Livro tudo o que o professor precisa saber

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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G198q Garcia, Eduardo de Campos, 1974O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras / Eduardo de Campos Garcia. - Salto, SP: Schoba, 2012. 92p. : 21 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-8013-124-6 1. Língua de sinais - Educação - Brasil. 2. Língua brasileira de sinais - Educação - Brasil. 3. Surdos - Educação - Brasil. 4. Escolas. 5. Prática de ensino. I. Título. 12-0872. CDD: 419 13.02.12 17.02.12

CDU: 81’221.24 033200

Obs.: O nome do autor deve ser citado CAMPOS-GARCIA, Eduardo de. Conforme Lattes.


Sumário

Prefácio..............................................................................................................................7 Introdução.....................................................................................................................11

Todo pedagogo deve saber que a Libras é... ....................................................................................................15 Todo pedagogo deve saber que a lei de Libras diz... ...............................................................................41 Todo pedagogo deve saber que a educação multifacetada é... ��������������������������������������������� 57 Todo pedagogo deve saber que a língua portuguesa para os surdos é... ............................................................................................................71

Considerações Finais....................................................................................75 Referências............................................................................................................... 79



Prefácio

Toda construção acadêmica consciente possui um caráter paradoxal. As reflexões do autor convergidas em questionamentos que partem de suas reminiscências e fundamentam-se a partir da apropriação teórica constituem-se em campo, por excelência, onde se estabelecem as condições propícias para o desvendamento daquilo que, à primeira vista, passa por despercebido à nossa ordinariedade. É justamente esse desvendamento que Eduardo de Campos Garcia propõe aos pedagogos, neste livro que ora apresento ao leitor. O caráter paradoxal do livro O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras está forjado em questões históricas. Questões estas que versam sobre a apropriação do saber jurídico e do saber clínico por uma instituição de grande importância no desenvolvimento da autonomia humana: a escola. Aliás, ao fazer presente esta obra ao leitor, Eduardo de Campos Garcia tenciona, de maneira contundente, a matriz constituinte da diferenciação entre o surdo e o ouvinte. Matriz esta secularmente e paulatinamente instaurada em nossa sociedade que, ainda hoje, ignora o universo daqueles que não se “encaixam” na cultura dominante.

O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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A tensão envolvida em O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras é plástica. É polimorfa. Sua plasticidade transforma a pesquisa, o trabalho docente, a memória e a convivência do autor no universo surdo em um tecido orgânico que deve ser tocado. Sentido. Compreendido por aqueles que fazem a escola: alunos, professores, diretores, agentes, enfim, todas as pessoas que direta ou indiretamente buscam construir uma sociedade mais justa para todos. Cabe esclarecer que, utilizando-me das palavras do autor, as “imposições ouvintistas não são frutos apenas de um senso comum, mas frutos de documentos oficiais que as registraram como verdadeiras, dando a elas poderes legais de ação e sustentando-as na história”. É justamente em decorrência disso que o leitor deve se desvincular dos paradigmas que sustentam suas ações para avançar no entendimento de que todos os envolvidos com a educação estão, na verdade, enredados por uma relação íntima com o reconhecimento das potencialidades de cada ser humano, seja ele surdo, seja ele ouvinte. Como ainda são poucos os trabalhos que versam sobre o universo cultural dos surdos e a respectiva dicotomia com o universo cultural ouvinte, informo-lhe que você tem em mãos uma obra de grande valia. O esforço do autor em oferecer a síntese de estudos desenvolvidos há anos fornece, ao leitor, o entendimento das questões que envolvem a cultura surda e a cultura ouvinte de maneira privilegiada: rompendo com preconceitos e evocando os desafios da escola na educação de surdos e ouvintes em nosso país. Por isso mesmo, ao ler esta obra, o leitor deve senti-la a partir de suas próprias práticas pedagógicas. Deve re-

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fletir sobre as dimensões que aqui são apresentadas para, a partir desse ponto, perceber as possibilidades que emergem na escola de promover a igualdade, a cidadania e, principalmente, de desmistificar os mitos que hodiernamente envolvem a cultura surda e as ações escolares. Estou certo de que, enquanto estiver lendo O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras, o leitor estará em boa companhia. Boa leitura!

