segunda pessoa jun-jul-ago 2014

Page 1

ano 4 | número 3 | jun-jul-ago 2014 edição especial | chico pereira

distribuição gratuita | venda proibida


Chico Pereira | Parque Ibirapuera, São Paulo | Foto de Eládio Barbosa | 1967

FRANCISCO «CHICO» PEREIRA DA SILVA JÚNIOR Nasceu em Campina Grande-PB, 1944. Vive e trabalha em João Pessoa, Paraíba. Chico Pereira fez sua primeira exposição no hall do Teatro Municipal de Campina Grande, em 1965. Estudos básicos na Escola de Artes de Campina Grande (1956-58). Com o grupo Equipe 3 (Chico Pereira, Eládio Barbosa e Anacleto Elói) participou de mostras no Clube dos Estudantes Universitários de Campina Grande e no Museu de Arte Assis Chateaubriand (1967-68) e realizou os primeiros happenings na Paraíba. Desde os anos 60, esteve presente em importantes eventos culturais, dentre os quais: as I e II Bienal Nacional da Bahia (Salvador, 1966 e 1968); edições do Salão Nacional de Artes Plásticas; a XVI Bienal Internacional de São Paulo e a Bienal Internacional de Valparaíso (Chile), esta por indicação da Comissão Nacional de Artes Plásticas do Ministério da Educação e Cultura); além de diversas participações coletivas e individuais em mostras por vários estados brasileiros e no exterior (Alemanha, França, Portugal, Argentina, Uruguai etc.). Participação no II Festival Latino-Americano de Arte e Cultura (Brasília, 1989) e realização de pintura mural (250x1200cm) comemorativo aos 25 anos do movimento tropicalista durante o XX Festival Nacional de Arte de São Cristovão (Sergipe, 1992). Pesquisas, conferências e livros publicados nas áreas de museologia, história da arte, arte-educação, semiótica e artes gráficas. Ocupou diversas funções: diretor da Escola de Artes (Campina Grande, 1968); primeiro diretor do Museu de Arte Assis Chateaubriand (Campina Grande, 1969-1974); fundador e coordenador do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB (João Pessoa, 1979-1984); vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura da Paraíba; Pró-Reitor adjunto de Assuntos Comunitários e coordenador

de Extensão Cultural da UFPB; Subsecretário de Cultura do Estado da Paraíba; membro fundador da Sociedade Brasileira de Educação através da Arte (Rio de Janeiro, 1973); conselheiro técnico-científico do Conselho Internacional de Museologia, AMICOM/ICOM/UNESCO; representante do Norte-Nordeste na Associação Internacional de Artes Plásticas, AIAP/UNESCO e representante brasileiro no VII Congresso Internacional da Associação Internacional de Artes Plásticas (Varna, Bulgária, 1973). Participou, como membro do júri de seleção e premiação, de diversos salões de arte no país, e de colóquios nacionais da Associação de Museus de Arte do Brasil (década de 1970). Coordenador e presidente da Associação Cultural Le Hors-Là Paraíba, para a promoção do intercâmbio cultural entre artistas do Sul da França (Marselha) e do Nordeste do Brasil (João Pessoa e Campina Grande). Professor aposentado do Departamento de Artes Visuais da UFPB. É membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA, PróReitor de Cultura da Universidade Estadual da Paraíba-UEPB, membro do Conselho Estadual de Cultura da Paraíba e do Conselho diretor do Centro Cultural Ariano Suassuna (Tribunal de Contas da Paraíba). É autor dos livros Feira de Campina Grande (Editora Universitária da UFPB, 1978), Os Anos 60, em parceria com Raul Córdula (MEC/ Funarte, UFPB, 1979) e Paraíba - Memória Cultural (Editora Grafset, 2011). Atualmente, está coordenando uma equipe técnica na digitalização e organização do seu Arquivo Chico Pereira, com patrocínio da Prefeitura Municipal de João Pessoa/Funjope através do Fundo Municipal de Cultura-FMC. chicoperreira@uol.com.br


editorial Chico Pereira afirmou-se nas artes plásticas de Campina Grande durante a segunda metade da década de 60, quando a efervescência cultural da época encorajava intensamente a revelação de novos talentos em todos os campos das artes. Ele pertence a uma geração de artistas dos mais reconhecidos da Paraíba, entre estes Antônio Dias e Raul Córdula. De todos, somente Chico Pereira radicou-se de maneira constante em Campina Grande, dando prosseguimento ao seu trabalho de criação sem se desvincular de suas raízes.

Índice Chico Pereira: poptropicalista das terras tabajaras, por Dyógenes Chaves Gomes 4 Um poema de amor no traço de Chico Pereira, por Machado Bitencourt 10 Chico e a sátira do culto do sexo, por Machado Bitencourt 11 Paisagem de Litium, por Bráulio Tavares 12 Arte de Chico Pereira, por Medeiros Netto 13 Os mundos transfigurados de Chico Pereira, por Raul Córdula 14 A escritura do prazer, por Walter Galvão 15 Mutantes corações, por Bráulio Tavares 17 Arte dʼaqui e dʼalém, por Raul Córdula 18 Chico Pereira e(m) Campina, por Bráulio Tavares 19 A política da arte, por Raul Córdula 21 Dois artistas: mundos paralelos, por Amélia Couto 22 Conexões desconexas, por Amélia Couto 24 Chico Pereira: o mais exato artista contemporâneo, por Dyógenes Chaves Gomes 25 Conectando o bicho pega, por Marcondes Gadelha 27 Conexões desconexas, por Bráulio Tavares 28

Depois da mostra individual que realizou no Teatro Municipal, em 1965, e que assinalou sua “maioridade” artística, Chico Pereira partiu para uma atuação das mais diversificadas de que se tem notícia na recente história das artes visuais no Estado. Além de se envolver na administração de espaços culturais (fundador e primeiro diretor do Museu de Arte Assis Chateaubriand, 1969-74, e do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, 1979-84), foi PróReitor da PRAC/UFPB e de Cultura na UEPB (investido nesse cargo há dois anos) e Subsecretário de Cultura do Estado, é também autor de obras seminais para a compreensão da produção local em artes visuais, vejamos: introduziu os pioneiros happenings em Campina Grande, 1967, com o Equipe 3 ‒ formado por Chico, Eládio Barbosa e Anacleto Elói ‒, certamente o primeiro coletivo de artistas da Paraíba; realizou uns dos primeiros murais em grafitti do país (Tropicália, Campina Grande,1969); em 1979, apresentou a intervenção artística Um Dia de Sol, onde recolheu o lixo deixado na praia ao final de um domingo de sol e o expôs numa praça, a Feirinha de Tambáu, inaugurando termos inéditos como ecologia/ arte e meio ambiente. Mais recentemente, publicou o livro Paraíba ‒ Memória Cultural, fruto de intensa pesquisa em seu acervo sobre as ações e a produção cultural na Paraíba. Prestes a comemorar seus 70 anos de vida e 50 de atuação artística, a Segunda Pessoa, selecionada no Edital Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Funarte/ Ministério da Cultura, rende singela homenagem a Chico Pereira e apresenta alguns textos (e imagens) selecionados sobre esse multiartista da cultura paraibana. São artigos de vários autores, de épocas e temas variados, que refletem mesmo sua fama de homem de mil instrumentos e um pouco de sua imensa e rica produção. Vale a pena conhecer... Última: a fotografia da capa é de Roberto Coura, sobre a Feira de Campina Grande, tema que rendeu a Chico Pereira prêmio nacional de monografia sobre museus do Ministério da Educação e Cultura, em 1978. Boa leitura.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


Chico Pereira: poptropicalista das terras tabajaras Dyógenes Chaves Gomes João Pessoa, outubro de 2013

Em reportagem publicada no jornal Diário da Borborema (Campina Grande, 29/06/1967), seu depoimento ao jornalista (e cineasta) Machado Bitencourt aponta para algumas das preocupações da arte local na época. A dúvida que permanece é se, hoje, sua análise continua atual ou apenas foi puro arroubo idealista de todo jovem artista. Vejamos:

Numa recente visita à Campina Grande ‒ segunda maior cidade da Paraíba e outrora maior entreposto de peles, algodão e gêneros alimentícios que, por sua privilegiada localização, interligava todas as regiões do Estado no sentido Leste-Oeste, Sul-Norte ‒, fomos ao encontro do painel Tropicália, de Chico Pereira, pintado sobre parede com tinta acrílica, esmalte e spray, medindo 220x600cm e executado em 1969, que adorna o antigo restaurante universitário da Universidade Regional do Nordeste (URNe), hoje UEPB. A obra, restaurada em finais de 2011 pelo próprio autor, permanece atual e é uma das mais importantes referências da arte mural paraibana. Para sua execução o artista se utilizou de elementos visuais, materiais e técnicos do movimento Pop Art, o que sugere também incluir a obra na seara do Grafite (com o uso de spray e estêncil, já naquela época) e do Muralismo na região.

