pode subir para nove. O sorriso na cara de Andrew esmoreceu e Mrs. Poston soltou um gritinho de aflição. No entanto, o filho acabou por levantar bem a cabeça e respondeu: ― Eu sei tomar conta de mim mesmo. ― Da mesma maneira que tomaste conta daquela rapariga na segunda-feira à noite? Da mesma maneira que tomaste conta de Rachel Reagan? ― perguntou Murphy, com dificuldade em disfarçar a raiva. ― As miúdas é que tiveram a culpa. Eu não preciso de obrigar ninguém. Além disso, nunca toquei na cabra da Rachel. Se ela diz que toquei, é uma mentirosa. Eu estive aqui todo o dia. Nunca saí. Não foi, mãe? A mãe torcia as mãos de nervosismo. ― Esteve, sim. Eu já telefonei ao meu marido e ele vem a caminho. ― Não é preciso, Mrs. Poston ― disse Aidan num tom mais moderado. ― Diga ao seu marido que pode falar connosco na esquadra. 359 Uma vez que é juiz, deve conhecer bem o sítio. Ah, agora me lembro, Murphy. Acho que não chegámos a apresentar-nos aqui ao jovem Poston. Apresento-te o detective Murphy. Kristen Reagan, procuradora, e eu sou o detective Reagan. ― O rapaz ficou pálido, um espectáculo gratificante para Aidan. ― Vamos embora. ― Para onde? ― O tom de desafio tinha-se desvanecido. ― Para a esquadra connosco ― disse Aidan. ― De momento podes dizer que é por obstrução à justiça. Depois de o caso estar resolvido, veremos que mais se arranja. Quinta-feira, 16 de Março, 16.00 ― Consegues arranjá-lo? ― perguntou Aidan depois de Rick ter observado as duas metades do CD vários minutos em silêncio. Tanto ele como Murphy e Spinnelli tinham-se mantido em silêncio o mais tempo possível. ― Para o pôr outra vez a tocar como um CD, não, mas isso não quer dizer que não consiga recuperar alguns dados. Vou é demorar algum tempo. ― Quanto? ― perguntou Spinnelli com impaciência. ― Alguns dias. Isto é como voltar a montar o ovo de Alice. E pode não se conseguir perceber nada. ― Começa o mais depressa possível ― ordenou Spinnelli. ― E quanto ao microfone na coleira da gata? Rick encolheu os ombros. ― É parecido com os outros que encontrámos na roupa de Tess. Estava a transmitir através da tua ligação sem fios à Internet, Aidan. Tens de arranjar uma firewall melhor. Mandei os tipos do Jack


revistarem a tua casa e não encontraram mais nada. ― Obrigado. ― Aidan evitou pensar no que o microfone poderia ter apanhado na noite anterior. Nem ele nem Tess tinham sido moderados no calor do momento... Rick uniu os pedaços do CD com cuidado. ― Quando tiver alguma coisa telefono-vos. Murphy deixou-se cair na cadeira depois de Rick sair. ― Isto pode não levar a nada. ― E depois dizem que eu é que sou pessimista ― disse Aidan. ― É sempre possível que ele encontre alguma coisa de jeito. Além disso, 360 ainda temos o miúdo dos Poston na sala de interrogatório. Qual é a tua ideia quanto ao estuporzeco? Spinnelli respondeu com um esgar de contrariedade. ― Por agora tenho de o entregar aos pais. Não quero fazer nenhuma acusação antes de sabermos o que vem naquele CD. A propósito, já apanhámos os dois rapazes que bateram na Rachel. Não me parece que tenham feito um serviço muito asseado. Toda a escola sabia que tinham ficado cheios de medo e tinham ido atrás dela. ― O bigode do tenente parecia dançar-lhe por cima do lábio. ― A tua cadela, entretanto, assumiu proporções épicas. É um mastim de cem quilos e tirou-lhes uns bons nacos de traseiro enquanto eles fugiam a chorar. ― Ainda bem. Só é pena não lhes ter tirado também um bocado dos... ― Uma pancada na porta da sala de reuniões fê-los a todos voltaremse. Uma das administrativas meteu a cabeça pela porta entreaberta e anunciou: ― Aidan, tenho aqui os registos de chamadas que pediste. ― Obrigado, Lori. São os registos da Denise Masterson ― explicou a Spinnelli e a Murphy. ― A que ontem não telefonou logo para o número de emergência? ― Essa mesma. ― Aidan percorreu a página com os olhos e com o dedo indicador enquanto Lori continuava à espera. ― Aqui está. Uma chamada feita um minuto depois de Tess ter saído a correr para casa de Seward na terça-feira. Durou oito minutos e meio. ― Levantou os olhos para os colegas. ― Importam-se de verificar de quem é este novo número? ― Já pedi ― respondeu Lori. ― É de um editor do National Eye.: Aidan pestanejou. ― Um tablóide? A secretária da Tess ligou para um tablóide em vez de ligar para o número de emergência? ― Queres que dê uma vista de olhos pelas contas bancárias dela? ― perguntou Lori. ― Sim, por favor. O mais depressa possível. ― Aidan voltou-se outra vez para Spinnelli e para Murphy. ― Foi por isso que a polícia demorou


tanto tempo a chegar. Se tivessem chegado mais cedo, talvez Malcolm Seward e a mulher ainda estivessem vivos. ― Tragam-na cá ― disse Spinnelli. ― Deixem-na ficar na dúvida em relação ao que vamos fazer. ― Ela teve acesso a todos os processos, Marc. ― Aidan tentou ligar os fios soltos mentalmente. ― O nosso homem tinha de saber que Bacon tinha feito os filmes. Foi por isso que ele o matou. 361 Murphy interveio. ― A Denise estava presente quando a Tess recebeu o pedido de chantagem de Bacon, por isso tinha conhecimento das câmaras. Podia ser cúmplice, mesmo sem o saber. ― Tragam-na para a esquadra ― disse outra vez Spinnelli. ― E digam à Tess que venha cá para a observar. Ela conhece esta mulher e isso talvez nos ajude a perceber os motivos dela. Quinta-feira, 16 de Março, 17.05 Através do vidro, Tess olhou para Denise Masterson, sentada na sala de interrogatórios, a mexer com nervosismo nos anéis. Tess olhou para Aidan de lado, incrédula. ― Vocês estão a brincar! A Denise? Ela não é nenhuma assassina. Ao lado dela, Aidan estava tudo menos sorridente. ― Talvez não tenha matado ninguém, mas pelo menos vendeu informações ao Eye. Se ela está na disposição de vender informações a um tablóide, talvez também as tenha vendido a mais alguém. Alguém teve acesso ao teu consultório, Tess, para poder pôr todas aquelas câmaras e aqueles microfones. Se não vendeu, talvez tenha deixado entrar a pessoa que os pôs. Em troca de dinheiro. ― Tens a certeza que vendeu informações ao Eye? ― Esta manhã depositou dez mil dólares na conta à ordem, Tess ― contou Murphy. ― Deu-lhe algum aumento recentemente? Ela suspirou. ― Não de dez mil dólares. Merda. Continuem. Spinnelli juntou-se a Tess enquanto Aidan e Murphy entraram na pequena sala onde a própria psiquiatra estivera alguns dias antes. Aidan sentou-se na mesa, no canto mais próximo de Denise, com os braços cruzados sobre o peito. Murphy sentou-se confortavelmente numa cadeira. ― Quanto ganha, Miss Masterson? ― começou Aidan. Denise pestanejou, confusa. ― Não vejo o que tem o senhor a ver com isso. ― Aidan... ― protestou Murphy com delicadeza. ― Tu já sabes quanto ganha a senhora. ― Depois sorriu delicadamente a Denise. ― Antes de a irmos buscar já verificámos. Os olhos dela voltaram-se para Aidan e de novo para Murphy.


362 ― Nesse caso porque perguntou? Murphy continuava a sorrir. ― Tínhamos esperança que nos explicasse de onde vieram os dez mil dólares. Sabe, o dinheiro que apareceu na sua conta esta manhã. Ela empalideceu. ― Foi uma oferta. Eu estava preocupada por poder ficar sem emprego, agora que o Dr. Ernst morreu e que a Dr.a Ciccotelli foi expulsa da Ordem, e a minha tia deu-me o dinheiro. ― É uma tia muito generosa. ― Aidan inclinou-se um pouco mais para Denise. ― Como se chama? Mais uma vez, Denise lambeu os lábios antes de falar. ― Lila Timmons. Tess olhou para Spinnelli de relance antes de voltar de novo a sua atenção para aquela mulher que em tempos julgara conhecer. ― Lila Timmons era uma das nossas doentes, mas morreu o ano passado. Será possível que ela não tenha arranjado nada melhor? ― Ao contrário de si, a maior parte das pessoas vai-se abaixo sob pressão. Aidan escreveu o nome no bloco de apontamentos. ― Nós vamos verificar. ― Sentou-se e olhou de frente para ela, sem dizer uma palavra. Tess lembrou-se de ele usar a mesma técnica consigo e, apesar do seu desprezo pelo que Denise fizera, sentiu uma ponta de piedade por ela. Depois de aguentar o olhar de Aidan durante um minuto a fio, Denise baixou os olhos. ― Agora posso ir? ― A senhora não está presa, Miss Masterson. Mas antes de ir ainda tenho uma pergunta para si. ― Aidan pôs uma fotografia em cima da mesa e Tess voltou os olhos. Era uma fotografia da autópsia de Gwen Seward. Denise levou a mão à boca e procurou abafar um pequeno grito. ― Miss Masterson, só queria que visse o que estava a acontecer a Gwen Seward enquanto a senhora estava ao telefone com o National Eye. Não vão poder abrir o caixão no funeral dela. Não sobrou quase nada da cabeça. Denise pôs-se de pé e vomitou no cesto dos papéis que Murphy tinha posto junto da cadeira dela Aidan decidiu pressioná-la um pouco mais. ― A Gwen Seward podia ainda estar viva, se a Miss Masterson tivesse ligado logo para o número de emergência, como a Dr.a Ciccotelli lhe disse que fizesse. 363 Denise cobriu o rosto com as mãos. ― Não fui eu que a matei, foi o marido.


Aidan afastou-lhe as mãos do rosto e pôs a fotografia de novo à frente dos seus olhos. ― Porque a Miss Masterson não ligou logo para a polícia. Porquê esperar dez minutos? Denise fechou os olhos com força. ― Tire daqui a fotografia. Por favor, tire-a da minha frente. ― Então explique-me porque demorou dez minutos a ligar. ― Os outros já estavam todos mortos quando a polícia chegou. Pensei que não servia de nada correr. Aidan abanou a cabeça, como se quisesse aclarar as ideias. ― Está a dizer-me que ligou para o tablóide porque pensou que Malcolm Seward já estivesse morto? Denise concordou, a tremer. ― Tinham-me ligado essa manhã e tinham dito que me davam dez mil dólares por qualquer notícia importante. Tess franziu o sobrolho. ― O Eye não ficou com a notícia, Marc, nem sequer foi o primeiro a chegar. Havia vinte jornalistas à porta de Seward na terça-feira, por isso não lhe deviam ter pago nada. ― Sentiu o estômago a andar às voltas. ― Meu Deus! Ela estava lá quando o carteiro levou o CD. ― Tess agarrou no braço de Spinnelli. ― Descubra se foi essa a notícia que ela lhes vendeu! Spinnelli deu-lhe uma palmadinha no braço para a acalmar. ― Dê-lhes mais uns minutos com ela. ― Sendo assim, a Denise traiu a confiança da Dr.a Ciccotelli por dinheiro ― dizia Aidan. Denise levantou o rosto para ele. ― Não fiz nada ilegal. Falei com o meu advogado sobre o assunto. ― Quem é o seu advogado, Miss Masterson? ― perguntou Murphy, sempre num tom amável, apesar do desprezo que Tess lia nos seus olhos. ― Ele é capaz de lhe ter dado informações erradas. ― Posso ir agora? ― Só mais um minuto ― disse Aidan, que tirou outra fotografia do pacote. ― Quem é aquele homem? ― perguntou Tess. ― É o que nós vimos entrar no apartamento de Seward ― murmurou Spinnelli. 364 ― Eu conheço-o ― disse Tess, e observou Denise, que estremeceu ligeiramente. ― E ela também. Spinnelli inclinou-se para Tess. ― Quem é? ― Não me lembro ― disse Tess. ― Ainda não me lembro. Denise abanava a cabeça, num gesto de negação.


― Não o conheço. Nunca o vi. ― Ora, ora, Denise ― dizia Aidan num tom trocista. ― Também recebeu dinheiro dele? Denise pareceu fechar-se. ― Não! ― Perguntem-lhe do CD ― disse Tess. "E se tiver sido ela, eu própria me encarregarei de a matar", pensou. Spinnelli inclinou-se e fez a Murphy sinal de que saísse. Depois disselhe qualquer coisa ao ouvido. Murphy assentiu com um gesto e voltou para junto de Denise. ― Estamos com curiosidade em relação a uma coisa, Miss Masterson. Para começar, gostávamos de perceber de uma vez por todas de onde vem o malfadado dinheiro. Vem de Lila Timmons, que morreu há mais de um ano, ou do National Eje? ― Já lhe disse que foi do Eye. E não é ilegal! ― Pronto! Era só para esclarecer bem as coisas ― disse Murphy com um sorriso. ― Agora explique-me por que razão eles lhe pagaram dez mil dólares por uma notícia que todos souberam ao mesmo tempo. A morte de Seward não era nenhuma grande novidade. Denise engoliu em seco. ― Vou-me embora para casa. Murphy e Aidan trocaram um olhar e Tess percebeu que Aidan já tinha percebido o que acontecera com os vídeos. ― Foi a Denise que lhes falou do CD com as imagens da Dr.a Ciccotelli, não foi? ― perguntou Aidan, de pé, com as mãos nos bolsos. Denise deteve-se, já com a mão no puxador, e Tess sentiu o estômago às voltas. ― E se tivesse sido? Também não é ilegal, pois não? ― Suponho que não. É só desprezível ― atirou Aidan. ― Como foi capaz de uma coisa dessas? Denise voltou-se. O seu rosto estava distorcido pela raiva. ― Porque precisava do dinheiro. Porque ela me paga uma miséria. Porque ela tem um Mercedes e vive num apartamento de luxo e eu ando 365 num carro com dez anos cheio de ferrugem. A Eleanor encontrou-a na sarjeta e fez dela o que ela é. Alguma vez ela pensou em fazer o mesmo? Por acaso perguntou-me se eu queria sociedade no consultório? ― Não me lembro de ver um diploma de Medicina no seu currículo, Miss Masterson ― respondeu Aidan com frieza. ― Ou um doutoramento. De que lhe serviria a ajuda dela? Denise estava a tremer, o rosto vermelho de raiva. ― Eu também andei na universidade. Se eles quisessem ajudar-me,


estava ao alcance deles. Há anos que espero que o velho e ela cumpram a obrigação que têm comigo, mas na realidade tratam-me como a uma espécie de secretária... ― Mas a senhora é uma secretária, Miss Masterson ― observou Murphy. Aidan aproximou-se dela com uma expressão de desdém no rosto. ― Se eu fosse seu patrão, despedia-a. Mas não me importava de saber que a Denise amanhã não aparecia no trabalho. Que te parece, Murphy? Murphy pareceu reflectir e por fim respondeu: ― Até me parece uma boa ideia. Venha, eu acompanho-a. Quando eles saíram, Aidan foi ter com Spinnelli e Tess à sala onde eles tinham observado o interrogatório. Tess ainda estava incrédula. ― Eu e o Harrison pagávamos-lhe vinte por cento a mais que a média para recepcionistas com a experiência dela e, além disso, também lhe pagávamos seguro de saúde. Uma vez, até me ofereci para a ajudar a pagar a faculdade se ela quisesse continuar a estudar. ― Então que queria ela dizer quando falou de a Eleanor a ter tirado da sarjeta? ― perguntou Spinnelli. Tess suspirou. ― Eu conheci a Eleanor quando ainda andava na faculdade. Eu e a Amy trabalhávamos em part-time para pagar a faculdade e a agência de emprego uma vez mandou-me para o consultório do Harrison e da Eleanor. Eles gostaram de mim e ofereceram-me um emprego. Na altura, não podia aceitar um trabalho a tempo inteiro porque ainda estudava, mas sempre que podia ia para lá. Fazia todas as substituições e também trabalhava aos fins-de-semana. ― Isso não me parece assim tão extraordinário ― disse Aidan de sobrolho carregado. Tess respirou fundo. ― Além disso, a Eleanor pagou-me a faculdade. 366 Aidan pestanejou. ― Caramba... ― Mas não em troca de nada. Foi um empréstimo, e depois do curso tive de trabalhar muito para lhe pagar, com juros à taxa bancária. A ajuda dela permitiu-me sobretudo concentrar-me no curso. Não tinha de trabalhar horas sem fim para pagar as propinas. Quando ela morreu, eu já tinha pago oitenta por cento do que lhe devia. No testamento perdoou-me o resto da dívida. ― Porque é que a Eleanor lhe fez esse empréstimo? ― perguntou Spinnelli. ― A Eleanor usava um andarilho e eu ajudava-a. Fazia-lhe pequenos recados. Não o fazia por dinheiro. Ajudava-a porque ela era uma


pessoa bondosa e eu gostava dela. E aprendi tanto com ela ― a emoção transpareceu-lhe na voz ao recordar a velha amiga. ― E também com o Harrison. Foram eles que me convidaram para o consultório deles quando acabei a especialidade. Quando a Eleanor morreu, pensei que o Harrison convidasse outra pessoa, mas ele também se tinha afeiçoado a mim e ofereceu-me sociedade. ― De queixo bem erguido, Tess acrescentou: ― Mas não foram eles que me fizeram. Eles só me ajudaram a fazer-me a mim mesma! Aidan franziu o sobrolho. ― Mas como é que a Denise conhecia essa história? Toda a gente sabia? ― Não faço ideia. Os meus amigos da altura sabiam. O Phillip sabia, por exemplo. Fui eu que lhe disse. Porquê? ― Porque foi essa a pequena semente que deu origem a todo aquele ódio da tua secretária. ― Mesmo assim, não estou a ver a Denise a planear todos aqueles assassinatos. Com franqueza, não me parece que tenha cabeça para tanto. ― Mas conhecia o tipo da fotografia ― disse Spinnelli. ― O que instalou as câmaras no apartamento de Seward. Talvez também tenha sido ele que as pôs no seu. Tess procurou reflectir racionalmente acerca do assunto. ― Tem razão. Deve ter sido ela que o deixou entrar, mesmo que ele não tenha dito o que ia fazer. Detesto pensar que ela sabia. ― Tess esfregou as têmporas e voltou-se para Aidan. ― Estás convencido de que o Phillip está envolvido. Aidan olhou-a bem nos olhos. 367 ― Ainda não te tinha passado pela cabeça? ― Suponho que sim. Mais uma vez, também não consigo imaginá-lo a fazer uma coisa destas, mas também não imaginava que a Denise fosse capaz de sentir uma raiva daquelas. Não que eu gostasse dela, mas por outro lado também não posso dizer que não confiava nela, se é que percebem o que quero dizer... O telemóvel de Aidan tocou. ― Murphy? O quê? Óptimo. Liga-me quando ela parar. ― Aidan desligou o telefone. ― O Murphy decidiu segui-la. A primeira coisa que ela fez foi ligar de uma cabine pública. Vou pedir que me descubram o número. Tess estudou com atenção a fotografia que Aidan tinha mostrado a Denise. ― Tenho a certeza que já o vi, mas não me lembro onde. Podes fazerme uma cópia? Pode ser que isso me avive a memória. Aidan encaminhou-a para a porta.


― Sim, eu faço-te uma cópia. Ainda vou ter de fazer uma coisa antes de ir para casa. Se eu chegar tarde, espera por mim. Não saias sozinha. Como é que vais para casa? ― O Vito está à minha espera lá em baixo. Aidan, eu vou ter de avisar as pessoas que me conhecem. ― Podes dizer aos teus amigos que tenham mais cuidado, mas não precisas de lhes falar da nota. ― "Serás julgado pelas tuas companhias" ― recordou Tess com amargura. ― Está bem, eu não falo nisso. CAPÍTULO 19 Quinta-feira, 16 de Março, 19.15 Aidan passou-lhe o braço pela cintura quando ela hesitou à porta da casa funerária. ― Estás pronta? Tess fez um gesto afirmativo, seguro. ― Sim, acho que sim ― disse. No entanto, as pernas tremiam-lhe. ― Vamos despachar isto. Depois podemos ir para casa e deixar o teu pai torturar-me à vontade dele. Ele riu-se, o que fora o objectivo dele. ― Ele não vai fazer nada disso. Espero,.. Um homem de fato preto apontou para uma sala onde havia muita gente, mulheres bem vestidas e homens de fato, sobretudo. "Um verdadeiro guia da sociedade de Chicago", pensou Aidan, que reconheceu uma série deles das festas do padrasto de Shelley. Quando eles entraram, um silêncio pouco auspicioso atravessou a sala. As conversas foram-se interrompendo até que o único som audível passou a ser a música clássica que saía das colunas da sala. Uma mulher de aspecto frágil estava de pé ao lado do caixão com os filhos de Harrison. ― Queres que suba contigo? ― murmurou Aidan. ― Não, é melhor ficares aqui. Tenho uma coisa a dizer-lhe, mas não demora. Tess aproximou-se de Fio, sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido e Fio ficou imóvel, com as lágrimas a rolarem-lhe pelo rosto, apesar de a boca esboçar um sorriso trémulo. Tess voltou para junto de Aidan com os olhos ainda húmidos de lágrimas. ― O que é que lhe disseste? ― perguntou Aidan, passando-lhe a mão entre o cabelo e a nuca. 369 ― Disse-lhe que as últimas palavras de Harrison tinham sido para dizer que a amava. Suponho que ela sabia, mas precisava de ouvir o que eu lhe disse. ― Nesse caso ainda bem que vieste. ― Olhando por cima da cabeça


dela, Aidan observou a sala. ― Estás a ver aqui alguém que conheças? Tess olhou à sua volta. ― Vejo muita gente conhecida, mas ninguém que me odeie. ― Vamos ficar mais um bocadinho ― disse-lhe ele ao ouvido. ― Quero ver quem aparece. Eu fico aqui atrás a ver. Tu, vai falar com as pessoas. A primeira pessoa a aparecer foi Murphy. O seu fato amarrotado faziao parecer Columbo numa festa num country club. ― Conseguiste perceber a quem a Denise telefonou? Aidan olhou para o sítio onde Tess conversava com o mayor. O mayor... Diabos levassem tudo aquilo. Recordou-se de Shelley. Bastava a proximidade daquela gente importante para ele se sentir nervoso. Concentrou-se na pergunta de Murphy. ― Sim, telefonou para uma empresa chamada Brewer, Inc. Está registada como importador de cerveja. ― Isso é curioso, porque depois de fazer essa chamada, Denise foi directamente para um apartamento que não lhe pertencia, embora não estivesse ninguém em casa. Falei com a senhoria e ela disse-me que o apartamento era de um tipo qualquer chamado Lawe. Diz que é um detective particular e identificou a fotografia dele. ― Porque diabo havia Denise de consultar um detective particular? ― Não faço ideia. A senhoria diz que viu Lawe ontem de manhã, mas desde então ele não voltou a casa. Parece que tem uma encomenda para ele, mas ainda não foi buscá-la. ― Talvez tenha saído de Chicago por alguns dias. ― Talvez, mas tive um pressentimento e decidi telefonar para a morgue. Tinha acabado de dar entrada um tipo que correspondia à descrição do detective, mas carbonizado. Aidan fez um gesto de repugnância. ― Céus, que desagradável! ― Pois é. Ia num carro roubado que se incendiou, mas as pessoas da rua reagiram rapidamente e conseguiram apagar o fogo antes de ele ficar completamente carbonizado. Foram encontrados vestígios de uma pequena bomba com um detonador manual. Tinha o peito cheio de 370 chumbo, do mesmo calibre da arma que matou Bacon. A Julia não estava na morgue, mas o Johnson disse que iam fazer os testes dentários para ver se o tipo carbonizado é Lawe. ― A Tess diz que já o tinha visto, mas não se lembra onde. ― Talvez com Denise. A senhoria pensa que ele e a Denise andavam enrolados. ― Vamos falar com Blaine Connell logo pela manhã e ver se lhe arrancamos mais alguma coisa. Já percebi o que é que Nicole Rivera e Bacon tinham em comum.


― O irmão de Nicole está na prisão à espera de julgamento. A companheira de quarto de Nicole diz que ela andava a poupar todos os tostões que ganhava para lhe pagar um bom advogado, em vez dos oficiosos que o tribunal lhe manda. ― Sendo assim, tanto Bacon como Rivera estão familiarizados com o sistema legal ― resumiu Murphy, pensativo. ― Por falar de sistema legal, olha quem aí vem. ― Jon Cárter e Amy Miller. ― Com um segundo homem que Aidan não conhecia. ― Vamos misturar-nos com as pessoas. ― Detective Reagan ―Jon Cárter cumprimentou com um gesto sóbrio de cabeça. ― Como está, Dr. Cárter? Apresento-lhe o meu parceiro, o detective Murphy. ― Estou a lembrar-me de si ― disse Jon. ― Foi visitar a Tess ao hospital o ano passado. Murphy apertou-lhe a mão. ― Sim, é verdade. O Dr. Cárter conhecia o Dr. Ernst? ― Todos o conhecíamos. Pobre Fio. Faço ideia o que ela está a passar. Seja como for, viemos sobretudo por Tess. ― Jon cerrou os punhos e o seu rosto tornou-se sério. ― É uma atitude colectiva de desafio a quem quer que tenha feito isto. Estão convencidos de que a íamos deixar? Pois bem, estão enganados. ―Jon ― murmurou o outro homem. ― Aqui não. Não é o local indicado. Jon respirou fundo, com o objectivo evidente de se acalmar. ― Desculpa. Isto tem-me trazido louco. Lembra-se da Amy, detective? ― Claro que sim ― respondeu Aidan, que reparou que Jon tinha corado e uma veia lhe latejava na têmpora. O homem estava furioso mas era capaz de se dominar. ― São muito amáveis por terem vindo assim apoiar a Tess. Tem sido um dia muito duro para ela. 371 ― Tem sido uma semana dura ― corrigiu Amy num tom triste. ― prazer em vê-los de novo, detectives. Obrigada por tomarem tão bem conta dela. Não deve ser fácil. ― Nem me digas nada ― disse prontamente o segundo homem, que estendeu a mão a Aidan. ― Ainda não fomos apresentados. Eu sou o Robin Archer. Sou amigo da Tess há muito tempo. Aidan cumprimentou o homem, de olhos muito abertos. A boca de Jon esboçou um sorriso divertido. ― Eu bem lhe disse que eu e a Tess somos apenas amigos. Aidan pigarreou para limpar a voz. ― É verdade. Ouvi dizer que o senhor faz uma excelente sopa, Mr. Archer. Robin riu-se, bem-disposto.


