Auto de Ariano

Page 1

e s p e c i a l

Recife, QUI - 24/07/2014

ARTE DP SOBRE FOTO DE HELDER TAVARES

de P E R N A M B UC O DIARIOd

Auto de Ariano Na peça mais popular do escritor Ariano Suassuna, Auto da Compadecida, vida e morte se estapeiam pelo papel principal. Chicó e João Grilo mangam sem limites das autoridades da terra e do céu para sobreviver, sob ameaça de cangaceiros, religiosos, políticos e toda sorte de gente do interior com poder de mandar. A morte vira até piada e fingimento para Chicó escapar de... morrer. E, num truque da fantasia, entre paraíso, inferno e purgatório, a vida segue, a criação vive. Ontem, no entanto, a morte driblou personagens e tirou de cena logo Ariano, o criador. O Viver pede licença ao autor para se despedir com uma homenagem. A cada página, um tipo colocado pelo escritor no Auto da Compadecida baliza os textos para ilustrar a vida presente na trajetória dele. É com a obra e a

a s s i s t a

própria história que Ariano vence, sim, a morte.

Fotografe o QR Code ao lado com o software leitor do seu celular

direçao de redação: Vera Ogando edição-executiva: Paulo Goethe edição de texto: Tiago Barbosa edição de fotografia: Heitor Cunha

Vídeos, fotos e outras notícias...

O Viver preparou um site especial sobre a vida e obra do escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, com depoimentos, galeria de fotos e vídeos.

cobertura e textos: AD Luna, Felipe Bueno, Fellipe Torres, Fernanda Guerra, Luiza Maia, Marina Simões, Silvia Bessa, Tércio Amaral, Vandeck Santiago

edição de arte: Christiano Mascaro design: Christiano Mascaro, Moacyr Campelo e Zianne Torres arte: BlackZebra e Greg | arte da capa: Jarbas

... no diariode.pe/adeusariano

Acesse a página para saber todos os detalhes do sepultamento do autor e quem prestigiou a despedida a um dos mestres da literatura brasileira.

especial multimídia edição de texto: Raquel Lima | edição multimídia/arte: Jaíne Cintra desenvolvimento website: Bosco | edição de imagem: Roberta Cardoso e Edison Isaías Júnior (TV Clube) | arquivo de vídeo: Multimídia/DP


2

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

especialariano

ATO I

Um adeus nada Severino No Auto da Compadecida, o personagem é um cangaceiro, adepto da violência. Bem diferente da figura de Ariano Suassuna, célebre pela doçura até nas críticas ferrenhas. Um mestre em ganhar o mundo pelo universo das palavras

A

riano Suassuna fez um pacto com Deus, no ano passado, após sofrer um infarto e um aneurisma cerebral, em agosto de 2013. Mais de três décadas antes, em 14 de junho de 1982, propôs um acordo a Francisco Brennand, convocado por ele para reunião um dia após a perda do amigo Aloísio Magalhães: “Não vim aqui para muita conversa. Vim pedir um juramento. Não tenhamos o mau gosto de Aloísio de morrer”. Ontem, às 17h15, o escritor, dramaturgo, professor, advogado e poeta foi traído pela Caetana. O golpe desferido foi uma parada cardíaca, em decorrência de um acidente vascular cerebral. Internado por volta das 20h da segundafeira, o escritor já chegou ao Real Hospital Português em coma. O corpo está sendo velado desde ontem, às 23h, no Palácio do Campo das Princesas. O enterro será hoje, às 16h, no cemitério Morada da Paz, em Paulista, para atender ao desejo de ser sepultado ao lado do filho, o médico Joaquim, que cometeu suicídio em 2010, aos 50 anos. Caetana, presente em vários textos de Ariano, é a figura fe-

minina pela qual é chamada a morte na Paraíba, onde nasceu, em 16 de junho de 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa. Taperoá - inspiração para os cenários sertanejos de Romance d’A pedra do Reino, O santo e a porca e outras das mais de 30 obras publicadas - foi escolhida como residência da família após o assassinato do pai, João Suassuna, na Revolução de 1930, quando Ariano tinha 3 anos. Veio para o Recife, berço da carreira artística, em 1942, para estudar. Escolheu a capital pernambucana, pela qual foi acolhido. O trauma familiar ressabiou na produção literária. Por muito tempo, Ariano teve um modo trágico de ver a vida, reef letida etida nas primeiras obras, como Uma mulher vestida de Sol. A ferida, entretanto, demorou séculos para sarar. “Quando eu completei 80 anos, me fiz uma pergunta sobre os assassinos do meu pai e concluí que, se eles estão no inferno, a essa altura, e se depender de uma decisão minha, eles saem hoje mesmo”, contou, em 2007. A companheira Zélia e a dramaturgia o impulsionaram a desenvolver uma visão menos dolorosa do mundo e o lado cômico, traço marcante das obras e aulas-espetáculo apresentadas em todo o país. Ele conheceu a esposa em 1951. Ariano tinha 17 anos. Zélia, 13. Os dois viriam a namorar três anos depois e casaram em 1957. Ele deixa a esposa e cinco filhos: Maria, Manuel (Dantas Suassuna, artista plástico), Isabel, Mariana e Ana. Do pai, herdou e amplificou a paixão pelas letras. Entre os livros da biblioteca de João Suassuna, decidiu ser escritor, aos 12 anos. Formou-se

JULIANA LEITÃO/DP/D.A PRESS

“O homem não nasceu para a morte. Nasceu para a vida e a imortalidade”, dizia Ariano

na Faculdade de Direito do Recife, em 1950, e até chegou a advogar. Apenas cinco anos após a formatura, largou a carreira, queimou os livros e lançou Auto da Compadecida, espetáculo propulsor da fama nacional, após a adaptação para o cinema com Selton Mello, Matheus Nachtergaele e direção de Guel Arraes.

Fanático - pelas letras, pela cultura popular, pelas raízes, pelo Sport -, defendeu que “A tarefa de viver é dura, mas fascinante”. Sempre de bomhumor, dedicou-se às letras até o fim. Mantinha decorados alguns versos do clássico Os lusíadas, do português Luís de Camões, e do livro inédito e inacabado O jumento sedutor,

escrito por mais de 30 anos. O título homenageia O asno de ouro, do escritor Lucius Apuleio, do século 2. Seria o primeiro da obra em sete volumes A ilumiara, com prosa, poesia, teatro e gravuras assinadas por ele. Ariano não queria morrer. Fez uma promessa a Francisco Brennand, torceu pela com-

paixão de Caetana, firmou pacto com Deus. “A literatura é uma maneira de protestar contra a morte, é uma forma precária, mas ainda assim poderosa de afirmar a imortalidade. O homem não nasceu pra morte, o homem nasceu pra vida e pra imortalidade”, sentenciou. E, entre letras e causos, tornou-se eterno.

linhadotempo 192 7

1950

Nasce em 16 de junho, no Palácio da Redenção, sede do governo da Paraíba, em Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa). Filho de João Urbano Pessoa de Vasconcelos Suassuna, então presidente do estado (governador), e Rita de Cássia Dantas Villar, era o oitavo de nove filhos.

Forma se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece Hermilo Borba Filho.

194 5

Três anos depois de se mudar para o Recife, publica o primeiro poema, Noturno. No colégio Oswaldo Cruz, conhece Francisco Brennand.

Casa se com Zélia. Auto da Compadecida, O casamento suspeitoso, com direção de Hermilo Borba Filho, e O santo e a porca ganham prêmios.

1952

Após duas temporadas em Taperoá para se curar de tuberculose, volta a Pernambuco e começa a trabalhar como advogado.

1953

1930

Após o assassinato do pai, a família se muda para Taperoá, no Sertão paraibano.

1957

ARQUIVO /DP

1947

Escreve a primeira peça de teatro, Uma mulher vestida de Sol. Conquista o prêmio do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). Começa a namorar Zélia de Andrade Lima.

1967 ARQUIVO/DP

Desiste da advocacia, queima os livros de direito e escreve O rico avarento.

1968

1954

Escreve Auto da Compadecida, sob encomenda do TEP. A peça estreia em setembro de 1955, para um Santa Isabel sem muito público.

Completa uma década como professor na Universidade Federal de Pernambuco. Funda o Conselho Federal de Cultura, do qual faz parte até 1973.

ARQUIVO /DP

Funda o Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco, que integra até 1972. No ano seguinte, é nomeado diretor do Departamento de Extensão Cultural da UFPE. Fica até 1974.


■■■

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial

Recife, QUI - 24/07/2014

3

especialariano

A COMOÇÃO

A DESPEDIDA

ROBERTO RAMOS/DP/D.A PRESS

A morte do mestre Ariano Suassuna causou perplexidade e comoveu o país, acostumado a vêlo, sempre, como um árduo defensor da cultura brasileira. Dos quatro cantos do país, vieram depoimentos, palavras de apoio e de saudade, uma prova do amor do povo a quem fez das palavras instrumento para valorizá-lo.