“José Anacleto tem ideias próprias sobre as causas originárias do atraso cultural de Campina Grande no que se refere às artes plásticas. Segundo os termos de sua análise, os motivos fundamentais desse atraso são as ausências das influências históricas. Campina Grande foi uma cidade que durante muitos anos interpretou a arte como o agradável ou o bonitinho, e que aplaudiu espetáculos medíocres, contribuindo dessa maneira para manter um estágio de gritante alienação. ʻAgora, quando Campina Grande já toma consciência cultural, implantando e mantendo uma universidade, o problema tende a desaparecer (não a curto prazo!) inicialmente com o preenchimento das lacunas existentes.ʼ, afirma o artista.”

É importante situar o uso pioneiro destes recursos do Grafite por Chico Pereira, já que, somente a partir de 1978 é que se tem notícia semelhante protagonizada pelo artista etíope-brasileiro, Alex Vallauri (1949-1987). Após viver em Nova York, onde cursa artes gráficas no Pratt Institute, entre 1982 e 1983, Vallauri apresenta a famosa série A Rainha do Frango Assado na Bienal Internacional de São Paulo, em 1985. Mesmo tratando-se de obra localizada em ambiente interno ‒ o restaurante da URNe ‒, o que contribuiu para mantê-la quase intacta, a obra de Chico Pereira recebe até hoje imenso fluxo de estudantes, professores e funcionários ao longo destes mais de 40 anos.

Alguns meses depois, em 20 de outubro de 1967, era inaugurado em Campina Grande o Museu de Arte Assis Chateaubriand, numa grande festa pública com a presença de personalidades do mundo político, empresarial e cultural de todas as regiões do país. “Entre os convidados, estavam os críticos Mário Pedrosa e Mário Barata e os artistas Rubens Gerchman, Alexandre Filho, Anna Maria Maolino, o grego Gaitis, Emeric Mercier e Antônio Dias, que retornava à sua terra natal depois de quase 10 anos. O Museu, por força do acordo estabelecido entre a Campanha dos Museus Regionais e a Prefeitura de Campina Grande, seria gerido pela Fundação Universidade Regional do Nordeste (FURNe) com a condição de preservá-lo e dinamizá-lo como instituição universitária, e também ficou acertado anexar ao mesmo uma galeria de arte para exposições periódicas, voltada principalmente para a arte local.”, afirma o artista e primeiro diretor do Museu, Chico Pereira.

Com a intenção de analisar melhor a obra e dar-lhe visibilidade e reconhecimento, optamos por fazer uma viagem no tempo revendo os principais momentos vividos pelo artista afora outros acontecimentos sócio-culturais na cidade que justificam o pioneirismo deste mural. Estamos no ano de 1967. Anacleto Elói, estudante de Belas Artes em Recife, mas também atuante em Campina Grande, sua terra natal e onde faz parte do primeiro coletivo de artistas da cidade ‒ o Equipe 3 ‒, ao lado de Chico Pereira e Eládio Barbosa, é um dos poucos artistas paraibanos a participar da I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em Salvador.

No mesmo local, simultaneamente à recepção pública do acervo, foi inaugurada uma mostra coletiva com os artistas mais representativos da arte produzida em Campina: Raul Córdula, Eládio Barbosa, Anacleto Elói e Chico Pereira.

4


qualquer referência ou tradição nas artes plásticas ‒ como abordara Anacleto Elói em seu desabafo publicado no Diário da Borborema ‒ exceto a pintura do forro da Catedral de Nossa Senhora da Conceição, executada por Miguel Guilherme, pintor nascido em Sumé, no Cariri paraibano. Essa obra, que viria a ser demolida em 1963 por razões inexplicáveis, era para Chico Pereira motivo de deleite quando frequentava com seu pai as missas de domingo. A obra de Miguel Guilherme era um belo conjunto de paineis distribuídos na nave da igreja e nas suas laterais e, curiosamente, em meio às cenas bíblicas estavam várias figuras da sociedade local retratadas pelo autor num estilo quase ingênuo.

A inauguração do Museu Assis Chateaubriand, além de ser uma grande conquista para a cidade, oferecia a possibilidade de se enxergar além dos horizontes locais. Foi, de fato, o primeiro contato com a arte brasileira dos últimos cem anos e o despertar ‒ pelo acervo estrangeiro ‒ das questões estéticas contemporâneas, permitindo a partir daí, uma reflexão mais aprofundada do processo criativo e apontava sobre o que fazer para uma atualização adaptada às condições culturais da região. Como depõe Chico Pereira: “Esse acontecimento foi marcante na vinculação dos artistas de Campina Grande, notadamente do Equipe 3, a outros centros artísticos, mais efetivamente à Capital João Pessoa. Passamos então a frequentar nos finais de semana os ambientes artísticos e intelectuais da Capital, ampliando as informações e abrindo o intercâmbio. O Museu, de certa forma contribuía para animar o panorama que, ajudado pela efervescência de criação noutras áreas, formava ao seu lado o conjunto de atividades que marcaram profundamente a cultura paraibana daí por diante. Em João Pessoa, sob a liderança de Raul Córdula, que mais uma vez deixara Campina Grande, Breno Mattos, Guy Joseph, Mardem Rolim, Cleófas Leonan, Unhandeijara Lisboa, Pontes da Silva, Régis Cavalcanti, José Lucena, Flávio Tavares (jovem artista que se revelava) e Miguel dos Santos, formavam o grupo dos principais artistas jovens. Juntavam-se aos mesmos os poetas e compositores do Grupo Sanhauá: Marcus Vinícius, Anco Márcio, Severino Marcos, Sérgio de Castro Pinto, Carlos Aranha e Marcos dos Anjos. As visitas a exposições e ateliês terminavam sempre em noitadas poéticas e tinham como ponto de partida obrigatório a Churrascaria Bambu, na Lagoa, onde geralmente, à mesa do escritor Virgínius da Gama e Melo, se reunia esta geração de jovens a outros intelectuais da terra para discussões intermináveis de estética e política. Às vezes, o Equipe 3, por intermédio de Anacleto, que estudava em Recife, se deslocava para encontros desta natureza em Pernambuco, quase sempre com Jomard Muniz de Britto e outros intelectuais e artistas que atuavam entre Recife-Olinda.”

Ao longo dos primeiros anos da década de 60, é importante pontuar alguns poucos eventos de artes plásticas em Campina. Apesar de poucos, eles foram marcantes para a juventude que almejava alguma atuação na área artística, incluindo aí os jovens artistas do Equipe 3. Vejamos: logo em 1960, novembro, acontece a exposição com artistas de João Pessoa ‒ Archidy Picado, Raul Córdula, Pontes da Silva, Leonardo Leal e Ivan Freitas ‒ mais o campinense, Flávio Bezerra de Carvalho, na Fundação para o Desenvolvimento da Arte, Ciência e da Técnica (Fundact). A mostra tinha por objetivo difundir uma arte mais “contemporânea” e aproximar os artistas das duas maiores cidades do Estado, notadamente trazer obras mais instigantes visto que vingava em Campina Grande uma produção ainda acadêmica. E, no ano seguinte, ocorre uma exposição promovida pelo Diretório Acadêmico, da Escola de Economia, durante a I Semana de Cultura Universitária de Campina Grande, com a participação de artistas locais, de todas as linguagens e técnicas. Eládio, Flávio Bezerra e Chico Pereira receberam premiação neste evento. Vale aqui lembrar da criação da Associação Campinense Pró-Arte, entidade que durante quase quatro anos movimentou o panorama cultural da cidade, mais efetivamente na área da música erudita. A Pró-Arte promoveu diversos concertos e recitais e também o ensino da música. Foi de fato a primeira entidade voltada especificamente para a cultura com todos os aspectos legais para funcionar, inclusive com registro no Mec. A PróArte ampliou suas atividades com cursos de dança, por exemplo, e mesmo assim, com todo o esforço dos seus dirigentes, não conseguiu sobreviver pelo mesmo motivo

Se voltarmos ao ano de 1957, vamos encontrar o ainda menino Chico Pereira como aluno de pintura e desenho da Escola de Arte de Campina Grande, dos professores Miranda, Pedro Corrêa e Nourival Gonzaga. Era algo raro ‒ o ensino de arte ‒ numa cidade que à época não tinha

5


da Escola de Arte: falta de apoio oficial. O ano de 1964 trouxe diversos acontecimentos que modificaram profundamente a vida da cidade. As mudanças políticas ocorridas a partir daí ‒ o “31 de Março” ‒ abalaram as relações de sua economia que praticamente se sustentava no comércio. A restrição de crédito, a severa vigilância do sistema de desconto bancário e a ausência de moeda corrente, somando-se à cassação dos direitos políticos de alguns “comunistas” provocou grande rebuliço, exatamente no ano do primeiro centenário da cidade.

na sede da Fundact. Neste período três acontecimentos irão marcar definitivamente a vida cultural da cidade: o Cinema de Arte do Cine Capitólio, criação dos jovens Luiz Carlos Virgolino e Hamilton Freire, que, com a exibição de clássicos “da hora” ‒ como as obras de Glauber, Pasolini, Bergman, John Ford, Fellini, Lattuada entre outros ‒ num programa de interesse crítico que uniu intelectuais e aficionados pela sétima arte, nos moldes de um cineclube, chegando a provocar deliciosos debates sobre estética e vanguarda. Outro evento foi o I Salão de Fotografia, no hall do recém inaugurado Teatro Municipal, sob a coordenação de Machado Bitencourt e José Clementino. E esta foi a primeira vez na cidade que se mostrou fotografia que não fosse apenas “retrato e pôr do sol”. Também foi criado o Teatro Universitário Campinense motivado pela existência do Teatro Municipal.