São Paulo, 13 de janeiro de 2012 Prof. Dr. Leandro Petarnella1

1 Doutor em Educação pela Universidade de Sorocaba e professor da Universidade Nove de Julho-SP. O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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Introdução

A ideia deste trabalho teve início por meio de minhas reminiscências de quando atuei como professor de Língua Portuguesa e Literatura, com alunos surdos e ouvintes matriculados em salas regulares em escolas públicas. Naquele tempo, observava o quanto as experiências visuais eram importantes para os surdos e quanta ansiedade e vontade de aprender eles manifestavam; porém, essa vontade se desfigurava em meio a uma cultura estritamente ouvintista, presente num ambiente escolar castrador. Embora os alunos surdos estudassem em salas regulares, estudavam em salas de recursos em período adverso, cuja formação dos docentes era especificamente pautada em uma concepção clínica. Salvas algumas exceções. O trabalho na sala de recursos, pautado em uma concepção clínica, não priorizava a língua brasileira de sinais, mas procurava mecanizar a oralização nos indivíduos surdos que ali estavam. Esse processo, muitas vezes, contribuiu para que se desenvolvesse na escola uma medicalização na surdez, restringindo a educação a uma análise clínica e deficiente. Deficiente, porque, O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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ao priorizar e reduzir o ensino à oralização, muito se perdeu do potencial linguístico e das habilidades dos surdos, prejudicando-os em seu processo de ensino-aprendizagem. O que me incomodava era o fato de perceber que havia em relação aos surdos uma limitação, não orgânica, mas imposta pela própria sociedade e pelas instituições de ensino. Essas limitações eram as de não poder expandir seus espaços para que germinasse a cultura surda nos ambientes sociais. Ainda trabalhando em escolas estaduais, após as aulas me encontrava com alguns ex-alunos e amigos surdos, em uma praça chamada “Do Carmo”, no centro de Mogi das Cruzes. Sentado nos bancos dessa praça, comecei a aprender os primeiros sinais em Libras e a compreender quanta angústia se tinha dentro daquele universo de silêncio; não era uma angústia pelo silêncio, mas sim por não serem ouvidos em sua singularidade linguística. Por esse motivo, comecei a ler a respeito do processo de ensino e aprendizagem dos indivíduos surdos, sobre a escola para surdos e sobre a cultura surda. Hoje, lecionando no ensino superior, deparo-me com alunos surdos nos diversos cursos de graduação, e acredito e me felicito em dizer: é um começo, para que possamos, num futuro, ter Narcisos-espelhos-homens-surdos não mais como indivíduos observados pelo outro, mas observadores e construtores de sua identidade. Se me perguntarem o porquê dessa inquietação em relação à causa surda, digo simplesmente que, ao longo de minha vida, quando ainda criança e na adolescência, recebi da escola

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diversos diagnósticos, tomei alguns medicamentos e fui reprovado por vários anos. Dos rótulos que recebi, alguns hoje me fazem rir: hiperativo, doidinho, lelé da cabeça; por isso me compadeço de todos aqueles que, de uma certa forma, ouviram essas mesmas palavras sendo proferidas da boca de um “educador”. Enfim, valeu a pena! Pois viver é ter marcas e deixá-las de alguma forma durante o espaço e o tempo de nossa existência essencialmente finita, como entendia Nietzsche, demasiada humana! Por acreditar que valeu a pena, agradeço a toda equipe da disciplina Fundamentos e Práticas de Libras da Universidade Nove de Julho, amigos que contribuem constantemente para meu crescimento acadêmico e pessoal.

Prof. Ms. Eduardo de Campos Garcia2

2 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie UPM-SP e professor do Departamento de Educação da Universidade Nove de Julho UNINOVE-SP. O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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Todo pedagogo deve saber que a Libras é...