Selton Mello

Ator, viveu Chicó em O auto da Compadecida (filme) E o Brasil ficou mais pobre. E triste. Ariano, poeta entendedor do Brasil profundo. Defensor de nossa riqueza cultural e emocional. Sua obra descomunal fica para sempre. Tive a honraria graúda de dar vida a um de seus passarinhos (era como se referia a seus personagens queridos). Chicó fui eu, Chicó é Ariano, Chicó é tu. Chicó e João Grilo têm morada no coração dos brasileiros. E na minha mente e coração sempre estarão gravadas as palavras sublimes que proferi em ‘Auto da Compadecida’: ‘Cumpriu sua sentença. Encontrou se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados’. Celebre se o homem, celebre se o brasileiro, celebre se o artesão das palavras.E se um dia perguntarem se tudo que criou foi exatamente assim como ele idealizou, imaginarei Ariano dizendo com um sorriso de menino nos lábios ‘Não sei, só sei que foi assim.’”

Dilma Rousseff

presidente da República, em comunicado O Brasil perdeu hoje uma grande referência cultural. Escritor, dramaturgo e poeta, Ariano Suassuna foi capaz de traduzir a alma, a tradição e as contradições nordestinas em livros como Auto da Compadecida e Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta. A obra de Suassuna é essencial para a compreensão do Brasil. Guardo comigo ótimas recordações de nossos encontros e das suas histórias.Aos familiares, amigos e leitores, meus sentimentos neste momento de perda”.

O corpo de Ariano é velado no Palácio do Campo das Princesas (Praça da República, s/n, Recife). O sepultamento será no Cemitério Morada da Paz (em Paulista), às 16h.

João Lyra Neto

governador de Pernambuco, em comunicado É um dia muito triste para todos nós, pernambucanos, nordestinos e brasileiros, uma perda inestimável para nossa literatura e nossa cultura. O bom humor sempre foi sua marca, somada a profundos conhecimentos do imaginário popular e uma inteligência muito acima da média. A obra de Ariano permanecerá eterna na mente de todos nós que convivemos com ele, mas tenho certeza de que também será lembrada e venerada pelos mais jovens e pelas futuras gerações”.

Luis Fernando Veríssimo

escritor Ariano era um tesouro nacional. Mais do que escritor: compositor, um ícone da cultura brasileira. É uma tristeza. Além do trabalho original, seu trabalho fazendo traduções, conhecia muito de história do Nordeste. Não era só um escritor, era muito mais do que isso”.

Geraldo Holanda Zuenir Ventura escritor Cavalcanti

presidente da ABL, em comunicado A morte de Ariano Suassuna entristece a Academia Brasileira de Letras. No espaço de um mês, é o terceiro grande acadêmico que parte. Estendemos à família de Ariano nossos profundos sentimentos de pesar. E à multidão de seus amigos, leitores e admiradores no Brasil e no mundo, nossa solidariedade pela imensa perda. Ariano reunia em sua pessoa as extraordinárias qualidades de homem de letras e de intelectual no melhor sentido da palavra”.

Geraldo Julio

prefeito de Recife, em frente ao hospital A sua obra é uma obra que alegrou tantas pessoas. É muito difícil a gente juntar Ariano com um momento triste, é uma coisa que não encaixa. Foi um professor de felicidade, de alegria, de coisas boas”.

Ele erra um show de inteligência. Não era só dramaturgo, era um homem de teatro, um grande ator, um espetáculo em si. A figura se perde, mas as obras vão ficar. O Ariano tinha essa coisa generosa, de uma exuberância, de um talento”

Lya Luft

escritora Era um desbravador, do Brasil inteiro, com uma grandeza, efervescência. Ele mostrou não só alegria, mas o drama do Brasil. Como pessoa, era querido como poucos. Era um dos últimos patriarcas da nossa literatura. Era uma pessoa insubstituível na literatura”

Anísio Brasileiro

reitor da Universidade Federal de Pernambuco O talento profundo de Ariano Suassuna encantou gerações de estudantes da UFPE e

suas aulas ficarão para sempre na memória de todos nós. O Brasil fica menos feliz e menos popular com a partida de Ariano Suassuna”.

Karina Buhr

cantora, compositora e atriz pernambucana, ao UOL É uma figura muito importante, um personagem mítico. Ariano faz parte dos personagens fantásticos que ele próprio criou. Era contra os rótulos e tudo o que ele dizia era muito forte e rico, mesmo que não concordasse com suas opiniões”.

Serginho Groisman

apresentador, no Twitter Ariano Suassuna. Paraibano Recifense Brasileiro que nos orgulha para sempre. Fica em paz".

“ “

Daniel Rocha

ator, no Instagram Hoje se foi um mestre, um pensador e um dos maiores escritores do nosso país.”

LUTO O Governo Federal, do estado, a Prefeitura do Recife e a Academia Brasileira de Letras decretaram luto oficial por três dias.

1970

1990

Lança o Movimento Armorial.

É empossado como sexto ocupante da cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras (ABL).

1971

São publicados a peça A pena e a lei e o Romance d'a pedra do reino e o príncipe do sangue do vai e volta, escrita desde 1958.

1995

1975

É nomeado secretário de Educação e Cultura. Exerce o cargo até 1978. Publica Iniciação à estética. No Diario de Pernambuco, publica os folhetins de Ao sol da onça Caetana, primeiro livro de O rei degolado. A parceria com o jornal segue até 1977, com o fim d’As infância de Quaderna e o início de artigos dominicais (A confissão desesperada). Em 1981, escreve Despedida, uma carta “pedindo sossego”.

ARQUIVO/DP

No terceiro governo de Miguel Arraes, assume a Secretaria de Cultura do Estado. Fica até 1998. Cria as aulas espetáculo. Recebe o título de professor emérito da UFPE, por onde se aposenta em 1989. Ministra a última cadeira em 2008, a pedido da neta Ester, filha de Isabel.

2002

TERESA MAIA/DP/D.A PRESS

2002 Desfila, ao lado de Zélia, pela escola de samba carioca Império Serrano, da qual recebe tributo.

INES CAMPELO/DP

2007

Assume o cargo de Secretário de Cultura de Pernambuco, no governo de Eduardo Campos. Comemora bodas de ouro com Zélia e 80 anos de vida, com homenagens, publicações e a microssérie A pedra do reino, de Luiz Fernando Carvalho.

2013

Sofre infarto e é internado por seis dias no Hospital Português, em agosto. Retoma as aulas espetáculo em dezembro.

2014

É tema do Galo da Madrugada e homeneagado da Fliporto e da escola Unidos de Padre Miguel. Morre, em 23 de julho.


4

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

especialariano

Alma de Palhaço

ATO II

umclássico A PEDRA DO REINO Inspirado em episódio messiânico em São José do Belmonte, A pedra do Reino revive o mito do sebastianismo português ao remeter à história de uma seita fundada aos pés da Pedra Bonita, no Sertão. Na trama, Ariano se direciona pela intextextualidade que se vale de imagem e texto para ratificar o compromisso com a cultura popular. “A pedra é uma técnica teatral altamente sofisticada”, diz Carrero. “Ariano revê a história do Brasil, da literatura, da formação cultural brasileira”, defende. “As pessoas se ressentem porque sua linguagem não é tão acessível. Porque há um descompasso entre o artista, solitário, e o homem coletivo”, avalia Ronaldo Correia de Brito.

Na peça, Ariano se coloca como o Palhaço, o narrador das cenas. Na vida, ele criou com maestria reinos e histórias, com a picardia da boa literatura

A

formação literária de Ariano Suassuna foi na biblioteca deixada pelo pai, hábito pouco corriqueiro no Sertão. Aos 12 anos, já queria ser escritor e escreveu o primeiro conto, classificado mais tarde como “horroroso” por ele próprio. O tio materno Manoel Dantas Vilar e o primo Joaquim Duarte Dantas foram figuras importantes na iniciação no mundo das letras. Indicaram Eça de Queiroz, Euclides da Cunha, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo. Eles inspiraram os personagens Clemente e Samuel da peça As conchambranças de Quaderna. “Tive a sorte de pegar uma boa biblioteca. Meu pai gostava muito de literatura. Meus irmãos mais velhos, que estudavam no Recife, levavam livros para Taperoá (PB). Minha

diversão principal era a leitura. Você podia imaginar o que era um encantamento de um menino sertanejo quando pegava um livro de aventuras. Na medida em que aqueles livros abriam um universo para mim, os autores representaram seres fabulosos, então comecei a querer ser escritor”, contou, ainda em 1977. A vocação rendeu mais de 30 obras. No livro Ariano Suassuna: Um perfil biográfico, é descrita a atmosfera de leitura na longín-