“Foi no meio dessa conturbação e da falta de horizontes mais largos para a cuItura que se criou, tendo em vista os festejos dos 100 anos, a Comissão Cultural do Centenário, constituída por intelectuais e pessoas de notoriedade, com a finalidade de coordenar as atividades artístico-culturais, objetivamente a edição de documentos e livros, exposições de arte, atividades musicais, as artes cênicas e, principalmente, a descoberta de valores locais. Essa Comissão foi mais tarde transformada em Comissão Cultural do Município e se responsabilizou por diversas edições históricas e literárias, entre elas o “Jornal de Arte”, coletânea de crônicas e críticas de arte de Rubem Navarra, pseudônimo de Rubem Agra Saldanha, numa homenagem a esse campinense que junto a Mário Pedrosa e Antonio Bento, também paraibanos, formam o grande pensamento da crítica das artes plásticas brasileiras.”, escreve Chico Pereira em artigo publicado no livro Os anos 60 ‒ Revisão das artes plásticas na Paraíba (Mec/Funarte, UFPB, 1979).

Foi nesse ano ‒ 1965 ‒ e novamente no hall do Teatro que Chico Pereira inaugurou sua primeira mostra individual, “Arte das cousas”, com grande sucesso de público e de venda. Uma semana depois, o jovem crítico pernambucano, Jomard Muniz de Britto, apresentava o espetáculo Festival Bossa I, sob a coordenação de Anacleto Elói, já estudante de Belas Artes em Recife. O evento serviu de ligação definitiva entre os artistas de Campina e Recife-Olinda, culminando com a presença dos paraibanos no lançamento do Manifesto Tropicalista de 1967, que teve a presença de Gilberto Gil e Caetano Veloso em Recife. Em 1966, foi criada a Universidade Regional do Nordeste, mais um espaço para a discussão cultural na cidade e, ao mesmo tempo, somando-se à UFPB, tornava Campina Grande um pólo de educação superior no Nordeste. Neste mesmo ano, aconteceu a segunda edição do Salão de Fotografia, desta vez no hall do Edifício Jabre, que prestava homenagem aos criadores do Cinema de Arte, Virgolino e Hamilton. Nas comemorações, numa fazenda próxima à cidade, faleceu, por afogamento, o jovem homenageado, Luiz Carlos Virgolino. A tragédia abalou os jovens artistas e intelectuais e levou-os a criar, dias após e em sua homenagem, uma fundação cultural (com seu nome) que passou a promover várias atividades nas áreas do teatro, cinema, artes plásticas, música, literatura etc.

Nota: A obra de Rubem Navarra sobre o Barroco mineiro e o Modernismo (além de crônicas, algumas ainda inéditas), compõe um apanhado da maior importância para o estudo e a compreensão da arte brasileira. Infelizmente, é pouquíssimo conhecido até em sua terra natal. Desde 1963, estava em fase final de construção o Teatro Municipal. Antes mesmo da sua conclusão, foi oficialmente inaugurado, considerando que isto coincidia com a posse do novo prefeito. O teatro, a partir daí, mesmo precariamente, transformou-se no principal local para as manifestações culturais da cidade. Em outubro, mês de aniversário de Campina Grande, realizou-se durante a programação oficial, a Exposição de Arte do Centenário, reunindo obras de alunos e professores da Escola de Arte e artistas de João Pessoa; entre estes a jovem Celene Sitônio,

Transcrevo aqui o depoimento de Chico Pereira sobre as “aventuras” do Equipe 3, publicado no livro Os anos 60.

6


“O ano de 1967 foi gratificante para nós do Equipe 3. Já vínhamos acumulando individualmente experiências em participar de exposições oficiais em várias partes do Brasil, comprovando a nós mesmos a possibilidade de extrapolarmos a condição de artista provinciano. Nossa preocupação se revestia no desejo intimo em fazer explodir toda a energia acumulada pelas experiências práticas e informações obtidas nos catálogos, revistas especializadas e nas leituras que nos aprofundava nas questões da linguagem contemporânea que chegavam no intercâmbio que se abria no Museu e nos contatos com outros centros de criação.

artista realizado individualmente uma parte, simultaneamente passando de mão em mão. Era um trabalho inédito pelo menos não encontrado em nenhum dos salões ou galerias que visitamos. Nesse período juntou-se a nós um jovem artista que trabalhava com objetos montados com peças de automóveis e formava com esses elementos representações de órgãos do corpo humano. Era Amaro Muniz que, por nosso intermédio, passou a fazer parte do movimento da jovem arte paraibana. Para definir nossa posição diante do público, lançamos na exposição um manifesto que representava sinteticamente nossas ideias. Machado Bitencourt, que naquela época atuava na imprensa, escreveu um artigo que explicava nosso trabalho e que transcrevemos aqui como ilustração.

Tal entusiasmo nos levou no final desse ano a empreender uma viagem de caráter artístico-cultural que possibilitaria uma melhor compreensão da arte brasileira e internacional. Fixamos um roteiro estratégico que nos ligasse ao que pretendíamos saber. Visitamos a Bienal Nacional [de Artes Plásticas] em Salvador, o Salão de Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte, as cidades coloniais de Ouro Preto, Congonhas e Sabará; em Brasília, o Salão Nacional de Arte Moderna; no Rio de Janeiro, o Salão de Arte Moderna do Mec e quase todas as galerias de arte; em São Paulo, finalmente, visitamos o principal objetivo: a IX Bienal Internacional, onde Eládio fora classificado na área de Desenho. Nas cidades históricas de Minas vimos detalhadamente a criatividade do Barroco e do colonial brasileiro e, em Brasília, com sua engenharia urbana e a sua arquitetura contemporânea, relacionamos o Brasil do passado e do presente; em São Paulo, o contato com a arte internacional completou nossa visão para o entendimento daquilo que vivíamos e necessitávamos compreender.

Em manifesto de abril de 1967, este grupo de artistas plásticos assim fazia a apresentação de seu primeiro Triálogo: Desde então outras obras foram realizadas, mas aquelas ideias permaneceram como elemento comum a todo o processo criativo subsequente. Seus autores sentem, a cada dia que passa, o quanto o seu trabalho é para eles viável e oportuno, que estas imagens criadas a seis mãos correspondem a uma real necessidade de pesquisa de cada um, a uma curiosidade e sobretudo, a uma vontade de fazer jogo livre mais do que propriamente fazer Arte. O curioso é que as realizações destes três artistas em nada se assemelham. Nas ocasiões em que expõem seus trabalhos individuais (I Bienal Nacional de Salvador, III Salão Nacional de Arte Moderna do Distrito Federal, IX Bienal de São Paulo, Salão Esso de Artistas Jovens, Museu de Arte de Campina Grande) fica patente as divergências nas concepções e nos resultados obtidos.

De volta da viagem já era 1968. Em março, mais uma vez, o EQUIPE 3 montou uma exposição conjunta de trabalhos individuais e do grupo, na galeria do Museu, denominada Expressão coletiva. Foi aberta no dia 4 pelo Senador João Calmon. O Correio da Paraíba em reportagem sobre o acontecimento batizou-a de ʻexposição Che ou Não Cheʼ em alusão à presença da imagem do guerrilheiro Guevara entre tubos de katchup derramado, num dos trabalhos. O principal objeto da exposição era um grande tríptico representando uma nave espacial, a mais nova pesquisa do Equipe 3, experiência realizada a partir de uma planta em escala reduzida que, dividida em três, uma parte para cada artista, foi ampliada cada pedaço nos paineis, tendo cada

Atualmente, mais do que nunca, essas diferenças se fazem sentir: Anacleto compõe quebra-cabeças e jogos de peças para montar; os desenhos de Chico são um amontoado aparentemente caótico de figuras e objetos, gravatas, batmans, peças íntimas do vestuário, chapéus, guevaras, bengalas, bandeiras e rótulos. E as palavras que Eládio usa para definir o que ele faz serve talvez como uma apresentação da obra dos três no pouco que ela tem em

7


Voltando ao Museu de Arte Assis Chateaubriand que, sob a coordenação interina de Miriam Asfora, promoveu a I Feira de Arte Popular do Nordeste com o objetivo de romper o aspecto elitista que vinha tomando aquela instituição artística. Durante mais de uma semana, artesãos, artistas populares, poetas e repentistas, se misturaram com as obras dos famosos artistas clássicos e contemporâneos e às conferências e palestras sobre folclore que ali se realizaram. O Museu rompia assim a tradicional ilusão de “templo de arte” e se integrou definitivamente na comunidade. Outras manifestações se sucederam durante todo ano entre elas uma exposição de Arte Sacra. Já, a Escola de Arte que vivia seus últimos dias sob a direção do professor Miranda, inaugurou na galeria do Museu uma exposição com seus poucos alunos. Logo depois a Universidade Regional adquiriu o patrimônio móvel daquela Escola: cavaletes, mesas de desenho, modelos de gesso e sua biblioteca. Foi um fim melancólico para uma das instituições pioneiras do ensino artístico na Paraíba. Na verdade, era pretensão da Universidade utilizar esse acervo para fazer funcionar no Museu um setor de ensino de arte e por isso foi incluído na “negociação” a incorporação do próprio professor Miranda ao quadro de pessoal do Museu na função de conservador.