― Eu sei que ela a detesta, mas não me importo e continuo a trazerlhe, nem que seja para a irritar. Aidan encolheu os ombros e sorriu. Jon sorriu igualmente. ― Bem, detective, diga-nos o que descobriu até agora. A Tess dissenos hoje que o homem que parecia ter feito tudo afinal estava inocente. ―Já temos algumas boas pistas. Assim que puder conto-lhe o que descobrimos. Dr. Cárter, podemos falar um momento a sós, por favor? ― Aidan tomou-o de parte. ― Dr. Cárter, uma vez que me falou da relação dela com a família, queria só que soubesse que o pai de Tess está em Chicago e ele e a filha já falam um com o outro. Jon suspirou. ― Ela falou-me nisso. E também me disse que ele tem um problema grave de coração. Nos próximos meses, a Tess vai precisar de muito apoio. Reatar a relação com o pai e depois uma coisa destas... Pobre Tess. ― Se não se importa, tenho outras perguntas a fazer-lhe. Pode dizerme alguma coisa acerca de Phillip? As sobrancelhas de Jon uniram-se num longo traço de preocupação. ― Pensa que ele está envolvido? ― Tenho de pensar em todas as possibilidades. Estes crimes foram cometidos por uma pessoa com um rancor muito pessoal a Tess. ― Mas o Phillip?! ― Jon suspirou. ― Ele e a Tess conheceram-se na faculdade. Ele fazia parte do nosso grupo só por causa da Tess. Nós, os outros, não gostávamos muito dele, mas nunca lhe dissemos nada. Nunca vi o que é que ele tinha de especial, mas ela parecia gostar dele. 372 Sempre me pareceu que era por ele ser tão diferente do pai dela. O pai de Tess é espalhafatoso e dramático e o Phillip não era nenhuma das duas coisas. ― Era violento? ― O Phillip? ― Jon parecia genuinamente surpreendido. ― Nunca que eu me apercebesse disso. Era um homem com um grande autodomínio. Chegava a ser aborrecido. Tess descobriu que ele a enganava duas semanas antes do grande dia. Ele nem se deu ao trabalho de negar. Limitou-se a fazer a mala e a ir-se embora. ― Foi o que a Tess me contou ― disse Aidan, pensativo, e a surpresa de Jon aumentou. ― Ela falou-lhe de Phillip? Eu, para conseguir, tive praticamente de a obrigar. Sim, mas na altura ele, Aidan, tinha-a nua nos seus braços. Nessa noite seria a vez dele de lhe falar das coisas que o magoavam. ― Sabe quem era a mulher?


― Não. Eu e o Phillip nunca falávamos. Ele era... muito conservador. Não sei onde ele mora, mas sei que trabalha no Kinsale Câncer Institute. ― E qual é o último nome dele? ― O sorriso de Aidan era frio. ― Só o conheço por Dr. Diabos o Levem. Jon sorriu suavemente. ― Esse nome ajusta-se bem a ele. Mas o verdadeiro é Parks. Phillip Parks. ― Só mais uma pergunta. Falou-me do vosso grupo. Quem é que fazia parte desse grupo além de vocês? Jon olhou-o, surpreendido. ― Não deve estar a pensar que... Suponho que tem de o fazer. Até eu tenho. Bom, em tempos éramos mais, mas as pessoas foram andando com as vidas delas. Era eu e a Tess, o Robin e a Amy, claro, e a Gen Lake, a Rhonda Perez, mas elas agora já só aparecem uma vez por outra. ― Quem deixou o grupo nos últimos... nos últimos seis meses, por exemplo. Alguma coisa brilhou nos olhos de Jon. ― Jim Swanson. ― E porquê? Jon hesitou. ― Foi para África com os Médicos sem Fronteiras. 373 Havia mais qualquer coisa por trás daquela história, percebeu Aidan. ― De um dia para o outro? ― Nós achámos que tinha sido muito repentino, mas ele disse-nos que já andava a pensar no assunto há algum tempo. Aidan ficou certo de que Jon sabia mais do que tinha contado, mas decidiu abordá-lo de outro ângulo. Mais tarde perguntaria a Tess. ― Obrigado, Dr. Cárter. Agradeço a informação. ― Pode perguntar-me o que quiser, detective. A seguir ao Robin, a Tess é a minha maior amiga. Quinta-feira, 16 de Março, 22.45 ― Anda cá, Tess. ― O pai dela bateu na almofada do sofá de Aidan e ela aninhou-se com a cabeça no ombro dele. ― Então gostou do sçiti? ― Tess tinha planeado um jantar mais elaborado, mas como fora obrigada a passar pela esquadra nessa tarde tinha-se conformado com um prato de aproveitamento de sobras. ― Quase tão bom como o da tua mãe ― disse ele em voz suficientemente alta para a mulher ouvir na cozinha, e depois acrescentou ao ouvido de Tess: ― Pelo menos tão bom como o dela. Afinal onde está o teu namorado? ― Ainda não voltou desta última chamada. ― A chamada de


emergência deixara Aidan perturbado. Há quase duas horas que Tess procurava não pensar quem seria dessa vez. ― Acontece quando namoramos com um polícia. ― Ele parece... simpático. ― A palavra foi pronunciada com pouco àvontade, o que fez Tess sorrir. ― Ele é simpático. ― Tess ouviu a respiração sonora do pai. ― Pai, não leve isto a mal, mas volte para casa. Ele encolheu os ombros. ― Porquê? ― Porque precisa de ter os seus médicos por perto. ― Essa é boa! ― Beijou-a na testa. ― Não queres dizer-me porquê? Eu aguento a verdade. Ela suspirou. ― Porque o pai aqui não está em segurança. Três dos meus amigos foram mortos, a irmã de Aidan foi ferida hoje à tarde... E eu acabei de recuperar a sua amizade e não quero que o pai também seja magoado. 374 ― Se vieres comigo, eu vou. Tess franziu o sobrolho. ― Isso não é justo, pai. Ele encolheu os ombros. ― Nesse caso processa-me. A contrapartida é essa. Se vieres para Filadélfia, eu também vou. ― O pai tem de ir para casa para não se afastar do seu cardiologista e eu fico aqui porque é aqui que vivo. ― O mais curioso foi que nesse momento a imagem que lhe ocorreu foi a daquela mesma casa. Tinha adorado viver no apartamento de Eleanor, mas a casa de Aidan parecia-lhe a sua. ― Além disso, tenho o Aidan para tomar conta de mim. ― E eu tenho o Vito, de maneira que estamos num impasse. Disseste que tinhas feito cannolli Tess riu-se. ― O pai é um homem muito teimoso. ― Eu sei. ― O pai pôs-se de pé. ― Gostei de voltar a ver a Amy. Foi quase como nos velhos tempos. ― Amy tinha passado por ali depois do velório de Harrison e acabara por jantar com eles. Ver os rostos de sempre à volta da mesa recordara-lhes, de facto, a todos os velhos tempos. ― Lá porque eu me afastei, ela não precisava de se ter afastado também ― disse Tess. O pai tirou a tampa do tacho dos cannoli. ― E não afastou. ― Michael! ― Gina levantou-se e tirou-lhe o prato das mãos. ― Ele não pode comer estas coisas ― acrescentou, com mais delicadeza. ― Só um não faz mal. ― Olhou para a mulher com olhos de cãozinho


triste. ― Foi a Tess que fez... ― Que queres dizer com isso de a Amy não se ter afastado? ― perguntou Tess. ― Não ― insistiu a mãe de Tess, que afastou a sobremesa. O pai suspirou. ― A Amy vinha sempre a casa no Dia de Acção de Graças. Pensei que soubesses. Tess abanou a cabeça. ― Não fazia ideia. Eu costumava passar o Dia de Acção de Graças com os Spinnelli. A Amy dizia-me que o passava com amigos da Faculdade de Direito. A 375 ― Acho que ela fazia isso para não te magoar, Tess ― disse Vito, pouco à vontade. A seguir recuou, quando Dolly se sentou perto dele a rosnar. ― Esta cadela é uma ameaça. ― Não, está só a avisar-nos de que Aidan chegou a casa. ― Segundos mais tarde, todos ouviram a porta da garagem. O estômago de Tess deu uma volta com a ideia de que ele podia ter encontrado mais alguém com uma nota presa à roupa. ― Com licença ― pediu, e esgueirou-se para a garagem para ter um minuto a sós com ele. Aidan saiu do carro de ombros descaídos. ― Tess. ― Quem foi desta vez? ― A mãe de Danny Morris ― disse ele. ― O rapazinho ― murmurou Tess. ― A mãe dele foi assassinada? Mesmo a uma distância de três metros via a raiva fria nos olhos de Aidan. ― Matou-se. Deixou uma nota. Disse que se sentia culpada por não o ter protegido. Que eu tinha razão. Tess quis abraçá-lo, mas pareceu-lhe que ele precisava de ficar sozinho. ― Em relação a quê? Ele deixou cair a cabeça sobre o peito. ― Eu calculava que ela sabia onde estava o pai. Segunda-feira, depois de o idiota do amigo dele me ter agredido no bar, passei por casa dela. Disse-lhe que ela estava a proteger um monstro e que imaginava que tipo de mãe ela seria para fazer uma coisa dessas. ― Aidan levantou os olhos para Tess, angustiado. ― Acho que fui demasiado longe. ― Não, Aidan, não foste. ― Incapaz de estar longe dele mais um só segundo, abraçou-o e acariciou-lhe a cabeça. ― Não lhe disseste nada que ela não soubesse já. Além disso, se não tomou conta do filho,! nada do que tu pudesses dizer faria qualquer diferença. Na nota dizia onde podias encontrar o marido?


Ele levantou a cabeça. Ficou a alguns centímetros dela. ― Dizia, sim. Mas ele não estava em nenhum daqueles sítios. Como sabias? ― Já conheci casos semelhantes. Muitas vezes, as pessoas tentam consertar as coisas antes de dar esse último passo. Fico com a impressão que ela tentou. ― Devia era ter-se mantido viva para testemunhar contra o marido ― disse ele, tenso. 376 ― Seria o que tu terias feito ― disse ela com calma, e os olhos dele brilharam. ― Eu nunca teria permitido que um estupor qualquer matasse o meu filho. ― Nem todas as pessoas fazem o que devem, Aidan. E também nem todas são fortes. ― Tess beijou-o com ternura. ― Tenho muita pena. Cansado, Aidan voltou a abraçá-la. ― Conheces uma Sylvia Arness? Ela respondeu com um gesto negativo de cabeça. Sentiu o medo descer-lhe de novo pelo corpo. ― Não. Aidan endireitou-se e agarrou-lhe nos braços. ― Não conheces? Tens a certeza? ― Tenho. ― O coração de Tess batia com força. Com tanta força que até doía. ― Porquê? ― Uma mulher de cor, de vinte e três anos? ― A força com que a agarrava era maior. ― Não, Aidan, mas diz-me porque perguntas. ― Porque ela foi morta. O Howard e o Brooks, da nossa unidade, comunicaram precisamente quando eu estava a sair para ir a casa dos Morris. Quando encontraram a nota presa à roupa chamaram-me. Um nó formou-se na garganta de Tess. ― Serás julgada pelas tuas companhias? ― Sim. Tens a certeza que não a conheces? Sylvia Arness era o nome que vinha nos documentos que ela trazia. Lentamente, ela abanou a cabeça. ― Talvez seja uma imitação... ― É possível. Importas-te de passar pela morgue e dares uma vista de olhos pelo cadáver para termos a certeza? Apesar de incomodada, Tess concordou imediatamente. ― Vou só avisar os meus pais de que tenho de sair. Aidan parou à porta e disse: ― O teu pai vai... Vais assustar o teu pai com essa cara... "Vai ter um ataque de coração." Por pouco não tinha dito "vai ter um ataque de coração". Tinha de prestar mais atenção ao que dizia.


Tess fechou os olhos e concentrou-se. Quando voltou a abri-los, ele fez-lhe um gesto encorajador. ― Assim está melhor. ― Ele vai perceber que aconteceu alguma coisa má, mas não ficará assustado. à 377 ― Obrigada ― respondeu ela. ― Não tinha pensado nisso. ― Estás no teu direito. ― Aidan abriu-lhe a porta e cumprimentou a família reunida na sala com um sorriso cansado. ― Desculpem ter-me demorado tanto. Foi outro caso. Tess entrou na cozinha atrás dele. O seu olhar cruzou-se com o de Vito e ele percebeu. ― Pai, está a fazer-se tarde ― disse ele. ― Vamos andando para o hotel. Michael sentou-se na cadeira da cozinha. O seu olhar era determinado. ― Tess, eu não sou cego nem estúpido. Diz-me o que aconteceu, por favor. Ela apertou a mão de Aidan. ― Obrigada por teres tentado ― murmurou, e depois olhou para o pai. ― Pai, o Aidan teve de sair porque teve outro caso, mas, entretanto, ligaram-lhe por causa de outro assunto que pode ou não estar relacionado comigo. Tenho de sair para os ir ajudar. Vão andando com o Vito, por favor. O pai precisa de descansar. Eu prometo que telefono a contar o que aconteceu. O pai dela pôs-se de pé, de queixo bem erguido. ― Não a perde de vista, Reagan? ― Prometo ― respondeu Aidan num tom solene. Quinta-feira, 16 de Março, 23.20; Spinnelli e Murphy encontraram-se com eles na morgue.; ― Se for uma imitação, as coisas podem correr mal muito rápidamente ― disse o tenente. ― Só gostava de saber como é que um imitador podia ter sabido da mensagem ― resmungou Murphy. ― Não falámos de nada disso à imprensa. Pelo menos não tínhamos falado. Agora toda a gente que esteve ali à volta da Sylvia Arness viu. O corpo de Tess estava rígido contra o de Aidan. ― Vamos lá despachar isto. Johnson estava à espera ao lado da mesa metálica onde havia um corpo deitado, coberto com um lençol. ― Foi alvejada às nove e quinze. Parece ter sido à queima-roupa. A bala era de grande calibre, provavelmente quarenta e cinco. Entrou 378 pelas costas e foi direita ao coração. ― A expressão com que falava era amável. ― Se tiver sentido dor, foi só por um minuto.


― Mas deve ter tido medo ― murmurou Tess de olhos fixos no lençol, e Aidan percebeu que ela se imaginava com a mulher a enfrentar a sua morte. Era esse o seu trabalho. Entrava nas mentes dos doentes, vivia os seus medos. Porque ela preocupava-se com eles. Ali, à frente de um cadáver, era um sítio estranho para perceber uma coisa daquelas. ― As pessoas ouviram um tiro e houve uma grande confusão, com correrias, de maneira que ninguém viu nada ― disse Aidan. ― Os especialistas ainda estão a estudar o local. ― Espera ― disse Murphy, levantando uma mão. ― Quando ele matou a Nicole Rivera foi com uma arma de calibre vinte e dois, e a Julia acha que tinha silenciador. Porquê usar uma arma de calibre quarenta e cinco numa altura em que há tanta gente à volta? ― Talvez quisesse que ela fosse encontrada rapidamente ― respondeu Aidan. ― Mas deu-se ao trabalho de pregar a nota, mesmo sabendo que deviam estar a chegar pessoas. ― O bigode de Spinnelli agitava-se com esgares de nervosismo. ― Não parece coisa do nosso assassino, sempre tão cuidadoso. Tess endireitou-se de repente. ― Por favor, podemos começar? Eu estou preparada. Aidan apertou mais o braço à volta da sua cintura e Johnson levantou o lençol, expondo a mulher até aos ombros para Tess a observar. ― Nunca a vi... ― Tess interrompeu-se. ― Esperem, onde é que ela foi encontrada? ― Na universidade. É est... ― É estudante na universidade ― concluiu Tess por ele, num tom de voz quase inexpressivo, ao mesmo tempo que ficava sem pinga de sangue no rosto. Johnson puxou rapidamente uma cadeira e ele e Aidan ajudaram-na a sentar-se. Tess molhou os lábios para conseguir falar. ― Eu só lhe disse "olá". Mais nada. Aidan ajoelhou-se e olhou-a de frente. -― Quando? -― Ontem. Precisei de botas novas. A minha roupa e o meu calçado tinham ficado em tua casa. Spinnelli pousou-lhe com delicadeza a mão no ombro. ― Conheceu-a na sapataria? 379 Em choque, Tess acenou afirmativamente. ― Como sabia que ela era uma estudante? ― perguntou Murphy. ― Ela... ela meteu conversa com o Vito. As raparigas metem-se todas com o Vito. Eu tinha escolhido umas botas e estava na fila da caixa e ela vinha a seguir a mim. Cumprimentei-a e depois de saírmos brinquei com o Vito, disse-lhe que ela era só uma miúda da faculdade. Tinha sido ela a falar com ele. Eu só lhe disse "olá". ― Tess mal


respirava. Inspirava aos poucos, com nervosismo. ― E é tudo. ― Cobriu a boca com a mão, os olhos alheados. ― E agora está morta. Meu Deus! Como posso eu avisar as pessoas que nem sequer conheço?! Aidan sabia como. ― Chegou a altura de começarmos a jogar ao ataque. Amanhã telefonamos a Lynne Pope, do Chicago On The Toin. Devemos-lhe um favor e vamos pagar-lhe com um exclusivo. ― Vai ser uma celebridade ― disse Murphy. Aidan pôs a mão sobre o joelho de Tess. ― Por ti pode ser? Toda a gente vai saber. Tess parecia tão perdida que Aidan achou que se lhe partia o coração. ― Ninguém vai querer falar comigo ― murmurou. ― Quando eu descer a rua a pé todos se vão esconder de mim. ― Depois, os seus olhos ergueram-se para Sylvia Arness e os seus lábios deixaram de tremer. ― Mas pelo menos assim vão continuar vivas. Tens o cartão de Lynne Pope? Aidan tirou-o da carteira. ― É melhor ser eu a falar com ela, Tess. ― Não, quem fala com ela sou eu. Também tenho umas coisas a dizer ao filho-da-mãe. Quero a minha vida de volta. Se ele pensa que me vai isolar, que me vai obrigar a esconder-me... Pois bem, está enganado. Johnson, importa-se que eu use o seu telefone? ― Não vou permitir que faças uma coisa dessas ― disse Aidan, impedindo-lhe o caminho. ― Ele vai ficar tão furioso que te vai atacar. Tess reflectiu um pouco e depois olhou-o, desafiadora. ― Eu estou muito mais protegida do que ela estava. ― Voltou a olhar para o corpo de Sylvia. ― Tenho-vos a todos, e ela não teve ninguém. E a próxima pessoa também não vai ter ninguém. E eu não quero que haja uma próxima pessoa. Ele que me ataque a mim. Nós havemos de estar prontos. 380 Sexta-feira, 17 de Março, 2.35 Tess sentou-se na beira da cama de Aidan. ― A Lynne foi simpática por ter falado connosco. ― Ela e o câmara tinham filmado tudo. Enquanto isso, Aidan andava de um lado para o outro nos corredores. O olhar que lhe atirou por cima do ombro era expressivo. ― Amanhã vai ter uma audiência muito decente. ― Aidan tirou a gravata e atirou-a para dentro de uma gaveta. ― Eu diria que foi um bom negócio de parte a parte. Com a impressão de estar tolhida pela tensão, Tess dominou o impulso de se levantar e de caminhar enquanto ele ia despindo a camisa. ― Ela disse que passava a entrevista no "Good morning, Chicago" e no


Chicago On The Town e que anunciava antes da emissão ― disse Tess, com a consciência de que estava a gaguejar um pouco, mas incapaz de parar. Ele tinha acabado de despir a camisa e ela ficou a olhar para ele com a boca seca. Vestido, o homem já era atraente de morrer, mas nu... ― Disse, sim. ― Aidan olhou para ela com atenção. ― Tess, estás nervosa? Ela fechou os olhos, já embaraçada. ― Estou. Ele sentou-se ao lado dela e abraçou-a. ― Porquê? ― Acabei de chamar "cobarde miserável" a um assassino e desafiei-o a atacar-me pessoalmente. Ele começou a rir-se, mas depois parou. ― E agora é que te lembraste disso? ― Beijou-a na testa. ― Fizeste o que achaste que devias fazer, Tess. Também não me agrada, mas isto não pode continuar. O turbilhão dentro dela começou a abrandar, a tornar-se algo mais profundo e mais duro. ― Não quero ir a mais funerais, Aidan. ― Eu sei, Tess. Mas em breve havemos de o descobrir e depois isto vai ter fim. Ela levantou os olhos para ele. ― E depois? Aidan não fingiu que não percebeu. ― Não sei, Tess. O que é que tu queres? 381 Ela pensou na resposta com o mesmo cuidado com que ele pensara na dele. Dela podia depender todo o futuro da relação dos dois ― porque eles já tinham uma relação. Nascida do medo, não teria obrigatoriamente de continuar assim. Talvez fosse por isso que ela estava tão nervosa. ― Quero um lar e uma pessoa que me ame. ― Queres um marido. ― Havia no tom de voz dele algo de distante, de nostálgico, que lhe fez um nó na garganta. ― Acho que sim. ― Respirou fundo. ― E se isso te assusta, o melhor é dizeres-me já. ― Não me assusta nada, Tess. Pelo menos não no sentido em que tu pensas. ― Então assusta-te como, Aidan? Diz-me. Ele começou por responder com um esgar. ― É o que estou a tentar fazer. Acho é que não estou a ser capaz. Ela tocou os lábios dele com os dela. ― Achas que era mais fácil se te deitasses no divã? ― Com a mão espalmada sobre o peito cabeludo dele, Tess empurrou-o de maneira a deitá-lo sobre a cama, embora ainda com os pés solidamente


plantados no chão. Depois deitou-se ao lado dele, de lado, apoiada sobre um cotovelo. ― Descontrai... Ele olhou para ela pelo canto do olho, um pouco desconfiado. ― Está bem. ― Não estás descontraído. ― Devagar, ela percorreu-lhe o peito com as mãos. Agradava-lhe o toque dos pêlos do peito dele nas suas mãos. ― Isso não me está a descontrair, Tess... ― queixou-se ele. A mão dela parou. ― Desculpa. Quem era a Shelley, Aidan? E o que é que ela fez para te magoar? Ele fechou os olhos. ― Durante algum tempo, foi a minha melhor amiga. Ou pelo menos eu pensei que era. ― O sofrimento infligido por um amigo custa duas vezes mais. ― Quando eu era miúdo, o meu maior amigo era o Jason Rich. ― Enquanto fez uma pausa, acariciou com o polegar a mão de Tess. ― Éramos muito amigos e metíamo-nos em grandes sarilhos juntos. Sabias que aqueles soldadinhos verdes se derretiam bem nas frigideiras e davam uma bela chama? 382 ― Não, mas costumava brincar com o G. Joe do Vito. O Joe dele era louco pela minha Barbie Malibu. Acho que teria ficado furiosa se desses cabo da minha frigideira. ― A minha mãe ficou. ― Aidan ficou parado, a pensar. ― Quando tínhamos dez anos, a Shelley mudou-se para a casa ao lado da nossa. A mãe dela era divorciada e isso no nosso bairro tinha qualquer coisa de escandaloso. ― No nosso também. Sendo assim, a Shelley também decidiu participar na missão de derretimento do exército de plástico... ― Não. O que aconteceu é que ela só tinha olhos para o Jason e eu era o excluído. ― Mais ou menos como eu quando estou com o Jon e o Robin ― disse ela, com despreocupação. Um olho azul abriu-se. ― Bem podias ter-me contado do Robin... ― Tu não perguntaste. ― Tess pôs-se séria. ― Além disso, nunca liguei muito ao caso. São meus amigos e pronto. Continuaste amigo do Jason e da Shelley? ― Claro, mas quando chegámos à adolescência tudo mudou. O Jason e a Shelley tornaram-se inseparáveis. Quando todos tínhamos dezassete anos, a Shelley engravidou e fugiu com o Jason. ― Céus... ― murmurou Tess. ― Nessa altura, a mãe da Shelley já se tinha casado outra vez e vivia relativamente bem. Acabou por mudar de casa e deu a antiga à


Shelley e ao Jason. ― Aidan suspirou. ― Depois a Shelley perdeu o bebé, mas não quis divorciar-se, como a mãe tinha feito, além de que ela e o Jason gostavam um do outro, de maneira que continuaram casados. Nessa altura, eu decidi ser polícia como o meu pai e o meu irmão, e o Jason decidiu o mesmo. Eu fui para a patrulha e ele para os narcóticos. ― Aidan abanou a cabeça. ― Foi apanhado a "apropriar-se" de provas para uso pessoal. Foi despedido, a Shelley ficou muito perturbada e Jason ficou... ― Voltou a fechar os olhos e contou com esforço: ― Começou a ter tendências suicidas. Ela sentiu o coração bater com mais força. ― Meu Deus! ― Mas o Jason foi atencioso. Não queria que fosse a Shelley a encontrá-lo morto, de maneira que achou melhor vir para o meu apartamento. ― Apesar do nó na garganta, esforçou-se por engolir. ― Tomou uma quantidade de comprimidos para dormir com meia garrafa de 383 Jack Daniels. E adormeceu. Quando voltei do meu turno, doze horas mais tarde, encontrei-o morto. ― Foi cruel da parte dele ― disse Tess com uma voz mais dura do que tencionara. Aidan abriu os olhos. ― Pensei que tinhas simpatia por pessoas com tendências suicidas. ― Tenho simpatia pelas pessoas porque conheço os traumas emocionais e as doenças mentais que levam as pessoas ao suicídio. Tenho simpatia pelos que ficam para trás. Mas é pelos que procuram ajuda que tenho respeito. O Jason tinha uma vida e desperdiçou-a, e aproveitou para te arrastar com ele. E isso parece-me desprezível. Os olhos de Aidan tiveram um brilho súbito. ― No fundo sempre pensei o mesmo, mas de certa maneira envergonhava-me por isso. ― Eu de certeza que me sentiria assim se uma pessoa de quem eu gostasse acabasse com a própria vida dessa maneira. A não ser, claro, que estivesse demasiado perturbada mentalmente para tomar medidas. Era esse o caso? ― Não sei, e suponho que nunca vou saber. Mas a Shelley ficou de rastos. Não tinha rendimentos nem seguro de vida. Não ficou com pensão. Não tinha estudos. Não tinha ninguém com quem contar. ― A não ser contigo. ― A não ser comigo. Acabámos por nos aproximar. Eu gostava dela desde criança, mas ela sempre tinha sido a miúda do Jason. Mas nessa altura começou a ser minha, e eu senti-me feliz com isso. ― E culpado, porque eras feliz à custa do teu amigo? ― Sim, um pouco. Seja como for, pedi-lhe que casasse comigo e ela


disse que sim. Eu tinha posto algum dinheiro de parte e comprei-lhe um anel, com uma pedra não muito pequena. ― Gostou dele? ― Disse-me que sim, mas não o mostrou às amigas. Uma vez, faloume na possibilidade de comprar um com uma pedra maior, mas eu disse-lhe que não. Não tinha dinheiro que chegasse, a verdade é essa. Mas por essa altura o novo marido da mãe dela fez uma fortuna quando a empresa dele passou a ser cotada em bolsa. Depois disso, a mãe da Shelley comprou-lhe um anel maior. ― Céus... ― Pois. Foi a primeira vez que discutimos, mas não foi a última. O padrasto estava cheio de dinheiro e era generoso. A Shelley recebeu 384 prendas, vestidos, peles. Depois disse que queria uma casa na North Shore. ― Aidan ficou visivelmente tenso. ― O novo papá ia ajudar. Um golpe no orgulho dele. ― E tu não aceitaste. ―- Claro que não. O imbecil olhava para mim de cima para baixo sempre que tinha oportunidade! Aquilo explicava muita coisa. ― Sendo assim, qual foi a gota de água que fez entornar o copo? ― O papá ofereceu-me um emprego. ― O desdém endureceu a voz dele. ― Como eu não quis aceitar, a Shelley amuou. Disse que eu podia ganhar três vezes mais do que como polícia. Três vezes o salário de um polícia! ― pareceu cuspir Aidan. ― Foi com estas palavras que ela o disse. Como se fosse alguma coisa de que eu devesse envergonhar-me. Tess procurava não julgar os motivos das famílias dos doentes que não chegava a conhecer. Mas aquele homem não era um doente dela. Era o seu namorado, e aquele assunto fazia-o sofrer. ― Se queria modificar-te, era porque não te amava. E se pensava que isso estava ao alcance dela era porque não te conhecia. Aidan encheu o peito de ar e respirou profundamente. ― Obrigado. Tess confundiu os dedos com os dele. ― E...? ― E é tudo., Não, não era. Mas era evidente que era tudo o que ele tencionava contar-lhe. ― Está bem.; Ele abriu um olho. ― Está bem? É tudo? Tess sorriu-lhe com malícia. ― Queres que eu amue? Não é o meu estilo. ― Aconchegou a cabeça no ombro dele. ― Mas na verdade há uma coisa que eu gostava de esclarecer completamente. Ele ficou rígido.