ROMANCEIRO POPULAR E POESIA IBÉRICA PERMEIAM ROMANCES, PEÇAS E POEMAS qua década de 1930: “Durante a maior parte do ano, apenas a cama de Ariano era ocupada - à noite para o sono, de dia para as leituras. Ler deitado seria um hábito que o menino paraibano cultivaria por toda a vida. A cada página lida, um pedacinho dela era arrancado e levado à boca. Nascia um legítimo devorador de livros”. Após o ciclo regionalista dos anos 1930, Romance d’A Pedra do Reino (1971) é considerado marco da ficção nordestina. Es-

oqueescreveu

BLENDA SOUTO MAIOR/DP/D.A PRESS

Ariano foi quem primeiro descobriu a minha poesia, casualmente, até. Ele estava em nossa casa e, um dia, nós estávamos fazendo uma brincadeira e ele disse: ‘cada um escreva uma frase’ e aí eu escrevi uma frase: ‘certa vez eu encontrei um peixe’. Então, Ariano tirou essa frase e disse: ‘quem foi que escreveu isso?’. Eu disse: ‘fui eu’. Então ele disse: ‘você é poeta? Você é poeta!’. Aí eu disse: ‘não, não, não!.’ Então, minha filha disse: ‘ela faz poesia e esconde!’. E Ariano disse: ‘você não vai esconder isso de mim, não é, Deborah?’. Aí eu comecei a mostrar, mostrei essa poesia para ele. Ele, então, me estimulou muito. Inclusive, me ajudou a selecionar os poemas do meu primeiro livro. Na verdade, eu conheço Ariano desde a época da faculdade. Sempre foi um rapaz de muito valor, muito engraçado, a quem eu considero uma pessoa extraordinária, um amigo a quem prezo muito e admiro.” Deborah Brennand (poeta)

ROMANCES O romance d'A pedra do reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio, José Olympio, 1971, e Agir, 2005 História d'O rei degolado nas caatingas do sertão: Ao sol da Onça Caetana. Recife, Diario de Pernambuco, 1975 1976, e Rio, José Olympio, 1977 As infâncias de Quaderna. Recife, Diario de Pernambuco, 1976 77 (folhetins semanais) Fernando e Isaura [1956]. Recife, Bagaço, 1994 História de amor de Fernando e Isaura. Rio de Janeiro, José Olympio, 2006

ENSAIOS E TESES Iniciação à estética. Recife, UFPE/Editora Universitária, 1975 e 2002

tão ali presentes o romanceiro popular e poesia com influên inf luência medieval ibérica. A paixão pelos versos permeou toda a obra e guiava a produção, segundo ele. Ariano deixou um livro de poemas inédito, O pasto incendiado. Para o escritor Raimundo Carrero, o ponto de partida da obra é o sertão: “O regionalismo, que marcou de maneira fundamental a literatura nordestina, partia, em Pernambuco, da poesia de Gilberto Freyre e tomava como base a antropologia e a sociologia”. A literatura de Ariano se distancia do paradigma, explica, por se desapegar do documento histórico, do registro científico da geração anterior. “Enquanto um é documental, o outro é fantástico. Ariano se aproxima do barroco, do romanceiro popular em busca do universal, sem perder o regional. O mágico possibilita a alteração entre a literatura rural e urbana na compreensão do humano”, destaca Carrero. O escritor e roteirista Bráulio Tavares lista a “imaginação transbordante, o diálogo ora profético ora cômico, a dissecação da história do Brasil vista pelo avesso, pelo lado dos despossuídos, a recuperação da poesia popular”.

A Onça Castalha e a ilha Brasil: uma reflexão sobre a cultura brasileira. Recife, UFPE/Editora Universitária, 1976

Ariano gostava de escrever em casa, durante o dia. “Honoré de Balzac disse que só escrevia vestido de fraque. Eu me visto civilmente”, contava.

umquêdeautobiográfico

A ANÁLISE “É preciso rec reconhec onhecer que falar de Ariano Suassuna Suassuna é falar de um es escrit critor or for foraa do comum. Melhor seria, seria, tal vez, nem tratá lo por escri tor or.. Melhor seria seria tratá lo por artis ta, uma ve vez que e s praiou sua intuição por gê

neros literário nero literárioss e extr extralit alitee rárioss . C omeçando pela rário poesia, escr creeveu te teatr atro o, ro mancee, ens manc ensaio aio,, tr trab abalhou alhou com des desenho enho,, pintura e ta peçaria. E, não achando mais em que exer ercitar citar seu seu múltiplo talento, terminou

inventando um gênero só inv seu, batiz atizado ado por ele de ilu minogravur vuraa trab trabalho que integra poesia e pintura”. Carloss New Carlo Newton Jr (pesqui sador ador,, aut autor or de O pai, o exi exi lio e o reino: reino: A poesia armo rial de Ariano Suassuna Suassuna)

Ariano afirmava que todos os per sonagens têm algum parentesco com o autor. Em 2002, comentou a semelhança da própria perso nalidade com os protagonistas da obra mais famosa, Auto da com padecida. “João Grilo representa o que eu mais gostaria de ser, uma pessoa astuciosa. Mas eu sou mais um mentiroso fantasista, como Chicó. Pode dizer que sou uma

mistura, com predominância de Chicó”. Anos antes, ao Diario, de finiu a literatura como “recupera ção e redenção de toda a vida. Procura cicatrizar pela beleza as chagas de sofrimento, de dor, do mal que existe no mundo. É uma espécie de busca da redenção pe lo fechamento das feridas e pela procura do tempo perdido, para usar uma expressão proustiana”.


■■■

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial

Recife, QUI - 24/07/2014

5

ATO III

Uma das montagens de peça de Ariano: vitalidade artística em todo o Brasil

Mulher do Padeiro! bos estudavam. “A gente juntou as mesas da biblioteca, forrou com um pano e era o palco. As pessoas assistiam em pé. Foi lá que a gente estreou. Encenamos A sapateira prodigiosa, de García Lorca, fizemos a primeira enceprimeiro con- nação de Édipo rei no Brasil, tato de Ariano fizemos A casa de bonecas, de Suassuna com Ibsen. A gente encenava graas artes cênicas tuitamente, sobretudo para foi quando ele estudantes, mas até em prifoi levado ainda criança para sões e hospitais a gente foi. ver um teatro do mamulengo Foi um movimento muito boem um mercado popular de nito o Teatro do Estudante. Taperoá. “Adorei, achei de- Eu tenho muito orgulho de mais. O personagem principal ter participado”, disse ao Diaera um negro, Benedito, e ele rio, em 2007. me tocou muito, porque gaNo livro O movimento e a linhava uma nha - a presenbriga pra polí- O PRIMEIRO ça do Teatro do cia, entre ou- CONTATO COM AS Estudante e do tras coisas. Gráfico AmaComo nós tí- ARTES CÊNICAS dor no Recife OCORREU AINDA nhamos sido (UFPE, 2007), perseguidos NA INFÂNCIA o pesquisapela polícia dor Flávio em 1930, aquilo me chamou Weinstein Teixeira avalia que muita atenção, e o próprio Be- por meio de recriações dos nedito viria a se tornar perso- gêneros populares, Ariano exnagem de uma peça minha, pressa na poesia e no teatro A pena e a lei. A diferença é que referências eruditas e aprona minha versão ele ganhava priações populares, assim copela astúcia, e não pela porra- mo traços da oralidade. “Com da”, disse Ariano em 2002. o Auto da compadecida, teve suAo lado de Hermilo Borba cesso consagrador, que o eleFilho, fundou o Teatro do Es- vou à categoria de portador tudante de Pernambuco, sur- de um ‘projeto cultural’ imgido diante da falta de lugar buído da missão de lutar pepara as artes cênicas na Fa- la causa da ‘verdadeira’ cultuculdade de Direito, onde am- ra nacional. Isso aconteceu

ACERVO PROJETO MEMÓRIAS DA CENA PERNAMBUCANA/DIVULGAÇÃO

No auto, a personagem é apresentada como a esperta na arte de atuar para enganar o marido. Já Suassuna, sem qualquer encenação, construiu sobre os palcos obras-primas da dramaturgia, referências frequentes no teatro

PEÇAS TEATRAIS Uma mulher vestida de sol Recife, Imprensa Universitária 1964 Auto da compadecida Rio de Janeiro, Agir, 1957 O casamento suspeitoso Recife, Iguarassu, 1961 O santo e a porca Recife, Imprensa Universitária, 1964 A pena e a lei Rio de Janeiro, Agir, 1971 e 2005 Farsa da boa preguiça Rio de Janeiro, José Olympio, 1974 A história do amor de Romeu e Julieta São Paulo, Folha de S.Paulo, 19/01/1997

nãopublicadas Cantam as harpas de Sião (1948) Os homens de barro (1949) Auto de João da Cruz (1950) O arco desolado (1952) O desertor de princesas [Reescritura de Cantam as harpas de Sião] (1958) A caseira e a Catirina (1962) As conchambras de Quaderna (1987)

O

Primeira montagem do Auto da Compadecida, no Teatro de Santa Isabel, em 1956 durante o governo militar, o que lhe valeu a acusação de reacionário”, sublinha. A obra mais conhecida de Ariano surgiu meio que por acaso, quando foi convidado para dar curso de teatro no Ginásio Pernambucano e os alunos pediram para ele escrever uma peça para servir de trabalho de conclusão. Ao mesmo tempo, a editora o Gráfico Amador encomendou ao dramaturgo uma peça em

um ato. Ariano resolveu escrever baseado no livro O testamento do cachorro, de Leonardo Mota. Mas acabou fazendo peça em três atos, que não serviu para os alunos encenarem. O texto só viria a ser interpretado um ano depois de concluído, em 1956, pelo grupo Teatro Adolescente do Recife, formado por Clênio Wanderley, Luiz Mendonça e José Pimentel. No elenco, a atriz Socorro Rapôso, hoje

com 82 anos, que interpretou a Compadecida naquela primeira montagem, no Teatro de Santa Isabel. “Na época, a apresentação foi execrada pela crítica, inclusive por Valdemar de Oliveira”, diz Leidson Ferraz, ator e pesquisador. O elenco foi escolhido para representar o estado no primeiro Festival de Teatro Amador, no Rio, onde competiam 48 grupos e ganhou a medalha de ouro.