comum: ʻSe eu faço esses desenhos é por que quero criar imagens. Fazer Arte ‒ pelo menos no sentido que a palavra teve ate agora ‒ não é minha principal preocupação. Uso um de seus processos, o desenho, de uma maneira mais ou menos ortodoxa simplesmente pelo fato de que tal processo tornou-se mais familiar do que qualquer outro, apresentando portanto maiores facilidades na fabricação de minhas imagensʼ”. Manifesto do Equipe 3 Partimos do princípio de que a Arte é uma expressão em totalidade, particularmente em nosso século, das diversas tendências e manifestações de caráter estético de uma comunidade. Situamo-nos numa região onde os contatos com os maiores centros do país são de acesso difícil, quando não algumas vezes impossível, e este nosso trabalho é caracterizado por uma resposta ao nosso meio ambiente no que ele nos agride em sua estrutura carcomida pelo subdesenvolvimento. A nossa experiência, individualmente, assemelha-se e foi motivadora para este trabalho que resume as nossas aspirações, como o tema, e as nossas técnicas, como diversidade. Cada “unidade” do tríptico foi trabalhada pelos três artistas de uma maneira quase simultânea. Sendo por sua própria natureza um trabalho que não deixa margem a virtuosismos, foi permitida a cada artista uma total liberdade na escolha das técnicas a serem empregadas. Ficou, apenas, como ponto de referência, o intuito de se obter uma forma de expressão coletiva, a exemplo do que já havia sido tentado nos jogos automáticos de palavras dos dadaístas e primeiros surrealistas. Como pesquisa, este trabalho seria vazio se não mostrasse um caminho a ser trilhado: o da expressão/ comunidade, arte/multidão. É nosso pensamento que, sem ferir seus fundamentais objetivos e princípios, o campo das artes plásticas seria enriquecido pelo trabalho em conjunto de artistas de uma coletividade. Iniciamos com três, mas esperamos resultados idênticos com quatro, cinco, dez ou muito mais indivíduos trabalhando a fim de obterem novas perspectivas nestes domínios da expressão artística.

Outro evento que antecedeu em poucos dias a inauguração do Museu e que merece registro especial, foi a inauguração (16/09/1967) da galeria Faxeiro Objetos de Arte, de Francisco Duarte, com obras do Equipe 3 e as presenças de Antônio Dias, Rubens Gerchman, Solange Escosteguy e Mário Pedrosa. Apesar de considerada atitude do deslumbramento que vivia a arte local, isso bem demonstra a capacidade de compreensão do que se passava na arte brasileira. Nesta época, anos 60-70, a arte contemporânea no país põe contra a parede as ideias e status quo do modernismo, abrindo-se a experiências culturais as mais diferentes. Daí, instalações, happenings e performances são amplamente realizados, apontando para novas orientações da arte como “linkar” a criação artística às coisas do mundo, à natureza e à realidade urbana. Aí as obras se articulam e interligam em todas as modalidades: dança, música, pintura, teatro, escultura, literatura etc., pondo em cheque as classificações habituais e a própria definição de arte. Arte e vida cotidiana, assim como o rompimento das barreiras entre arte e nãoarte são as principais preocupações do momento,

Campina Grande, 18 de abril de 1967. Eládio de Almeida Barbosa Francisco Pereira da Silva Jr. José Anacleto Elói de Almeida

8


atentando para ações e categorias como a performance, happening, arte ambiente, arte pública, arte processual, arte conceitual, land art etc., que remontam às experiências realizadas pelos surrealistas e sobretudo pelos dadaístas.

continua aberta à visitação do público e das centenas de frequentadores diários deste prédio ‒ construído no governo de Plínio Lemos, em 1957 ‒, agora transformado em Centro Artístico Cultural da UEPB, ali na Getúlio Vargas, por trás dos Correios, no centro de Campina Grande. Enquanto o vídeo não fica pronto, vale uma visita a esta obra que deveria ser imediatamente tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP). Fica o registro!

Muitos outros acontecimentos ‒ exposições, happenings etc. ‒ se seguiram a partir da atuação dos artistas do Equipe 3 em Campina Grande, sempre carregadas de novidades estéticas e políticas. E, finalmente, em 1969, é que entra a encomenda do reitor da URNe, Edvaldo do Ó, para Chico Pereira realizar o painel Tropicália, objeto deste artigo. Mesmo com o afastamento do reitor no andamento da execução do painel, houve continuidade da obra e, ao mesmo tempo, em que o artista era elevado à função de novo diretor do Museu Assis Chateaubriand. O que aqui torna-se relevante destacar é o caráter conceitual da obra, sugerido por Edvaldo do Ó ao encomendá-la a Chico Pereira onde, ele próprio, afirma, em 1979, no livro Os anos 60: “O painel deveria ser uma obra de referência da arte dos anos 60, um documento visual que registrasse para a posteridade as novas linguagens estéticas que surgiam e a década que ia começar. Por influência do movimento Tropicalista, a obra recebeu uma forte dosagem pictórica de colorismo intenso e dos quadrinhos, na época despontando sob a crítica de uma revisão, participação de seus heróis maculados pelas situações criadas na composição”.

Dyógenes Chaves é artista visual, designer têxtil, membro da ABCA/AICA e do Colegiado Setorial de Moda/SEC/Ministério da Cultura. É professor do curso superior de Moda/Unipê. Autor do livro 20052010: ensaios sobre artes visuais na Paraíba (Programa Banco do Nordeste de Cultura, 2ou4 Editora, 2013). Organizou o livro Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba-NAC (Edições Funarte, Rio de Janeiro, 2004). Editor geral da Segunda Pessoa.

Nota 1. Texto publicado na revista Segunda Pessoa (Ano 3, Número 2, 2013).

Realmente, vemos na obra, inaugurada em 1969, as alegorias, símbolos e signos da Pop Art ‒ como os heróis das HQʼs, Super-Homem, Fantasma, Batman e Mandrake ‒ além das imagens de um astronauta no espaço (ligado a um cilindro de ar comprimido segurado pelo Super-Homem), outro astronauta com garfo e faca em suas mãos, um videocassete, vários sinais de trânsito e símbolos gregos, fotogramas de uma escova de dentes e uma vista da Terra a partir da Lua. Também, uma estrada asfaltada no alto da obra, uma mulher “tropicalista”, flores e frutas estilizados (com o uso do estêncil), a cabeça de uma águia (os Estados Unidos?) e um autorretrato em negativo (essa foi a “assinatura” do artista na obra). No canto esquerdo uma placa com os dizeres “Quem anda com atenção, evita acidentes”... Tudo sob um céu azul típico de Campina Grande.

Tropicália | Mural | Spray, acrílica e esmalte sobre parede | 220x600cm | 1969 (detalhe)

Pelo que fui informado, o cineasta Rômulo Azevedo está produzindo um vídeo-documentário sobre a obra que

9


Um poema de amor no traço de Chico Pereira Machado Bitencourt Correio da Paraíba, 2 de junho de 1967

Francisco Pereira da Silva Júnior, ou simplesmente “Chico”, é um jovem desenhista de Campina Grande que faz poesia e imagem. Já foi um ardoroso pichador de muros nos tempos de estudante secundarista. Mais tarde sofreu as consequências dessa vocação ilusória e ficou velho. Tornouse adulto, deu uma banana pra política, aprendeu a cantar os poemas de Pablo Neruda e enamorou-se das caóticas figuras que o seu crayon faz surgir sobre a superfície lisa e alva do papel. Fez uma exposição de seus trabalhos em Campina Grande e ao conjunto de obras denominou “A Arte das Cousas”. Mostrou que amava as flores e que podia transportar a tristeza das favelas, com seus meninos magros e mulheres maltrapilhas para os olhos dos aristocratas pretensos. Mostrou que podia amar, cantar e dizer não às cousas e aos fenômenos.

que ela dance nua para ele e que lhe traga uma taça de Stregga. Chico canta o tempo e o vento. Ele está terminando uma série de desenhos (uma coleção) inspirada na vida dos catadores de monturos de Campina Grande. Aí ele vai buscar a matéria para seus traços, mas o canto e o poema vem do vento sul, numa atmosfera de abstração: “o vento sul é frio e eu não tenho agasalho; se vierem no vento sul eu não ficarei no campo, nem plantarei amor pois meu sonho é tropical”. Assim é Francisco Pereira da Silva Júnior, o jovem artista de Campina Grande que pinta descalço e que acredita na neutralidade do amor dentro do tempo e na “promessa escondida nos olhos verdes da menina loura”. Poema e traço de Chico serão vistos em junho, em Campina Grande numa exposição que está sendo montada pela Fundação Cultural Luiz Carlos Virgolino.