― O quê? ― perguntou. ― Harold Green., De repente, pôs-se de pé e deixou-a deitada de lado a olhar para as costas largas dele. ― Não. 385 Tess insistiu: ― Porque não? ― Porque... ― Aidan pôs-se de pé e deu alguns passos até à janela. Porque não quero falar dele. Foi um acidente e é tudo. Fim da conversa. ― Foi o que disseste ao pai ontem à noite. ― Tess, esquece o assunto. Por favor. ― Não posso. Se não queres falar, ao menos importas-te de ouvir? ― Há alguma maneira de te impedir? Ela tentou não ficar magoada. ― Sim. Basta dizeres-me que não queres que eu fale e eu vou dormir. ― Eu disse-te que não e continuamos a falar do assunto ― a voz dele era fria como gelo. ― Isso é verdade. ― Tess tentou que a sua voz não se alterasse. ― Já é tarde, Aidan. Vamos dormir. Com um olhar desamparado, entrou na casa de banho e fechou a porta. CAPÍTULO 20 Sexta-feira, 17 de Março, 2.55 Tess saiu da casa de banho vestida com uma das camisas de Aidan e ficou surpreendida por ver que ele ainda não se tinha mexido do mesmo sítio. ― Está aí alguém? ― perguntou ela com um gesto da mão à frente dos olhos dele e ele abanou a cabeça. ― Não. Se estivesse, a Dolly avisava-nos. ― Vem para a cama, Aidan. Prometo que te deixo dormir. ― Deslizou entre os lençóis e apagou a luz, deixando-os na penumbra. O perfil dele via-se bem recortado contra a janela, por onde espreitava como se estudasse qualquer coisa lá fora que só ele conseguisse ver. ― Fui eu que a descobri ― disse ele, bruscamente, num tom desagradável. ― A terceira miúda. Tess sentou-se. A terceira menina, que Harold Green matara com tanta crueldade. ― Eu sei. O Murphy disse-me na primeira noite. Tenho muita pena. ― Foi esventrada. Sabias? Tess engoliu em seco. ― Sei. ― Fora horrível. As fotografias das três crianças mortas sem qualquer sentido pareciam troçar da decência de qualquer pessoa que as visse. Mas era preciso olhar para tratar o homem que infligira um


sofrimento tão brutal como aquele. ― Pensámos que ela ainda estava viva ― disse ele. ― O Harold Green tinha dito que estava. ― Na mente de Harold Green estava. ― Merda! ― disse ele com raiva. ― O Harold Green era um assassino nojento. 387 Era melhor enfrentar o assunto de uma vez. ― E eu deixei-o escapar? Aidan não disse nada, o que queria dizer tudo. Tentou não se sentir magoada, mas era difícil. Decidiu recuar para terreno conhecido e falar com ele como falaria com um paciente, sem nunca esquecer que estava na cama dele, vestida apenas com uma das suas camisas. ― Aidan, que fizeste quando a encontraste? Quando encontraste a terceira menina? A garganta dele agitou-se. ― Caí de joelhos ao lado dela e chorei como um bebé. ― Tenho a certeza que não foste o único ― murmurou ela. ― Tinha só seis anos. ― Aidan parecia sufocar com as palavras. ― Diabos levem isto tudo. Não queria voltar a pensar nela, mas naquela noite, quando vi aquela mulher com os intestinos à vista daquela maneira... Cynthia Adams. Um suicídio, coberto por um homem em quem o suicídio deixara uma marca pessoal. E, mesmo assim, tinha-se preocupado o suficiente para procurar encontrar o assassino de Cynthia Adams. ― E eu deixei-o escapar ― disse ela outra vez, e Aidan estremeceu. ― Foi um erro ― disse ele, com um desespero talvez exagerado. ― Acertaste em tantos outros casos... Tens o direito de cometer um erro. Tess percebeu de onde vinha aquela maneira de pensar, mas não sabia como mostrar-lhe que ele não tinha razão. ― Viste o filme O Sexto Sentido? ― perguntou. Quando fez a pergunta voltou-se de repente e viu que os olhos dele estavam húmidos. ― Estás a falar de um filme? Ela acenou afirmativamente, com a voz calma, apesar da tensão que se acumulava no seu estômago. ― Sim. Viste? Aquele em que há um rapazinho que vê fantasmas. ― Sim, vi ― atirou ele. ― Dou-lhe quatro estrelas. ― A parte mais assustadora era que ele via fantasmas durante o dia, numa altura em que, supostamente, não há razão para ter medo. ― Esta conversa está a ir nalguma direcção, doutora Ciccotelli? ― perguntou ele num tom acerbo. ― Sim. O Harold Green não via fantasmas, Aidan. Via demónios, e não era só durante a noite, em sonhos. Os demónios estavam por toda a


parte, observavam-no todo o dia e toda a noite, onde quer que ele 388 estivesse, à espera de uma oportunidade para lhe saltar em cima e para o devorar. Tinham presas a escorrer sangue. Acontece que os demónios eram crianças encantadoras. E o problema é que ele não conseguia distingui-las de demónios. ― É evidente que ele tinha de se defender com isso ― atirou Aidan. ― Seria capaz de dizer fosse o que fosse para não ir parar à prisão. ― Há muitos tipos de prisões, Aidan, Alguma vez estiveste num hospital psiquiátrico? ― Não. ― Quando isto acabar, gostava que fosses comigo a um. Harold Green está permanentemente sedado para não agredir o pessoal. Está rodeado por uma névoa em que os medicamentos procuram espantar os demónios, mas mesmo assim ele vê-os. Grita e magoa-se e tem de ser preso para não se magoar a ele mesmo. Grita e transpira em bica, constantemente, por estar aterrado. Toda a existência dele se resume àquilo que não consegue deixar de ver. Está completamente sozinho. ― Os pais ricos dele não o vão visitar? ― perguntou Aidan, agressivamente. "Como é que eu posso ter deixado escapar isto?", pensou Tess. ― O dinheiro significa poder, mas no caso de Harold Green pouco quer dizer. A mãe vai visitá-lo de vez em quando, mas com o tempo as visitas foram-se espaçando. Ela vive na esperança de ele ter melhoras, de voltar a ser quem era, de voltar a ser o homem que ela conheceu. O filho que amou. Que, apesar de tudo, ainda adora. Mas os dias vão passando e ele continua prisioneiro da sua mente, aterrorizado e só. ― Tess respirou fundo, devagar. ― Às vezes... ― abanou a cabeça. Tinha os olhos repletos de lágrimas. Aidan estava de pé, imóvel, rígido, e depois voltou-se devagar, de maneira a olhá-la em vez de continuar a olhar lá para fora. ― Às vezes o quê? ― perguntou tranquilamente. Tess estava envergonhada do que tinha para dizer, mas precisava que ele compreendesse. ― Às vezes, quando o vejo tão só e torturado, penso que era melhor ele morrer. Outras vezes... ― Afastou o olhar. ― Às vezes, passa-me pela cabeça ser eu a fazê-lo. E nunca tenho a certeza se é por ter compaixão se é por desejo de vingança. O destino dele esteve nas minhas mãos no tribunal, Aidan, e eu poupei-o porque ele não tinha condições de comparecer perante a justiça, e a lei diz que não pode ser condenado pelos seus crimes. Mas eu vi o que ele fez e... ― A sua voz 389 estremeceu, mas ela dominou-se. ― Eu vi os olhos das mães das


crianças. E também a mulher do polícia que ele estrangulou. E odiei Harold Green. Mas cumpri o meu dever. ― Fechou os olhos e as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. ― E se as circunstâncias se repetissem voltava a fazer o que fiz. Aidan estava de pé à frente de Tess e as lágrimas dela partiam-lhe o coração. Tess tinha cumprido a sua obrigação no momento em que isso era mais difícil. Em tempos imaginara-a fria, mas já a conhecia e sabia que ela se envolvia demasiado, e que só à custa de uma força de vontade de ferro podia escondê-lo dos outros e fazer o seu trabalho. Mas isso era uma coisa que ele compreendia bem, ter de fazer um trabalho que o deixava desgastado. Tinham muito mais em comum os dois do que ele pensara ao princípio. E no fundo do seu coração magoado qualquer coisa floresceu. De momento, deixaria que fosse simples respeito. ― Desculpa. Não tinha percebido. ― Sentou-se ao lado dela e suplicou: ― Por favor, não chores mais. Ela cerrou os maxilares e evitou soluçar. ― Não consigo deixar de ver aquela mulher, a Sylvia Arness. A vida dela devia ser ir a festas, a aulas, mas está morta. Aidan limpou-lhe o rosto molhado com o polegar. ― Há um monstro louco que sabe que esta é a melhor maneira de te atingir. Mas nós não vamos deixá-lo vencer, Tess. Ela não conseguiu conter mais o choro e ele acolheu-a nos braços e acariciou-a, beijou-a quando o choro dela se tornou mais intenso, até a única maneira ao seu alcance de a aquietar ser com os seus lábios. Afastou o rosto dela do seu peito e cobriu-lhe a boca com a dele, dura, insistente. Durante alguns segundos ela reagiu, depois caiu de joelhos, devolvendo o beijo com uma força desesperada, agressiva, as mãos dela no peito dele, os dedos a porem em desordem os pêlos dele. Com os dedos, Tess brincou com os mamilos dele, sentindo sair-lhe do peito um gemido de prazer. Aidan arrancou-a da cama, fê-la pôr-se de pé, desabotoou os botões da camisa que ela tinha vestido, praguejando quando eles não queriam sair, até que acabou por arrancá-los e ficou com os peitos dela a encherem-lhe as mãos. As mãos dela também estavam ocupadas na cintura dele, por fim as calças caíram-lhe e ele atirou-as para um canto com um pontapé, seguindo-se a restante roupa. Aidan ficou nu enquanto ela o olhava de frente com a camisa dele ainda pelos ombros. Ele começou a tirar-lha, mas parou, surpreendido quando ela acendeu a luz. 390 O cabelo dela estava despenteado pelas mãos dele, os seus lábios inchados da boca dele e o seu rosto raiado pelas lágrimas que lhe corriam dos olhos. Mas os olhos dela ardiam e ele tremia de a ver.


― Ontem à noite não te vi ― disse ela. ― E quero ver-te. ― Empurrou-o para a cama e sentou-se por cima dele, inclinada sobre ele para lhe estender os braços acima da cabeça, ao lado da almofada, quando ele procurou agarrá-la. ― Não ― sussurrou ela. ― Esta noite é minha. Deixa-me... Com o ar preso nos pulmões, Aidan concordou, percebeu que o que ali estava em causa era o domínio. A vida dela fora-lhe tirada, pedaço a pedaço, feita em retalhos. Mas aquela cerimónia era sua. A boca de Tess deslizou pelo peito dele, beijando o seu corpo em direcção a sul, e as ancas dele arquearam-se numa resposta reflexa. Parou a um fôlego do sexo tenso dele e ele disse o nome dela com voz alterada: ― Tess... ― Chiu! Deixa-me. ― Com os dedos, percorreu-o em toda a extensão, fazendo-o vibrar. ― Depois a sua língua seguiu o percurso já feito pelos dedos e ele voltou a gemer. ― Por favor! ― Aidan arqueou de novo o corpo, mas ela não respondeu e por fim ele sentou-se apoiado nos cotovelos para a olhar. Tess examinava-o com intensidade, com uma expressão curiosamente analítica. Depois levantou a cabeça e os olhos dos dois cruzaram-se. A boca dela não sorria. ― Nunca tinha feito isto. O corpo dele imobilizou-se completamente. "Não pares. Por favor, não mudes de ideias", pensou ele num frenesim. Tess passou a língua pelos lábios. ― Se eu fizer alguma coisa de que tu não gostes, diz-me. "Obrigado! Obrigado!", pensou ele, e depois deixou de pensar com clareza porque a boca dela se fechou sobre ele, quente, húmida e boa. Fechou os olhos e entregou-se à sensação. Deixou que ela o afastasse da fealdade do que o rodeava, da realidade, e o fizesse mergulhar naquilo que interessava ― aquela mulher e o prazer indizível que o deixava sem respiração, lhe mobilizava todo o corpo, o fazia elevar as ancas cada vez mais, com cada vez mais vigor. Tomou-lhe a cabeça entre as mãos e mostrou-lhe como gostava e depois deixou-a continuar ao ritmo certo e afundou-se num gemido. 391 O prazer dele excitou-a profundamente. Dava-lhe prazer e estimulava o seu próprio prazer. O seu corpo era percorrido por arrepios profundos e entre as pernas sentia um pulsar insuportável de desejo. Queria, desejava como nunca desejara. O sexo nunca fora assim, nunca fora aquela corrida frenética para a completude, aquela necessidade imperiosa de ser preenchida. O sexo sempre fora uma coisa que ela fazia, agradável mas não necessária. Estar com aquele homem era uma necessidade. Fazê-lo gemer de


prazer era mais imperioso que respirar. Mudou de ângulo, aumentou a pressão da sua boca e pegou-lhe com delicadeza. Com um grito abafado, o seu corpo magnífico arqueou-se e ficou imóvel, deixando-o apoiado apenas nos calcanhares e na nuca. Satisfeita, sentindo-se poderosa, mulher, ela libertou-o e deitou-se ao lado dele. Deitou-se sobre ele e beijou o seu corpo. As mãos dele pegaram nas nádegas dela, convulsivamente. Os olhos dele não tardaram a abrir-se e deixaram-na sem respiração. ― Agora quero possuir-te. ― Sem esperar resposta, ele voltou-se e num só golpe poderoso entrou dentro dela, preenchendo-a. O grito dela misturou-se com o rugido dele e por instantes ficaram imóveis os dois, rigidamente. ― Eu não queria desejar-te ― disse ele com voz alterada, os seus movimentos a pontuarem as palavras. ― Não queria gostar de ti. Mas não posso evitá-lo. ― Eu sei. ― O corpo dela distendeu-se. Enquanto isso, Tess murmurava sons desconexos ao mesmo tempo que ele lhe ia beijando o pescoço. Depois ele abriu a boca sobre a cicatriz dela, chupando com força, e ela percebeu que ele queria deixar a marca dele sobre outra que desprezava. O coração dela batia descompassado. ― Aidan! O prazer tornou-se intenso, demasiado intenso. As sensações começaram a acumular-se, os músculos dela contraíram-se à volta dele e os seus impulsos tornaram-se mais poderosos, mais rápidos, o turbilhão no seu interior mais tenso, a força com que apertava as mãos dele mais intensa e ela teve medo. Medo de nunca lá chegar e do que aconteceria se chegasse. ― Deixa que aconteça ― suplicou-lhe ele ao ouvido, numa exaltação poderosa quando algo se soltou lançando uma onda de fogo pelo seu corpo. Ela agitou-se convulsivamente e gemeu, consciente de forma vaga de que ele encontrara o seu próprio prazer, o seu corpo tenso, a cabeça descaída para trás num êxtase silencioso. O peso dele caiu sobre ela, as mãos de ambos ainda unidas. Os corpos dos dois continuavam ligados. Tess tinha a impressão que o peito 392 lhe doía, que a garganta lhe doía. O que sentira era mais incrível que qualquer outra coisa que tivesse vivido em toda a sua vida. O peito dele subiu e desceu. Podia ter sido uma risada. Deixaram-se estar em repouso nos braços um do outro o que lhes pareceu uma eternidade, até que ele se apoiou nos cotovelos e olhou para o rosto dela, já calmo. ― Não planeei as coisas assim para esta noite. Ela pestanejou. ― O quê? ― Não queria ser tão duro, tão rápido... Mas depois do que tu fizeste não pude dominar-me... Ela sorriu, beijou o queixo dele, onde a barba já despontava.


― Se calhar voltei a não cooperar... Ele não retribuiu o sorriso dela. ― Porquê? ― O...? Ora... ― Não conseguiu concluir. Corou e os seus olhos desviaram-se com timidez. ― Deves achar-me tola por não conseguir dizer a palavra... ― Eu acho que foi a sensação mais incrível que já tive em toda a minha vida ― disse ele num tom tranquilo. Ela tentou não se mostrar radiante. ― A sério? Os lábios dele desenharam um sorriso indulgente. ― A sério. Mas então porquê, Tess? Porquê comigo? ― Nunca tinha querido antes de hoje ― respondeu ela com sinceridade. ― Depois contigo, ontem à noite... ― Suspirou. ― Não vou ser tímida. Eu sei que sou atraente. Sei que os homens olham para mim. Mas o Phillip deu um golpe no meu amor-próprio, fez-me perder a confiança. Tu fazes-me sentir bonita, desejável. E eu queria que sentisses o mesmo. ― Encolheu os ombros, pouco à vontade. ― Tu não percebes. Ele olhou-a, com o olhar intenso à luz do candeeiro da mesa-decabeceira. ― Não imaginas o que percebo, Tess. Nessa altura inclinou-se, apagou a luz e puxou os lençóis e os cobertores para cima dos dois. No escuro, ajeitou-se de maneira que o rosto dela ficasse apoiado no seu peito, os braços dele à volta dela, o coração de um audível para o outro. A respiração dela tornou-se lenta e profunda e quando ele voltou a falar ela estava quase a dormir. A voz dele vibrou contra o peito dela. 393 ― Depois daquele dia... Do dia em que encontrei a terceira menina... Cheguei a casa e a Shelley aproveitou para me atacar. Eu estava de rastos e ela aproveitou para tentar convencer-me a sair da polícia. Tess acariciou-lhe o peito, contente por Shelley não estar ali. Era capaz de a ter esbofeteado. ― Isso foi muito egoísta. O riso dele foi cruel. ― Para o fim, eu já não conseguia dizer o que tinha visto nela ao princípio. Tudo o que sei é que me sentia tão vazio, tão furioso, que só me apetecia agredi-la. Já tinha a mão no ar quando parei. Contive-me já ia a meio caminho. Depois fiz-lhe um ultimato. Se ela me voltasse a falar em trabalhar para o padrasto eu ia-me embora. E estava a falar a sério. Aidan ficou quieto, sem dizer nada, um longo momento. Por fim Tess perguntou: ― E foste? Acabaste por deixá-la? ― Não nessa altura. Durante algum tempo, ela andou melhor e eu pensei sinceramente que as coisas podiam resultar. Só a deixei no dia


em que tu testemunhaste no tribunal. No dia do julgamento de Harold Green. Estava tão furioso contigo... Tinha tirado esse dia para ir ao julgamento. Depois de todos os polícias terem saído da sala para protestar contra ti, voltei para casa. Nesse dia precisava de alguém e a Shelley devia ter sido essa pessoa. Um pressentimento apoderou-se dela. ― E...? ― E cheguei a casa e apanhei-a com outro homem na cama. Na nossa cama. Tess respirou fundo e disse a única coisa que lhe ocorreu. A mesma coisa que ele tinha dito na noite anterior: ― Foi de muito bom gosto. O riso dele foi sinistro. ― Nem mais! Ela viu-me de pé à porta do quarto. Ele estava ocupado. Desconfio que ainda hoje não sabe que eu estive lá. Mas ela sabe, disso tenho a certeza. Olhou-me directamente por cima do ombro dele. Levantou as sobrancelhas. E é tudo. Saí e nunca mais voltei. A Kristen foi lá a casa buscar as minhas coisas numa altura em que ela não estava. Eu tinha-a trazido a esta casa quando pensei comprá-la, mas ela olhou-a cheia de desdém, de maneira que duas semanas mais tarde comprei-a, 394 comecei a criar raízes. Ela fez o mesmo. Vai casar-se daqui a umas semanas. Ele trabalha para o papá e ela conseguiu a casa que queria na North Shore. ― Aidan suspirou. ― Agora já sabes tudo. ― Obrigada por teres confiado em mim. Ele retribuiu com um esgar cómico. ― Obrigado por... Tu sabes. Foi óptimo para uma principiante... Ela abriu muito os olhos. ― Disseste que tinha sido o melhor... ― E não estava a mentir. Mas parece-me que sendo o teu primeiro as coisas só podem progredir em sentido ascendente... Com um sorriso irónico, Tess replicou:: ― Ou descendente, na verdade. Vamos dormir, Aidan. Daqui a pouco amanhece. Sexta-feira, 17 de Março, 7.30 ― Aquela cabra ― Joanna estava à frente da televisão, de boca aberta e mãos nas ancas. Tess Ciccotelli enchia o ecrã. O seu rosto ora parecia nervoso, ora triste ou estudadamente sincero. Depois, a câmara fez uma panorâmica e recuou. ― Deu uma entrevista à Lynne Pope. Keith levantou os olhos do jornal da manhã de sobrolho franzido. ― Jo, pára já com isto. Ela não te vai dar a tua história. Habitua-te à


ideia e segue em frente. Ela olhou para ele furiosa, por cima do ombro. ― Obrigada pelo apoio. ― Vê se cresces, Jo. ― Keith dobrou o jornal. ― Ontem à tarde ligaram-me de um banco de Atlanta. Querem que eu comece a trabalhar lá no princípio do mês. É uma excelente oportunidade, Jo. Além disso, eu quero voltar para lá. Achei que se houvesse uma razão para ires talvez mudasses de ideias. ― Tu tens uma razão para ir ― disse ela, furiosa. ― É a tua carreira, a tua vida. ― Que eu pensava que também era a tua ― disse ele, calmamente. ― Ainda não lhes dei uma resposta. Agora vou vestir-me e vou trabalhar. Falamos do assunto logo à noite. Ela ficou furiosa ao vê-lo sair. Não queria falar do assunto. Queria ficar e conseguir publicar o maldito artigo, nem que fosse a última coisa 395 que fizesse. Dirigia-se à cozinha quando uma fotografia na televisão lhe chamou a atenção. ― Sylvia Arness foi alvejada à queima-roupa com uma arma de grande calibre. A polícia está a investigar o caso. As testemunhas dizem que ouviram o tiro e mais tarde encontraram o cadáver. Foi encontrada uma nota que dizia "Serás julgada pelas tuas companhias" pregada à roupa da mulher. A polícia não quis comentar o significado da mensagem. Manteremos os nossos espectadores a par dos desenvolvimentos do caso. Lentamente, Joanna sentou-se ao computador e foi carregando no botão do rato até ver as fotografias de Tess Ciccotelli que tinha tirado na quarta-feira à noite. Tinha as da garrafeira, as da loja de roupa, as da florista, as da sapataria... Ali estava. A mulher que tinha sido encontrada morta na mesma fotografia com a Ciccotelli. Mal tinham falado as duas. Fora uma troca de palavras de segundos. E agora a mulher estava morta. Sentiu um arrepio percorrê-la. "Meu Deus." Com o estômago às voltas, recuou até voltar às fotografias da garrafeira. Tinha feito uma nova ligação. Comparou a sua própria fotografia com a que saíra na página quatro do Bulktin desse dia. "Marge Hooper, de cinquenta e três anos, morreu durante um assalto à sua loja de vinhos", dizia o título do jornal. Era a mesma mulher. Reviu as restantes fotografias, quase sem se atrever a respirar. O porteiro também se encontrava lá. Três mortos. Todos em fotografias que ela tinha tirado. Lembrou-se do papel de fotografia que tinha desaparecido de sua casa. Alguém tinha andado a vasculhar nos ficheiros dela. Sentiu um suor frio escorrer-lhe pelas costas. "Liga à polícia, Jo. Já." Quando estendeu a mão para o auscultador do telefone percebeu que estava a tremer e quando ele de súbito tocou


deu um salto de surpresa. ― Está? ― Miss Carmichael? Fala Kelsey Chin, da Women's Clinic, em Lexington, no Kentucky. Disseram-me que me tinha ligado ontem. Com as mãos ainda a tremerem, Joanna passou rapidamente as folhas do bloco de apontamentos até que chegou a um nome que tinha aparecido no contexto do que começara a chamar a "investigação do papel caça-moscas". ― Dr.a Chin. Obrigada por ter respondido ao meu telefonema. Eu sou jornalista, ando a investigar uma história e penso que me poderia ajudar. 396 Sexta-feira, 17 de Março, 7.30 Aidan tinha deixado Tess à porta do hotel dos pais vinte minutos antes ― a tempo de ver a entrevista que ela dera a Lynne Pope. Quando a entrevista terminou, o pai dela ficou sentado muito quieto. A mãe estava sentada ao lado, de mãos dadas com ele. Vito andava de um lado para o outro. Tess bocejava. ― Eles não estavam a mentir quando disseram que a câmara nos engordava meia dúzia de quilos ― comentou despreocupadamente; depois arrependeu-se quando três pares de olhos furiosos se voltaram para si. ― Tens a certeza que foi uma boa ideia, Tess? ― perguntou a mãe. ― Não achas que é demasiado arriscado atraí-lo assim a uma armadilha? ― Claro que não foi uma boa ideia ― explodiu Vito. ― E onde diabo estava Reagan quando estavas a dar a entrevista? ― A andar de um lado para o outro, como tu agora. Ontem à noite encontraram outro corpo. Vito, lembras-te da rapariga que meteu conversa contigo na sapataria? O rosto de Vito ficou branco. ― Morreu? Era sobre isso que vocês estavam a falar ontem à noite? Tu nem sequer a conhecias! Ele agora mata pessoas desconhecidas?! Tess acenou afirmativamente. ― Tenho de ter a certeza que mais ninguém é apanhado desprevenido. Em minha opinião, Lynne Pope fez um bom trabalho com a entrevista. O pai de Tess pôs-se de pé. Parecia cinzento. ― Quem é que tu provocaste ao ponto de fazer uma coisa destas? Meu Deus. Matarem uma desconhecida! Tess refreou a irritação com as palavras que o pai escolhera. ― Não faço ideia, pai. A polícia anda a investigar em pormenor os doentes que eu avaliei para o tribunal. ― Deste-lhes uma lista de doentes do teu consultório? ― Sim, eles têm a lista. Mas sinceramente duvido que algum dos meus pacientes fosse capaz de conceber um esquema tão tortuoso, ou fosse


suficientemente organizado para o levar a cabo, se o fizesse. É uma pessoa com uma personalidade de um tipo que eu não sei se alguma vez terei encontrado. ― De repente reparou que o pai estava com má cara. ― Pai, deite-se. Parece-me que não se está a sentir bem. 397 O pai sentou-se na cama. ― Tens razão, não estou a sentir-me bem ― confessou. ― Gina, tens os meus comprimidos? Com delicadeza, Tess obrigou-o a deitar-se e depois levantou-lhe os pés e pô-los em cima da cama. ― Descanse, pai. Eu estou a tomar todas as precauções, garanto-lhe. ― Entrou com o irmão no quarto ao lado e deixou que o desânimo se abatesse sem disfarces sobre os seus ombros. ― Ele tem de ir para casa. ― Ele não vai se tu não fores ― respondeu Vito em voz baixa. ― Tess, por favor, vem para Filadélfia. Pelo menos até isto acabar. Em Filadélfia estou no meu terreno e posso proteger-te. Tess fez um sinal negativo com a cabeça. ― Acho que ainda não percebeste, Vito. Tudo isto tem a ver comigo. Se eu fosse para Filadélfia, o assassino também ia. E nós limitávamonos a transferir o problema para outra cidade. Aidan e Murphy já têm algumas pistas e eu tenho confiança neles. ― Fez-lhe uma festa num braço. ― Tu não? Ele deixou-se cair numa cadeira. ― Sinto-me tão indefeso! Em breve tenho de voltar ao trabalho. Eles foram simpáticos quando eu disse que vinha, mas já estou fora há três dias. Tess encostou o rosto ao braço do irmão. ― Isto tem de ter fim em breve, Vito. Antes que morra mais alguém. ― O telemóvel tocou no seu bolso e ela sentiu um arrepio de medo. ― Não me apetece nada atender. ― Pode ser que seja o Reagan. Atende. Tess tirou o telemóvel do bolso. Era Amy. ― Olá. ― Tess? Fala Amy. Onde estás? O arrepio voltou com o tom de voz de Amy. ― Estou no hotel, com o Vito. Porquê? ― É o Eye. Estão a acusar-te de teres feito os vídeos voluntariamente. ― Amy hesitou. ― Estás na primeira página, Tess. Denise. Diabos a levassem. ― A Denise vendeu a história ― atirou. ― Juro por Deus que... É muito mau? ― É. É mesmo, mesmo mau. Eles... Eles têm uma fotografia na página dois. É a que veio com a nota de chantagem, Tess. Tenho muita pena.