CECILIA DE SA PEREIRA/DP/D.A PRESS

“A opinião do autor não tem grande importância. A opinião do povo é toda em favor do Auto da compadecida. Mas de todas as peças que escrevi, prefiro A farsa da boa preguiça, porque eu fiz uma peça em verso, que marcou minha distância do regionalismo e de qualquer pretensão de um realismo mal entendido”, revelou Ariano Suassuna, em 2006.

A ANÁLISE Para o pesquisador e ator Lei Lei dson ds on Ferr Ferraz, az, a peça Aut uto o da Compadecida é uma obra obra pri ma, a mais bem acab acabada ada do dramatur dr amaturgo Ariano Suassu Suassu na. “Com influência do te teatr atro o medievval atrelado medie atrelado à cultura cultura popular, do doss cor cordéis déis,, do ro ro

manceiro popular, o te manceir text xto o de Ariano é cons construído truído com com uma habilidade incrível para o diá logo”. Par araa ele, ele, até mesmo mesmo os os personagens com participa ções menores são muito muito in ter ereessant antees. “Outr utro os te text xto os não tão conhecido conhecidoss também

são muito muito bons, bons, como O san san to e a porca. Ariano Suassu Suassu na é sempre referência, sem pre montado por grupos ama dorees e profis dor fissionais sionais.. As peças de dele vão durar para sem sem pre. É um marco na drama drama turgia”, conclui Leids Leidson. on.

TELMO XIMENES/DIVULGAÇÃO

especialariano


6

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

especialariano JULIO JACOBINA/DP/D.A PRESS

Apresentação do Grupo Grial: influência do movimento criado por Ariano Suassuna

“ ATO IV

Garra de Frade Na peça, o personagem defende os princípios da igreja de forma fervorosa. Na vida real, Ariano lutou pela cultura popular no Movimento Armorial

A

mais expressiva experiência entre a erudição e a tradição popular brasileira. A mistura é a base do Movimento Armorial, idealizado nos anos 1970. Nos corredores e nas salas da UFPE, onde era professor, Ariano solidificou as bases conceituais e estéticas do movimento artístico. O concerto Três séculos de música nordestina: Do barroco ao armorial e uma exposição

de gravura, pintura e escultura, na imponente Igreja de São Pedro dos Clérigos, em 18 de outubro de 1970, marcaram o lançamento oficial. Idealista como Quaderna, do Romance d’A pedra do reino, sonhou com uma ideologia múltipla, na qual o pensamento armorial transpassava música, dança, literatura, arquitetura, artes plásticas, teatro, cinema, artesanato. Ex-diretor do Quinteto Armorial, Zoca Madureira arrematou, ao Viver, em 2007: “Ele tem a cultura musical extensa e profunda. Ele não tem a cultura técnica do músico, mas o conhecimento de linguagem musical, da história, da filosofia e da estética”. Em 1996, Ariano conceituou a palavra “armorial” como a coleção de insígnias de um povo. Na ocasião, reme-

morou o surgimento e definiu o objetivo: “No Brasil, a heráldica, que é a arte que cuida das insígnias, é uma arte extremamente popular. Você vê isso nas camisas e bandeiras dos clubes de futebol, nas cores vermelhas e azuis dos pastoris. Como procuramos a criação de arte erudita brasileira baseada na arte popular, então batizei o movimento de armorial”. Para o pesquisador da UFPE Amílcar Bezerra, o modelo de valorização de cultura proposta por ele remete aos conceitos estéticos do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Ambos combatiam os preconceitos da sociedade para colocar a cultura popular dentro de um contexto próprio, com manutenção do significado original. Enquanto Bakhtin analisava a produção artísti-

ca da França do século 15, Ariano se preocupava em colocar no mesmo patamar de valor a arte popular e a erudita. Há um cuidado de evitar a “degeneração” da cultura contemporânea em meio ao “turbilhão da modernidade”, ligado à admiração de Ariano pela literatura medieval e renascentista. “O movimento deixou uma herança enorme, como uma continuação ampliada dos estudos de Mário de Andrade sobre a utilização de elementos da cultura popular para uma arte erudita”, diz Cecília Pires, pesquisadora do armorial na Universidade de Sorbonne. Samico, Antúlio Madureira, Francisco Brennand e Dantas Suassuna, artista plástico filho de Ariano, são alguns herdeiros das reef lexões exões armoriais.

Costumo dizer que minha história com Ariano tem duas partes. A primeira aconteceu na adolescência através da amizade com Mariana, uma de suas filhas. Nesse momento, conheci o pai (que logo adotei para mim), compreensivo, contador de casos e, apesar de ser o centro de todas as atenções, era um homem discreto e de uma palavra só. A segunda ocorreu anos depois quando já nem morava mais no Brasil. Deparei me com o artista. Não somente as obras de Ariano me inspiram na busca por uma linguagem de dança armorial, mas seus textos e entrevistas também. Pelo contexto em que o Romance d’A Pedra do Reino caiu em minhas mãos e sua perfeita alquimia entre popular e erudito é o que mais me influencia enquanto criadora” Maria Paula Costa Rêgo (coreógrafa)

Considero Ariano meu padrinho de arte. Foi um dos maiores incentivadores do meu trabalho. Ele foi um anjo na minha vida, me ajudou muito Quando ele disse que, na opinião dele, eu era o melhor xilogravurista, todo mundo acreditou. Levei sorte, e até hoje aproveito isso. Sempre admirei ele em todos os pontos. Outro igual a ele nunca vai ter” J. Borges (xilogravurista)

Antonio Carlos Nóbrega: discípulo na arte de fundir erudito ao popular

A ANÁLISE Na av avaliação do pesquisador do Moviment Movimento o Armorial e pro fessor da Univer Universidade sidade Fede Fede ral de Pernambuc Pernambuco o, Carlo Carloss Newt Ne wton on Júnior Júnior,, o autor autor de Au to da Comp Compadecida adecida já es esta tavva realiz alizado ado pro profis fissionalment sionalmentee, e apenas chamou jov jovens ar tistas tis tas de preocup preocupaçõe açõess se se melhantee s par melhant p araa trab trabalhar alhar com ele. ele. “O Moviment Movimento o Ar morial é uma cons consequência equência

NANDO CHIAPPETA CHIAPPETA /DP /D. A PRESS PRE SS

do regionalismo em relação ao inter intereesse de pensar a cul turaa brasileir tur brasileira, a, mas com com ou traa visão. tr visão. O romanc romancee da dé cada de 1930 1930 tinha a preo preo cupação cup ação de pensar pensar a re realida de social, social, de des descr creever uma re alidade sec s eca, a, enquant enquanto o Ariano vê o Sertão Sertão de outra outra maneira, maneir a, vai pelo fantás fantástic tico o. Então ntão,, Ariano só olhou par paraa outraa fac outr face” e”,, ponder ponderou. ou.

JULIO JACOBINA/DP/D.A PRESS

ARMORIAL NA...

literatura

O Movimento Armorial valoriza bastante o cordel, arte popular capaz de reunir poesia, xilogravura e o canto dos versos. Talvez o discípulo literário mais notável das ideias armoriais, o escritor Raimundo Carrero considera a movimentação criada por Suassuna como “o momento culminante da cultura brasileira”. O primeiro romance do salgueirense, A história de Bernarda Soledade (1975), foi diretamente influenciado pelos pensamentos que surgiam. “Trabalhava com Ariano na universidade e fui me impregnando com aquele universo. Mas eu também tinha intenções de fazer parte daquilo, até porque achava que a linhagem do romance brasileiro passava pelo cordel que, por sua vez, obedecia ao épico”, relembrou Carrero, ao Viver, em 2010.

música e dança

Um dos herdeiros é Antonio Carlos Nóbrega, que chegou a integrar o Quinteto Armorial. “Foi muito significativo para mim conhecê lo com aquela idade, em 1970. Desde então, a presença, tanto na minha vida de artista quanto na pessoal, só foi crescendo. Eu não teria receio em dizer que muito da minha visão do mundo tem a sua influência”. Outro seguidor é o músico Sérgio Campelo,que integrou o Quarteto Romançal, fez a trilha sonora da minissérie da Globo baseada em Auto da Compadecida e escreveu as composições para a adaptação teatral de Fernando e Isaura. “Quando o movimento surgiu, eu já observava, já consumia, através da influência dos meus pais. A influência passou, depois, para a minha história de músico”.