Um pedaço de céu Conselheiro plenipotenciário da Fundação Cultural Luiz Carlos Virgolino, o Francisco Pereira da Silva Júnior ou o “Chico” mostra diariamente que sua predisposição à genialidade não se restringe ao traço ou às mirabolantes fantasias que sua mente tece quando fala da imensa riqueza que um dia lhe chegará às mãos, com mordomias, casas exóticas, coleções de automóveis e todas essas cousas criadas pelo cinema de Hollywwod. O Chico também faz poesia e se revela incomensuravelmente puro quando diz que “o tempo é neutro ao amor e a canção dos objetos ‒ lembranças, as cores perfumadas de esperança”.

Machado Bitencourt (1942-1999), fotógrafo, cineasta e jornalista piauiense radicado na Paraíba.

Recentemente, o Chico teve um dia canto. Recebeu comunicado oficial da Bienal de Artes Plásticas da Bahia informando que seus trabalhos estavam na exposição, em lugar de destaque. Naquele dia o jovem artista esqueceu todas suas tendências socialistas e bancou um legítimo burguês de rua larga: fez uma festa para seus amigos, bebeu e falou, como sempre, dos bilhões de dólares que ganhará, algum dia, com a venda dos seus trabalhos gráficos e seus poemas. O lixo e o vento sul Ao centro: Antonio Dias, Francisco Duarte, Mário Pedrosa e Rubens Gerchman Inauguração da Galeria Faxeiro, Campina Grande, 1967 | Foto de Machado Bitencourt

Francisco Pereira da Silva Júnior, ou simplesmente “Chico” costuma pintar descalço, falando de sua imensa paixão por Claudia Cardinale a quem beijará na boca, um dia, em homenagem à sua beleza e ao seu espírito. Depois pedirá

10


Chico e as sátiras do culto do sexo Machado Bitencourt Correio da Paraíba, 27 de junho de 1967

Francisco Pereira Júnior, ou simplesmente “Chico”, é um desenhista campinense que faz poesia e imagens. Devido sua participação em diversas promoções culturais realizadas nesta cidade, grangeou certa notoriedade. Isto não quer dizer que Chico é deveras, um artista conhecido. Suas principais características não se revelam totalmente e apenas a convivência continuada com ele, permite enxergálo na total plenitude de sua sensibilidade. Francisco Pereira Júnior é um poeta se permite afirmar que as imagens criadas pelas mãos humanas possam traduzir poemas. A verdade é que Chico costuma rimar emoções com os traços que sua sensibilidade faz riscar sobre o papel.

Pornográfico crítico Quem visitou a mostra conjunta de Chico-Eládio-Anacleto na mini-exposicão feita em homenagem ao grupo de teatro de Isaac Gondim (no Clube dos Estudantes Universitários) viu mais intimamente a tendência crítica de Francisco Pereira Júnior. Seus trabalhos eram mais do que satíricos. Atingia um índice de elevada visualização crítica, indo até ao pornográfico. Chico saiu de sua fronteira de percepção condicionada ao ambiente social, para abstrair-se no universo do sexo, transformado agora, segundo seus desenhos, em causa originária de conflitos, engodos, ilusões e cultura. Mesmo aí, não podendo a rota do satírico, envolve religião, propaganda e vícios num só ambiente em que prevalecem o dinheiro e a mulher despida.

Quem viu a exposição “Artes das Cousas” feita por Francisco Pereira Júnior, em 1965, no hall do Teatro Municipal, conseguiu um passaporte para comunicar-se com ele. Naquela época Chico se dedicava mais ao desenho objetivo. Transpunha para imagens gráficas as imagens reais que seus olhos viram em algum lugar ou época. Os trabalhos eram fáceis de entender e por isso mesmo, validamente indicados para uma plateia de artes plásticas, ainda embrionária.

Ainda é muito cedo para que se possa formar uma previsão quanto ao resultado dessa irreverente pesquisa de Francisco Pereira Júnior. O que se conclui dessa força de comunicação é que ele atingiu um elevado índice de intelectualismo para a Arte. De 1965 para cá, em pouco mais de dois anos, sua percepção tornou-se muito mais vasta.

Nova fase Francisco Pereira Júnior saiu daquela fase de maturidade nitidamente acadêmica, que o não identificava totalmente, para buscar, nestes últimos meses, uma forma mais personalista de comunicar-se com o público. É lúcido afirmar que sofreu influências frequentes. Chico decidiu-se pelo satírico, iniciando uma pesquisa estética que já começa a despertar as atenções dos críticos. O jovem artista começou por satirizar as criações imortais de Francisco Brennand. “Só como experiência” (garante ele). Os resultados eram, via de regra, a representação gráfica dos músculos humanos misturados com flores e símbolos, culminando sempre na imitação das iniciais FB também floreadas.

Da influência real Francisco Pereira Júnior tem buscado nos fenômenos humanos a matéria-prima para seu trabalho de crítica total. Tome-se, por exemplo, um dos seus últimos quadros, “O inflamável”, onde a paisagem árida do farwest norteamericano é representado com tonalidades pardacentas. Nele está, como motivo principal, a figura de uma mulher vestindo um original biquini feito com placa cinematográfica e óculos sofisticados, do tipo Ray-Ban. Chico visualizou as três consequências do fenômeno Hollywood tão bem caracterizado pela triologia fílmica do oeste bravio, do culto ao sexy-bomb e da sofisticalização ridícula de uma sociedade.

Experiências iniciais ou indutoras, o certo é que Chico terminou atingindo um estágio revelador ‒ seus trabalhos foram aceitos e expostos na I Bienal de Artes Plásticas de Salvador. O êxito animou Chico a continuar sua pesquisa, agora já engajada na novíssima escola da nova-figuração.

Seria válido o testemunho crítico de Francisco Pereira Júnior? A resposta pressupõe a premissa de que a Arte brasileira carece, atualmente, de uma sedimentação regional, com promoção a análise da nossa problemática.

11


Paisagem de Litium

Bráulio Tavares Campina Grande, 1975

Dessa mistura de real e fantástico, Chico Pereira também extrai a dualidade da técnica empregada, onde a colagem e a pintura se entrelaçam; e o artista revela-se hábil no instante de utilizar, para a criação de seu universo irreal, as imagens mais comuns e mais corriqueiras, que percebemos cotidianamente ao folhear as revistas coloridas. Chico Pereira vê (numa fotografia, num anúncio, numa ilustração qualquer) uma forma abstrata que transcende o objeto que está sendo mostrado; recortada (isolada de seu contexto original) esta forma retorna ao estado bruto de pura plasticidade; afixada sobre a tela, reincorpora-se no plano concreto, mas já no universo de Litium, onde o novo contexto determinará sua nova natureza. Assim é que um cálice é transformado na cúpula de uma possível base espacial; uma torneira passa a ser uma espaçonave; o farol de um automóvel cria o interior de uma caverna. As formas são comuns ao nosso mundo e ao de Litium, mas criam duas realidades que coexistem em planos distintos.

Este é, pelo menos, o conceito lúcido que os bons críticos dizem sobre o desenvolvimento das artes plásticas brasileiras. A nova fase de Francisco Pereira Júnior assume proporções imprevisíveis e que dificilmente poderão ser avaliadas nesta época de transe e de definições da Arte brasileira. Há, contudo a certeza de que ele está pagando à sua própria sensibilidade, o alto tributo de seriedade que ela realmente merece, mesmo quando o resultado é o satírico, o crítico ou o pornográfico. Machado Bitencourt (1942-1999), fotógrafo, cineasta e jornalista piauiense radicado na Paraíba.

Em “Paisagens de Litium” vamos encontrar Chico Pereira não apenas senhor de uma técnica segura.e amadurecida, mas também assimilando criticamente as informações do gênero literários mais típico de nossa era tecnológica. O mundo de Litium pode nos oferecer a mesma beleza surpreendente descrita nas crônicas marcianas de Ray Bradbury, e pode nos ameaçar com o retrato de um universo em desagregação como o imaginado por Daniel Drode. E no aspecto puramente plástico, vemos que a técnica de Chico Pereira desenvolve e ultrapassa as formas sugeridas pelo cinema desde os velhos seriados de Flash Gordon até “2001” de Kubrick, passando por “Barbarella” e por outros universos oriundos das histórias em quadrinhos. É um trabalho que questiona o futuro; não ao nível do conceito, mas, em virtude do próprio meio de expressão que utiliza, ao nível de um levantamento das imagens que o futuro pode ou não nos reservar, as quais repercutem de maneira diferente na sensibilidade de cada observador.

Bráulio Tavares é compositor, músico e escritor paraibano.

O País da Saudade | Colagem sobre papel | 30x20cm | 1982 (Coleção MAR)

12


Arte de Chico Pereira

pretérito, não se diluem no presente porque procuram cristalizar o vigor profético do futuro. Essa tendência forte de uma mensagem sócio-política irá fixá-lo na originalidade da sua missão artística. O painel que os alagoanos vão admirar, toda vez que peregrinarem pelos corredores deste Salão de Chateaubriand, irá dizer-lhes à inteligência que a sua ideologia se compõe com a alma libertária da nossa gente. Foi Alagoas germe da liberdade na Colônia, a semente da liberdade no Império, o canteiro da liberdade na República.