398 A acidez do estômago subiu-lhe à boca e, sem pensar, instintivamente, Tess passou o telemóvel a Vito e atirou-se para cima da cama. Ouviu Vito pedir uma explicação, abafar um palavrão, e a seguir viu-o ajoelhado ao lado dela, a dar-lhe palmadinhas nas mãos. ― Que posso fazer? ― perguntou ele com uma voz baixa e infeliz. Tess ficou sentada durante algum tempo a pensar na resposta. ― Podia pedir-te que matasses o estupor, mas isso é ilegal. ― Tomou uma decisão e, uma vez tomada, pôs-se de pé com determinação. ― Podes levar-me de carro até ao tribunal. Há um advogado com quem quero falar. Sexta-feira, 17 de Março, 7.30 "Pelos vistos, decidiu tomar a ofensiva. Nunca pensei que tivesse forças para tanto." No café, todos os olhos estavam pregados na televisão. As simpatias estavam do lado de Ciccotelli. No entanto, todos diziam que se a vissem passariam para o outro lado da rua. Seria cada vez mais difícil apanhar estranhos a partir desse momento. O fio solto talvez tivesse de ser simplesmente cortado. Estava na altura do golpe de misericórdia. E depois... da satisfação final. A empregada aproximou-se com uma cafeteira de café. ― Mais uma chávena? ― Sim, por favor. E depois a conta. Sexta-feira, 17 de Março, 8.15 Blaine Connell tinha ar de quem não dormia há vários dias. O seu representante sindical estava ao lado dele na sala de reuniões de Spinnelli, com aspecto arrogante e belicoso. Spinnelli e Patrick estavam de pé, ao lado da mesa, enquanto Aidan e Murphy estavam sentados à mesa. O homem de fato preto dos assuntos internos estava a um canto da sala, atento e cauteloso. Murphy apresentou a fotografia de Connell a aceitar dinheiro de Lawe; Connell ficou tenso. ― Já falámos várias vezes deste assunto ― disse o representante sindical. ― O guarda Connell diz que não conhece este homem. Esta fotografia é claramente uma montagem. 399 ― Nós sabemos o seu nome, Destin Lawe. Era detective privado e está morto. Aidan percebeu que os ombros de Connell se relaxavam ligeiramente. ― Ele ameaçou-te, Blaine? ― Os olhos de Connell pestanejaram. Aidan sabia que ele era casado e tinha filhos. ― A Sandra ou aos miúdos? Mais uma vez, um estremecimento, dessa vez mais forte. Aidan suspirou. ― Blaine, tu sempre foste um bom polícia, e ainda estás a tempo de


ser um bom tipo. Já morreram dez pessoas. Se o Lawe estava a ameaçar a tua família, agora já não pode fazer-te mal. Ajuda-nos, Blaine. Diz-nos onde o conheceste. Temos de descobrir uma ligação entre Lawe e este assassino, ou então vai haver mais mortes. Connell disse qualquer coisa ao ouvido do representante sindical. ― Ele quer imunidade ― disse o delegado. Patrick franziu o sobrolho. ― Tudo depende do que ele tiver feito. Não posso garantir-lhe imunidade assim às cegas. O representante sindical pôs-se de pé imediatamente. ― Nesse caso não temos mais nada a dizer. Vamos embora, Blaine. Aidan começou a alinhar as fotografias dos mortos em cima da mesa. ― Arness, Hooper, Hughes, Malcolm e Gwen Seward, Winslow, Adams. Connell teve uma reacção nervosa que não conseguiu dominar e sentou-se, os lábios firmes. O representante sindical agarrou-o por um braço. ― Vamos embora, Blaine. Aidan continuou. ― Eles eram pessoas inocentes. Olha para os cúmplices. O nosso rapaz não gosta de fios soltos. David Bacon, Nicole Rivera, Destin Lawe. ― Connell empalideceu quando olhou para o corpo carbonizado de Lawe. ― Nenhum deles nos pediu ajuda. Tanto quanto sabemos foram leais até ao fim, ao fim amargo. Achas que estás fora do alcance dele? Se achas que Lawe era a maior ameaça à tua mulher e aos teus filhos, pensa melhor. Tu és um fio solto, Blaine. ― Vamos embora, Blaine! Connell ignorou-o. 400 ― Ele veio ter comigo. Disse-me que precisava de um favor, de umas fotografias de locais de crimes. Disse que ia apanhar a psiquiatra que livrou o assassino do Preston. ― A Dr.a Ciccotelli ― disse Murphy, e Connell acenou afirmativamente. ― Essa mesmo. A cabra parece que tem gelo nas veias. Aidan recordou a angústia dela na noite anterior, os seus soluços dilacerantes. Devia sentir raiva em nome dela, mas só sentiu tristeza. ― Não, não tem ― disse apenas. Os lábios de Connell uniram-se num traço fino. ― Tu andas a dormir com ela, Reagan, por isso dificilmente podes ser aceite como autoridade na matéria. Oxalá ela seja boa na cama, porque foi por isso que trocaste a tua reputação. ― Com um esgar de desdém acrescentou: ― Hoje o Eye publicou uma fotografia dela na página dois. Assim, já todos percebemos o que te levou a deitar a consciência pela pia abaixo. Nessa altura, Aidan sentiu o sangue a ferver. Pressentindo Murphy tenso ao seu lado, Aidan olhou fixamente a mesa e, quando sentiu que estava de novo calmo, voltou a olhar para Connell. ― Como é que o Lawe te contactou? Connell desviou os olhos, mas


respondeu: ― Apanhou-me à saída do tribunal e mais tarde ligou-me de uma cabina pública para combinar a entrega. Foi ao pé dos armazéns junto do lago. ― Lembras-te em que dias aconteceu isso? ― perguntou Murphy. ― No dia catorze de Dezembro, fora do tribunal, e no dia dezassete para a entrega. ― Pareces certo dessas datas ― disse Murphy. ― Porquê? Connell voltou a desviar os olhos. ― Só me lembro. É tudo. Aidan pôs-se de pé. ― Se calhar lembraste porque foram os dias em que atiraste com a consciência pela pia abaixo ― disse ele com raiva. Murphy pôs-se de pé e apoiou-lhe a mão no ombro. ― Não vale a pena, Aidan ― murmurou Murphy, e Aidan respirou fundo. ― Eu sei. ― Não disse mais nada até os quatro terem chegado à secretária dele e de Murphy e ele próprio se ter afundado na cadeira. ― Só queria tirar-lhe aquele sorriso do focinho. ― Mas não tiraste ― disse Spinnelli. ― Bom trabalho. ― Que pensas fazer a seguir? ― perguntou Patrick. 401 ― Investigar estas datas. Talvez apareça alguma coisa ― disse Murphy. ― Além disso, vamos fazer uma visitinha ao ex-noivo de Tess, o Dr. Phillip Parks. ― Aidan olhou para o relógio. ― Deve estar a chegar ao trabalho. ― Que vais fazer com Connell? ― perguntou Spinnelli. Patrick pareceu perturbado. ― Interferiu com as provas. Vou tentar que seja despedido, sem pensão. Se fizer mais alguma coisa, aviso ― disse Patrick, que voltou à sala de reuniões onde se encontrava Connell com o representante sindical e o homem dos assuntos internos. ― Hoje vi a Tess no "Good morning, Chicago" ― contou Spinnelli. ― Parecia confiante e simpática. Esperemos que a Lynne Pope volte a convidá-la para o programa depois de tudo isto terminar, senão as pessoas vão continuar a atravessar a rua sempre que se cruzarem com ela. Não te preocupes com o jornal, Aidan. Estas coisas morrem em poucos dias. Spinnelli fechou-se no gabinete e Murphy sentou-se na secretária de Aidan. ― Ele tem razão em relação ao Eje, Aidan. Agora parece mau, mas em pouco tempo o assunto morre. Aidan cerrou os punhos com força. ― Viste? Murphy hesitou.


― Vi. A fotografia está desfocada, de maneira que, na realidade, não se vê nada de especial, mas o artigo está cheio de insinuações. Eu devia ter-te dito, mas pensei que tivesses lido. Aidan abanou a cabeça. ― Antes quero não ver. Suponho que isso faça de mim um cobarde. ― Faz de ti um ser humano, Aidan. E a Rachel, como está? ― Hoje não foi à escola. Murphy acenou, compreensivo. ― Os pontos ainda lhe doem? Aidan riu-se, recordado do telefonema desesperado de Rachel às 6 da manhã. ― Na verdade, o problema dela é o cabelo. Quando acordou e se viu ao espelho acabou por esquecer toda aquela conversa de que era só cabelo. Hoje a Tess vai levá-la ao cabeleireiro, por isso logo à noite já deve estar toda chique outra vez. Determinado a não deixar que o Eje o desviasse das suas preocupações importantes, Aidan pôs-se a estudar os dados que um dos funcionários 402 tinha deixado na secretária dele essa manhã. Lawe aparecia como presidente executivo da Brewer, Inc. Tanto o seu apartamento como as contas, o carro e até os cartões de crédito estavam em nome da empresa. Tinha contas em três bancos de Chicago. Provavelmente também tinha dinheiro no estrangeiro. Em todos os bancos tinha cofres alugados, os quais seriam abertos por Aidan e o parceiro depois da visita ao ex de Tess. Perguntou a si mesmo se conseguiria conter a raiva com o Dr. Diabos o Levem, mas o seu confronto com Blaine Connell não lhe deixara dúvidas. Se conseguira conter-se e não partir o nariz a Connell, depois dos insultos dele a Tess, conseguiria dominarse em qualquer situação. Aidan franziu o sobrolho, pensativo. Sendo assim, o Eye tinha publicado uma fotografia dela. Fora de certeza fornecida pela Masterson. E isso era ilegal. Ia fazer os possíveis por que Denise fosse condenada. Só tinha sabido da fotografia pela boca de Connell. Tess já saberia? E estaria bem? Ela tinha sido franca com Lynne Pope na noite anterior. Dissera que tinha sido fotografada sem o seu conhecimento. Das duas uma: ou a notícia do Eye ia ter menos impacto por a explicação já ter sido tornada pública ou ia beneficiar da publicidade. Fosse como fosse, ela era suficientemente forte para lidar com o assunto. "E eu também vou ser." ― E então, sempre é? ― perguntou Murphy completamente fora de contexto. Aidan levantou os olhos para ele. Os de Murphy estavam pregados na sua própria secretária, onde tomava apontamentos num bloco.


― É o quê? ― A Tess. Sempre é uma mulher de vinte valores? Aidan pestanejou, desprevenido. Depois sorriu. ― A Tess rebenta com a escala. ― Era o que me parecia. A reacção tranquila de Murphy fez rir Aidan. ― Então, Murphy, estás preparado para fazer uma visita ao Dr. Phillip Parks? -, ― Claro que sim. Vamos embora. CAPÍTULO 21 Sexta-feira, 17 de Março, 9.30 Um sorriso iluminou o rosto de Kristen quando Tess espreitou pela porta do gabinete dela. ― Entra. Senta-te. ― Não vou ficar muito tempo ― disse Tess com um sorriso triste. ― Tu ainda tens uma carreira. O sorriso de Kristen desapareceu. ― E tu também vais ter, quando isto tudo acabar. ― Talvez não. Já leste isto? ― perguntou Tess, que lhe passou o Eye. Kristen concentrou-se no jornal e corou com o que lia. ― Filhos-da-mãe! ― exclamou. ― Onde é que terão ido buscar isto? ― Falaram com a minha secretária. ― Tess levantou os olhos para o tecto. ― Sinto a minha autoconfiança em matéria profissional abalada. Aquela mulher desprezava-me e eu nunca me apercebi de nada. ― Sim, eu sei como te sentes. Eu jantava todos os dias com um assassino e nunca dei por isso. Às vezes, as pessoas só nos deixam ver o lado que lhes convém. Mesmo aos psiquiatras. ― Só sei é que estou farta de andar preocupada, e foi por isso que vim aqui. Ontem à noite, com aquela entrevista, comecei a recuperar a minha vida. ― Com a entrevista e com o que acontecera a seguir. Só, de pensar na resposta de Aidan na cama sentiu o coração bater mais depressa. Pensar na maneira como responderia à fotografia do Eye deixava-a doente. ― Vou apresentar uma queixa contra a minha secretária e o jornal e queria que me recomendasses um advogado. ― Acho que fazes muito bem. Mas porque não a Amy Miller? É a tua maior amiga há tantos anos... 404 ― É mesmo por isso. Quando precisei dela para me defender de uma acusação criminal tivemos uma grande discussão porque ela não concordou que eu colaborasse com a polícia. Ela ficou magoada e magoou-me e eu não quero arriscar a nossa amizade. Ah, e o advogado que eu arranjar também vai ter de me defender no processo dos meus doentes. Os meus antigos pacientes processaram-me.


Kristen fez uma careta. ― Não te tem acontecido nada de bom? ― Queres saber do Aidan... Kristen confirmou com um sorriso. ― Mas também queria ser discreta. E então? ― Vamos a ver. Não sei o que ele vai dizer disto ― disse Tess apontando para o jornal. ― Ele é um bom tipo, Tess. É mais... emotivo que o Abe, mas lá no fundo assentam sobre rocha. A propósito, o pai deles ficou muito impressionado contigo. O meu sogro anda a dizer a toda a gente que nunca viu uma miúda capaz de se defender como tu. ― Óptimo! Que recomendação! ― disse Tess, revirando os olhos. ― Vindo de Kyle Reagan, é uma recomendação. Mostra respeito, e para eles isso é tudo. ― Espero que seja o suficiente. Estou cansada. Não tenho dormido nada nas últimas noites. O sorriso de Kristen tornou-se malicioso. ― A sério? Tess sentiu que corava. ― Vou-me embora, dormir uma sesta. ― Sim, vai para casa de Aidan dormir. Quando acordares as coisas já estarão melhor. Sexta-feira, 17 de Março, 10.15 ― As coisas não estão a correr bem ― disse Murphy quando Aidan parou o carro junto do edifício onde vivia Phillip Parks. Havia três carros da polícia e uma ambulância parados em frente da porta principal. ― Não há duas sem três, e eu desconfio que chegámos tarde outra vez ― disse Aidan. ― Parece-me que tens razão ― concordou Murphy num tom sombrio. 405 A porta de Parks, no sexto andar, foi fácil de encontrar. Era a que tinha guardas de uniforme à porta. Lá dentro estavam dois detectives da unidade deles, Howard e Brooks, e ainda Johnson, do gabinete médico-legal. Johnson estava ajoelhado no chão e levantou os olhos quando eles chegaram. ― Tinha um pressentimento de que vocês estavam a chegar. Howard olhou para eles, surpreendido. ― O que é que vocês têm a ver com este tipo? ― É o ex-namorado da Tess Ciccotelli ― contou-lhes Murphy. ― Vínhamos fazer-lhe umas perguntas esta manhã. Raios partam isto. É a terceira vez que chegamos tarde de mais. ― Não vale a pena perdermos tempo com histórias ― resmungou Aidan. ― Quando e como? ― Três balas no abdómen inferior e uma quarta na cabeça ― disse


Johnson. ― Os do abdómen devem ter sido atirados a um ou dois metros de distância. O último, o da cabeça, foi à queima-roupa. Provavelmente por precaução. Deve ter acontecido à meia-noite e cinquenta e seis. ― E doze segundos ― acrescentou Brooks com acrimónia. ― Ele usava um relógio de bolso ― explicou Howard. ― Há anos que não via nenhum. Uma das balas acertou-lhe. Tudo indica que vinha a chegar a casa. Os seguranças do edifício estão agora mesmo a estudar as gravações. Vocês os dois querem o caso? ― Já estamos bem aviados, para dizer a verdade ― disse Murphy com um suspiro de cansaço. Jack entrou nesse momento, irritado: ― Eu tinha planeado tirar o dia, rapazes. Aidan olhou para Phillip Parks caído no chão no meio de uma carpete ensopada com o seu próprio sangue. ― Vai-me custar contar isto à Tess. O Parks não era grande coisa, mas... ― De repente lembrou-se de uma coisa e disse a Murphy: ― Ontem à noite falei ao Cárter do Parks e meia dúzia de horas depois ele aparece morto. ― Jon Cárter? ― Murphy parecia céptico. ― Ele é amigo da Tess. ― E tem a chave do apartamento dela, além de muitos instrumentos cirúrgicos. ― Os cortes nos braços de Bacon ― troçou Murphy. ― E percebe de medicina. Está bem, rapaz. O melhor é tirarmos-te este caso. Merda! ― Senhores detectives? ― Um homem de meia-idade meteu a cabeça pela porta entreaberta. ― Já fui buscar os discos das câmaras de segurança de ontem à noite, do átrio e do elevador do sexto piso. 406 Aidan parou à porta. ― Vens connosco, Jack? Jack parou no meio da sala, de sobrolho franzido. ― Não, eu vou revirar esta sala com pinças. Ele deixou de certeza qualquer coisa aqui. O chefe da segurança levou-os à sala de controlo dos aparelhos. ― Este aparelho grava a câmara do sexto piso. Parei-a dez minutos depois de Parks ter sido morto. ― Carregou num botão e Aidan ficou a ver, a respiração suspensa. ― Raios! ― Uma figura de casaco de cabedal e cabeleira preta entrou no elevador, mantendo deliberadamente o rosto escondido. ― Não pode ser a Tess! ― Claro que não pode ― disse Murphy. ― Mas só para me distrair, explica-me porquê. ― Primeiro, ela tem claustrofobia. Nunca teria subido de elevador, teria ido pelas escadas. Número dois, nessa altura estava comigo. ―


Brooks e Howard trocaram um olhar. ― Comigo, com Lynne Pope e com o câmara dela ― acrescentou irritado. ― A uma da manhã estava a meio daquela maldita entrevista. ― Sim, é um álibi inabalável ― concordou Howard. ― Nesse caso, tudo indica que alguém aproveitou um desconto de leve dois ao preço de um na loja de disfarces e perucas ― murmurou Murphy. ― Vamos dar uma vista de olhos pelo vídeo do átrio. O chefe da segurança mexeu em mais alguns botões. ― A gravação da mesma hora. Murphy aproximou-se para ver melhor. ― Importa-se de parar a imagem? Aidan, repara nos sapatos. Aidan aproximou-se. ― Parecem do mesmo tipo dos que vimos na casa de banho de Bacon. ― Os ombros também são largos de mais ― ajudou Brooks. ― Olha para a maneira como o casaco cai atrás. Podia ser um tipo vestido com roupa de mulher. ―Jon Cárter é alto de mais ― disse Murphy, e depois ergueu uma sobrancelha. ― Mas Robin, o namorado dele, não é. Qual é a altura de Archer, Aidan? O pulso de Aidan tinha começado a bater acelerado. ― Murphy, vem depressa. 407 Sexta-feira, 17 de Março, 10.30 Tess deixou cair a mala em cima da mesa da cozinha de Aidan. ― Vito, não é preciso ficares comigo. A Dolly está aqui e o Aidan deixou-me a arma. ― Como se isso valesse de muito ― disse Vito num tom desdenhoso. ― Pensa melhor, Tess. ― Tu é que sabes. Por mim vou dormir um bocadinho e depois vou com a Rachel ao cabeleireiro, logo à tarde. E tu? Que vais fazer? ― Vou escolher um livro para ler. O Reagan tem por onde escolher. ― Ele só tem um bacharelato. Não sei em que área. As rugas na testa de Vito acentuaram-se quase imperceptivelmente. ― Psicologia. Tess parou junto da porta e voltou-se para trás: ― O quê? ― A área dele é psicologia. Pensei que soubesses. Tess sentiu-se dominada por uma ansiedade de tipo diferente. Os dois tinham um laço em comum e ele tinha mantido isso escondido. ― Não, não sabia. Vito suspirou. ― Suponho que o facto de teres um "Dr" antes do nome o tenha intimidado, e por isso não tenha dito nada. Não fiques incomodada, Tess. É coisa de homens ― Como soubeste desse assunto? ― Perguntei-lhe ontem à noite, antes de ele ter recebido a chamada.


Disse-me a mim, ao pai e à Amy enquanto tu e a mãe acabavam de fazer o jantar. ― Vito olhou para ela intensamente. ― Já há alguns anos que ele estuda à noite, a ver se consegue descobrir uma coisa que lhe interesse. Fiquei com a impressão que houve alguma coisa a empurrá-lo para a psicologia, embora tenha cadeiras de, pelo menos, mais quatro áreas. Devias perguntar-lhe. Fora o suicídio do amigo, de Jason, a orientar a sua escolha. Mas isso era uma dor particular de Aidan, que partilhara apenas com ela. ― Isso explica todos os livros. ― Tess sentiu-se ao mesmo tempo orgulhosa do que ele conseguira e triste por não lhe ter contado. ― Antes querias que tivesse sido ele a contar-te ― observou Vito. ― Estou a dizer-te que isto é uma coisa de homens. Não seria o primeiro incapaz de aceitar que a mulher dele esteja mais bem posicionada que ele na cadeia alimentar... 408 A mulher dele. A ideia deixou-lhe um sentimento caloroso. ― E tu, achas que ele será capaz? ― Só o tempo pode dizer. A ti que te parece? ― Eu sei o que quero pensar. Quero pensar que é capaz e que vai ser. ― Inexplicavelmente, os olhos dela encheram-se de lágrimas. ― Acho que estou a precisar de dormir. Vito abraçou a irmã. ― Tess, às vezes acontecem coisas que não conseguimos explicar. E, de vez em quando, das coisas más resultam coisas boas. Talvez Reagan seja a tua coisa boa. ― Detesto a ideia de que a minha fotografia tenha saído no jornal ― disse-lhe ela num sussurro. ― Detesto por ele e por mim. ― Eu sei. Mas tu vais superar isto. E agora vai dormir. Quando acordares vais sentir-te melhor. Sexta-feira, 17 de Março, 11.15 ― Detectives. ― Robin Archer abriu a porta de uma casa de tijolo vermelho muito elegante. A surpresa foi visível no seu rosto, mas depressa se transformou em preocupação. ― Que aconteceu? ― Precisamos de falar consigo e com o Dr. Cárter ― disse Aidan com voz neutra. ― Ele está em casa? ― Está. ― De cenho franzido, Robin deixou-os entrar. ― Por aqui. Jon, estão aqui os detectives. Entraram no solário e deram com Jon de pé com um comando de jogo de vídeo na mão. Olhou para os dois detectives e a cor pareceu fugirlhe do rosto. ― Aconteceu alguma coisa à Tess? ― A Tess está bem. Está com o Vito ― disse Aidan. ― Dr. Cárter, preciso de lhe fazer algumas perguntas. Pode vir com Mr. Archer à


esquadra, por favor? Jon e Robin trocaram um olhar. ― E não podemos falar aqui? ― perguntou Jon Cárter. Aidan e Murphy tinham decidido não os pressionar se eles respondessem que não. Não seria fácil arranjar um mandado para os prender. ― Nós os dois podemos falar aqui e Mr. Archer e o meu parceiro podem ir... para onde? 409 ― Venha comigo ― respondeu Robin com calma. ― Vamos para a cozinha. ― Que conversa é esta, Reagan? ― perguntou Jon com voz brusca quando ficaram sozinhos. ― Onde esteve ontem à noite, Dr. Cárter? Depois de sair do velório? Jon sentou-se. ― Saímos para jantar. Fomos ao Morton's. Aidan olhou-o de sobrolho erguido. ― Não foram ao Blue Lemon? ― Às vezes, o Robin gosta de comer comida feita por outras pessoas. Saímos do restaurante por volta das onze e meia. Suponho que essa ia ser a sua próxima pergunta. ― E ia. E depois? ― Fomos ao cinema. Vimos Os Guarda-Chuvas de Cherburgo. É um filme francês. Francamente tocante. ― Sim, eu vi-o e também gostei. É um bocado tarde para ir ao cinema, não acha? ― Essa é uma das vantagens de viver no centro, detective. O Robin fecha todos os dias por volta da meia-noite e os meus horários são irregulares. Tenho a certeza que há-de haver alguém, tanto no restaurante como no cinema, que confirme os nossos passos. O coração de Aidan apertou-se. Tinha-se convencido de que estava perto. Mas não teve dúvida de que o inquérito ia confirmar as informações de Jon. ― Vamos verificar. Jon acenou afirmativamente. ― Agora que respondi às suas perguntas, diga-me a que propósito vem tudo isto. ― Phillip Parks foi encontrado morto. Jon ficou de olhos muito abertos de espanto. ― Valha-me Deus! Quando? ― Por volta da meia-noite. Tínhamos falado dele poucas horas antes. Tinha de lhe perguntar. ― Sim, eu percebo. A Tess sabe? ― Ainda não. Dr. Cárter, se quiser pode recusar, mas gostávamos de