■■■

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial

Recife, QUI - 24/07/2014

7

especialariano

FRED JORDAO/DP

FOTOS: BRENO FORTES/CB/D.A PRESS

ATO V

Na pele de João Grilo

AS PÉROLAS DE ARIANO

“ “

O franzino e pobre da peça é astuto, mas vive enrolado em confusões. Com as declarações bombásticas e o intelecto em ebulição, Ariano envolveu-se em uma série de polêmicas. Muitas, a exemplo de João Grilo, engraçadas

aradoxal, Ariano Suassuna conseguiu ser pop sob o pilar de antiquado. Lotou plateias em todo o Brasil, do interior às capitais, arrancou gargalhadas de pessoas de todas as idades. Conquistou alcunha de Don Quixote brasileiro e enveredou

Eu gosto muito do Chico. Eu disse a ele: mude o nome para Chico Ciência, que eu subo no palco com você” Antigamente, para conquistar e subordinar um país, os Estados Unidos mandavam exércitos. Hoje, mandam Michael Jackson e Madonna. É incrível como as pessoas valorizam esses débeis mentais e deixam esquecidos artistas de talento que existem aqui”

P

Um verso da banda Calypso lyp diz: ‘Se você quiser me conquistar vai ter que suar’. E achando isso maravilhoso, faz variações: ‘vai ter que rebolar’, ‘vai ter que balançar’. Que falta de criatividade!”

por discussões inacabáveis sobre estética e cultura. Corajoso, despertou críticos e inimigos. Nunca teve medo dos unânimes. Jamais desistiu de entender o Brasil. Manteve-se fiel às próprias ideias. Apropriou-se da cultura popular nordestina e a transformou. Tornou-se parte indissociável dela. Nacionalista, defendeu arduamente as raízes históricas e culturais e pôs-se contra estrangeirismos, mas sempre entre risos - o que inclui a famosa passagem com Chico Science, o criador do manguebeat, criticado pelo nome artístico, em inglês. “Eu gosto muito do Chico. Eu disse a ele: mude o nome para Chico Ciência, que eu subo no palco com você”, contava. Em 2 de fevereiro de 1997, Ariano não conteve as lágrimas durante o enter-

ro do amigo e discípulo, morto aos 30 anos em um acidente de carro. Com as aulas-espetáculo, criadas na década de 1990, virou showman (odiaria o rótulo em inglês). E ganhou passe livre para defender conceitos culturais e atacar manifestações das quais discordava. Nem o brega paraense de Joelma e Chimbinha, da Calypso, escapou. Com voz rouca, mãos agitadas e uma risada inconfundível, conquistou a atenção de jovens e uma boa série de referências e brincadeiras sadias na internet. Ousado, não teve medo de descer do panteão de ícones intocáveis. Em janeiro, surpreendeu ao dar uma entrevista ao Viver sobre o BBB. E só falaria se o assunto fosse esse. A bailarina Bella Maia o chamou ao vivo de per-

nambucano, ele assistiu e saiu em defesa da “conterrânea”. Radical, defendeu aversão à cultura de massa e criticou os produtos culturais internacionais com veemência. Elvis Presley, Frank Sinatra, Michael Jackson, Madonna e Lady Gaga foram alguns dos taxados como imbecis por ele. Sobrou até para a guitarra. As maiores obras de arte produzidas no Brasil, dizia, eram o Santuário de Congonhas, pelo escultor Aleijadinho, nas artes plásticas, a obra de Villa-Lobos, na música, e Os sertões, de Euclides da Cunha, na literatura. Provocador. Divertido. Teimoso. Ariano Suassuna fez de si o principal personagem da trajetória literária. Das frases polêmicas, a extensão da obra literária. Geniais, absurdas e irresistíveis.

Eu sou escritor brasileiro. meu material de trabalho é a língua portuguesa. se eu uso o adjetivo ‘genial’ pra Chimbinha, o que eu vou dizer de Bethoven?”

Prefiro a banda Calypso a Frank Sinatra— tenho um abuso daquele sujeito. Enorme! A banda Calypso, comparada a ele, é maravilhosa. Agora, no meu juízo, quando faço a declaração, estou comparando Calypso a Villa-Lobos”

“ “ “

Eu tenho um fascínio muito grande por loucos. Eu não sei se é por identificação” Mostrei ao povo de Pernambuco que tenho senso de responsabilidade”

O povo holandês é muito burro. O Recife fica abaixo do nível do mar. Os portugueses,

inteligentemente, construíram Olinda no alto do morro. O imbecil do Maurício de Nassau construiu o Recife do lado do mangue.”

“ “ “

Eu não mereço a menor confiança em citações. Quando a frase não me serve, eu modifico”

Esta junção de Portugal com a Europa é um erro. É por isso que está desse jeito. Portugal devia estar com o Brasil e a África”

Para mim, Miguel de Cervantes não tinha defeito. E, se tinha, eu não digo. Ele escreveu Dom Quixote para ridicularizar

Dom Sebastião. Mas acontece que ele se apaixonou pelo personagem”

Acho que é o Prêmio Nobel que deve estar sentindo falta de um brasileiro. Parece-me um prêmio político. Vou te dar um exemplo. O (político e primeiro-ministro britânico Winston) Churchill, com todo seu pensamento belicista, começou a reivindicar, no fim da carreira, o Prêmio Nobel da Paz. Ficaram com vergonha e deram o de Literatura!”

Preferia morrer na estrada a viver esquecido dentro de casa”

“ “ “ “ “

Lady Gaga tem mais sucesso hoje, mas será que será lembrada daqui a cinco séculos? Os sertões será” Sempre fui de assistir novela. Não quer dizer que goste de todas, tá certo?” Os filmes norteamericanos que se vendem para a televisão são péssimos” Eu não tenho tempo para perder com isso (brega). Gosto muito de Dostoiévski, Tolstói… Até o nome eu tenho antipatia” Vou pro Galo e vou desfilar. Eu desfilei no

Rio de Janeiro e em São Paulo, porque não iria desfilar na nossa terra?”

A gente se porta a vida toda como nunca fosse morrer, o que é muito bom. Porque se a gente for pensar na morte como uma coisa fundamental, inevitável e próxima, a gente vai perder o gosto de viver”

“ “

Tenho horror a esse abastardamento do português pela língua inglesa”

Hoje, inclusive, não se diz mais ‘tempo’. Diz fulano tem um time. Isso é uma coisa ridícula. País sem personalidade, meu Deus”

Todo escritor é um mentiroso. Vocês já repararam? Eu mesmo não tenho imaginação para nada. Eu copio, sou um plagiador cômico”

“ “

Quero pedir desculpas a vocês por causa da minha voz que é feia, baixa, fraca e rouca mesmo” Sempre tive mais medo de gente do que de fantasma. A minha mãe nos contava essas crendices, mas eu nunca levei muito a sério não. Passei então a achar graça de um bicho de suas histórias, a mula sem cabeça, que solta fogo pelas ventas”


8

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

FRED JORDÃO/DP

ATO VI

HEITOR CUNHA/DP

especialariano

A fé do Sacristão

INÊS CAMPELO/DP

No Auto da Compadecida, o Sacristão é figura conservadora e desconfiada. Traços de quem quer crer. Na vida real, Ariano frequentou duas igrejas: política e Sport. Aliou-se a diferentes governos em nome da cultura. E nunca deixou o xodó rubro-negro

A

Ao lado do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, de Luiz Inácio Lula da Silva, futuro presidente da República e do ex-governador do estado, Eduardo Campos: escritor sempre marcou presença no campo político

A felicidade com o preto e vermelho Não é segredo há mais de sete décadas: Ariano Suassuna sempre foi torcedor do Sport – e não deixava a paixão de lado por nada. A única briga que teve com o amigo Capiba foi quando o músico foi à sua casa após o supercampeonato do Santa Cruz, “contar goga”, como dizia. A relação com o Leão da Praça da Bandeira nasceu em 1936, ainda na Paraíba, e foi se estreitando, até que o fanatismo do imortal estampou a própria camisa do clube, na temporada 2013. Ainda no Sertão paraibano, o então garoto devoto de Nossa Senhora notou que o Leão tinha ligação com a Santa: fora fundado no dia 13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima. Já no Recife, em 1938, foi levado por Capiba para ver o clube ao vivo pela primeira vez. O músico, já com 34 anos e tricolor, não convenceu Ariano – com 11 anos -, que viu o Sport ser campeão