Medeiros Netto Jornal de Alagoas, 3 de dezembro de 1975

Coincide o seu quadro, cuja temática é a liberdade de imprensa, com a vocação desta terra de heróis, mártires e apóstolos da liberdade. O contexto do seu pensamento artístico nos dá, exemplificando-se pelo quadro, esta versão anímica: no conjunto, retrata-se a comunicação como forma de expressão histórica. A ideia plástica central versa sobre um todo de figuras bem definidas e sintéticas nas suas expressões individuais. Na figura da grade está a imagem espacial que significa impedimento, prisão, limite, podendo também configurar uma janela no espaço aberto para a paisagem convergente. O pássaro delineado expressa a liberdade em voo.

Saúdo-o, pintor Francisco Pereira Júnior, neste 19 de novembro de 1975, efeméride consagrado ao dia do Pavilhão da República, em nome dos remanescentes civilizados da nação dos Caetés. Sabemo-lo descendente consanguíneo dos Tabajaras, por isso o cumprimentamos indigenamente como irmão na taba geral dos Tupis, vemolo aqui, na Casa de Luis Silveira, onde há setenta anos se implantou o laboratório maior da cultura alagoana. Neste cenáculo que se apelidou JORNAL DE ALAGOAS, habituouse a mocidade nativa a pintar, com pena de artista, as formas vernáculas da comunicação. Nesta altura, com surpresa e emoção, o Diretor Noaldo Dantas abre as portas deste silogeu do jornalismo alagoano para a presença permanente de quem sabe pintar com pincel artístico, a plástica estrutural da comunicação em cores e tintas.

Está preso, porém estará livre para a ação. A vegetação circundante é a natureza viva que está presa à terra, trazendo a tona as substâncias escondidas. A pirâmide retrata o segredo e o mistério da vida como suporte da História. O homem presente parece firmar-se em posição de frontalidade, como manifestação de respeito ao desconhecido. No seu tórax, cor de barro, estão algumas formas de escrita cuneiforme. É a simbólica presença do primeiro jornal. Na sua cabeça, está a luz do conhecimento emanado do espaço livre.

O seu painel, hoje inaugurado neste cenário maior da imprensa regional, traz-nos aos olhos o extremo subjetivismo, encorajado pelo desmoronamento das velhas, convenções acadêmicas. Nesse arranjo admirável de linha e cores por sua excessiva beleza decorativa está um pintor de ideias, experiências e sentimentos. Sem se separar inteiramente do mundo dos objetos, o seu poder artístico se coloca em função do espírito do século XX. Vejo-o inserido na revolução de toda a história da expressão estética. Segundo o pensamento de Picasso, a sua obra pictórica é para ser entendida. Na contemporaneidade dos fatos artísticos, é evidente que a pintura segue o desejo racionalista de se tornar uma filosofia em tinta e cor.

O homem se decifra, porque imagina que a sua missão não é de esfinge. A mão acorrentada no seu simbolismo compadecido exprime o principal instrumento da ação do homem dedicado à comunicação. Pode ela estar presa ou livre, dependendo do que escreva ou para quem externe e escreva as suas ideias. O foguete, energia pirotécnica, é a ciência nos seus fulgores, com o seu poder de dominar o hoje, lembrar o ontem e mostrar o amanhã. Finalmente, este painel celebratício, com fórmulas de criatividade insuperáveis, é a exuberância de movimentos simétricos do espírito artístico de Francisco Pereira Júnior.

A volta ao realismo na pintura e começou com a ansiedade de pintar e traduzir as experiências diárias. Com Eugéne Delacroix terminou o romantismo da pintura que perdeu o colorido da paisagem, o jogo das emoções, o horizonte das cores. Os dias do seu espírito, Francisco Pereira, não são marcados pelo sabor apenas da arte pela arte. “A arte deve ser o fim de si mesma, buscando realizar a beleza pura, sem se preocupar com a moralidade ou com a utilidade”, escreveu Theophile Gautier no prefácio de “Mademoiselle de Maupin”. As ideias do pintor romântico, ou parnasiano, que são veículos da missão social do artista, não deixam de fazer a restauração de um passado que morreu com Mung, Sung e Tang.

Guarda-lo-emos aqui, nesta exposição permanente, onde frequentam as cabeças pensantes e sagram o seu pensamento pela pena e pelo pincel. Na retra artística pincelada neste quadro, estaremos a contemplar a inspiração para o nosso múnus de arautos da liberdade, pregoeiros da ordem, doutrinadores da paz. A minha gente e a minha gleba, Francisco Pereira, agradecem a Noaldo Dantas a oportunidade desse encontro com o seu espírito, com a: sua imaginação, com a sua arte. Temos, hoje, a responsabilidade de guardar para a posteridade o seu desafio de apóstolo da liberdade e imprensa, pintas com símbolos de verdade e cores de grandeza.

Descubro na sua arte, Francisco Pereira, uma atitude de vanguarda. Seus quadros e paineis não se perdem no

Medeiros Netto era, na época, Pro-Reitor da UFAL.

13


Os mundos transfigurados de Chico Pereira Raul Córdula O Norte, 12 de setembro de 1979

Desde o dia 17 de agosto [1979], o público paraibano tem a oportunidade de ver a mostra de trabalhos recentes de Francisco Pereira Júnior, no espaço expositivo da nova sede do Banco Econômico, na Praça 1817, em João Pessoa. Com esse ambiente, o centro da cidade ganha novamente um local de mostra e comercialização ‒ o Banco financia as obras a longo prazo ‒ que só existiu na época do Mercado de Arte da Paraíba, experiência que houve em 1969, por iniciativa de Balduíno Lélis, e que funcionou nas ruínas do antigo Posto Cristina, na rua Miguel Couto, diferente das galerias oficiais por facilitar ao consumidor de arte o acesso a financiamento e informações sobre mercado especializado.

naqueles tempos de mudança de conceitos estéticos pois mostrou a cara do BrasiI para as pessoas desacostumadas a uma arte que procurava a verdade. A Arte passou então a falar no português do Brasil. Sem as limitações do estilo, da Escola, do cinza que harmonizava todas as cores, a Arte, agora, pode revelar as cores, as maneiras, as tendências, sem limitações, mas, pela primeira vez, com sotaque nativo. Na verdade, o choque tem servido para mostrar o outro lado da medalhas, revelador do reverso da vida. Trabalhar com a linguagem faz parte de uma ordem mental evoluída. Reverter e depois revelar intenções, abordar o assunto por outros ângulos, emitir outras ordens e outras opiniões, são atributos do artista de agora, consciente de novos modos de ver pensando e de pensar ao ver. Os compromissos com a estética tradicional deixam de ser o ponto de abordagem da arte que passa a criticar a si mesmo numa atitude analítica, enquanto desagregadora do tema e sintética do ponto de vista do objeto ‒ o objeto propõe uma leitura cada vez mais eficiente de si mesmo.

Acontece que o novo espaço começa muito bem. Chico Pereira ‒ nome artístico de Francisco Pereira Jr. ‒ apresenta uma série de 15 desenhos em técnica mista, de produção recente, onde está revelada a coerência de seu caminho como artista, preocupado mais com o conceito da Arte do que com seu simples exercício, embora utilizando uma técnica refinada através do uso correto das tintas e dos traços que chegam a sugerir um alto domínio do metier. É curioso o fato de Chico Pereira não ter preconceitos formais e mergulhar diretamente numa maneira de desenhar ao gosto dos ilustradores. Para ele, a ilustração vista como arte menor pelos acadêmicos faz parte de seu conceito da Arte. Na verdade os quinze desenhos mostrados são ilustrações de sua arte, não são nunca arte da ilustração. Com esta série Chico deixa patente a consanguinidade com outros artistas contemporâneos que estão trabalhando no plano da reflexão, não no plano da superfície da obra, e, os conceitos filosóficos lançados por ele superam a epiderme do quadro e fazem pensar; caminho desenvolvido a exemplo: por Antônio Dias, lvan Freitas, Cildo Meireles, por mim e outros artistas, sem que exista identidade formal em cada um de nós.

Chico Pereira desenha então uma história de fatos recentes mas não históricos; uma história criada com elementos de um possível drama mas também eivados de uma fantasia que a torna impossível. A “Paisagem com azul”, um dos quadros expostos, faz deslocar no céu a palavra AZUL que cria um clima de absurda tensão. Essa tensão permanece até o final da série entre sugestões de outras dimensões, mas sugerida no plano da folha do papel. Os lamentos estranhos à paisagem aparecem constantemente nesta série de desenhos. Em “Um estranho passou por aqui”, aparece uma inusitada nave espacial trazendo na quilha um chifre de alce ‒ ou de aço. “Limite de pressão” e “Mundos transfigurados” tratam o movimento do porto de vista da ilusão mas cada um em terreno oposto: o primeiro revelando a tensão, o segundo a pressão. O equilíbrio é outro tema abordado nos desenhos “Tensores” e “Limite de pressão”, e, a transfiguração da paisagem no campo imaginário compõem “Paralelas”, “Pecado original” e “Projeto cósmico não aprovado”.