ver o seu guarda-roupa. O seu e o de Mr. Archer. ― De que andam à procura? ― Surpreendido, acenou com a cabeça. ― Estou a ver. Não pode dizer-me. Eu compreendo. 410 Trinta minutos mais tarde, Aidan e Murphy reuniram-se de novo. Jon e Robin estavam sentados no solário com um guarda de uniforme à porta. ― Nada ― disse Aidan. ― Não há nada de estranho no armário de Cárter. ― Archer usa sapatos práticos de um tamanho maior que o que aparece na casa de banho de Bacon. ― Também telefonei para o cinema. Ainda não abriram, mas encontrei os bilhetes nos bolsos das calças de Cárter. Viram Os Guarda-Chuvas. ― O telemóvel dele tocou. ― Fala Reagan. ― Aidan, fala a Lori. Ligaram-te do Chade há uns minutos. Um Dr. Trucco, dos Médicos sem Fronteiras. Ele diz que tu lhe mandaste um email por causa de um Jim Swanson. Tinha-o feito na noite anterior, depois de levar Tess, a seguir à entrevista. ― O que é que ele disse? ― Que o Dr. Swanson nunca chegou ao Chade. O Dr. Trucco diz que recebeu uma carta de Swanson a dizer que tinha mudado de ideias e ficava em Chicago. ― Estou a ver. Obrigado, Lori. Fizeste bem em telefonar. ― Desligou e voltou-se para Murphy. ― O Swanson não chegou a ir para África. ― Perguntaste à Tess sobre ele? ― Não tive tempo. Vamos ver se o Cárter sabe mais do que deixou transparecer ontem à noite. ― Foram ter com os dois homens ao solário e sentaram-se. ― Desculpem por termos sido obrigados a fazer isto. ― Nós compreendemos ― murmurou Jon. ― Não compreendemos nada! ― protestou Robin. ― Porque se lembraram de vir aqui? Nós não vemos Parks desde que ele e a Tess romperam. -― Vamos voltar atrás um bocadinho, à noite passada ― disse Murphy. ― Dr. Cárter, lembra-se de dizer ao meu parceiro que um médico do vosso grupo tinha saído da cidade para ir trabalhar com os Médicos sem Fronteiras? ― Sim. O Jim. Jim Swanson. Foi para o Chade. Aidan abanou a cabeça.! ― Não, não foi. Cárter e Archer olharam-se, surpreendidos. 411 ― Foi, sim ― insistiu Robin. ― Recebemos um postal dele umas seis


semanas depois de ele ter partido. ― Recebi há pouco notícias da clínica para onde ele tencionava ir e a verdade é que não foi. O director recebeu uma carta dele a dizer que tinha mudado de ideias. Robin saiu da sala e voltou com um postal. ― A minha sobrinha colecciona selos, de maneira que guardei o postal. Aidan voltou-o para ver a imagem. ― É um postal genérico do seu hospital, Dr. Cárter. ― Ele levou um monte deles. Não sabia o que ia encontrar por lá. Mas o selo diz "Chade". E o carimbo está em francês. ― Dr. Cárter. ― Aidan esperou até ele o olhar nos olhos. ― Estou a dizer-lhe que Jim Swanson não apareceu no Chade. Se souber mais alguma coisa sobre ele, está na altura de nos contar. ― Diz-lhes, Jon ― murmurou Robin. ― Eles têm de saber. Jon olhou para o chão, mas depois reuniu coragem e levantou os olhos com um suspiro. ― Estava sinceramente convencido que ele estava fora do país. O Jim estava apaixonado pela Tess. Ao que parece, sempre tinha estado, mas ela andava com o Parks. Quando ela correu com ele, o Jim deve ter ficado encantado. Seja como for, estou convencido de que ninguém sabia. Ele esperou uns seis meses e depois declarou-se. ― E ela disse...? ― perguntou Aidan. ― Disse que não podia ser mais do que amiga dele. Ele ficou de rastos. Achou que não ia poder ficar em Chicago. No domingo seguinte anunciou que partia para África. Nós ficámos surpreendidos, claro. A decisão parecia ter sido tomada de um dia para o outro. Mas eu vi a cara da Tess. Estava surpreendida e horrorizada, na verdade. No entanto, nenhum deles disse uma só palavra. ― Sendo assim, como é que vocês souberam? ― perguntou Murphy. ― Na noite antes de partir apareceu aqui em casa, bêbedo. Robin continuou a história. ― Contou-nos tudo, coitado. ― Eu tentei fazer-lhe passar a bebedeira ― recordou Jon. ― Ele tinha de apanhar o avião no dia seguinte, mas quando acabou de desabafar, percebi porque é que ele tinha de ir. Estava realmente apaixonado por Tess, mas o interesse dele não era correspondido, nem de longe. Nem consigo imaginar o que deve ter sofrido com isso. 412 Aidan também não conseguia. Tess Ciccotelli era uma daquelas mulheres para quem os homens olham e voltam a olhar. Para fantasiar. Mas amá-la realmente e não poder tê-la... Uma coisa dessas podia tornar um homem amargo. Vingativo. ― O que é que vocês fizeram? ― Levei-o a casa, meti-o na cama e programei o despertador. Mais


tarde liguei, só para ter a certeza que ele tinha acordado. Ele não respondeu e um mês mais tarde todos os nossos amigos do grupo receberam um postal onde ele dizia que estava instalado e se encontrava bem. Não voltei a saber mais nada antes de recebermos o postal e desde então também não voltei a ouvir. ― Têm alguma fotografia de Jim Swanson? ― perguntou Murphy. Jon reflectiu. ― Eu não, mas a Tess tem. Está afixada na sala dela. Foi tirada no Lemon no último pequeno-almoço antes de ele partir. Aidan acenou afirmativamente. ― Lembro-me de a ver. Está ao lado de um esboço da praia feito à pena pelo irmão dela, o Tino. Mas nessa fotografia aparecem todos. Swanson é alto? ― Mais ou menos da minha altura. Um metro e setenta e seis, setenta e três ― respondeu Robin. Sim. ― E quando é que ele partiu? Lembra-se da data exacta? Jon franziu o sobrolho, pensativo, e olhou para Robin. ― Algumas semanas antes do Natal. A dez de Dezembro? ― Sim, foi a dez ― confirmou Robin. ― Eu tinha acabado de decorar o Lemon para o Natal. Aidan olhou para Murphy, que lhe fez um sinal quase imperceptível de acordo. Swanson tinha saído de Chicago apenas alguns dias antes de Lawe ter contactado pela primeira vez Blaine Connell. Havia uma ligação entre os dois, tinha de haver. ― Dr. Cárter, falou da nossa conversa a alguém? ― Eu e o Robin falámos do assunto ao jantar, mas não no velório. Nunca me disse que não falasse. Aidan suspirou. ― Alguém sabia que desconfiávamos de Parks, porque ele está inequivocamente morto. Murphy pigarreou. ― Importa-se de nos mostrar a roupa que usou ontem à noite? 413 Jon teve um sobressalto. ― Oh, não! Não está a pensar... Claro que está! Que eu tinha escutas, como a Tess. Quando Jon voltou com a roupa, Aidan e Murphy estavam de pé à porta. ― Jim Swanson tinha alguma chave do apartamento de Tess? ― perguntou Murphy. ― Não me parece ― respondeu Jon, que entregou os casacos e aceitou o recibo que Aidan preparara. ― Ouçam, detectives. O Jim pode ter ficado magoado, mas não era um tipo retorcido. Não estou a


vê-lo a fazer uma coisa destas. ― Bem, alguém anda a fazê-lo ― disse Aidan com rispidez. ― E neste momento Swanson é a nossa melhor pista. Obrigado pela ajuda. Sexta-feira, 17 de Março, 12.15 O toque do telemóvel acordou Tess. Ainda atordoada, agarrou-o, ao mesmo tempo que expulsava Bella com um pequeno safanão. ― Sim? ― Tess, fala a Amy. Acorda. A ansiedade na voz de Amy acabou de a acordar. Sentou-se rapidamente na cama. ― Que aconteceu? ― O Vito telefonou-me. O teu pai foi para as urgências, Tess. Eu estou a caminho para te ir buscar. Tess teve a impressão que o coração lhe parava. ― Que aconteceu? ― Teve um ataque de coração. Um dos maus. A tua mãe telefonou ao Vito, mas ele não quis acordar-te sem ser mesmo preciso, só que agora já sabem que foi pior do que estavam à espera. ― Meu Deus, meu Deus! ― Tess saltou da cama, desorientada. ― Preciso dos meus sapatos. Que diabo! Onde estarão os meus sapatos? Onde estás tu? ― Estou a virar para a rua de Aidan. Vem ter comigo à porta e vamos as duas para o hospital. Tess começou a correr, com o coração a bater numa correria. Aguenta, pai. Quando saiu de casa a correr, o carro de Amy já estava parado na rua em frente da garagem. Entrou a correr para o banco da frente. 414 ― Vamos, depressa. ― Amy ia ao volante e Tess, ao lado, procurava recuperar a respiração. ― Não consigo respirar! Bolas. Tenho de telefonar ao Aidan. ― Procurou o telemóvel na mala, mas os dedos pareciam ter-se tornado desajeitados. Amy parou o carro junto do passeio. ― Tess, tens de te acalmar. ― Porque é que paraste?! Vamos, despacha-te! ― Dá-me o teu telefone que eu marco. E vê se te acalmas, senão ainda tens um ataque de coração. ― Amy agarrou na mão de Tess. Os seus dedos sobrepuseram-se aos dela, apertando-os. ― Acalma-te, por favor. Se lhe apareceres neste estado vais deixá-lo perturbado. A minha massagista faz-me um tratamento especial que também vai resultar em ti. Deixa-me ajudar-te. Tess fechou os olhos e tentou respirar. Sabia que Amy tinha razão. Se chegasse ao pé do pai naquele estado acabava por matá-lo. Os dedos de Amy massajaram-lhe o pescoço, fazendo mais força nos tendões ao longo da coluna.


― Sabe bem ― disse Tess. Depois sentiu uma picada. ― Céus, isso doeu! ― Vais ver como te põe a dormir como um bebé ― acalmou-a Amy. ― Dorme, Tess. Quando acordares vai estar tudo em ordem. Vais ver! Os olhos de Tess começaram a pesar-lhe e ela caiu como um peso morto no assento do carro. Enquanto caía docemente num sono escuro e quente, o carro pôs-se em movimento. Sexta-feira, 17 de Março, 14.15 ― Tenho aqui qualquer coisa. ― Aidan levantou a cabeça de maneira a ver Murphy por cima da pequena montanha de papéis que cobria a sua secretária. Tinham encontrado papelada em todos os cofres de Lawe. Aidan passara a última hora a pô-la em ordem, enquanto Murphy procurava por todos os meios encontrar o rasto de Jim Swanson. Murphy deu a volta à secretária para se pôr ao lado do colega. ― Parece a agenda dele. 415 ― E é. Na maior parte dos casos só há datas e clientes. Anotou o preço de cada trabalho, mas o trabalho em si está marcado com uma espécie de código. Este tipo fazia muita massa. ― Sim, mas foi alvejado e queimado, por isso não lhe serve de nada. ― Obrigado pela imagem visual. Encontraste alguma coisa? ― Até agora nada. Se Jim Swanson estiver no país, não tem usado cartões de crédito e não apresentou declaração de impostos este ano. Os pais morreram quando ele andava na faculdade e na família mais distante não sabem dele há anos. Deve ter sido um tipo um bocado solitário. ― Bom, vou continuar a estudar a agenda deste e... ― O telefone da secretária dele tocou. ― Fala Reagan. ― Está? ― Era um sussurro. Uma voz de mulher, assustada. ― O detective anda à procura de Danny Morris? Aidan agarrou o telefone com mais força. ― Tenho uma informação acerca de Danny Morris pai. Aidan pigarreou e disse: ― Sim, minha senhora. Sabe dizer-me onde ele está? ― Está aqui. No meu apartamento. Se ele soubesse que eu estou a ligar... ― Ouviu-se um barulho forte por trás da voz. ― Oh, não! Tenho de ir. Não! Por favor! ― As duas últimas palavras foram um grito agudo e a linha de repente foi cortada. Aidan procurou o número da última pessoa que tinha ligado e depois procurou o endereço a que correspondia. ― Fica no South Side. Olhou para a pilha de papéis e depois para Murphy, que lhe fez um gesto de cabeça e disse: ― Vamos apanhar o Morris para podermos voltar a isto.


Sexta-feira, 17 de Março, 14.45 O apartamento estava vazio. Não havia sequer uma peça de mobília. E nem vivalma. ― Que diabo... ― murmurou Aidan. ― Tem a certeza que era este o endereço, detective? ― perguntou o chefe da força especial que Aidan tinha chamado. ― Verifiquei duas vezes ― respondeu-lhe Murphy ― e a chamada veio deste apartamento. 416 Um homem com colete à prova de balas saiu do quarto. ― Há ali um telefone, ligado. Mas não há mais nada no quarto. ― Claro. Eles acabaram de se mudar para outra casa ― disse o porteiro, que entrou nessa altura. ― Fomos enganados ― disse Aidan num tom sombrio. ― Isto é uma caça aos gambozinos. ― Nesse caso devemos estar a aproximar-nos do criminoso ― disse Murphy. O telemóvel de Aidan tocou. Quando viu que era o número da irmã, o detective teve um sobressalto terrível. ― Aidan. ― A voz de Rachel era fraca e insegura. ― Por favor, vem para casa. ― Rachel, que se passa? Tem calma! ― Eu estava à espera que a Tess me viesse buscar para ir ao cabeleireiro mas como ela não apareceu liguei-lhe para o telemóvel e ela não atendeu. Aidan começou a deixar-se dominar pelo pânico. ― Deve estar com o Vito. ― Por favor, que esteja com ele! ―Já lhe telefonaste? Murphy voltou-se de repente, igualmente alarmado. ― Tess? ― O Vito está aqui. Em tua casa. ― A respiração de Rachel era entrecortada e Aidan apercebeu-se de repente de que a sua própria respiração também se tornara ofegante. ― Aidan, nós encontrámo-lo ao pé das escadas da cave, do lado de fora. Ele está ferido. E é grave. A mãe está com ele. Eu já liguei para uma ambulância, mas por favor... ― Rachel não conseguiu dominar um soluço de angústia. ― Vem para casa, por favor. Procurámos por toda a parte e não encontrámos a Tess. Aidan já ia a correr quando ouviu Murphy ligar a Spinnelli. ― Vamos a caminho da casa de Aidan ― dizia Murphy. ― Diz ao Jack Unger que lá vá ter connosco. Sexta-feira, 17 de Março, 15.00 Estava tudo escuro como breu. "Não estou a ver nada." Tess tentou mexer-se, mas os braços e as pernas não lhe obedeceram. Dorme,


Tess. Amy dizia-lhe que dormisse. Nesse momento, ou antes? Tentou concentrar-se. Tinha estado a dormir. "Ainda estarei a dormir?" Não lhe parecia. Tinha demasiadas dores. 417 Tinha dores. Na cabeça. Na garganta. Nas costas... "Há qualquer coisa errada com as minhas costas. Não consigo mexer-me. Terá sido um acidente de carro? Que terá sido? Onde estarei. Onde está Amy?" Aidan. Estava a tentar telefonar a Aidan. Porquê? Era importante. Tinha a certeza que era importante. "Concentra-te. Pensa." Tentou fixar-se na realidade, mas a lucidez parecia fora do seu alcance. A sua mente parecia querer deslizar de novo para o nada. Tentou combater esse impulso, mas era como se houvesse um par de mãos fortes a puxá-la para baixo. A tentar afundá-la. "Outra vez, não, por favor." Sexta-feira, 17 de Março, 15.15 Vito estava sentado à mesa da cozinha de Aidan quando este e Murphy irromperam na cozinha. Spinnelli ficou junto do fogão com ar sombrio e Dolly pôs-se a ladrar freneticamente algures na casa. Com a mãe de Aidan de um lado e Rachel do outro, Vito apoiava a cabeça nas mãos, branco como uma folha de papel. Um enfermeiro fazia-lhe um penso na nuca, mas o irmão de Tess também tinha feridas na testa e no rosto, as únicas marcas de cor na sua cara. Vito ergueu os olhos para Aidan, aterrorizado e indefeso. ― Ela desapareceu ― disse ele. A sua voz era um sussurro inexpressivo, que deixou Aidan sem força nas pernas. Spinnelli pigarreou. ― Temos todas as patrulhas alerta em busca dela. Seja como for, não há sinais de violência. Ou ela deixou alguém entrar ou saiu de livre vontade. ― Dolly não teria deixado ninguém entrar ― disse Aidan. Os seus pulmões não pareciam querer deixar entrar o ar. ― Por amor de Deus, Vito. Que aconteceu? ― A tua cadela estava a rosnar. ― Vito fez um esgar quando o enfermeiro começou a ligar-lhe a cabeça. ― Eu saí para investigar. Tinha a arma em punho e fui pelas traseiras. Quando voltei a mim estava ao pé das escadas da cave, a minha arma tinha desaparecido e a tua mãe estava ao pé de mim. ― Vito voltou a fechar os olhos. ― E a Tess tinha desaparecido. Liguei para o Jon, a Amy e o Robin enquanto a Rachel ligava para a ambulância. Ninguém sabe onde ela está. A cave de Aidan ficava abaixo do nível do chão, com uma porta das traseiras que dava para uma escada de cimento. 418 ― As escadas do lado de fora estão húmidas. Não ficaram pegadas? ― Ficaram ― Jack apareceu vindo da cave. ― Estamos a tirar um


molde. Podem ser os mesmos sapatos que estiveram em casa de Parks. Vito olhou para Aidan, para Jack e de novo para Aidan. ― Phillip Parks? ― Sim, Phillip Parks foi assassinado. ― Aidan puxou uma cadeira e sentou-se, subitamente esgotado. ― Foi morto a tiro ontem à noite. Quando é que isto aconteceu, Vito? ― Por volta do meio-dia. A Tess tinha ido dormir... Estava tão incomodada por aquela fotografia no jornal... Eu disse-lhe que se deitasse, pois quando acordasse tudo lhe ia parecer menos mau. Aidan lembrou-se de qualquer coisa e franziu o sobrolho na direcção de Vito. ― Porque é que não te mataram? ― Fez um gesto na direcção da mãe, que o olhava indignada. ― Quer dizer, todas as outras pessoas que cruzaram o caminho dele estão mortas. Porque é que ele te poupou a ti? Vito cobriu o rosto com as mãos. ― Não sei. Meu Deus. Como é que vou contar o que aconteceu aos meus pais? Eu estava aqui para a proteger. Isto vai matar o meu pai. Aidan esfregou a testa. ― Não consigo pensar. ― A mãe dele levantou-se e postou-se atrás da cadeira com as mãos firmemente pousadas nos ombros do filho. Ele inclinou a cabeça para trás, grato pela força tranquila que ela representava. ― Parece que não consigo pensar. ― Aidan, porque não ficas aqui? ― disse Murphy com delicadeza. ― Eu volto para a esquadra e continuo o trabalho no ponto em que o interrompemos quando fomos chamados para a caça aos gambozinos. Aidan pôs-se de pé num pulo. ― Nesse caso também vou. Ainda dava em doido aqui, sem fazer nada. Vito também se pôs de pé, pouco firme, mas os seus olhos escuros estavam límpidos. ― Deixem-me ajudar. Se me pedisses, eu afastava-me para não estorvar, mas por favor deixa-me fazer qualquer coisa. ― Voltou-se para o enfermeiro com ar agressivo. ― E não vou ao hospital. ― Isso é consigo ― respondeu o enfermeiro de mãos no ar. ― Os teus pais vão precisar de ti, Vito ― disse Aidan. ― Eu vou buscá-los e levá-los para nossa casa ― sossegou-o a mãe. 419 Aidan beijou-a. ― Obrigada, mãe. Vito, se queres vir, vamos já. Um telemóvel tocou e todos levaram as mãos aos bolsos. ― É o meu ― disse Vito, que ficou a ouvir o que lhe diziam e depois voltou a cair na cadeira. ― Quando? Deixe-se ficar aí. Eu vou já. ―


Desligou o telefone e ficou imóvel por momentos. ― Era a minha mãe ― disse ele, outra vez tão inexpressivo que Aidan sentiu um arrepio. ― Ela saiu para fazer algumas compras, enquanto o meu pai estava a dormir, e quando voltou ele tinha desaparecido. CAPÍTULO 22 Sexta-feira, 17 de Março, 17.00 Tudo continuava escuro. Além disso, continuava a não se conseguir mexer. "Estou paralisada." Mas se estivesse paralisada não devia sentir dor. E o corpo de Tess doía, da cabeça aos pés. Aos poucos, os seus sentidos adaptaram-se. Não estava escuro; os olhos dela é que estavam tapados com uma venda. "E não estou paralisada." Estava atada de pés e mãos e a sua boca estava amordaçada. Atada. Amordaçada. "Ele apanhou-me." Estava aterrorizada. "E não estou sozinha." Mas continuava aterrorizada. Tinha dores de cabeça e o coração batia-lhe com tanta força que doía. Conseguiu inspirar pelo nariz e sentiu um cheiro a terra e a vegetação a decompor-se. Estaria ao ar livre? Não, não estava suficientemente frio para isso. Que teria acontecido? A última coisa de que se lembrava era de estar no carro com Amy. Onde estava Amy? Também teria sido agredida? O gemido que ouvia seria dela? Ouviu uma porta abrir-se e o seu corpo ficou mais tenso. Deixou-se estar imóvel à espera. Ouviu passos. Voltou a ouvir um gemido à sua direita e acima dela um "tss, tss". ― Então já acordaste, velhote? Quando ouviu a voz familiar, o coração de Tess deixou de bater à desfilada. Sentiu um estremecimento, um arrepio. E sentiu-se incrédula. Não. Não era possível. Era outra imitação de voz. Ou um pesadelo. "Por favor, que isto seja um pesadelo." Um pesadelo terrível. No entanto, um pé muito real deu-lhe um pontapé nas costas e arrancou-lhe um gemido também ele muito real. ― Tu também já estás acordada. Parece que podemos começar a nossa pequena reunião familiar. 421 Tess sentiu a venda enterrar-se ainda mais na pele e depois soltar-se, abruptamente. De repente, ficou frente a frente com uns olhos em que confiara completamente anos a fio. Nesse momento brilhavam intensamente. Com maldade. Com loucura. Sentiu-se dominada pelo horror e não conseguiu desviar os olhos. "Meu Deus..." O sorriso de Amy transformou o sangue de Tess em gelo. ― Eu disse-te que quando acordasses tudo estaria bem. Estás a ver? O papá está aqui! Instintivamente, Tess voltou a cabeça para o lado. O pai estava encolhido ao lado dela, os olhos fechados, a cabeça a menos de um


passo dela. Os olhos de Tess observaram o que a rodeava. Aquela sala era um armário. Um armário minúsculo. Sentiu algumas gotas de suor escorrerem-lhe pelas costas. Percebeu que estava com náuseas. Aquilo que lhe pareceu um grito preso na garganta soltou-se sob a forma de gemido e Amy sorriu. ― É uma sala muito pequena. Deves estar a pensar no que te irá acontecer agora. Tess limitou-se a olhar para ela. ― Estás a pensar que eu estou louca. ― Amy agarrou-a pela cabeça e obrigou-a a olhar para cima. Os seus olhos tinham-se tornado inexpressivos e frios. Voltou a sacudir Tess com violência. ― Não estás? Atirou com a cabeça de Tess, que bateu no chão com um golpe que Tess ouviu mais do que sentiu. Sentia-se... dissociada. Como se flutuasse. ― O tranquilizante ainda está a fazer efeito. Sabes, toda aquela preocupação com o teu coração, todo o exercício, a aspirina, um copo de vinho tinto por dia? Não era preciso. És forte como um cavalo. Se aquele tranquilizante não te matou, não há nada capaz de te matar. ― Abriu a porta e riu-se. ― Não te preocupes que eu sou. Mas quero que estejas completamente lúcida quando o fizer. Quero que sintas tudo. Fechou a porta e deixou Tess estupefacta. Indefesa. Aterrada. O pai gemeu. "Tenho de o tirar daqui. Ele vai morrer." Depois um riso tenebroso escapou-se-lhe da garganta. "Claro que vai. E eu também." Sexta-feira, 17 de Março, 17.15 Aidan olhou para o quadro branco da sala de reuniões, consciente de cada uma das cinco horas que ela estivera ausente. O quadro estava 422 coberto com os nomes de clientes de Lawe, que encontrara na agenda dele. Eram sobretudo empresas que não serviam para nada a não ser de ligação a outras empresas que também não faziam nada. O quadro estava coberto por setas. No meio de tudo aquilo estava Deering, que estava ligado a Davis, que estava ligado a Turner, que estava de novo ligado a Deering. O complexo labirinto de empresas tresandava a lavagem de dinheiro, ou a alguém com títulos ou actividades para esconder. Quem seria o cliente de Lawe? Aquele labirinto não lhes dizia onde encontrar Tess. Vito, Jon e Amy telefonavam de hora a hora e ele dizia-lhes sempre a mesma coisa. Ainda não apareceu. Continuamos a trabalhar no assunto. Nunca se tinha sentido tão desesperado e indefeso na vida dele. ― Que raio é isso? ― pediu Murphy por trás dele. Entrou na sala de reuniões e ficou a olhar para o quadro. O seu rosto habitualmente plácido estava duro e furioso.


― Imagino que não tenhas conseguido encontrar Swanson... Murphy contraiu os maxilares. ― Nem rasto. Os serviços fronteiriços não têm nenhuma indicação de que tenha deixado o país. Falei com um especialista em selos que diz que aqueles selos do Chade se compram em pacotes de coleccionadores no eBay. O carimbo é falso. Ninguém viu Swanson. Ou morreu ou decidiu desaparecer. ― Fechou os olhos e acrescentou. ― Desculpa, estou desorientado. Já passaram cinco horas. Aidan procurou dominar o medo que lhe subia pelo corpo e lhe tomava a voz. ― Eu sei. ― Não me explicas o que é isso afinal? ― São empresas registadas como clientes de Lawe. Verifiquei todos os clientes individuais e a maior parte eram casos de divórcio, de maneira que parti do princípio de que ele andava a fazer vigilância em casos de disputa de custódia. Estas empresas são suspeitas porque seria uma forma perfeita de uma pessoa trabalhar sem ser apanhada. ― É uma maneira de se protegerem ― disse Murphy. ― Exactamente. A e B formam a empresa C, que contrata Lawe e lhe paga. Não consigo encontrar uma única pessoa ligada à empresa, mas Deering é a principal entidade. Spinnelli e Jack apareceram e franziram o sobrolho quando viram o quadro. 423 ― Nada? ― perguntou Spinnelli. ― Nada ― confirmou Aidan com amargura. ― Isto está a deixar-me louco. ― Pois bem, eu trago-te um dado novo ― disse Jack. ― Estive a examinar o casaco do Dr. Cárter, o que ele levou ontem ao velório. ― Estendeu a mão, onde trazia outro microfone do tamanho de uma agulha. ― Voltei a casa dele e verifiquei o resto da roupa, tanto no casaco dele como de Archer. Só este é que tinha uma escuta. ― Nesse caso, o assassino esteve lá ontem à noite ― disse Murphy. ― No velório. ― Ainda há mais algumas coisas que devias ver. Um dos meus homens encontrou isto no apartamento de Parks. ― Era um pequeno saco com um cabelo. ― Não é da namorada de Parks, já verifiquei. Pode ser da empregada. Estou agora a verificar. Parece um cabelo de mulher. Há vestígios de tinta. Madeixas. Aidan ficou a olhar para o cabelo, a cabeça a funcionar a cem à hora. ― Mas os sapatos... ― Estivemos a examinar os moldes das pegadas que estavam do lado de fora da tua casa, Aidan. O contorno corresponde perfeitamente ao das que encontrámos no chão da casa de banho de Bacon. Mas o


padrão das solas não é o mesmo. A profundidade não é a mesma à frente e atrás nem de ambos os lados em todos os passos. É como se o pé escorregasse dentro do sapato. Além disso, a pessoa que deixou as pegadas pesava entre sessenta e sessenta e cinco quilos. ― Não foi um homem ― disse Spinnelli. ― Uma mulher... Denise Masterson? ― Denise Masterson corresponde à descrição, mas ontem à noite não esteve no velório, ou pelo menos não enquanto nós lá estivemos ― disse Murphy, enquanto Aidan procurava recordar a noite anterior, as pessoas que tinha visto. Recordou que Amy Miller também lá estivera. Chegava a ter dificuldade em acreditar na orientação que a sua mente estava a tomar. ― Ela tem a altura e o peso que procuramos ― disse Murphy com calma, dizendo em voz alta o que Aidan pensava para si. ― Além disso, tem cabelo louro com madeixas. ― Mas são amigas há vinte anos. Foi ela que tomou conta da Tess quando ela esteve doente, que a defendeu quando pensou que nós desconfiávamos dela. Ela e a Amy são praticamente da mesma família. Mas 424 ela tem a chave do apartamento da Tess, e também tem acesso ao consultório. ― Aidan esfregou as têmporas. ― Tem-me telefonado de hora a hora para saber notícias da Tess. Porquê? Porque havia ela de fazer isto? Não faz sentido. ― Podemos relacioná-la com Nicole Rivera ou com Bacon? ― perguntou Spinnelli, procurando centrar-se em dados concretos. ― Ou com Lawe? Para conseguirmos um mandado não podemos relacioná-la apenas com Tess. Aidan pôs-se de pé, com todos os músculos do corpo em tensão. ― Se houver alguma ligação, eu descubro-a. Por agora, vamos verificar o apartamento dela. Podia ter a Tess lá. Vou fazer isso imediatamente. Spinnelli agarrou-o por um braço. ― Não. Tu não. Aidan sentiu-se desesperado, mas dominou-se. ― Eu não faço nenhum disparate. ― De propósito, não. Mas se for a Amy Miller, ela é esperta. Se desconfiar que andamos em cima dela, pode desaparecer, e nesse caso já não encontramos a Tess. Pelo menos podíamos chamá-la aqui, onde podemos observá-la; entretanto, arranjamos um mandado para o apartamento dela. Eu telefono-lhe, digo-lhe que temos uma pista e peço-lhe que venha aqui ver umas fotografias. Tu podes ir trabalhando na ligação. ― E Swanson? ― perguntou Murphy. ― Paramos de o procurar?