EDVALDO RODRIGUES/DP

riano Suassu- tilha do Mestre de Apipuna conheceu cos, só se aproximando da a política em esquerda após o declínio do casa. E da for- regime militar, na década ma mais de 1970. cruel possível. Quando tiAriano combateu, nas pánha apenas 3 anos, o pai, ginas de jornais, os comuJoão Suassuna, ex-governa- nistas e defendeu o governo dor da Paraíba e deputado das Forças Armadas. Tamfederal, acabou assassina- bém se confrontou com a do pelas costas por um pis- pedagogia do professor e cotoleiro no Rio de Janeiro lega de Universidade Fededurante a chamada Revolu- ral de Pernambuco (UFPE) ção de 1930. O assunto nun- Paulo Freire (1921-1987). ca foi totalmente digerido Mas o destino os reaproxipelo escritor. Era tratado mou. Ariano foi um dos que com bastante cautela até receberam Freire no Aeropelos assessores. Atordoa- porto dos Guararapes por da pelo crime cometido em conta da Lei da Anistia, em razão de disputas políticas 1979. Fotógrafos que perdena Paraíba, a família de ram o cumprimento dos Ariano deixa a capital parai- dois pediram novo abraço bana e vai morar em Tape- para o registro. Suassuna roá, no interior. Ele só che- disse que não poderia porga ao Recife em 1942. que a “emoção acabou”. O escritor chegou a se deNa capital pernambucafinir como monarquista de na, Ariano morava com a esquerda e a declarar que o mulher, Zélia, na Rua do sistema político ideal no Chacon, uma espécie de reBrasil seria com um prínci- pública socialista no bairpe e descendente do impe- ro do Poço da Panela, na Zorador d. Pedro II reinando na Norte da cidade. O vizie o ex-governho de frennador Mi- ESCRITOR ARIANO te era o exguel Arraes CHEGOU A SE governador (1916-2005), de Pernamamigo, co- DEFINIR COMO buco Miguel MONARQUISTA mo primeiArraes de ro-ministro. DE ESQUERDA Alencar, faA cultura foi lecido em um dos principais palan- 2005. Uma casa depois, viques políticos. Apesar de via o poeta Maximiano nunca ter sido candidato, Campos, que morreu em sempre esteve ao lado de 1998, pai do candidato do governos contribuindo pa- PSB à Presidência da Repúra a formação cultural. O blica, Eduardo Campos. auge foi na década de 1960, E foi pelas mãos de Arraes quando foi membro funda- que Ariano aceitou fazer dor do Conselho Federal de parte da terceira gestão à Cultura (CFC), da gestão cul- frente do governo pernamtural do então regime mi- bucano. Entre 1994 e 1998, litar (1964-1985). comandou a pasta da CultuA escola de Ariano vem ra. Era mais símbolo que do regionalismo do escri- gestor. Antes, participou do tor e amigo pessoal Gilber- Movimento de Cultura Poto Freyre (1900-1987), que, pular (MCP), criado em 1960 na década de 1920, criou o na gestão de Arraes à frenconceito de “Nordeste” nas te da Prefeitura do Recife. páginas do Diario. Outros Em 2006, quando Eduardo escritores, como a cearense Campos se candidatou ao Raquel de Queiroz (1910- governo de Pernambuco, 2003), o alagoano Gracilia- Ariano virou a estrela da no Ramos (1892-1953) e o propaganda eleitoral. baiano Jorge Amado (1912No plano nacional, 2001) reforçavam a escola apoiou as candidaturas de que defendia mais desen- Lula e, na última eleição, volvimento para a região. de Dilma Rousseff. Agora, Apesar da inf influência luência inte- mesmo com recorrentes lectual de Freyre, mais pro- problemas de saúde e o papenso a governos de direi- vor de viajar de avião, hata, todos tinham estreita li- via mergulhado na campagação com partidos de es- nha de Eduardo e Marina querda. Ariano seguiu a car- Silva.

pernambucano. No ano passado, o uniforme lançado pelo clube na ocasião trazia duas frases do escritor relacionadas ao Rubro-negro: “Felicidade é torcer pelo Sport” e “O Sport, pra mim, é – e sempre foi – uma das coisas mais importantes na minha vida”. Letras e números da camisa traziam o estilo armorial criado por Ariano. Ele também teve participação ativa nas comemorações dos 109 anos do Leão, gravando vídeo comemorando a data – e estar vivo para vivê-la.

Uniforme lançado no clube no ano passado homenageou o escritor

diario.pe/adeusariano Confira, na íntegra, o relato de Ariano Suassuna sobre a briga que teve com Capiba

a elegância rubro-negra Ariano contou que, certa vez, foi convi dado para um evento e o traje apro priado era o “esporte fino”. Sem saber bem o que vestir, o escritor colocou um terno preto responsável pelo “fino” e uma camisa vermelha, cuja combi

nação resultaria no Sport. Brincadei ras à parte, a vestimenta virou parte da figura folclórica, que sempre ia à Ilha do Retiro com as cores do time. Como em 4 de julho de 2007: o imortal deu o pontapé inicial de um jogo quando com

pletava 80 anos, o estádio, 70 e o ad versário era o Corinthians, derrotado um ano depois na final da Copa do Bra sil. Sugestivo, como tudo na história de Ariano, morto aos 87 anos número da felicidade para rubro negros.


9

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

Ariano Suassuna participa de cavalgada em São José do Belmonte em 1995: ano marca retorno midiático

ATO VII

Que nem Chicó Contador de causos e mentiroso contumaz é o personagem do Auto da Compadecida. Mas ele tem semelhança com a Ariano: narra bem a história e seduz o interlocutor. E é atento aos mínimos detalhes para amarrar qualquer discurso VANDECK SANTIAGO vandecksantiago.pe@dabr.com.br

E

m um café da manhã em Brasília, Ariano Suassuna abriu um cartaz com as pinturas de seis touros e pediu que as pessoas que o acompanhavam dissessem qual era “o mais moderno”. A maioria apontou para o que um jornalista da Folha de S.Paulo - presente ao café - definiu como “um touro de crista e linhas folclorizadas”. Ariano riu, satisfeito: o animal apontado era uma pintura do século 14. As outras não-escolhidas eram de Picasso (século 20), Goya (século 18) e uma pintura rupestre de 10 mil anos. A matéria saiu na Folha de 13 de fevereiro de 1995, com o título Suassuna só quer saber de ‘arte popular’. Naquele início dos anos 1990, “arte popular” era algo tratado assim mesmo, entre aspas. Em 1985, primeiro ano da redemocratização, o ministro da Cultura Aluísio Pimenta apresentara um programa de governo apoiando manifestações da cultura regional. O programa foi pejorativamente tratado como “cultura da broa de milho” pela imprensa. Pimenta - um ex-reitor da Universidade Federal de Minas Gerais - não resistiu aos ataques e ficou apenas nove me-

ses no cargo. O Brasil dessa época - aí incluída a imprensa e o público leitor - não queria saber de broa de milho e vivia alerta para distribuir aspas ao que viesse adjetivado de “popular”. Aquela matéria do maior jornal do país com Ariano marca a fase em que se daria a redescoberta dele pelo Brasil. Não que o escritor estivesse completamente “esquecido” ou deixado de ser notícia, mas nem de longe tinha o protagonismo cultural e midiático que veio a ter a partir de 1995. Uma pequena cronologia nos ajuda a entender mais o caso: em 1981, Ariano anunciara em artigo no Diario de Pernambuco a despedida da vida literária - não iria mais escrever. Em 1989, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Em 1994 teve a obra Uma mulher vestida de sol adaptada para a televisão (Globo) e lançou por uma editora pernambucana, a Bagaço, um romance inédito que escrevera em 1956, A história do amor de Fernando e Isaura. Completado o quadro, chegamos a 1995 e ao teste dos touros. Ariano já era então secretário de Cultura do governo Miguel Arraes, pasta na qual ficou de 1995 a 1998 tenho a impressão em que co-

meçou aí a fase em que mais se falou de cultura popular no Brasil, e o protagonismo cultural e midiático de Ariano foi o grande responsável por isso. Ele tirou as aspas da cultura popular.

O mais doido

A cobertura do assunto tornou-se pauta frequente na imprensa - falo por experiência própria, porque na época eu trabalhava na sucursal da Folha de S. Paulo no Recife. O próprio Ariano tornou-se colunista do jornal. Antonio

EM 1981, EM ARTIGO NO DIARIO, ANUNCIOU QUE IRIA PARAR DE ESCREVER Callado escreveu artigo chamando-o de “o mais doido dos secretários de Cultura” doido de paixão pela cultura, explicava. Ariano lançou em junho de 1995 o programa como secretário, Projeto Cultural Pernambuco - Brasil. Em formato de revista, papel de qualidade, capa de Gilvan Samico e recheado de ilustrações - entre elas as dos touros e outras em que uma pintura rupestre da Pedra do Ingá (PB) tem incrível semelhança com gravura

de um dos fundadores da arte abstrata, Paul Klee (18791940). “Não existe distinção de qualidade entre arte popular e arte erudita, arte de vanguarda e arcaica”, disse ele, ao falar sobre o projeto, expondo o raciocínio que repetia incansavelmente em entrevistas, conversas, palestras e nas “aulas-espetáculos”- promoção que levou para o país inteiro, indo aos “grotões” (estes, com aspas) e grandes centros, defendendo a cultura brasileira autêntica e verberando contra o que julgava ser descaracterização e vulgarização dela. Nenhuma pessoa no Brasil estava mais capacitada do que ele para a missão - é só olhar a trajetória e a obra para constatar isso. E ninguém poderia cumprir a missão com mais brilhantismo do que ele - era como um daqueles artistas de circos mambembes que sozinho seguram um espetáculo inteiro.