A Libras é a língua de sinais brasileira e, como toda língua natural humana, terá sua singularidade em nível de desenvolvimento mental, de maturação3 e de regras sociais. Sendo a Libras reconhecida pelos linguistas como uma língua natural humana, podemos afirmar que esse reconhecimento se deu devido à Língua Brasileira de Sinais se desenvolver por meio dos mesmos processos que qualquer outra língua humana. Isso ocorre porque os processos de desenvolvimento mental, maturação e apreensão das regras sociais são inerentes à linguagem humana e a todas as línguas4 humanas, independen3 Maturação: crescimento acompanhado de mudanças na capacidade funcional; está altamente correlacionada com a idade; aptidão da criança (Cf. Gregor, 1991, p. 51). 4 “Os seres humanos podem utilizar uma língua de acordo com a modalidade de percepção e produção desta: modalidade oral-auditiva (português, francês,

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temente da modalidade na qual ela se desenvolve, seja ela visuoespacial ou oral-auditiva. O reconhecimento do estatuo de língua atribuído às línguas visuoespaciais é muito importante para o processo de educação dos seres humanos, cuja condição humana é a de ser surdo. Isso porque, durante séculos, as línguas visuoespaciais foram concebidas apenas como linguagem, sendo vistas como um subproduto da razão humana, algo primitivo sem capacidade de expressar o pensamento como as línguas orais-auditivas. Na atualidade, podemos afirmar que essa concepção é puro mito. Sobre o processo de desenvolvimento da linguagem e das línguas humanas, diferentes autores de diferentes correntes científicas observaram, discutiram e analisaram ao longo da história o processo de desdobramento em nível bio-orgânico e social desse fenômeno humano. No decorrer da história, os estudos elaborados por meio dos conceitos do estruturalismo de Saussure (1977), da fenomenologia de Merleau-Ponty (1990), do gerativismo de Chomsky (2008), da psicogênese de Piaget (1964) e Wallon (1975) e do sócio interacionismo de Vygotsky (2001), embora tenham sido concebidos por diferentes olhares, acabam complementando-se nos dias atuais, possibilitando maior clareza por meio de uma intertextualidade sobre o tema linguagem e línguas humanas. Metaforicamente, cada teórico com suas análises sobre linguagem e línguas humanas se comparam às peças de um inglês, japonês etc.) ou modalidade visuoespacial (língua de sinais portuguesa, língua de sinais francesa, língua de sinais inglesa, língua de sinais americana, língua de sinais brasileira etc.)” (Cf. Quadros, Karnopp, 2006, p. 24).

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quebra-cabeça, cujo todo permite a compreensão das partes e a ressignificação dos conceitos. Tais estudiosos, ao tratarem do assunto linguagem e línguas humanas, independentemente da corrente científica a qual pertencem, acabam por meio de uma intertextualidade, concordando e complementando-se entre si em inúmeros aspectos, o que faz desse tema algo universalizado em relação às concepções tecidas sobre ele durante a história da humanidade. Pensemos que essa universalização é justamente o que constrói o caráter dicotômico do fenômeno linguagem, inerente a todas as línguas humanas. A dicotomia como característica inerente à linguagem e as línguas humanas faz delas ao mesmo tempo um fenômeno por essência biológico e social, genético e sócio-construído. Por esse motivo, os autores se complementam. Nesse aspecto dicotômico, o biológico influencia o social ao mesmo tempo em que o social influencia o biológico, propiciando à linguagem e às línguas humanas uma constante evolução, o que lhes confere sua característica dinâmica. Isso significa que, ao analisarmos e intertextualizarmos os estudos elaborados pelos vários teóricos, juntamos o quebra-cabeça, possibilitando estudar o fenômeno da linguagem e das línguas humanas com maior clareza. Nessa ótica dualista em que olhares opostos se complementam e se intertextualizam, podemos conceber que o estruturalismo de Saussure (op. cit), embora se diferencie do gerativismo de Chomsky (op. cit), ambos se completam para um melhor entendimento sobre a linguagem e as línguas humanas na atualidade. O mesmo ocorre em relação a Piaget, Wallon, Vygotsky, e O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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Merleau-Ponty, em que os apontamentos bio-orgânicos se intertextualizam com os apontamentos sociointeracionistas, possibilitando uma leitura e compreensão sobre a característica dualista e dicotômica da linguagem e das línguas humanas. Muitas vezes, mesmo que por meio de diferentes óticas científicas, os teóricos acabam explanando o tema linguagem e línguas humanas com similaridades que, em síntese, são importantes para a compreensão desse fenômeno singularmente humano. Reafirmamos essa singularidade humana do potencial linguístico porque, embora os animais desenvolvam sistemas de comunicação, estes são fechados, sem desencadeamento de processos evolutivos com interferência na forma de pensar. Por isso, pensamos que, no campo da linguagem, as análises elaboradas pelos diferentes teóricos complementam-se, dando respostas às atuais observações sobre a linguagem humana e suas etapas de desdobramento. Entre as similaridades significativas apontadas pelos teóricos, poderemos observar no decorrer do trabalho que muitas das correntes citadas acima consideram a linguagem um fenômeno natural e a língua humana um fenômeno social. Sendo que dentro do aspecto dicotômico inerente a linguagem e as línguas humanas, devemos conceber que toda língua será uma linguagem, mas nem toda linguagem é uma língua. Isso porque as línguas são a maturação da linguagem, e a linguagem é a expressão do pensamento em sua essência. Desse modo, sendo a língua humana uma linguagem, será ela também expressão do pensamento humano por essência, porém de forma elaborada, complexa, epistêmica. 20