Spinnelli reflectiu, de lábios apertados. ― Tens a certeza que Swanson não esteve no velório ontem à noite? ― Estive a ver o vídeo que fizemos ― disse Murphy. ― Tenho a certeza que não estava lá. ― Nesse caso, concentra-te na Amy Miller. Descobre uma ligação ― disse Spinnelli. ― Bacon já tinha sido condenado ― disse Aidan. ― O irmão de Nicole Rivera está na prisão à espera de julgamento e Amy Miller é advogada. ― Já é um princípio ― disse Spinnelli. ― Chamem-me quando descobrirem alguma coisa. Trinta minutos mais tarde Spinnelli estava de volta. ― A Amy Miller não atende nem de casa nem do escritório. Tens o número do telemóvel dela? 425 ― Não. A Tess tinha-o programado no telemóvel dela. Mas tenho os números de telefone de Jon Cárter. ― Aidan tirou da carteira o cartão com os números que Jon lhe tinha dado no dia em que Malcom Seward quase tinha morto Tess. ― A esta hora deve estar no hospital. Spinnelli hesitou. ― Não quero que ele avise a Amy Miller. ― Não me parece que ele o fizesse ― disse Murphy, pensativo. Aidan olhou para o papel que tinha na mão, recordando a tarde em que Cárter lho tinha dado. ― Estou de acordo. Na verdade, penso que devíamos trazê-lo para aqui. Ele conhece a Amy, os hábitos dela. Temos de nos meter na cabeça dela para tentarmos perceber o que vai fazer a seguir. Spinnelli concordou, tenso. ― Está bem. Telefona-lhe. Mas pede-lhe que venha cá. Só lhe dizemos aqui. E já que vamos buscar as pessoas que conhecem bem a Amy Miller podemos trazer também o Vito Ciccotelli e a mãe. Ele deve estar a ficar doido ali parado sem fazer nada. Sexta-feira, 17 de Março, 18.00 O cenário estava preparado. Os actores estavam prontos a entrar em palco. Mas havia qualquer coisa de insatisfatório em tudo aquilo. O fim chegaria depressa de mais. Tantos planos, tanta ansiedade exigiam um final mais prolongado, mais satisfatório. A vida de Ciccotelli podia terminar com um simples tiro na cabeça. A vida de qualquer dos Ciccotellis. Provavelmente era o mais seguro. Mas também seria menos satisfatório. "Vou brincar com ela só mais um bocadinho. Prolongar um pouco o meu prazer. Porque quando isto acabar não haverá mais nada." O futuro espreitava, vazio e desolado. Por causa dela. Por causa de Tess Ciccotelli. Diabos a levassem. Sentia a raiva a pulsar e via o corpo de Ciccotelli, dilacerado e mutilado. Mas ainda não. "Domina-te. Senta-te e domina-te."


A cadeira do computador era o único sítio que tinha para se sentar, mas aí sentia o chamamento do ecrã. Era pura magia. Era mais que pura magia. Era acesso. Era acesso total e completo a qualquer pessoa, em qualquer lugar. Acesso era informação. Informação era poder. E o poder era tudo. 426 Havia microfones a verificar. Agora eram menos, desde que o consultório e o apartamento da Ciccotelli tinham sido limpos. Por outro lado, ela já não se encontrava em nenhum desses lugares. No fundo, era uma sem-abrigo. Sem emprego. Isso compensava a perda do acesso. Já era de esperar que a polícia encontrasse os microfones. O que já não tinha esperado era que ela própria encontrasse o microfone na coleira do gato. Aí não tivera sorte. A qualidade das gravações não era boa, com o gato sempre a miar, mas a informação obtida fora da mais alta qualidade. A denúncia anónima de Rachel à polícia e a preocupação de Reagan com o assassino do rapaz tinham sido as mais úteis. Tinham bastado alguns telefonemas estratégicos para descobrir quem era o rapaz e como se chamava o pai. Um telefonema a uma cliente com muitas coisas a esconder assegurara uma série de telefonemas para atrair Reagan a vários pontos da cidade onde pensava que o pai do rapaz se escondia. Ele tinha percebido depressa, mas não conseguira resistir a nenhum dos telefonemas, não fosse algum ser verdadeiro. As pessoas com escrúpulos eram fáceis de manipular. Já Joanna Carmichael era outra história. O microfone dela era um dos poucos que restavam, mas funcionava lindamente. A rapariga tinha feito um bom trabalho a seguir a Ciccotelli. Ao princípio, ficara alarmada com a ameaça dela de denunciar os amigos da Ciccotelli, mas até ao momento não tinha feito nada além do relatório um tanto amador acerca de Jon Cárter. Infelizmente, a única coisa que isso conseguiria seria aumentar o negócio do bistro de Robin. Por pensar em Jon e em Robin, era provável que a polícia tivesse encontrado o vídeo do apartamento de Parks e começasse a desconfiar deles. Parks era um fio solto a pedir para ser rematado, de maneira que não tinha tido tempo de o atrair a um sítio mais seguro. Os sapatos também tinha sido uma boa ideia. Em combinação com os telefonemas que atraíam Reagan a diferentes pontos da cidade, deviam lançar a polícia numa pista falsa por algum tempo. Verdade fosse dita, os polícias pouco passavam de idiotas chapados. Por outro lado, tinha de confessar que Reagan e Murphy eram um pouco mais espertos que a maior parte, e também leais. A lealdade era uma coisa que sempre a surpreendera. Todos uns patetas, era o que era.


O ficheiro onde ficavam registados os telefonemas de casa de Joanna estava a ser reproduzido. Desde quarta-feira tinham sido feitos seis 427 telefonemas de ou para casa dela. Um toque do rato e começou a ouvi-los. Os cinco primeiros não tinham importância nenhuma, mas o sexto... ―Joanna Carmichael, fala Kelsey Chin. Sentiu um choque profundo. Ela tinha descoberto Chin. Chin que sabia coisas. Coisas particulares. Joanna marcara um encontro com Chin nessa manhã. Tal como Bacon, Joanna descobrira informações não autorizadas. Tal como Bacon, Joanna teria de desaparecer. Sexta-feira, 17 de Março, 18.10 Murphy pousou o telefone. ― Adivinha quem defendeu David Bacon. Aidan não levantou os olhos da lista das pessoas que tinham visitado o irmão de Nicole Rivera na prisão. Amy Miller não aparecia. ― Um Arthur qualquer coisa, da Legal Aid. Eu verifiquei isso. ― Mas adivinha de quem é que ele recebeu o caso quando a pessoa que o defendia se desculpou com um conflito de interesses. Aidan por fim levantou os olhos do papel. ― Amy Miller? ― Nem mais. O tal Arthur diz que ela ainda chegou a assinar alguns papéis quando a avaliação do caso foi entregue a Eleanor Brigham. Como Amy conhecia Eleanor através de Tess, pediu ao juiz que a libertasse do processo. Na altura, o Arthur pensou que fosse por ter excesso de trabalho. O pulso de Aidan acelerou. Por fim tinham alguma coisa útil. ― É uma ligação forte. Ela sabia dos talentos de Bacon e pô-lo na lista de contactos para uso futuro. Murphy pegou no telefone. ― Vou ligar ao Patrick. ― Já têm alguma coisa? Aidan deu uma volta e voltou-se para a porta, onde estava Vito Ciccotelli ao lado da mãe. Spinnelli vinha logo atrás. Vito tinha um aspecto péssimo e Aidan sentiu simpatia por ele. Estava a passar um mau bocado ao lado de Gina Ciccotelli. Na véspera, no caminho para o velório, Tess tinha-lhe falado na reconciliação com o pai. Também lhe falara no papel da mãe no terrível mal-entendido. Aidan achou que no lugar de Tess 428 não teria sido tão compreensivo. Mesmo assim, a sua própria mãe tinha-lhe ensinado o respeito, de maneira que se levantou para a cumprimentar. ― Pode ser que tenhamos ― confirmou Aidan. ― Sentem-se, por


favor. Queríamos juntar-vos com Jon Cárter, mas ele está a operar e só deve acabar daqui a uma hora. ― Aidan puxou uma cadeira para a mãe de Tess e depois olhou de frente para os olhos escuros de Vito, tão parecidos com os de Tess que se sentiu de novo dominado pelo medo. ― É uma mulher. Pensamos que seja Amy Miller. Gina levou a mão à boca para abafar uma exclamação. ― Não! Isso não é possível! Ela é como uma filha para mim. Seria incapaz de fazer mal à Tess! No entanto, Vito não pareceu surpreendido. ― Não sei, mãe. Eu acho que seria. ― Porquê, Vito? ― perguntou Murphy. ― O que é que sabe sobre ela? ― Nada muito específico, só um pressentimento que tenho há anos. Não queria pensar assim, de maneira que dizia a mim mesmo que estava enganado. ― Teve um esgar de ansiedade e de contrariedade. ― Devia ter dado ouvidos a mim mesmo. Sabem que a Amy viveu connosco desde os quinze anos? ― A Tess contou-me que eram como irmãs ― disse Aidan ― mas não sabia que tinha vivido convosco. Porquê? ― Porque o pai dela foi assassinado. O pai da Amy era sócio do meu pai, e além disso eram amigos. A mãe da Amy já tinha morrido... Há muito tempo. ― Quando a Amy tinha dois anos ― sussurrou Gina. ― A mãe suicidou-se. Vito franziu o sobrolho. ― A mãe nunca nos tinha contado isso. ― O pai da Amy nunca quis que ela soubesse, de maneira que nunca lhe dissemos. Adoptámo-la, aceitámo-la como nossa filha. É impossível, Vito. A Amy não pode estar envolvida nisto. ― Como é que o pai dela foi assassinado? ― perguntou Aidan, tenso. ― Ele e a noiva foram esfaqueados durante um assalto. ― Vito baixou os olhos para o chão. ― A Amy foi violada ― Vito fez uma pausa significativa. ― Ou pelo menos foi o que ela disse. Acabaram por prender um miúdo da vizinhança. ― O Leon Vanneti ― disse Gina com a voz a tremer. ― Era um miserável. Passava a vida de um lado para o outro com os bandos das 429 motas. ― Engoliu em seco a custo. ― Tu sempre disseste que ele estava inocente. ― Porque achava que estava. ― Disse que "ela disse" ― observou Murphy. ― Porquê? ― Eu conhecia o Leon. Ele era irreverente, mas não era mau rapaz. No hospital fizeram um exame e encontraram sémen e alguns arranhões. Tudo isso veio a lume no julgamento. ― Além da faca ensanguentada que encontraram debaixo da cama


dele ― atirou Gina. ― Vito, como podes dizer essas coisas? ― Porque não fazia sentido. O Leon não era estúpido. Se tivesse sido ele, tinha escondido as pistas. Ele garantiu que nunca lhe tinha tocado, mas o júri não acreditou. Bandos de motas contra uma menina com ar inocente. Na altura não havia análises de ADN. Ainda faltavam sete anos para aparecerem. E agora o Leon está na prisão a cumprir uma pena de prisão perpétua. ― E a Amy tornou-se advogada ― reflectiu Murphy em voz alta. ― Para uma vítima, teria sido mais natural que se tornasse procuradora, que escolhesse o lado oposto. Os motivos que poderia haver por trás da escolha profissional de Amy eram um elemento a ter em conta. Aidan tomou nota do assunto mentalmente. ― Porque achas que ela seria capaz de fazer mal à Tess? Vito encolheu os ombros pouco à vontade. ― É mais um pressentimento que outra coisa. A Tess era a única que tinha um quarto só para ela, porque era a única rapariga, mas ficou encantada por partilhá-lo com Amy quando esta veio viver connosco. Mas a Amy queria um quarto só para si e fez uma grande fita por causa disso. Sempre quis ter um tratamento especial. ― Ela tinha acabado de perder o pai ― protestou Gina. ― Já disse isso várias vezes ― observou Vito. ― Quando ela chegou, começaram a desaparecer coisas. Coisas pequenas, sem importância. E depois houve a coisa do espaço fechado. Gina abanou a cabeça contrariada. ― Isso foi um acidente, Vito! Por amor de Deus! ― Que coisa? ― perguntou Aidan, embora estivesse convencido de que sabia. ― Quando tinha dezasseis anos, Tess ficou presa no espaço por baixo da casa onde nós crescemos ― disse Vito. ― É um espaço pequeno, escuro, e... 430 ― Então é por isso que ela não anda de elevador... ― murmurou Aidan, e Vito confirmou com um gesto. ― Nós tínhamos ido para fora para um fim-de-semana prolongado. A Tess e a Amy deviam ir para casa de uma amiga, mas a Amy mudou de ideias e decidiu vir connosco. Ao que parece, Tess foi atrás dela mas ficou fechada por baixo da casa. Ficou lá três dias, sem comida e sem água. Magoou as mãos a tentar sair lá de baixo e os dedos e as unhas ficaram em sangue. ― Meu Deus! ― exclamou Aidan com um arrepio de horror. ― A Amy disse que não fazia ideia que a Tess tinha decidido também ir connosco. De qualquer maneira, era difícil sermos duros com ela. Parecia sentir-se culpada e tratou de Tess dias a fio.


Gina afastou-se da mesa. ― Isto não está bem, Vito. ― De braços cruzados à frente do peito, andava de um lado para o outro muito agitada. Depois, de repente, parou à frente do quadro branco com uma expressão chocada. ― Que é isto?! ― Toda a sua expressão era de horror e a sua voz estava alterada. Aidan pôs-se de pé e caminhou em direcção ao quadro. A mão dela tremia ao mesmo tempo que o seu dedo apontava para um dos nomes. Deering. A entidade central. ― Este nome... Eu já vi este nome. ― Voltou-se para Vito, os olhos dominados pela compreensão e pelo horror. ― É o nome do cliente que contratou aquela mulher. Aquela mulher. Aidan foi atingido pela compreensão como por uma pedra que lhe tivesse acertado com violência. Vito pôs-se de pé. Amy. Mais uma vez. O afastamento entre Tess e o pai não tinha resultado de um mal-entendido. Não fora um acidente. Sentiu a fúria subir dentro de si. ― Qual mulher? ― perguntou Murphy. Aidan contou a história, sem pormenores, rapidamente. ― A que dividiu a nossa família durante cinco anos. ― Vito estava furioso. ― Aquela cabra. A Amy queria afastar Tess, de maneira que preparou uma ratoeira ao pai. ― Enquanto ela vinha ao nosso jantar de Acção de Graças e se sentava na cadeira de Tess ― concluiu Gina com os olhos lavados em lágrimas. ― E tudo resultou lindamente durante cinco anos. ― Cansado, Aidan esfregava as têmporas. 431 ― Phillip Parks ― disse Murphy por trás dele, com grande calma, e Aidan percebeu. ― Amy era a outra mulher de Parks. Murphy concordou. ― Se tivéssemos interrogado Parks, ele podia ter contado a história, e isso tê-la-ia denunciado. Aidan deixou-se cair na cadeira. ― Ela anda a dar cabo da vida de Tess. De propósito, há anos e anos. ― Porque é que a mãe de Amy se matou? ― perguntou Spinnelli. ― Era esquizofrénica. ― Gina tremia de forma descontrolada. ― Nós estávamos tão atentos à Amy! Sabíamos que há casos em que a doença é hereditária, mas a Amy parecia tão normal, tão feliz. Não queríamos assustá-la, de maneira que nunca lhe dissemos. Vito fechou os olhos. ― Meu Deus... ― A Tess sabia? ― perguntou Aidan, e Gina fez que não com a cabeça.


― O pai da Amy não queria que ninguém soubesse, de maneira que nós nunca contámos a ninguém. O telefone da sala de reuniões tocou e Murphy atendeu. ― Obrigado ― disse, e desligou. ― O Patrick diz que vai ter connosco a casa da Amy Miller com o mandado. Vamos embora. Sexta-feira, 17 de Março, 18.45 Às vezes, o melhor esconderijo é o que fica mais à vista de todos. Bateu à porta e um homem veio atender. O namorado... Como é que ele se chamava? Keith. É muito importante recordar os pormenores. Mas quem ela queria não era o namorado, era Joanna Carmichael. ― Posso ajudá-la? ― perguntou ele com uma pronúncia forte da Georgia. ― Vinha falar com Miss Carmichael sobre o artigo que ela anda a escrever. Keith ficou tenso. ― Bom ― disse, sem expressão. ― Ela de momento não está. Vai ter de voltar mais tarde. Começou a fechar a porta, mas de repente os seus olhos abriram-se chocados, quando viu a pistola, com silenciador. 432 ― Ora, ora... Onde está a tão gabada delicadeza sulista? Não me convida a entrar? Ele recuou num ângulo suspeito e bateu na mesa que ficava precisamente atrás da porta. Foi rápido, mas não o suficiente. Os joelhos dele bateram no chão antes de poder apontar-lhe a arma que tinha tirado da gaveta. Uma mancha vermelha espalhou-se rapidamente pela sua camisa branca. Não tinha importância. Desde o momento em que tinha aberto a porta que era um homem morto. Quando puxara a arma limitara-se a apressar o momento. Uma patetice, enfim. De qualquer maneira, o mais certo era ele não ter tido a coragem de a usar. Tinha caído para a frente e a arma saltara e ficara caída na carpete, inofensiva. Seria uma bela recordação. A planta daquele apartamento era muito semelhante à do apartamento de Cynthia Adams, dez andares acima. Joanna devia estar quase a chegar. O armário seria um sítio razoável... O estrondo da arma de Keith fez vibrar o ar ao mesmo tempo que a dor se espalhou, quente, violenta. E a dor deu lugar ao choque. "Ele deu-me um tiro... O meu braço..." Keith apoiou-se nos braços e pegou na arma com as duas mãos. Um sorriso sinistro desenhou-se nos seus lábios. Afinal o filho-da-mãe tinha tomates. ― Vai-te foder ― conseguiu ele dizer. Depois caiu, com a arma presa debaixo do corpo. O choque foi substituído pelo medo. Foge. "Foge." Um segundo passou


antes que os seus pés obedecessem. As escadas estavam já ali. Um andar. Agora dois. Respira. A manga do casaco de cabedal tinha um buraco já ensopado de sangue. Com cuidado, Amy limpou-o e desceu até ao décimo andar, com o casaco a tapar a ferida. O elevador chegou rapidamente e, sem outros percalços, desceu rapidamente até ao átrio. Dali era fácil sair fresca como uma alface. Sexta-feira, 17 de Março, 19.00 "Ela não esteve aqui." Aidan estava de pé no meio da sala de Amy Miller a ver a equipa de Jack procurar o que quer que lhes pudesse dar alguma pista. Mas não havia nada. Nada. E Aidan começou a ter realmente medo. Sentia um frio que o debilitava, com uma intensidade que o deixava paralisado. 433 Tess e o pai não estavam ali, e Amy também não. Sentiu a fúria subirlhe no peito e em silêncio cerrou os punhos. Obrigou-se a si mesmo a respirar fundo. Perder a cabeça não o ia ajudar a recuperar Tess. O que teria de fazer era adivinhar a jogada seguinte de Amy. Eu não sou vidente, tinha dito Tess. De repente, com ferocidade, lamentou que não o fosse. Mas ele próprio teria de o ser. Tinha de conseguir pôr-se no lugar de Amy. "Não procures ser bruxo. Basta que sejas polícia. Faz o teu trabalho como se não estivesses envolvido." Os punhos descerraram-se um pouco, apenas o suficiente para voltar a concentrar-se. "Entra na cabeça dela." Aidan observou a sala à sua volta, devagar. Viu os posters de filmes que decoravam as paredes. "Ela colecciona-os", murmurou, um pouco surpreendido. A colecção era ecléctica e ia dos anos 30 aos anos 90. Tinha posters de filmes clássicos e outros de filmes mais obscuros. Todos tinham um mesmo tema. O coração de Aidan começou a bater mais depressa. ― Murphy! Anda cá! Murphy voltou da cozinha com dois jarros de vidro, um em cada mão. ― O que é? ― perguntou. Depois olhou melhor e assobiou. ― Alguns devem valer uma pipa de massa. ― Sim, devem, mas não era nisso que eu queria que reparasses, era no significado. Repara. ― Começou numa ponta, a apontar: ― Pagos a Dobrar, com a Barbara Stanwyck. ― Nunca vi ― disse Murphy. ― Uma mulher usa um homem para matar o marido. ― Depois continuou: ― Tudo sobre Eva. Murphy tinha os olhos brilhantes. ― A Anne Baxter interpreta outra cabra manipuladora. São só filmes em que as mulheres ganham. Aidan olhou para o póster que estava no centro de uma das paredes e


o quebra-cabeças começou a fazer sentido. O seu coração batia loucamente. ― Murphy, repara. ― Começou a ler os nomes das actrizes: ― Stanwyck, Turner, Davis, Baxter. Murphy abriu muito os olhos. ― As empresas que tu tinhas no quadro. ― Observou os outros posters e acrescentou: ― Mas o nome central era Deering, e não estou a vê-lo. Aidan bateu com o dedo no póster do meio. 434 ― Este é de Hush, Hush Sweet Charlotte. Olivia de Havilland leva a "amiga" Bette Davis à loucura. A personagem de Olivia de Havilland chamava-se Miriam Deering. Todos estes filmes são acerca de mulheres que manipulam homens ou outras mulheres. É uma espécie de programa. Ela deve ter-se achado muito esperta... A Tess deve ter visto estes posters um milhão de vezes. ― E nunca desconfiou de nada. A Amy dava-lhe todas as informações, mas ela nunca desconfiou. Quanto valerão estes posters, Aidan? Fazes alguma ideia? ― Se forem os originais, perto de duzentos mil dólares, no conjunto. ― Tu tiraste uma cadeira de Crítica de Cinema, não tiraste? ― Tirei ― respondeu Aidan, inexpressivamente. A excitação de ter decifrado a mensagem desaparecera rapidamente. ― Serve-me de muito agora. Que tem tudo isto a ver com o sítio onde Amy Miller está neste momento? Murphy apertou-lhe o ombro, num gesto encorajador. ― Procura descontrair a mente, Aidan. Pensa no que sabemos, e não no que não sabemos. Lembra-te disto. Duzentos mil dólares são muita massa para usar como decoração de parede. Estive a ver a declaração de impostos de Amy do ano passado e ela só declarou sessenta mil dólares de rendimento. A renda desta casa está de acordo com isso, mas os posters não estão. Aidan abriu muito os olhos. ― Há bocado disseste que ficaste surpreendido por ela não se ter tornado procuradora. ― Como advogada, Amy tinha acesso a todos os bandidos de que precisava para fazer as pequenas coisas que queria fazer. ― Murphy olhou à volta da sala. ― Uma das coisas que eu estava à espera de ver era um grande sistema de computadores. Quando o Rick nos mostrou todas as câmaras, pensei num sistema à James Bond, a cobrir uma parede de monitores. Aqui não há computadores. Nem sequer um velho computador. ― Se calhar tem um portátil. ― Deve ter muitas horas de gravações a ver. As câmaras do apartamento de Tess, do consultório, do apartamento de Cynthia