O conversador

Era a mesma coisa nas conversas com os repórteres: ninguém saía de mãos abanando de uma entrevista com ele. Meia hora de conversa e você já tinha para a sua matéria uma argumentação inteligente, um pensamento dissonante do senso comum,

uma frase espirituosa, um fato pouco conhecido ou desconhecido, uma história bem engraçada. Por exemplo: ele como professor da UFPE, correndo desajeitado para não perder o ônibus no campus, e sua explicação: “Melhor perder a dignidade do que a condução”. Ou sua advertência ao escritor que lhe dava os originais para ler: “Vou ler, se eu não gostar não significa que não presta. Significa apenas que não gostei”. Muitos procuravam as suas opiniões que provocavam impacto (críticas a Michael Jackson, a Tom Jobim, a comparação de que José de Alencar era maior que James Joyce etc.), mas desconfio que estas opiniões, embora rigorosamente verdadeiras do que ele pensava, eram mais alegorias do que a representação da essência do seu pensamento. Ariano viveu em dois séculos, defendendo as mesmas coisas em um e outro. Nos 87 anos que separam o nascimento da morte, muita coisa mudou. Já não é preciso mais escrever cultura popular entre aspas, por exemplo. Mas aquele touro do século 14 continua semelhante aos pintados por Picasso, Goya e pelo homem das cavernas de 10 mil anos atrás.

Aula-espetáculo (à esq.) e nos preparativos para a ABL: voo nacional


10

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

especialariano QUEROTEATRO.COM.BR/REPRODUÇÃO

ATO VIII

O Manuel é negro Ariano provocou reações ao colocar o Cristo da peça representado por um negro. Era um aviso. O autor se notabilizou por tentar “desvendar” o país sob as raças formadoras do povo brasileiro. O gesto impressionou um seguidor e ativista SILVIA BESSA silviabessa.pe@dabr.com.br

A

riano Suassuna chegou numa sala do Diretório Acadêmico de Engenharia, onde se reunia o Movimento Negro do Recife, e se espalhou sobre um pedaço de chão, assim como outros militantes como fez em abril passado no aeroporto de Brasília à espera de um voo. Um dos rapazes, estranhando a presença do visitante ilustre, apressou-se em informar: “Professor, o senhor está no evento errado”. Já consagrado no início dos anos 1980, respondeu o escritor e dramaturgo: “Não. É aqui mesmo. Vim conhecer o Brasil que eu não conheço”. Josafá Mota, ativista há dois anos na época, ouviu a história contada por amigos. Dias depois, Ariano voltou a frequentar as reuniões. E Josafá estava lá. Ariano queria entender mais desse Brasil. Ele, que criou um Cristo negro no Auto da Compadecida, em 1955, chegou à conclusão que “olhava a história americana” e que a “figura de Manuel”, imagem popular de Cristo na peça, foi resultado de indignação após ter visto na revista Life fotografia de campanha norte-americana

em que se discutia a imposição de crianças negras em escolas brancas. A peça e a imagem do negro tinham ganhado vida. A consciência mais crítica com relação às questões raciais no Brasil foi burilada um pouco antes de Ariano ir aos encontros do Movimento Negro, conta-se. Vinte e cinco anos após inventar “Manuel”, Ariano foi indagado por jornalistas sobre o que ele achava a respeito da inclusão do fator raça no censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tinha aprendido com Euclides da Cunha que éramos pardos. Gilberto Freyre lhe ensinou que éramos morenos. Ariano repetiu para Josafá inúmeras vezes o acontecido: “Disse aos jornalistas que perguntassem aos negros o que achavam”, recordou Josafá, com os olhos emocionados, enquanto esperava anteontem na UTI notícias sobre a saúde do amigo. Ariano teria resolvido seguir a frase do padre Vieira: “Quem quiser acertar em história, em política ou sociologia deve consultar as entranhas dos sacrificados”. E foi assim que bateu à porta do Movimento Negro. “Do jeito que eu estou contando, ele nos contou. Teve a coragem de dizer que quando fez o Auto da Compadecida estava pensando no racismo americano”, pontua Josafá, sob um choro contido e impacto dos boletins médicos. “Encontramos um intelectual de peso que deu veracidade a uma causa que a gente abraçava. E foi sem paternalismo”, lembra. No Movimento Negro Unificado (MNU), Ariano ouviu de uma moça, Iraneide de Andrade, que o aparecimento do Cristo negro “foi uma das grandes emoções” da vida dela.

Professor, o senhor está no evento errado” (pergunta de um rapaz ao

ver Ariano em um evento do Movimento Negro)

Não. É aqui mesmo. Vim conhecer o Brasil que eu não conheço”

(resposta do escritor)

Cena de o Auto da Compadecida com um Cristo (à direita)bem diferente dos padrões: alusão à diversidade racial

Amigo de décadas A questão do negro e do ra cismo fez parte da vida e da obra de Ariano. Na década de 1980, conta se que o escritor foi a um encontro do movimen to na Zona da Mata e lá afir mou: “Eu vim me naturalizar negro”. Em 2007, foi receber um título de cidadão baiano e falou sobre o “racismo” de al guns escritores. A releitura so bre o racismo influenciou a sua obra. Ressalta se o caso da on ça descrita por Ariano: ela dei xou de ser castanha, sinônimo de mestiça. Passou a ser cha mada de malhada. Proseando, explicou que a troca foi uma espécie de mea culpa sobre a forma porque acreditava que representava as cores mistu radas e os vários tons de pele do brasileiro. Em entrevistas e em conversas informais, falava

sobre a situação de exclusão de índios e negros e de como a colonização portuguesa após o descobrimento do Brasil in fluenciou a cultura e a política até hoje. Quando assumiu cargo exe cutivo no Governo Arraes (1994 1998), para o qual foi no meado secretário de Cultura, tratou de dar seu jeito de mos trar igualidade entre raças: no meou um índio, uma mulher e um negro como seus assesso res diretos. O negro era Josa fá, hoje com 58 anos. Com Aria no, Josafá teve uma relação de amizade de mais de 30 anos. Trabalhou com ele por onze anos, como assessor, secretá rio pessoal e chefe de gabine te. Em todas as 170 aulas espe táculo, ministradas em 100 mu nicípios visitados por Ariano,

BLENDA SOUTO MAIOR/DP/D.A PRESS

FACEBOOK/REPRODUÇÃO

os dois estavam juntos. Do ca fé da manhã ao jantar. E eram nesses momentos que falavam da infância vivida em Taperoá (PB) uma coincidência do destino. Das funções exercidas por Josafá ao lado do escritor, de uma parece falar com mais pra zer. Era Josafá quem conduzia Ariano Suassuna ao palco. E era ele quem ajudava o amigo a sair de cena.


■■■

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial

Recife, QUI - 24/07/2014

11

especialariano Os Cangaceiros, na peça, impunham respeito através do medo. Já Ariano arregimentou legião de admiradores com talento e simpatia

ATO IX

SILVIA BESSA Silviabessa.pe@dabr.com.br

CARLOS ALBERTO/DIVULGAÇÃO AÇÃO

U

ma valsa embalou o último encontro do ídolo Ariano Suassuna com fãs anônimos. Romântica, celebrava sonhos, emoções e o amor. Os amigos da Associação dos Músicos de Bom Conselho (AMBC), município do Agreste de Pernambuco, esperaram por anos pelo abraço, pela foto que eternizasse a proximidade com o mestre. Conseguiram. Para homenageá-lo e serem afagados por um dos homens que os inspiraram na propagação da arte musical, no último sábado entoaram Fascinação, conhecida na voz de Elis Regina. Ariano estava hospedado no Hotel Tavares Correia, após uma aula-espetáculo no Festival de Inverno de Garanhuns (FIG), quando a pequena comitiva autorizada pela assessoria do escritor chegou ao encontro dele. “Esperamos tanto por esse momento. Não sabíamos que ele adorava essa música. Quando o maestro Francisco Aguiar começou a tocar o clarinete, Ariano abriu um sorriso e perguntou: ‘como vocês sabiam?’”, contou Carlos Alberto de Oliveira, produtor cultural e presidente da AMBC. O título de sócio benemérito da instituição, honraria àquele que tanto incentivava e fomentava o desenvolvimento da cultura regional, foi entregue na ocasião para Ariano. O hino do Carnaval de Zé Puluca, festividade promovida pela instituição há quase cinco décadas e da qual Ariano era tido como patrono, foi apresentado pelo maestro Francisco e

Fascinação de Cangaceiro pelo musicista Danilo Aquino, com seu saxofone. Uma ode à diversidade em quatro composições, como Ariano gostava. Simples, feito ele. Acreditavam os filiados da AMBC que aquela seria uma prévia da prometida aula de Ariano em Bom Conselho. “Estava tudo certo”, confirmou Carlos, em entrevista concedida uma hora antes do anúncio

da morte. A expectativa era grande. Ela já tinha sido remarcada outra vez. No ano passado, a culpa foi de um infarto. No blog carnavaldezepuluca.blogspot.com.br, as solicitações para que a aula acontecesse e o retorno do gabinete de Ariano viraram até postagens. O agravamento do estado de saúde de Ariano seguia o mesmo modelo e era relata-

do para os leitores, como o patrono merecia. “Desta vez, desde que soube do AVC, na terça bem cedo, fiquei deprimido. É triste. Você precisava ver como ele estava no sábado passado. Firme, sorridente, forte…”, narrou o presidente e admirador do escritor. “Meu amor por ele tem uma razão de ser: vem da paixão de Ariano pela cultura do nosso povo”.