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Alguns teóricos e críticos concebem que o fenômeno da linguagem humana está intimamente ligado ao fenômeno do pensamento humano. Para esses autores, os dois fenômenos – pensamento e linguagem –, que possibilitam o desdobramento de uma língua natural nos indivíduos, são intrínsecos. Para La Taille (1992, p. 44), “a linguagem nutri e conduz o pensamento”. Partindo dessa lógica, acreditamos que o pensamento, ao se desenvolver em nível exoendógeno e endoexógeno, nutre e propicia naturalmente o desdobramento das línguas humanas, pois sendo estas a maturação da linguagem de um ser humano, atenderá as necessidades biossociais de cada indivíduo humano para representar suas ideias. A proposta de La Taille nos faz interpretar que a linguagem humana e o pensamento humano existem numa unissonância funcional. Para compreender a linguagem e o pensamento humano como algo indissociável, é preciso entender a posição da neurociência. Para o neurocientista Lent (2005, p. 625), “a primeira tarefa linguística do cérebro se confunde com os mecanismos do pensamento humano”, logo pensamento e linguagem tornamse, em nível de indivíduo, uníssono, indissociável, interindependente. Por meio dos apontamentos de La Taille e Lent, nós avaliamos que pensamento e linguagem humana são sinônimos em nível de potencial linguístico. Complementando essa sinonímia entre as proposições de La Taille e Lent, Quadros e Karnopp (2006, p. 15) consideram que a “linguagem é um componente da mente humana”, o que reforça a ideia de unissonância. Salles (2004, p. 67) sintetiza O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras

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nossos apontamentos postulando que a “linguagem está intrinsecamente ligada à natureza humana, no aspecto biológico e no aspecto psicossocial”. Para La Taille (1992, pag. 44), “a linguagem como produto da razão humana acaba no curso da história se tornando sua fabricante”, é uma dinâmica, uma relação entre meio e indivíduo, indivíduo e meio, por isso podemos conceber que a linguagem e as línguas humanas se maturam, desdobram-se num constante processo dicotômico; exoendógeno e endoexógeno. Para Piaget (2002, p. 85), “entre a linguagem e o pensamento existe um ciclo genético, de tal modo que um dos dois termos se apoia necessariamente sobre o outro, em formação sólida e em perpétua ação recíproca”. Nesse caso, é obvio que “o ser humano é dotado de um estado cognitivo inicial rico, complexo, uma faculdade cognitiva inata de linguagem, uma verdadeira propriedade da espécie, codificada como uma herança genética humana” (Salles et al, 2004, pp. 69-70). Isso significa que somos em potencial seres linguísticos, sendo linguagem e pensamento essência do indivíduo. A linguagem humana vista como herança genética intertextualiza-se com a concepção naturalista de Platão, que a concebe como um fenômeno que “nasce com o homem” (Quadros; Karnopp, 2006, p. 78), mas sendo uma manifestação “interindividual” (Piaget, 2002, p. 78). Observando a proposta de Platão e Piaget, podemos compreender que, embora a linguagem seja potencialmente uma herança genética e que ela sofra interferências sociais em seu processo de maturação, o indivíduo a matura segundo sua 22

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