Adams... Não acredito que ela veja um filme de cada vez, até porque também precisa de tempo para o trabalho dela. Tem de ter pelo menos três ou quatro monitores, Aidan. Senão não é possível. 435 Aidan acenou lugubremente. ― Isso quer dizer que tem outro sítio, onde brinca com essas coisas. Vou ver se tem algum edifício em nome dela, ou das empresas dela, a começar pela Deering. ― Aidan, Murphy ― chamou Jack do quarto. ― Venham ver uma coisa. As portas do armário estavam abertas deixando dezenas de fotografias à vista. Havia um rosto comum a todas. ― Swanson ― murmurou Aidan. Vito estava aos pés da cama de Amy, de cabeça inclinada junto de uma tapeçaria cor-de-rosa cheia de franjas. ― Estão aqui mais ― verificou ele. Aidan e Murphy inclinaram-se à frente das fotografias do armário. Muitas eram fotos de grupo. ― Esta foi tirada no bistro de Robin Archer. A Tess também tem esta fotografia. ― Quando a observou mais de perto sentiu outro aperto no estômago. ― Ela cortou a imagem de Tess nesta fotografia. ― Em todas as fotografias ― murmurou Murphy. ― Além disso, Swanson aparece sentado ao lado de Tess sempre que pode. A Amy Miller está louca por este tipo. Aidan olhou para Vito: ―Jim Swanson desapareceu há três meses. ― Pensei que ele estava morto, mas se a Amy o perseguia e ele se sentiu ameaçado pode ter usado o estratagema dos Médicos sem Fronteiras para desaparecer ― disse Murphy. ― Olha para estas. ― Foi tudo o que Vito disse, e afastou-se da cama. Aidan enfiou a cabeça debaixo da tapeçaria e pestanejou. ― Caramba! ― Toda a área estava coberta com mais retratos de Swanson em vários estádios de nudez. ― Tudo indica que ele estava neste quarto quando ela tirou as fotografias, através da janela. ― Ontem passei pelo último sítio onde ele viveu. ― Murphy franziu o sobrolho. ― O quarto dá para a rua. ― Com uma sobrancelha erguida, Murphy sugeriu: ― Pode ser lá que ela brinca. Aidan sentiu a esperança renascer. ― Vamos lá ver. ― Eu telefono ao Spinnelli. Ele pode começar a verificar endereços e a arranjar-nos um mandado. 436 ― Esperem. Antes de irem... ― A porta do armário, Jack observava com atenção um par de sapatos que tinha nas mãos. ― Estes sapatos


correspondem às nossas marcas. O tamanho também corresponde ao nosso, e têm sangue nos atacadores. ― Voltou-os e acrescentou: ― Não têm lama nas solas. Vamos verificar se o sangue é de Bacon. ― Nesse caso, ela tinha dois pares de sapatos ― ruminou Murphy. ― Estes e os outros que ela levava hoje quando atacou o Vito. ― Tem muito mais que isso. ― Jack recuou um passo. ― Vejam o que aqui está. Havia duas malas grandes abertas no chão com roupa de homem. ― A etiqueta da mala diz "Jim Swanson" ― verificou Jack. ― Está aqui a carteira, com a carta de condução, um bilhete de avião para o Chade e o passaporte dele. E isto, embrulhado numa camisa. ― Era uma faca de talhante, com sangue seco, castanho-escuro. Aidan sentiu um arrepio. ― Nesse caso ele está morto. Ela matou-o. ― Mas porquê? ― perguntou Murphy. ― Porque havia ela de fazer uma coisa dessas? ― Porque tinha uma obsessão por Swanson ― disse Aidan, com o estômago a andar às voltas. ― Na noite anterior à partida, Swanson embebedou-se, lembras-te? Depois foi a casa de Jon Cárter e contoulhe tudo. ― Olhou de relance para Vito. ― Jim Swanson estava apaixonado por Tess, mas ela tinha-o rejeitado. Foi só por isso que ele decidiu ir para África. Vito olhou para Aidan de olhos arregalados. ― É este o tipo? A Tess contou-me a história, mas nunca me disse o nome dele. Disse-me que não tinha contado a mais ninguém. Sentiase culpada com tudo isso. ― Vamos lá verificar isto tudo. ― Aidan apontou para si mesmo. ― Eu sou a Amy. Murphy, tu és o Swanson. Tu voltaste de casa de Cárter e estás bêbedo e desagradável. Além disso, não te aguentas muito bem nas pernas. Entretanto, Amy está louca por ti, tem todas estas fotografias tuas. Tu vais-te embora amanhã e é possível que eu não te volte a ver. Eu vou ter contigo e... O quê? Confesso o meu amor? ― É possível ― concordou Murphy. ― Mas eu digo "Nem pensar. Eu gosto é de Tess". Tu passas-te. Que acontecia quando ela se passava, Vito? Quando se passava mesmo? Vito empalideceu. ― Só a vi assim uma vez. Um amigo de quem ela estava à espera para ir a um baile do liceu não tinha aparecido, tivera uma oferta 437 melhor, de uma miúda mais gira. Ela destruiu completamente o quarto dela. Estragou tudo, atirou com coisas pela janela... ― Vito engoliu em seco. ― Cortou o vestido que estava para levar ao baile e o colchão da cama. Depois pediu-me ajuda para tirar o colchão do quarto antes que


o meu pai e a minha mãe chegassem. Disse-me que tinha cortado o colchão por acaso, mas ele estava cheio de buracos, como se o tivesse esfaqueado. Se ao menos os meus pais nos tivessem contado a história da mãe dela... eu nunca teria guardado segredo. ― Ela deve ter ficado horrorizada quando viu o que tinha feito. Amavao e matou-o ― disse Murphy, devagar. ― E na cabeça dela a culpa de tudo é de Tess. ― Foi isto que transformou o estado atormentado habitual dela numa vingança obsessiva. ― Aidan respirou fundo. ― O objectivo dela era tirar tudo a Tess. A carreira, a credibilidade... ― A vida. Não conseguiu pronunciar as palavras. ― Tu ― acrescentou Murphy. ― Tu devias ter partido quando Rachel foi ameaçada. ― Mas não o fizeste ― disse Vito, com voz pouco firme. ― Obrigado. Aidan recordou o olhar de Tess quando pensou que ele o tinha feito. Pensara que ela conseguia ler o que lhe ia na mente. Pensara que ela conseguia adivinhar, percebê-lo por dentro, porque era esse o trabalho dela. Tess analisava e diagnosticava. Ajudava pessoas com tendências suicidas quando estavam mais vulneráveis. Impedia assassinos e violadores de invocarem a loucura para escaparem à justiça. E era muito boa no que fazia. Imaginou que essa capacidade era inata, uma espécie de reflexo que ela usava com todos os que a rodeavam. No entanto, tudo indicava que as pessoas que amava não estavam sujeitas a essa análise. Como amava abertamente e sem reservas, esperava o mesmo em troca. Isso deixara-a vulnerável àqueles cujos motivos eram egoístas ou brutais. A Phillip Parks, a Denise Masterson, a Amy Miller. ― Jack. ― Um dos técnicos da polícia científica tinha voltado com um envelope grande de papel pardo na mão. Jack tirou lá de dentro um monte de postais e de selos do Chade. ― Já estão escritos ― disse Jack. ― Devia planear enviá-los de quando em quando. ― Deve ter escrito ela a carta ao director da clínica ― acrescentou Murphy. ― Para esconder o que tinha feito. Vamos verificar os apartamentos do outro lado da rua da casa de Swanson. 438 ― E quaisquer outros em nome da empresa Deering. Aidan já se preparava para sair quando o telemóvel tocou. ― Reagan, fala Jon Cárter. Acabei de sair da sala de operações e verifiquei as mensagens recebidas. Uma era sua e a outra da Amy Miller. Aidan parou bruscamente. ― O que é que ela disse? ― É uma mensagem estranha. Diz que precisa da minha ajuda, que é


uma emergência. Que tinha estado com um cliente, um miúdo ainda novo que entrara em pânico e lhe dera um tiro. Quer vir ter comigo para eu lhe coser a ferida porque não quer participar o que aconteceu. Afirma que não quer que a vida deste miúdo seja arruinada só porque ele cometeu um erro. ― E onde é que ela vai ter consigo? ― Eu disse-lhe que fosse ter a minha casa daqui a meia hora. Entretanto decidi ligar-lhe porque hoje, enquanto estive na sala de operações, fartei-me de pensar no que aconteceu ontem à noite. A Amy ficou com o meu casaco enquanto eu dava as condolências a Fio Ernst. Espero estar enganado, mas não posso correr riscos com a vida de Tess. ― Já estamos a caminho. Vamos chegar a sua casa no máximo daqui a um quarto de hora. ― Nesse caso eu tinha razão. ― A voz de Cárter parecia cansada. ― Sim ― Aidan respirou fundo. ― Tinha razão. Sexta-feira, 17 de Março, 19.30 ― Tess? ― a voz pouco passava de um gemido, que mal se ouvia. Tess levantou a cabeça e procurou ver através da escuridão, aliviada. O pai estava consciente. Vivo. Com cuidado, virou-se um pouco para o lado dele e os seus olhos cruzaram-se. O pai também estava atado de pés e mãos, mas por alguma razão Amy não o tinha amordaçado. Amy. Era inacreditável. Até que as coisas começavam a encaixar-se. O espaço fechado por baixo da casa. Tinha ficado tão chocada, e Amy fora tão solícita... Da mesma maneira que depois de o preso a ter atacado. Tinha-lhe levado sopa. Que sopa horrível. Tess sempre imaginara que Amy era apenas uma péssima cozinheira. Mas nesse momento as seis semanas que passara fraca e a vomitar começaram a fazer mais sentido. "Ela envenenou-me." Que cabra. Mas porquê? 439 Porque é louca, Tess. E Tess sabia perfeitamente que muitas vezes as pessoas não precisavam de mais nenhuma razão. Mas a raiva de Àmy tinha mudado. Antes de Cynthia Adams a raiva dela nunca tinha sido mortal. Só... maldosa. Que teria mudado? Experimentou tocar no joelho do pai com o seu. ― Tess ― disse ele num sussurro. ― Estás viva. "Durante quanto tempo mais?" Tess voltou a tocar-lhe, para lhe dar alento e também para se sentir reconfortada. ― Tenho uma navalha no bolso ― conseguiu ele dizer. ― A minha navalha de gravar madeira. Consegues chegar-lhe? A navalha dele Quando Tess era criança, ele andava sempre a fazer pequenos objectos de madeira e trazia sempre a navalha num dos bolsos das suas calças de carpinteiro. Se fechasse os olhos ainda conseguia vê-la com todos os pormenores. Se agora, ao menos,


conseguisse alcançá-la com as mãos atadas... Sexta-feira, 17 de Março, 19.30 Joanna correu para casa o mais que conseguiu. A sua visita a Lexington fora esclarecedora e a informação dada pela Dr.a Chin fora o elemento que lhe faltava para poder escrever um trabalho de jornalismo sério. Estava ansiosa por contar a Keith. Tinha conseguido. Por fim tinha conseguido. Um artigo assinado. E ainda tinha o artigo picante sobre a vida secreta de Jon Cárter para apimentar um pouco as páginas de mexericos. Aquilo sim, era jornalismo. Jornalismo a sério. Acima da média. Por fim. E Cyrus Bremin não ia passar por cima dela neste caso. Tinha a promessa do editor. No entanto, não seria a primeira vez que ele prometia e depois dava a história dela a outro, de maneira que teria de esperar para ver. Mesmo assim, dobrou a esquina com um sorriso no rosto. Quando se aproximou do edifício onde vivia, o sorriso desvaneceu-se. Pela segunda vez na mesma semana uma ambulância estava parada à sua porta. Percorreu o último quarteirão a correr. Da primeira vez sentira-se excitada com a perspectiva de escrever sobre o suicídio de Cynthia Adams, mas dessa vez sentiu horror puro. Encontrou um polícia e agarrou-lhe na manga. ― Eu vivo neste edifício. Sabe dizer-me o que aconteceu? 440 Ele olhou para ela e perguntou-lhe: ― Como se chama? ―Joanna Carmichael. O homem tornou-se repentinamente sério. ― Andávamos à sua procura. Venha comigo. Não. O medo apoderou-se dela enquanto subia de elevador. Não. A porta do seu apartamento estava aberta. Havia pessoas lá dentro. Pessoas não, polícias. Keith. Um homem alto e moreno, acompanhado por uma mulher loura mais baixa, obrigou-a a parar antes de entrar. ― Miss Carmichael? Ela respondeu, sem forças, incapaz de reagir. ― Sou a detective Mitchell e este é o meu parceiro, o detective Reagan ― disse a mulher. ― Pode dizer-nos onde se encontrava há uma hora. Joanna teve a impressão que o coração lhe parava. O alto moreno era irmão do namorado da Ciccotelli. ― Com o meu editor no Bulletin. Porquê? A mulher olhou-a nos olhos. ― Temos más notícias para si. As palavras da polícia foram abafadas pelo ruído das rodas da maca, onde vinha um saco com um corpo. ― Keith? ― começou a correr atrás da maca, dominada pelo pânico. A voz que ouviu gritar era a sua. ― Keith!


CAPÍTULO 23 Sexta-feira, 17 de Março, 19.30 A ferida quase tinha deixado de sangrar por si mesma e, além disso, já não doía tanto como ao princípio. Mesmo assim teria de ser cosida, senão voltava a abrir. A entrada para a garagem de Jon era visível de longe através dos binóculos. Bem como o Camaro que espreitava ao fundo da rua, a um quarteirão de distância no sentido oposto. O carro de Aidan Reagan. Foram precisos alguns segundos para o choque se tornar consciente. Jon Cárter tinha-a denunciado. "Eles desconfiam de mim." Impossível. Os sapatos tinham sido uma ideia tão inteligente. A ideia era desconfiarem de Robin Archer, mas ele continuava em casa mesmo depois da visita matinal da polícia. "E agora desconfiam de mim." Mas como? Mas o mais importante era saber que fazer a seguir. Teria de tratar a ferida. Teria de ser a Ciccotelli a fazê-lo. Oxalá o pai continuasse vivo, porque só com uma arma apontada à cabeça conseguiria que ela fizesse o trabalho bem feito. Quando os pontos estivessem no sítio, a Ciccotelli e o pai teriam de ir. Mais depressa e menos dolorosamente do que planeara. "Tenho de me ir embora." Para longe. Sexta-feira, 17 de Março, 20.15 ― Ela deve ter-nos visto ― disse Aidan, que, desesperado, atirou o casaco para cima da secretária. ― Esperámos quarenta e cinco minutos ― disse Murphy a Spinnelli ― mas ela não apareceu. 442 Spinnelli suspirou. ― Nós sabemos como a Amy Miller foi alvejada. Mal saíste para o apartamento dela, o namorado da Joanna Carmichael foi encontrado morto em casa. Estava caído sobre a própria arma, que tinha sido disparada. Também encontrámos fotografias no computador deles. Tudo indica que Joanna Carmichael seguiu a Tess por toda a cidade, sempre a fotografá-la. Mais uma pessoa morta. ― A Tess disse-me que a Joanna Carmichael a andava a seguir. ― E fez um bom trabalho. Encontrámos fotografias de Marge Hooper, de Sylvia Arness e de mais meia dúzia de pessoas com quem a Tess se cruzou naquele dia. A Joanna contou ao Abe e à Mia que desconfiava que alguém tinha andado a mexer nos ficheiros dela, mas tinha acabado por se "distrair" com uma história. Assim, tudo indica que Amy Miller anda por aí a passear-se com um buraco de bala. ― Joanna aproximou-se demasiado de Amy Miller ― murmurou Murphy. ― Qual era a história?


― Não nos contou. A Mia diz que a Carmichael não parava de dizer "acima da média". ― Sendo assim, o namorado acaba por pagar a obsessão dela pela Tess e um exclusivo com a própria vida. ― Aidan suspirou. ― Encontraste alguma coisa no antigo apartamento de Jim Swanson? ― Foi alugado há dois meses por um casal jovem ― contou Spinnelli ― por isso a Amy Miller não está lá agora. Mas antes disso tinha estado alugado a uma Deering, Inc. Tão perto. Mas continuavam sem nenhuma pista que os ajudasse a encontrar Tess. ―Já estamos a fazer alguma pesquisa a propriedades ligadas à Deering? ― A Lori está agora de volta disso. Daqui a uma hora, mais ou menos, já devemos ter qualquer coisa. Mandei prender outra vez a Denise Masterson, que pediu que chamassem o advogado dela. Adivinhem quem ele era. ― Destin Lawe ― tentou Murphy, e Spinnelli confirmou. ― Ficou muito infeliz por saber que tinha morrido. Ele tinha-lhe dito que era advogado. ― E foi por isso que ela lhe ligou ontem assim que a deixámos ir ― disse Murphy. ― Também recebemos mais três telefonemas de pessoas que diziam ter visto o pai de Danny Morris. Todos falsos. 443 ― A cabra sabe que nós somos obrigados a investigar todaS as pistas. Estupor ― resmungou Murphy. Aidan estava a ponto de gritar. ― Nada disto nos ajuda a encontrar Tess. ― Temos as brigadas alerta à procura de Amy Miller ― disse Spinnelli sem perder a paciência. ― Aidan, enquanto a Lori não acabar aquela pesquisa não temos por onde pegar nisto. Usa este tempo para descansar. ― Os seus olhos endureceram. ― E isto é uma ordem. Assim que tiverem a lista de propriedades ligadas à Deering podes sair como um foguete. Quando isso acontecer, quero que estejas concentrado. Aidan fez um esforço para se levantar. A caminho do corredor chocou com Rick. ― Andava à tua procura ― disse Rick. ― Encontrei uma coisa. ― Quando Aidan olhou para ele perplexo, Rick concluiu. ― Tenho o CD que aquele miúdo, o Poston, partiu. Encontrei uma coisa. Isto deu a Aidan a energia de que precisava para continuar. ― Vamos ver. Sexta-feira, 17 de Março, 18.15 Tess quase se riu. Era um pedido realmente ridículo.


― Queres que faça o quê?! Amy nem sequer sorriu. ― Está aqui uma agulha esterilizada e fio. ― Arregaçou a manga e mostrou o braço rasgado pela bala. ― Cose. ― Com a arma na mão esquerda apontada à cabeça do pai de Tess, avisou: ― Não me faças tremer. A minha mão esquerda não é lá muito firme. Tess levou-a a sério. ― Está bem, eu faço o que queres, mas não o magoes. ― Ela vai matar-me de qualquer maneira. Não a ajudes ― disse o pai de Tess, que gemeu com dor quando Amy lhe deu um pontapé no estômago. ― Cala-te, velho. ― Deixe estar, pai ― murmurou Tess, que logo a seguir encontrou os olhos de Amy postos nela. ― Não te posso ajudar com as mãos atadas. Depois de se contorcer durante uma hora tinha conseguido tirar a navalha do bolso do pai. Com as mãos atadas atrás das costas, tudo 444 o que pôde fazer foi esconder a navalha nos bolsos de trás dos jeans. De momento, não lhe servia de nada, mas quando Amy lhe libertasse as mãos... Amy pegou na sua própria navalha, uma faca grande de talho, e cortou as cordas que lhe prendiam os punhos. ― Basta um movimento em falso e o teu pai deixa de ter de se preocupar com o coração. ― Isto vai doer ― avisou Tess. ― Não tenho nada para te aliviar a dor. Amy fez um esgar em lugar de um sorriso, enquanto os seus olhos percorriam as prateleiras da pequena sala onde todos se encontravam. ― Eu tenho, mas está fora de questão deixar que tu o uses em mim. Esforçando-se por ignorar as náuseas que a afligiam por estar num espaço fechado tão pequeno, Tess observou as plantas e os frascos alinhados nas prateleiras. A maior parte eram cogumelos. Houve outro quebra-cabeças que se resolveu. ― Alucinogénios. Usaste-os nos meus doentes. Amy estendeu o braço. ― Cala-te e cose. Tess abanou a cabeça. ― Estou a ficar com náuseas. Tenho medo de não ser capaz de fazer isto como deve ser. ― Estou disposta a correr o risco ― disse Amy com secura. ― Podes começar. Tess enfiou a agulha. ― Usaste alguma destas drogas nos meus doentes? Amy fez um gesto de impaciência. ― Usei, claro. Tess deu um ponto a direito e Amy gemeu de dor. ― Puseste-as na minha sopa?


― Claro, pareceu-me uma altura óptima para te separar de Phil. Tess deu mais alguns pontos. ― Foste para a cama com ele? Com Phillip? O sorriso de Amy foi maldoso. ― Claro. E tirei fotografias do grande evento. Foi quanto bastou para convencer Phillip a afastar-se de ti. Não podia deixar-te casar. ― Porquê? 445 ― Porque terias sido feliz. Já quanto a Harold Green e ao preso não podia ter planeado nada que corresse tão bem, mas podia aproveitar as consequências. ― E eu a pensar que estava a enlouquecer ― murmurou Tess, que recordava as semanas em que esteve tão cansada que chegara a pensar que era a sua mente que rejeitava a carreira que tinha escolhido. Amy riu-se, bem-disposta. ― Eu sei. A propósito, no domingo, quando te disse que parecias uma puta de rua, estava a falar a sério. Tess teve vontade de a esmurrar. ― Eu percebi. A Eleanor tinha razão em relação a ti. Nunca gostou de ti. O braço de Amy ficou tenso sob as mãos de Tess. ― Cabra. Também as pagou! Tess levantou os olhos. ― O quê?! ― Andava sempre a fazer-te favores. A dar-te coisas. Tess recordou como todos tinham ficado chocados com a morte repentina da colega mais velha e mentora. ― Mataste a Eleanor e fizeste parecer que tinha sido um AVC! ― Pois foi. ― Os seus lábios estreitaram-se. ― A pele do pescoço dela estava tão engelhada que o médico-legista nem reparou na picada que a agulha lhe deixou no pescoço. ― Mas eles não encontraram drogas. ― É o que há de bom no ar, Tess. Com esforço, Tess baixou os olhos de novo para os pontos. ― Injectaste-a com ar. ― A ideia era o velho pôr-te logo na rua. ― Mas isso não aconteceu ― concluiu Tess, sonhadora. Tantas coisas que começava a perceber... ― Caíste de pé ― disse Amy com amargura. ― Como sempre. ― Abanou a cabeça com força. ― Caías ― corrigiu. ― A tua vida mágica vai acabar hoje à noite. Tess estava a chegar ao fim dos pontos e os seus pés continuavam atados. ― Que tencionas fazer connosco? ― Matar-vos a tiro. É como fechar um grande círculo. Comecei contigo


porque matei o meu pai e agora acabo matando o teu. Tess falhou um ponto e fez Amy praguejar. Michel olhou para elas. Os seus olhos pareciam fendas finas. 446 ― Mataste o teu próprio pai?! Porquê? O rosto de Amy tornou-se mais duro. ― Porque ia casar e eu não queria. Ela tinha cinco filhos e eles iam todos dar ordens em minha casa. Tirar-me as minhas coisas. ― O riso dela era feio. ― O pior é que acabei por ter de me aguentar com os seus cinco filhos, o que não foi muito melhor. ― E caluniaste o Leon ― murmurou Tess, que se esforçava por fazer render os últimos pontos. ― Foi tão fácil! ― O rosto dela tornou-se mais sombrio. ― Devia ter sido assim tão fácil caluniar-vos a todos... ― Então porque não foi? ― perguntou Tess. ― Tive medo que a polícia perdesse as pistas mais importantes, de maneira que deixei demasiadas. ― Fizeste um trabalho bom de mais ― disse Tess, entrando no jogo. ― Pois foi ― respondeu Amy com ar satisfeito. ―Já preparar a cilada aqui ao teu velho foi uma brincadeira de crianças. Tess rangeu os dentes. Também tinha sido Amy. ― Enganaste-me. ― A grande psiquiatra... És como os outros. Só vês o que queres ver. ― Amy abriu e fechou os dedos. Assim vai ser mais fácil despachar o velho. Tess percebeu que era nesse momento ou nunca. Tirou a navalha do pai do bolso de trás das calças enquanto Amy observava os pontos. Num só golpe, enterrou-a no braço bom de Amy. Com um grito dilacerante, Amy levantou a arma e Tess aplicou-lhe o mesmo golpe que já tinha aplicado em Clayborn. Amy voltou a gritar. Do nariz saíalhe sangue em catadupas. Tess atirou-se para cima dela e prendeu-a contra uma das paredes. Alguns vasos caíram da prateleira que ficava por cima e Amy ficou atordoada. Tess agarrou a arma de Amy com uma mão e com a outra cortou as cordas à volta dos tornozelos. Ficou de pé, a olhar para Amy com a arma na mão. ― Não serias capaz ― disse ela. Tess sabia que em parte Amy tinha razão. Aquela mulher já fora a sua maior amiga. Mas tudo acontecera de um só lado. Mesmo assim, não conseguia imaginar-se a apertar o gatilho, a pôr fim à vida de Amy. A mulher que ela amara como uma irmã era uma doente mental. Se tinha poupado Harold Green, teria menos obrigações com Amy? 447 ― Não quero matar-te, Amy, mas se for preciso mato. Põe-te de pé e


não toques no meu pai, senão juro-te que é o que vou fazer. Amy obedeceu. ― Um quartinho tão pequeno, Tess. Não me parece que tenhas ar suficiente para respirar. Tess sentiu uma força esmagadora nos maxilares. ― Acho que me estou a aguentar muito bem apesar do medo. ― Para sua surpresa, isso era verdade. ― Agora afasta-te do meu pai. ― Amy aproximou-se da porta, de olhos alerta. Tess sabia que tudo o que ela precisava era que Tess pestanejasse. ― Já chega. Pai, não posso tirar os olhos dela para o desatar. ― Não tem importância, Tess. Vamos fazer um telefonema e desta vez sou eu que falo. Sexta-feira, 17 de Março, 20.20 Aidan, Murphy e Spinnelli olharam para as fotografias que Rick tinha espalhado em cima da mesa. ― Encontraste fotografias? ― perguntou Aidan. ― Estava à espera que fosse um ficheiro de som. ― Oh! ― Rick abanou a cabeça, como se quisesse aclarar as ideias. ― Já estou a olhar para isto há demasiado tempo. Encontrei um ficheiro audio, mas só recuperei fragmentos. É como uma conversa de telemóvel com muitas interferências. Mas tem que chegue para mandar o Poston para a prisão. Quando estava a tentar recuperar os ficheiros de som encontrei algumas imagens que não tinham desaparecido. Ela deve ter feito uma formatação simples, que só apaga os dados que estão por baixo se for feita umas sete vezes em cadeia, e mesmo assim já têm sido encontrados dados que resistem. Vê se estas fotografias te dizem alguma coisa. A maior parte era de uma parede com quadros pendurados. Por exemplo, desenhos a tinta de uma praia. Lembrou-se de já ter visto aquela imagem. Sentiu que o coração lhe saltava no peito. ― É a sala de Tess. Murphy agarrou numa das fotografias. ― Estás a brincar. Aidan levantou os olhos para o colega. 448 ― Fez com a Tess o mesmo que tinha feito com Jim Swanson. Estas fotografias foram tiradas à frente do apartamento de Tess. Deve ser onde ela está instalada. Murphy concordou, excitado. ― Do edifício que fica em frente. O problema é que deve haver ali uns quarenta apartamentos que dão para a rua. Podes descobrir qual é pelo ângulo? ― Talvez ― disse Rick. ― As fotografias não têm grande resolução, mas posso tentar.