Chico Pereira é artista advindo dos anos 60 onde o conflito foi a expressão geral, tendência que repercutiu primeiro na quebra das amarras acadêmicas da Arte de então. Essas expressões determinavam nosso grau de dependência cultural e tiveram de ser violentamente rompidas por motivos coletivos que denunciaram esta questão, usando para tanto a metalinguagem visual, crítica da arte pela arte onde denunciam os processos criativos dentro da obra. O Tropicalismo, por exemplo, foi um movimento básico

Chico nos revela a simbologia dos últimos desenhos “O dia da criação” e “Pecado original”. O primeiro refere-se à inteligência cósmica inacessível à inteligência humana, porquanto o homem não se satisfaz em ser parte dela ‒ um círculo que circunscreve um quadro com um ponto no

14


A escritura do prazer

Walter Galvão O Norte, 30 de junho de 1984

A arte é uma profanação, na contemporaneidade, do ritual econômico de acumulação que a sociedade pratica navegando sobre qualquer riacho ideológico. O artista recria o fogo ao friccionar a sua subjetividade com as farpas intoxicadas do real. Ninguém é artista impunemente. Assumir a arte é fugir das trevas frias dos pesadelos de Baudelaire e propor o desejo, a dúvida, o medo, o delírio, como discurso lógico a questionar a política do processo civilizatório que esmaga ou mascara a paixão.

centro, sugerindo a. quadratura do círculo e criando um impasse. O seguinte, “Pecado original”, mostra um triângulo equilátero com cores ‒ todas as cores da percepção física humana ‒ através de um prisma. Este desenho contém um enigma que diz respeito à limitação da percepção ‒ homem: resultado ínfimo do grande projeto cósmico. Por esta limitação, contraditória com a sua consciência, o homem tem a constante necessidade de criar seus símbolos para reforçar sua consciência e gratificar seu ego dividido pelo “pecado original”. Daí que o homem tem buscado para se identificar ‒ ou se isolar ‒ com o todo: o paraíso perdido do judaico cristianismo, o nirvana oriental, o ôvo cósmico dos alquimistas, o super homem nietzcheano, o socialismo científico, o “barato” dos hippies.

Tangido pela paixão, o artista compôs a sua história através dos séculos alimentado pelo enigma: sintonizar-se à tradição ou desestruturar o repertório dominante em busca da nova consciência? A guerrilha prossegue em nossos dias, eletrizando criadores como Dieter Jung, João Câmara, Luís Melodia, Arrigo Barnabé, Zappa, Svevo, Aguilar, Tunga, Raul Córdula e Chico Pereira.

A coerência do trabalho de Chico se vê na paisagem de seus murais em edifícios de Campina Grande, onde o artista ofereceu numa certa época as suas obras a empresas comerciais e construções públicas daquela cidade. Existe um desses murais, em Pneus Teixeira, na rua João Pessoa, pintado numa superfície de 200 metros quadrados, que interpreta a vida da cidade sem preocupações saudosistas com a paisagem, mas com forte propósito de equacionar o futuro da comunidade. Um forte sentimento de euforia pelo progresso se revela naqueles murais ‒ restaurante da URNe, Escola Domingo Sávio, TV Borborema etc. ‒, sempre projetados sobre um rígido esquema geométrico ou figurativo, onde estão desenhados a cidade e suas possibilidades.

A invenção artística na Paraíba é um microcosmo das tensões surgidas em variadas esquinas do Mundo. Estamos condenados à salutar instantaneidade da assimilação das ideias que conquistamos com a Ciência, instrumento pelo qual abolimos a mágica de nossas cogitações. Mas o artista paraibano Chico Pereira decidiu recuperar a mágica ao tentar a síntese fértil entre as manifestações da mídia, que envolvem todos os mitos da sociedade industrial e tecnológica (a televisão, o computador, o aço dúctil), e a resistência individual do criador solitário que tenta ajustar o ego fomentando a crítica à tradição.

Artistas como Chico Pereira, contemporâneo do futuro, despreocupados com os antigos cantares de Tólstoi ‒ “cantar a sua terra e ser universal” ‒ nunca se desraizaram mas não se deixam colocar na posição de nostálgicos pela facilidade de comover que a nostalgia transporta. Chico nos surpreende quando não despreza os valores eternos da Arte, apenas os reinterpreta.

Conhecedor da técnica da pintura, ex-rebelde da Tropicália, eterno porto para as vanguardas, experimentador e divulgador das novas palavras, Pereira decidiu intervir na discussão sobre as artes plásticas como proposta libertadora, concretizando um trabalho que ganha força crítica justamente por abrigar uma linguagem que captura a intuição, o lúdico, o sensual e o conceitual.

Raul Córdula é artista visual e crítico de arte (ABCA/AICA). Vicepresidente para o Nordeste da Associação Brasileira de Críticos de ArteABCA. Criador e dirigente de instituições culturais: NAC/UFPB (João Pessoa); Museu de Arte Assis Chateaubriand (Campina Grande-PB); Casa da Cultura (Recife); Funesc (João Pessoa); Oficina Guaianases (Olinda). Publicou os livros Anos 60 (Funarte, UFPB), Memórias do Olhar (edições Linha D'Água), Fragmentos (edições Funesc) e Utopia do Olhar (Funcultura, Fundarpe, Governo de Pernambuco).

Ele produziu ‒ ao invés de um vídeo, out-door ou uma peça de arte-correio, manifestações que integram o seu arsenal comunicativo ‒, quadros despojados, delirantes e abstratos, intentando uma revisão afetiva dos momentos dramáticos da arte contemporânea, e dando substância à critica que se faz a alguns novos artistas paraibanos que, se não

15


perseguem a vanguarda como poder contra uma nauseante decadência existencial pequeno burguesa, desenvolvem um paisagismo canhestro e conservador, onde o homem surge coisificado e não como instância revolucionária. O despojamento obtido nesses quadros expostos na Galeria Gamela surge, porém, de um processo de maturação de ideia sobre a consciência individual, a dinâmica social e a função da arte. Os primeiros trabalhos de Chico Pereira, da década de 60, revelam um autor figurativo que tenta, aproximando-se intuitivamente da arte mínima, tensionar os conceitos vigentes, denunciando a alienação do homem transformado em consumidor.

A análise dessa fase de Chico conduz à constatação de que ele monta um ritual em que o paradoxo é eleito pulsão problematizadora. Assim, ao mesmo tempo em que investe na criação de imagens que evocam uma “escritura” autônoma, liberando o fluxo do inconsciente, à maneira do Jazz, “racionaliza” áreas do mesmo quadro instalando malhas em que o espaço é metrificado, a iluminação filtrada propositadamente, intervindo de forma perversa no banquete de significados insinuado pelo perfeito equilíbrio de cores que produzem o ideal utópico da libertação do psiquismo. O brilho desse trabalho busca romper tradições da tensão alimentada constantemente pelo embate entre razão e emoção. Para o artista, que penetra em universo onírico, debatendo também o seu envolvimento com um possível mercado de arte, o mais importante é deixar fluir uma doce alucinação da História. Ele apaga, em seus quadros, a lembrança. A evolução dessa fatia da realidade ocorrerá durante o encontro com suas transfigurações do universo racional. Chico Pereira produz poesia. E essa é uma base para que se comece a discutir, de novo, o novo.

No seu engajamento à Tropicália há um aprofundamento dessa crítica através da adoção de uma linguagem pop em que super-heróis e astronautas misturam-se a imagens regionais para expressar as ansiedades e esperanças de um país que vivia um projeto cultural que buscava instaurar a reflexão sobre suas potencialidades e fragilidades. Na década passada, Chico Pereira abole o figurativo e se encaminha ao abstracionismo na série de estudos denominada Paisagens de Litium, na qual discutia o tempo e o espaço na pintura. A fase atual traz o acirramento dessa discussão.

Walter Galvão é compositor, músico, jornalista e escritor paraibano.

Encontramos então um criador que explode o abstracionismo geométrico, que das mentes de Mondrian e Malevitch alimentaria a maior parte da discussão sobre a arte moderna, e resgata a herança de Kandinsky para quem espaço Imaginário da tela é o palco ideal à manifestação do inconsciente. Para Chico Pereira, o importante é resgatar o gosto, o prazer de pintar, não a carnadura das multidões ou o olhar bestificado do operário, mas a possibilidade cósmica da luz. Os quadros dessa sua fase abrigam a informalidade do expressionismo abstrato. São traços velozes, quase improvisados, como os definiria Frances Vicens, manipulando o livre trânsito das cores e volumes que discutem a função da arte, e a projeção de ilusões para capturar o real.

16


Mutantes corações

Bráulio Tavares Rio de Janeiro, novembro de 1993

O coração é a mais universal das logomarcas: aquela que todo mundo entende, e que todo mundo tem o direito de guardar para uso próprio. Num universo de códigos analíticos como é o das línguas ocidentais, o coração é um pictograma de impacto mental instantâneo, herdeiro em linha direta dos ideogramas do oriente: a ideia condensada numa única forma, numa Gestalt compacta e inequívoca que parece saltar intacta da página para a consciência do leitor sem ter que passar pela alfândega da decodificação.