Do interior à metrópole, do Nordeste ao Sudeste, tinha fãs. E distribuía simpatia com o jeitão de falar popular e acenos. Agradava muitos pela forma coloquial com que falava, ou pela autenticidade das declarações. Ficarão muitas delas. Em reuniões políticas de figurões, agia do mesmo modo. Ariano era Ariano. Por onde andava, se via gen-

Último tributo em vida ao mestre foi no sábado, pela Associação dos Músicos de Bom Conselho

te querendo fotografá-lo, pegando autógrafos ou apontando para ele. Era celebridade nacional da categoria dos gênios (só não o definisse e não o defina como “popstar” porque, avesso ao estrangeirismo, ria da expressão). Era figura da espécie dos que, quando morrem, um séquito de admiradores procura memória, frase, palavra para falar sobre ele.

CAUSOS ÍNTIMOS Entre o deboche e o senso de humor, Ariano disparou, em meio aos tributos prestados em comemoração ao aniversário: “se eu soubesse que fazer 80 anos dava tanto trabalho, teria ficado com 79”. Os reconhecimentos foram vários, de

Quem te escreve agora é o Cavalo do teu Grilo. Um dos cavalos do teu Grilo. Aquele que te sente todos os dias, nas ruas, nos bares, nas casas. Toda vez que alguém, homem, mulher, criança ou velho, me acena sorrindo e nos olhos contentes me salva da morte ao me ver Grilo. Esse que te escreve já foi cavalgado por loucos caubóis. (…) Mas de todos eles, meu favorito foi teu Grilo” Matheus Nachtergaele, ator, intérprete de João Grilo no filme O auto da Compadecida

Um homem lindo, de uma generosidade impressionante, que recebeu a meu pedido. Eu pedi muito, fui muito chato. Tietei tanto quanto pude. Mas eu fiz uma coisa que só um grande homem faz. Eu vejo um sentido que não fui nem eu que insisti, foi ele que fez questão de me receber. Então ele assumiu a minha culpa. Ninguém teve culpa. Foi uma coisa boa para os dois. Eu tive uma hora com Ariano Suassuna. Vou ter que escrever sobre isso” Valter Hugo Mãe, escritor

instituições, artistas e fãs. Recém-homenageado pelo Galo da Madrugada, receberia tributos da Unidos de Padre Miguel e da Fliporto. O Teatro Arraial, na Boa Vista, será batizado com o nome do escritor. Apesar do medo de avião, o cabra da

Tive a honra de ser aluno de Ariano no curso de filosofia na UFPE, na disciplina de estética. Era um professor muito aberto e estimulante, inclusive lia para a turma alguns textos de autores clássicos. Nosso convívio foi longo, nos tornamos amigos, e o aprendizado foi enorme. (…) Nossa amizade é tão grande que ele se tornou avalista (fiador) de duas casas minhas. E de vez em quando perguntava se eu iria pagar mesmo (risos)” Ângelo Monteiro, poeta

Eu conheci Ariano desde menino e o encontrei várias vezes ao longo de todo esse tempo. Admiro o duplamente, pelo grande artista que ele é e pela forma como levou sua vida sempre, coerente com sua forma de pensar, com suas convicções. Ele viveu sua obra e sua obra é a transfiguração de sua vida. Ariano é um erudito que pensou e recriou a arte popular brasileira. Um autor universal mas que sempre viveu simplesmente” Guel Arraes, cineasta

peste não era de arredar o pé. Viajava o país de Norte a Sul para ministrar as incomparáveis aulas-espetáculo e conquistar sempre mais admiradores. Distribuía sorrisos roucos e conquistadores de anônimos e famosos.

Extraordinário romance memorial, poema, folhetim, que Ariano Suassuna acaba de explodir. Ler esse livro em atmosfera de febre, febril ele mesmo, com a fantasmagoria de suas desaventuras, que trazem a Idade Média para o fundo Brasil dos novecentos, suas ‘rabelaisiadas’, seu dramatismo envolto em riso. Ah, escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita” Carlos Drummond, sobre A pedra do reino

Ele exerce influência na carreira de todos nós, na carreira de todo mundo da nossa geração. Ariano é um dos autores mais importantes, de uma criatividade, de um humor. Ele é um exemplo para nós todos. (…) A ideia para adaptação para a TV (de Auto da Compadecida) era coisa do Guel Arraes. Teve um momento em que ele achou que estava pronta. A gente sabia que estava fazendo boa coisa. Mas foi uma surpresa a coisa que virou mesmo” João Falcão, diretor


12

de P E R N A M B UC O DIARIOd

especial ■ ■ ■

Recife, QUI - 24/07/2014

especialariano TV GLOBO/DIVULGAÇÃO

ATO X

auto mambembe

Nada do Encourado No texto da peça, a criatura diabólica se passa por Manuel, o Jesus, para enganar e ser reverenciado. É o truque para se eternizar. Ariano, claro, dispensa manobra para se perpetuar. Obras e adaptações falam por ele. Pelo visto, para sempre.

acesse acervo

diariode.pe/adeusariano Veja relaçãom com peças adaptadas para a TV e livros do autor e sobre ele

A

A onça chegou. Essa fera alada, misto de cobra e ave de rapina. Ora bicho, ora “entidade bela, imortal e eternamente jovem, com seus olhos que enxergam ao mesmo tempo o presente, o passado e o futuro”. O nome dela é Caetana. Terrível, cruel e sedutora. Macia e traiçoeira como um gato. A julgar pela maneira quase carinhosa com que Ariano Suassuna tratava a morte no romance História d’o rei degolado nas caatingas

do sertão (1977), é possível imaginar um longo abraço quando os dois finalmente se encontraram. Encontrar a Caetana é destino inevitável para todos os humanos, mas possível de ser contornado pela obra do paraibano tão pernambucano. Não resta dúvida da longevidade de Suassuna: continuará vivo e pulsante por um tempo impossível de calcular. Vamos ler e reler os livros, assistir a encenações dos textos dramáticos, rever as muitas adaptações audiovisuais surgidas a partir da mente criativa de Ariano. A peça Auto de Compadecida foi adaptada para o formato minissérie, em 1999, pela Globo. Dirigidos por Guel Arraes, os quatros capítulos também se apropriaram de elementos de O santo e a porca e Torturas de um coração, também de Ariano. Um ano depois, a produção chegou aos cinemas, e teve bilheteria astronômica. O próprio escritor chegou a afirmar que Rogério Cardoso e Matheus Nachtergaele personificaram a essência dos personagens: “Com certeza, foi

o melhor padre e o melhor João Grilo que eu já vi”. Na década de 1980, a obra mais famosa de Ariano já havia sido encenada pelo grupo Os Trapalhões e, nos anos 1960, adaptada para o cinema sob a direção de George Jonas, em filme gravado no Agreste de Pernambuco. A Globo apostou novamente em recriação da obra de Ariano em 2007 (A pedra do reino), nos 80 anos do autor. “A ideia de adaptação sempre me pareceu redutora. Nos melhores momentos, seja trabalhando para a TV ou para o cinema, talvez tenha alcançado uma espécie de resposta aos textos, ou, no meu modo de sentir, um diálogo, uma reação criativa à literatura”, afirmava na ocasião o diretor Luiz Fernando Carvalho. O protagonista da série foi o pernambucano Irandhir Santos. “Li quase todo o romance — são quase 700 páginas — em voz alta, pois a sonoridade do texto e a sequência das palavras têm um ritmo próprio de uma galopada, que não nos deixam parar de ler”.

Releitura da saga de Chico e João Grilo pelo grupo Os Trapalhões foi visto por mais de 2 milhões

homens de barro Grupo decide esculpir um anjo após suposta aparição. Editora José Olympio, R$ 70

teatro mais famoso Em livro, texto dramático narra peripécias de Chicó e João Grilo. Nova Fronteira, R$ 39,90

pedra do reino Publicação de Luiz Fernando Carvalho mostra bastidores da minissérie. Editora Globo, R$ 76

santo e porca Romance sobre velho avarento que guarda fortuna em uma porca. José Olympio, R$ 29,90

perfil biográfico Olhar sobre o Ariano sonhador, dedicado, apaixonado pela vida. Zahar R$ 48,90

Compadecida A peça mais famosa de Ariano adaptada para a TV e cinema. Em DVD, R$ 39,90

Fernando e Isaura Casal vive paixão poibida. Amor intenso com trágico desfecho. José Olympio, R$ 28

discurso e memória Vários autores analisam a obra completa do escritor, em todos os gêneros. Paulistana, R$ 29

a boa preguiça Linguagem do povo remete à cultura medieval e à carnavaliza ção. José Olympio, R$ 28


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.