Spinnelli bateu com a mão na mesa para chamar a atenção de todos os que ali estavam. ― Para pedir um mandado precisamos de saber qual é o apartamento concreto. Não pode ser por palpite. Aidan pegou no telefone. ― Lori, já tens a lista das propriedades pertencentes à Deering? Dois minutos mais tarde, Lori chegou com as informações. Aidan percorreu a lista com um dedo. ― Há vinte apartamentos em nome da empresa, mas só um fica à frente do apartamento de Tess. Vamos embora. Sexta-feira, 17 de Março, 20.45 ― Pára imediatamente ― disse Tess, e Amy parou, com um sorriso trocista no rosto. ― E se não parar? Tess disparou e um tiro passou ao lado da cabeça de Amy. ― Se não parares atiro a matar. O rosto de Amy ficou vermelho de raiva. ― Cabra! Sempre tiveste tudo. ― E agora também vou conseguir que sejas presa. Que foi onde tentaste meter-me. ― E teria conseguido, se não fossem os malditos polícias. ― Pareces os maus do Scooby-Doo ― disse Tess, e o desdém de Amy pareceu acentuar-se. Olhou à sua volta e para seu desespero não viu telefones. ― Aqui não há telefone ― disse Amy, satisfeita consigo mesma. ― Só Internet. E agora? 449 ― Vem comigo. Vamos bater a algumas portas. Alguém neste edifício há-de ter telefone. ― Fez um gesto a Amy indicando-lhe que avançasse. ― Vamos. Em vez disso, Amy atirou-se a ela. Tess caiu de costas contra a porta e Amy conseguiu tirar-lhe a arma. A sangrar e magoada, Amy apontou a arma ao coração de Tess. ― Agora tu é que te mexes. Lá para fora, para o terraço. Vamos encerrar o círculo com o teu pai. E contigo. Tudo isto começou quando a tua doente saltou. Agora nas notícias também vai sair que tu saltaste. Abre a porta. ― Não. ― Tess sabia que mal pusesse os pés no terraço seria uma mulher morta. Amy abriu a porta e empurrou-a, deixando entrar o ar frio da noite. Com uma mão agarrou o cabelo de Tess e com a outra pressionou a arma contra a têmpora dela. ― Eu disse-te que te mexesses. Vamos. Já. Empurrou Tess para o varandim e empurrou-a de maneira que ela se


inclinou para o lado de fora. Quando a arma começou a pressioná-la no pescoço com força, Tess gritou. Instintivamente, procurou evitar a dor, o que deslocou o seu centro de gravidade. Amy empurrou. E lançou Tess em direcção ao abismo. ― Polícia! ― Aidan afastou-se para deixar a equipa das forças especiais arrombar a porta. Quando espreitou, viu Amy de pé no terraço e Tess, quase invisível, agarrada ao varandim do lado de fora. Amy voltou-se para ele, os olhos enlouquecidos. ― Saiam todos imediatamente ou dou um tiro nas mãos dela ― ameaçou com voz calma. ― E abaixo dela são doze andares. Se não morrer, vai lamentá-lo, e vocês também. Murphy estava atrás dele. ― Aos três, Aidan ― disse ele num murmúrio. ― Um dois... Três. Aidan e Murphy dispararam ao mesmo tempo. A força combinada dos dois tiros atirou Amy pela varanda. Sem esperar para ver onde ela tinha caído, Aidan aproximou-se a correr e, com a ajuda de Murphy, levantaram Tess, que estava branca e ofegante, demasiado chocada para dizer o que quer que fosse. Aidan tomou-a nos braços e levou-a para a sala. ― Está lá em baixo ― disse Murphy do terraço. ― Morta. ― Fechou-se o círculo ― murmurou Tess. ― Como o de Cynthia. 450 Aidan pensou que nunca deixaria Tess, por mais tempo que vivesse. Ao ver as pequenas mãos de Tess agarradas ao varandim perdera vinte anos de vida. Tess esforçava-se por se pôr de pé. ― O meu pai! Chamem uma ambulância. Ele precisa de oxigénio! E ela também, pensou Aidan, mas ajudou-a quando ela correu para uma despensa onde Michael Ciccotelli continuava, deitado e atado, muito pálido. Quando os viu ficou visivelmente aliviado. ― Estão vivos! Eu ouvi os tiros... Tess caiu de joelhos e procurou a navalha para o soltar. As lágrimas corriam-lhe dos olhos, mas Aidan teve a impressão que ela não se apercebia delas. Tinha as mãos a tremer, o que a tornava um perigo com a navalha. ― Ela morreu, pai. A Amy. ― Tess... ― Aidan baixou-se ao lado dela e pegou na navalha. ― Senta-te e respira devagar. ― Rapidamente, sem dificuldade, cortou as cordas que prendiam o pai dela e ajudou-o a pôr-se de pé. ― Agora vão os dois para o hospital sem discutir. Está decidido? O pai olhou para a filha e disse: ― Se fores, eu também vou. Ela concordou, com uma mão sobre a boca. ― Está bem.


― Tess? Pai? ― Vito apareceu à porta. ― Meu Deus, Tess! ― Caiu de joelhos ao lado dela e abraçou-a. ― O tenente chamou-me e eu cheguei aqui quando tu ainda estavas pendurada do lado de fora do terraço. Pensei que ias cair. O pai de ambos voltou-se para eles com os olhos arregalados. ― Estiveste pendurada do terraço? Meu Deus! ― Pensei que me ia dar um ataque de coração ― disse Vito com convicção. ― Eu e a mãe vimos o que aconteceu e mal podíamos respirar. Depois a Amy caiu e Reagan puxou-te. ― O irmão de Tess levantou os olhos e disse: ― Obrigado. Aidan conseguiu retribuir o agradecimento com um gesto da cabeça. ― Não tens de quê. Eu próprio ainda não sei se algum dia vou conseguir voltar a respirar. ― Como se experimentasse, encheu os pulmões de ar. ― Acho que sim... Tess libertou-se com delicadeza dos braços do irmão e voltou-se para Aidan. Inclinou a cabeça sobre o peito dele. 451 ― Acho que nunca fiquei tão contente de ver alguém como de te ver a ti quando olhaste por cima do varandim. ― Tocou os lábios dele com os seus. ― Obrigada. Aidan abraçou-a e estremeceu. Estava tudo acabado. Por fim. ― Agora vamos ao hospital ver se está tudo bem e depois vamos para casa. Ela recuou um pouco e disse, com um sorriso: ― Hoje não vou cozinhar, detective. Ele riu-se, ainda tenso. ― Não tem importância. Hoje cozinho eu. Talvez amanhã. ― Está combinado. Sábado, 18 de Março, 8.30 Tess saiu do elevador com passo enérgico no piso de Aidan, com o coração a bater apressado. Deteve-se por um momento e respirou fundo. ― Continua a detestar elevadores, Tess? A médica voltou-se e viu Marc Spinnelli a estudá-la com um sorriso amável, uma chávena de café na mão. ― É verdade. E além disso agora também tenho horror às alturas. Ele fez um esgar. ― Em minha opinião, a Tess tem direito a uma fobia ou outra... ― Pôslhe um braço por cima dos ombros e falou num tom mais sério. ―Ontem à noite não cheguei a falar consigo. Sente-se bem? ― Sinto-me muito bem. Ainda tenho umas dores, mas estou óptima. ― Acordara na cama de Aidan uma hora antes. Ele já se tinha levantado e deixara uma nota na almofada: "Dorme até tarde." Mas nessa manhã Tess precisava de respostas. Precisava dele. ― O Aidan está cá?


Ele fez que sim, compreensivo. ― Está na sala de reuniões. Venha comigo. Quando ela entrou, cinco pares de olhos voltaram-se para ela. Jack, Rick, Patrick e Murphy. E Aidan, que se pôs de pé de sobrolho franzido. ― Eu disse-te que dormisses. ― Não consegui. ― Tess mostrou-lhe a edição dessa manhã do Bulletin. ― Viram isto? ― Vimos, sim ― respondeu Aidan com um suspiro. ― Senta-te, Tess. 452 Aceitou a cadeira que ele lhe ofereceu e abriu o jornal à sua frente, olhando uma vez mais para as letras garrafais. O título principal dizia: advogada afinal era uma assassina. A seguir vinham dois artigos. O primeiro, assinado Cyrus Bremin, era o maior. Contava em pormenor o papel de Amy na vaga de mortes da semana anterior, que culminara nos assassinatos de Phillip Parks e de Keith Brandon. As fotografias dos dois apareciam a ilustrar o artigo e ambas despertaram tristeza em Tess. A sua própria fotografia também aparecia, ao lado de outra menos nítida de um vulto a cair de uma varanda. Essa ainda lhe deixava o estômago às voltas. Na noite anterior tinha sonhado com o episódio. Lá em baixo ouviam-se as buzinas dos carros e ao mesmo tempo ela ia escorregando pouco a pouco. O seu cérebro parecia repetir aquele momento de horror uma vez a seguir a outra. Mas pelo menos estava viva. O mesmo não se podia dizer de outras treze pessoas. A segunda história era mais pequena, mas igualmente chocante. Amy trabalhava para várias famílias poderosas de Chicago, que ajudava a pôr empregados que lhe desagradassem por trás das grades. Esses empregados acabavam sempre por ser mortos, o que constituía uma mensagem impressionante para quem quer que pensasse na possibilidade de trair. Aparentemente, Amy era muito conhecida entre esses empregados. De uma maneira ou de outra, Joanna Carmichael conseguira descobrir a história. E isso custara a vida do seu namorado. ― Por fim conseguiu um artigo assinado ― murmurou Tess. ― Assinado Carmichael, quero eu dizer. ― Mas isso teve um preço ― observou Aidan. ― Estás bem, Tess? Sim, ia começar a responder, quando voltou a olhar para a primeira página. ― Não, nem por isso. ― E o seu pai, Tess, como está ele? ― perguntou Murphy. ― Estável. ― Tess conseguiu esboçar um sorriso. ― Irritadiço. ― Quer ir para casa. ― O seu sorriso desapareceu. ― Quer que eu vá com ele. Qualquer coisa brilhou nos olhos de Aidan, mas ele limitou-se a sorrir. ― Podemos falar disso quando as coisas acalmarem. Já tomaste o pequeno-almoço? ― A tua mãe obrigou-me. ― Tess tinha acordado com o cheiro do


bacon e dos ovos e com o sorriso amável de Becca Reagan, capaz de fazer a pior das situações parecer tolerável. Tess tinha passado uma ou 453 duas horas na noite anterior no hospital, mas tinha voltado para casa logo a seguir. O pai ficara internado, como todos esperavam. Vito e a mãe de Tess continuavam com ele, que insistira que ela fosse para casa e dormisse. Casa era a casa de Aidan. ― O que é que descobriste ontem à noite? ― Que tudo o que saiu no artigo de Joanna Carmichael é verdade. E há mais. ― Amy Miller preparou várias armadilhas a homens inocentes ― disse Patrick com uma voz onde a perturbação era perceptível. ― Nalguns casos fui eu que preparei a acusação. Quando a polícia se aproximava muito de algum dos crimes da família, era ela que entrava em acção. Preparava um bode expiatório e tratava das provas falsas. Além disso, tratava de "defender" o pobre diabo, para ter a certeza que ele não tinha hipótese nenhuma. ― O rosto de Patrick parecia de pedra. Os seus olhos estavam carregados de desprezo. ― E eu nunca desconfiei de nada. Nem a Kristen. Quando isto começou estávamos preocupados com os apelos por tua causa, Tess, mas agora somos nós que queremos rever alguns casos que ela defendeu. ― Não deixa de ser irónico ― murmurou Tess. ― O irmão de Nicole Rivera era um desses homens inocentes ― disse Aidan. ― Foi ela que escolheu o rapaz porque achava que Nicole Rivera era a melhor pessoa que conseguiria arranjar para te imitar. Tratou de envolver falsamente Miguel Rivera num crime e depois fez chantagem com a irmã. ― O rapaz já foi libertado? ― perguntou Tess. ― Ontem à noite ― disse Aidan. ― Mas a irmã está morta ― disse Murphy sem expressão. ― E ele não tem ninguém. ― Porque Amy matou a irmã dele. ― Tess fechou os olhos. ― E todas as outras pessoas. E ainda não percebi porquê, além de me odiar. ― À volta da mesa fez-se um silêncio desconfortável, de constrangimento. Tess olhou para aqueles rostos à vez. ― Digam-me, por favor. Preciso de saber. ― Foi por causa de Jim Swanson, Tess ― explicou Aidan. ― Ela estava apaixonada por ele de maneira obsessiva. ― Mas era a mim que ele queria. ― Tess franziu o sobrolho. ― Ele partiu há três meses para África. Foi isso que desencadeou tudo isto? ― Aidan pestanejou e Tess percebeu. ― Ele morreu, não morreu? ― Tenho muita pena, Tess. Jim Swanson nem sequer apareceu para trabalhar na clínica no Chade. Descobrimos as coisas dele numa mala


454 em casa da Amy. No meio estava uma faca com sangue do tipo do dele. Ela deve tê-lo morto no meio de um ataque de fúria, e depois atirou as culpas para ti. ― Odiou-me durante todos estes anos. ― A amargura era visível no rosto de Tess. ― Saí cá uma psiquiatra... Uma assassina à porta de casa e nunca dei por nada. ― A mãe dela era esquizofrénica, Tess ― disse Murphy. ― A sua mãe pode contar-lhe mais, mas tudo indica que Amy viveu anos a fio no limite, só que foi demasiado esperta para deixar alguém notar. Mesmo a Tess. ― Só há relativamente pouco tempo é que a saúde mental dela começou a ficar fora de controlo. ― Aidan apertou-lhe a mão. ― Só nessa altura é que ela deixou de conseguir esconder. ― A minha mãe sabia? ― Tess engoliu em seco. ― Sabia? ― Sabia que a mãe de Amy era doente, Tess, mas não fazia ideia que Amy também era. Tensa, Tess fez sinal de que compreendia. ― Não tem importância. Ela envenenou-me. Sabiam? Com a sopa dela. Do lado oposto da mesa, Jack fez um esgar de quem já contava. ― Foram os cogumelos? Era o que a Julia pensava. ― E, além disso, foi para a cama com o Phillip. ― Isso também já tínhamos percebido ― disse Murphy. Tess voltou a fazer um gesto de aquiescência ao mesmo tempo que passava de novo a cassete da semana anterior na sua mente. ― Além de que foi ela que matou o pai. ― Para sua surpresa, ninguém pareceu ficar chocado com a revelação. ― Também já sabiam? ― O Vito desconfiava. Ao que parece acusaram um rapaz das redondezas. ― O Leon Vanneti ― recordou Tess com um franzir de sobrolho. ― E o pobre estava inocente, como disse o Vito. Mas é só a minha palavra. Continua a não haver nenhuma prova. ― De repente arregalou os olhos com uma ideia. ― Ela disse que o Leon a violou. Na altura não havia testes de ADN, mas se ainda tiverem provas talvez seja possível ilibá-lo. ― Eu trato disso ainda esta manhã ― prometeu Spinnelli. ― Pelo menos uma das injustiças dela talvez possa ser corrigida. Com um suspiro, Tess acrescentou uma novidade à longa lista. ― Também foi ela que matou a Eleanor. 455 Isto causou alguma surpresa. ― A sério? ― disse Murphy. ― E como? ― Injectou-a com ar. Tudo porque Eleanor era boa para mim. Spinnelli


pigarreou. ― Também temos algumas boas notícias para si, Tess. Rick? ― Descobrimos os ficheiros originais de Bacon no apartamento dela ontem à noite ― contou Rick. ― Lá no meio estava um CD com o seu nome. Lynne Pope pensa que a etiqueta é a mesma que viu no dia em que Bacon tentou vender-lhe o CD. Se assim for, já temos todas as cópias. O alívio da médica foi imenso. ― Estava a tentar não me preocupar, mas estava preocupada. Spinnelli deu-lhe uma pancadinha tranquilizadora no ombro. ― Bom, já não tem razão para estar. ― Sabem porque é que a Amy estava tão interessada nos ficheiros de Bacon? ― Temos uma mulher-polícia a ver as imagens desde que estas chegaram do esconderijo de Bacon, e ela já apanhou algumas de Amy a tirar frascos de medicamentos do teu armário. ― Os frascos que deixou em casa de Cynthia Adams. Aidan encolheu os ombros. ― Parece uma preocupação menor, mas deve ter ficado preocupada com a possibilidade de Bacon fazer chantagem com ela, uma vez que também fez contigo. ― Isto em princípio encerra o assunto, a não ser que tenha mais perguntas. Tess voltou a olhar para o jornal. Os seus olhos pareciam evitar a fotografia em que ela própria estava pendurada do lado de fora do varandim. ― Só gostava de saber como é que a Joanna Carmichael descobriu tudo isto. Aidan estendeu a mão. ― Vamos fazer-lhe uma visita e depois levo-te a visitar o teu pai. Aidan fechou-lhe o cinto de segurança. Tess deixou-se ficar quieta, com as mãos no colo e o rosto pálido, com o olhar frágil e vulnerável de uma criança traumatizada. Só falou quando já estavam afastados da esquadra. ― Tu devias mais era estar em casa, na cama. 456 ― Não consegui dormir, Aidan. Ele sabia. Sentira o corpo dela rígido encostado ao dele durante essa noite e as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto até que ele se decidira a dar-lhe aquilo de que ambos precisavam. A ferocidade da resposta dela ainda o deixava arrepiado. Tinha de confessar que desejava voltar a sentir o mesmo. Nesse mesmo instante, de preferência. Em vez de o mostrar, manteve um tom de voz calmo. ― Podias ter tomado um dos comprimidos que o Jon te receitou.


― Acho que já tomei tranquilizantes que cheguem para o resto da minha vida. ― O sorriso de Tess era tenso. ― Mas obrigada. Isto vai passar, Aidan. Só que vai levar algum tempo. ― Eu tenho tempo, Tess. Os olhos sérios dele foram como um golpe no seu sistema em hiperactividade. ― Tenho outra boa notícia. Lembras-te daquele amigo do pai do rapazinho, o Danny Morris? ― Aquele que tu tentaste prender e te deixou com a mão magoada? ― Sim. Hoje passei por casa dele de caminho para o trabalho e adivinha quem estava a dormir no sofá. ― Prendeste o pai ― disse ela com satisfação indisfarçável nos olhos. ― Ainda tentou escapar-se, mas estava demasiado desorientado para conseguir. Vai ser acusado de assassinato. Ela fez um gesto de apreço. ― Ainda bem. ― Depois olhou para fora do carro e ele pensou compreender o que Tess sentira quando ele não fora franco para com ela. ― Tess, fala comigo. Diz-me o que te aborrece. ― Parou o carro num parque de estacionamento vazio e levantou-lhe o queixo com um dedo. Tess procurou dominar as lágrimas, mas não conseguiu. ― Fala comigo, por favor. ― Eu tinha sido capaz de a matar, Aidan. Ela era como minha irmã e eu podia tê-la matado. Os olhos de Aidan estavam semicerrados. ― Ela merecia morrer, Tess. Matou tanta gente! ― Ela estava doente ― disse Tess. ― E eu nunca a ajudei. Ele suspirou. No fim de contas, Aidan era um polícia e ela uma psiquiatra. 457 ― Sabes o que eu percebi ontem, de pé, no meio do apartamento dela? Que uma das coisas que mais me assustavam era que tu penetrasses na minha mente, me tirasses a privacidade. Depois percebi que não fazes isso com as pessoas de quem mais gostas. Isso deixou-te vulnerável com o Phillip e com a Amy, mas deixa-te em pé de igualdade comigo. Ela olhou para ele confusa. ― Isso significa que sou incompetente com as pessoas que amo... o que é bom. Ele abanou a cabeça e olhou para ela. ― Em minha opinião, sim. Com os lábios a desenharem um sorriso, Tess agradeceu-lhe: ― És muito querido por dizeres isso. ― Depois limpou os olhos. ― Estou com um aspecto horrível.


― Estás linda, Tess. Anteontem perguntei-te o que querias e tu respondeste que aquilo que sempre quiseste: uma pessoa que te amasse. Ela levantou o queixo e respondeu-lhe: ― E tu disseste que isso não te assustava. ― E era verdade. E continua a ser. Mas tu não me perguntaste o que eu queria. Ela mordeu o lábio e perguntou: ― E então? O que queres tu, Aidan? Ele hesitou, constrangido. ― Eu sempre quis uma mulher como a minha mãe. Tess sorriu. ― Uma mulher que cozinhasse para ti? ― Também. Mas sobretudo o que ela foi para o meu pai todos estes anos. Ele chegava a casa cansado, desgastado e revoltado com alguma coisa que lhe tinha acontecido durante o seu turno e ela estava ali. Estava simplesmente ali. E adora-o por ele ser quem é. ― Sim, eu percebo isso. Ela é uma boa pessoa, Aidan. ― E tu também, Tess. ― Aidan pegou na mão dela e levou-a aos lábios. ― Eu acho que estava com receio que tu fizesses mais do que estar simplesmente ali. Que analisasses e julgasses e talvez que me dissesses que estava louco, porque muitas vezes é assim que me sinto. ― Eu nunca faria uma coisa dessas. ― A boca dela esboçou um sorriso malicioso. ― Ao que parece sou incompetente para isso. ― Só nisso. Em tudo o resto, és uma especialista. Vamos embora, falar com a Joanna Carmichael. 458 Sábado, 18 de Março, 9.45 Joanna Carmichael estava parada no passeio à porta do edifício onde vivia com uma mala de viagem na mão. Estava pálida e tinha olheiras. Não pareceu ficar contente de os ver. ― Miss Carmichael? ― perguntou Tess. ― Tenho muita pena pelo que aconteceu ao seu amigo. Joanna olhou-a dos pés à cabeça, pensativa, mas indiferente. ― Suponho que podia dizer o mesmo. Mas não disse, percebeu Tess. ― Gostava de falar consigo. ― Estou a caminho do aeroporto ― disse Joanna com um olhar para o fundo da rua. ― Só tenho alguns minutos. Tess concordou. ― Deve bastar. Queria perguntar-lhe como descobriu que Amy trabalhava para algumas famílias do crime organizado. Um sorriso sem compaixão desenhou-se na boca de Joanna. ― Não foi assim tão difícil. Eu andava à procura de roupa suja e encontrei-a. A história do seu amigo Jon não tem muito que se lhe diga, mas a da sua amiga Amy... Essa sim. Eu sabia que ela tinha uma


série de amigos médicos que se encontravam de quinze em quinze dias no Blue Lemon e comecei a pensar porque seria que havia tantos médicos e só uma advogada. Foi então que descobri que ela andou na Faculdade de Medicina no Kentucky. ― Não conseguimos entrar na mesma faculdade ― disse Tess dirigindo-se a Aidan. ― Ela teve de desistir porque não aguentava as aulas de dissecção de cadáveres. É irónico, não é? ― Ela não desistiu, Dr.a Ciccotelli. Foi expulsa, ou antes, teria sido se não tivesse conseguido arranjar umas fotografias comprometedoras com um dos professores. ― O seu comportamento tinha alguma coisa de previsível ― disse Tess. ― Através da secretária do deão consegui arranjar os contactos de uma das antigas colegas dela. Ao que parece, esta não gostava de Amy Miller e não hesitou em orientar-me na boa direcção. Acabei por conseguir falar com Kelsey Chin, que actualmente exerce medicina em Lexington. Foi ela que me contou esta história. Disse-me que a Amy tentou convencê-la a ajudá-la com a história das fotografias e como ela não quis, tentou arranjar outra pessoa. 459 ― Mas afinal como é que conseguiu descobrir a ligação dela ao crime organizado? ― perguntou Aidan com impaciência. ― Comecei a interrogar-me sobre a ética de uma pessoa capaz de fazer uma coisa daquelas. Além disso, ela tinha perdido muitos casos, mas mesmo assim tinha dinheiro para roupa e cruzeiros. ― Na realidade fui eu que paguei o cruzeiro ― disse Tess. O sorriso de Joanna foi amargo. ― Isso quer dizer que tive sorte, porque foi isso que me levou a verificar a lista de clientes dela. Depois foi só unir os pontos. ― Um táxi parou à frente dela. ― Agora tenho de ir. Vou ao funeral do Keith. ― E depois? ― perguntou Tess. ― Depois volto ― disse com um sorriso inquietante. ― Fui promovida. Tive um grande aumento. E aprendi a ter cuidado com o que desejo. Entrou no táxi sem olhar para trás uma só vez. O carro dobrou a esquina e desapareceu. ― Não sei se tenho pena dela, Aidan. Voltaram os dois para o carro. ― Tem de viver com o que fez. Puxou o rabo do tigre e foi o namorado que pagou a conta. ― Sentado ao lado de Tess, Aidan apertou-lhe a mão com afecto. ― Não tiveste culpa de nada. Tess respirou fundo. ― Eu sei. Mas talvez isso seja o mais difícil de enfrentar. ― Sabes que mais? Conheço um polícia que anda em Psicologia que tem um sofá disponível por pouco dinheiro... ― Pouco? ― perguntou Tess com uma risada que Aidan gostou de


ouvir. ― Bom, está bem. Eu dou-te os meus conselhos no sistema de troca directa. ― E que tipo de troca tinhas em mente? Aidan pôs o carro em movimento. ― Se tens de perguntar, não és tão esperta como eu contava. ― Eu sempre disse que não sou vidente, detective. Ele fez uma careta divertida. ― Isso é verdade. Mais tarde explico-te em pormenor. Por agora vou levar-te ao teu pai. Ele está à tua espera. EPÍLOGO Filadélfia, sábado, 28 de Outubro, 19.25 ― Ele parece estar a divertir-se ― disse Tess, satisfeita. Michael Ciccotelli dançava com a mulher, que por uma vez não lhe pedia que não exagerasse. O dia do casamento de Tess era um dia para exageros. Todos o viviam como se fosse a última oportunidade da família Ciccotelli estar reunida. Era um momento ao mesmo tempo alegre e melancólico, mas Tess aprendera a aceitar a doença do pai, embora sem perder a esperança de que surgisse um dador. Aidan estava de pé atrás dela, com os braços à volta da sua cintura. Os seus sapatos estavam completamente cobertos pela cauda de dois metros do vestido de noiva de seda da sua avó. ― Sim, parece. E tu? Também estás? Ela estremeceu com os beijos que ele lhe dava no pescoço. ― Estou a ficar mais satisfeita. ― Garanto-te que amanhã vais estar ainda melhor. ― Tinham posto de lado a ideia de um cruzeiro por ser demasiado à Phillip e umas férias na Europa por ser demasiado à Shelley, e haviam acabado por optar por uma lua-de-mel na costa da Jérsia. Depois tencionavam voltar a Chicago para uma festa no Blue Lemon com todos os seus amigos, embora a maior parte estivesse ali com eles naquele momento. A família de Aidan também estava com eles, claro. Rachel e Kristen eram damas de honor. Abe era o padrinho do irmão e Murphy tinha concordado com o papel de mestre de cerimónias. Vito parecia muito à vontade em roupa de cerimónia e de momento estava a tentar escapar às atenções de uma jovem elegante. Como Tess sempre dissera, todas as mulheres metiam conversa com o irmão. 461 Ao lado de Vito estava o seu amigo Leon, que fora libertado alguns meses antes, depois de os testes de ADN terem provado que não violara Amy Miller. Com o testemunho de Tess e a doença mental de Amy, toda a base da condenação de Leon fora desmontada. Todos se sentiam compensados por ver a justiça triunfar.


Jack e Julia estavam presentes, bem como Jon e Robin e Patrick e Fio Ernst e Ethel Hughes, e até Lynne Pope, que planeava fazer uma reportagem sobre o casamento no Chicago On The Town. Era o fechar de um ciclo, dizia ela. E todos concordavam. O resto da sala estava cheia de Ciccotellis, de outros Ciccotellis. Nesse momento, o pai de Tess aproximou-se, com um sorriso de orgulho paterno no rosto. ― É a minha dança, Reagan. Tens de me dispensar a minha filha. Aidan concordou e viu que não era só ele que observava o par quando Michael Ciccotelli iniciou com a filha uma dança arrebatada. Faziam um belo par. Depois de o DJ parar o prato, Tess inclinou-se para dizer qualquer coisa ao ouvido do pai. Michael devolveu-a ao marido com um sorriso melancólico. ― Eu sei que vais tomar bem conta dela. Tess revirou os olhos. ― Ela sabe tomar conta dela mesma! Ignorando-a, Aidan disse: ― Com a própria vida. ― Isto pareceu agradar ao sogro. O pai de Tess aproximou-se da mulher e sentou-se antes que ela lhe desse instruções de que o fizesse. ― O que é que lhe disseste quando estavam a dançar? ― Que contamos com ele para a próxima festa de família ― respondeu Tess ao marido. ― Não é permitido desmarcar à última hora. ― E que festa é essa? ― perguntou Aidan intrigado. ― Um baptizado. ― Tess?! ― disse ele, emocionado. Ela riu-se. ― Não, não estou, mas tenciono ficar muito em breve. Conheço um polícia que tem um sofá que pode ter usos mais interessantes que a terapia... ― A sério? ― É verdade. E ouvi dizer que os preços dele não são altos. ― Acho até que são realmente baratos ― contrapôs Aidan. 462 ― Nesse caso, de que estamos à espera? Aidan beijou-a apaixonadamente, com o que conseguiu aplausos de todos os que estavam por perto. ― Já não estou à espera de nada. Tenho aqui tudo aquilo de que preciso. Data de conclusão da leitura:10 de Agosto de 2009.


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