O trabalho de Chico Pereira é uma garimpagem paciente das mil e uma metamorfoses desse ícone mutante cuja capacidade adaptativa parece inesgotável. Olhando as mil e uma pegadas que esse arquétipo deixou no barro receptivo da cultura-de-massas, percebemos que estamos diante de uma dessas forças elementares da natureza: uma imagem que se impõe pelo simples fato de ser tão familiar que parece inofensiva.

Símbolos religiosos como a Cruz, o crescente e a estrela de Davi podem não ser compreendidos por quem não compartilha de cada uma dessas tradições; mas o coração, um símbolo alegremente profano, não sofre esse tipo de restrição. Onde quer que a cultura-de-massas tenha penetrado, ele está presente: na TV, no cinema, nos quadrinhos, na publicidade, na moda, e em toda a parafernália visual industrialmente produzida e que povos se atrevem a chamar de arte: papel de parede, padrões de estamparia para tecidos, bibelôs de louças ou de terracota, adesivos, chaveiros, bijuterias, cristais, ladrilhos, florões de grades de ferro, formas de confeitaria... O coração é a menina-dos-olhos dessa exuberante floração kitsch em que o estético se degrada até seus estágios mais rudimentares, e de onde pode emergir reprocessado e novo, do mesmo modo como a literatura cortesã da Europa medieval e renascentista emerge hoje, desconstruída e recomposta, no cordel do sertão nordestino.

Bráulio Tavares é compositor, músico e escritor paraibano.

Nota 1. Texto publicado no catálogo da exposição Chico Pereira - Pinturas (Galeria Archidy Picado/ Funesc, João Pessoa, 1993).

A imagem do coração é um poderoso gancho afetivo que alicia a disponibilidade de qualquer olhar. Ninguém o questiona. Todos imaginam que o entendem, e mais do que isto: todos imaginam que o aprovam. Ele exerce na linguagem visual o mesmo papel anódino e onipresente de seus equivalentes verbais na poesia e na letra de música ‒ as palavras “coração”, “paixão”, “amor”. Estas palavras desfrutam de uma unanimidade passiva em nossa cultura, que finge valorizar os êxtases emocionais, ao mesmo tempo, que os reprime. Ninguém ousa escrever uma canção dizendo, por exemplo, que o amor é uma mentira, ou que a paixão é uma rematada babaquice. O coração-visual desfruta dessa espécie de “imunidade diplomática”: como representante do Universo das Emoções Abstratas, tem livre trânsito nas iconografias cult, pop, kitsch, naive, folk, hightech.

Conquista, da série Corações | Pintura em acrílica sobre tela | 120x140cm | 1993

17


Arte dʼaqui e dʼalém

Raul Córdula Olinda, novembro de 1993

Chico Pereira encontrou nas vielas do Panier, em Marselha, fragmentos de um velho Tarot. No Nove de Crescentes as luas apareciam acompanhadas de estrelas. Por um momento Chico se viu em Manaíra no 8 de dezembro, dia de Yemanjá e Nossa Senhora da Conceição, com luas e estrelas rebrilhando em azul e branco. Mas ele viu muito mais além, sentiu-se afinado com a Provence misteriosa. Naquele momento ele entendeu porque pinta corações. Com certeza ele entendeu a diferença entre seu músculo cardíaco batendo no peito com rigor científico registrado nas curvas de um eletrocardiograma e o velho desenho do coração que está marcado nas mais importantes culturas, da Europa primitiva aos índios caduvéus, da India Védica ao Islã.

feita pelos índios nas fachadas do São Francisco, da Guia, do São Pedro dos Clérigos, e a Arte do Povo manifestada nas ruas, na beira do Capibaribe, nas brenhas do Maranhão, nas ladeiras de Olinda ou nas dunas de Natal. Catherine Kieffer, Patrícia Prunelle, Olivier Rolin e Sylvie Pic não são as mesmas pessoas, são elas mesmas mais suas visões do Nordeste brasileiro. Por isso tudo, ao pegar na sargeta aquele fragmento de Tarot, Chico Pereira sentiu pulsar seus muitos corações. Como num filme, mas num atmo de segundo, ele viu os sinais e as cores que hoje habitam sua pintura; bandeiras desfraldadas, bananas ao vento, espadas encantadas, naipes de baralho, torres demolidas, armas, tempo, sono e morte. Tudo isso pulsa com vigor nos quadros desta exposição que certamente diz mais da amizade que se formou além dʼaqui, na margem de lá (Le Hors-Là) do que das questões da arte ou do domínio que ele tem de sua grande pintura.

Este transe é comum aos artistas, mas alguns vão fundo. Chico então compreendeu que naquele momento deixou de ser um dos autores e passou a ser personagem de uma aventura que, em algum ponto, se assemelhava a episódios arquetípicos de nossa cultura: de forma inversa, no caminho de volta, aliado aos novos artistas que também, como nós, questionam os processos autoritários de poder e colonização, os artistas de Marselha, acompanhado por Rosilda Sá e Rodolfo Athayde pintaram lá, convidados pelos amigos da Association Le Hors-Là.

Raul Córdula é artista visual e crítico de arte (ABCA-AICA). Nota 1. Texto publicado no catálogo da exposição Chico Pereira - Pinturas (Galeria Archidy Picado/ Funesc, João Pessoa, 1993).

Por mais prazeroso que seja pintar da França os nossos amigos (e ainda os amigos do Recife, José Patrício e Odilon Cavalcanti) foram muito além, religaram uma história construída pela colonização e a conquista, e que agora pretende ser reescrita a partir da solidariedade e do reencontro num outro passo do parafuso do tempo. É Catherine Kieffer, presidenta da Association Culturelle Le Hors-Là, quem diz numa comunicação à imprensa francesa sobre nosso intercâmbio: “... a descoberta das Américas foi seguida de conquista, de genocídio e de escravidão. Este é também momento de lembrar que deste período negro da história resultou a maravilhosa mestiçagem cultural das Américas, consequência imprevista e hoje extraordinária realidade.” Assim como os artistas nordestinos vão à Marselha, os marselheses vêm pintar aqui ao nosso lado, nas cidades e no Sertão, nas praias e nas favelas, vendo a arte franciscana

Coração em pedaços | Colagem e acrílica sobre tela | 80x100cm | 1993

18


Chico e(m) Campina

Bráulio Tavares Rio de Janeiro, novembro de 1993

A arte de Chico Pereira é a cara de Campina Grande, naquele permanente namoro com a vanguarda que Campina tem, naquele anseio, ao mesmo tempo cosmopolita e provinciano, de ficar tocaiando as modas mais recentes para experimentá-las também. É o que Gilberto Gil, numa entrevista a Rômulo Azevedo, definiu como “aquela vontade de ser Nova York, que é típica de Campina Grande”. Chico Pereira é o nosso artista plástico que ‒ pelo menos para os de minha geração ‒ tomou parte em inúmeros eventos, movimentos e atividades onde esse flerte campinense com o contemporâneo ficou evidente. Lembro da minha perplexidade como garoto de 16 anos, ao ver no Museu de Arte Assis Chateaubriand os trabalhos da Equipe 3, formada por Chico, Anacleto e Eládio Barbosa: perplexidade em ver aquelas inesperadas arrumações de formas, e também em perceber que eu, leigo total no assunto, conseguia entender aquilo. Eu me sentia tocado (e aceito), pela primeira vez, por algo que até hoje não sei se é modernidade ou pós-modernidade, mas sei que é algo real: a linguagem falada pelo mundo lá fora.

Coração | Paixão de Cristo em ArtDoor | Parque Solon de Lucena, João Pessoa | 1990

Em 1975 ou 1976, fiz um texto para a exposição “Paisagens de Litium”, onde Chico me proporcionou a oportunidade de publicar meu primeiro texto falando sobre ficção-científica. Já então, nossos gostos se afirmavam. Estávamos mais velhos, já éramos da “mesma geração”: a FC [Ficção Científica] era mais um recado do mundo lá fora, ao qual tentávamos responder, cada um ao seu modo. Tomara que esta nova exposição da obra de Chico traga para os jovens de Campina a mesma centelha de novidade que primeiro me acendeu o olhar naquele ano de 1967. Porque o novo é sempre novo, quando há olhos novos para descobri-lo. Eu tive a sorte de crescer numa cidade pequena do interior do Nordeste, e aprendi que o mundo também é nosso, o mundo pertence a todos nós. Tomara que Campina não se esqueça de ser assim, e saiba enxergar a obra de Chico Pereira com o olhar eternamente jovem que ela merece. Coração | IV Fenart | Galeria Archidy Picado | João Pessoa | 1997

Bráulio Tavares é compositor, músico e escritor paraibano.

19


Menina Incendiada | Pintura sobre parede | 300x700cm | 2001

Galeria de Imagens Indeléveis | Instalação | Dimensões variáveis | 2001 Projeto Genoma | Instalação | Dimensões variáveis | 2008

Vaca Louca | Pintura sobre madeira | 120x240cm | 2001

20


A política da arte

Raul Córdula Olinda, abril de 2001

Alguns gestos políticos podem definir uma geração. No início dos anos 60 o Reitor Mário Moacir Porto preferiu entregar os destinos da ação cultural na Universidade Federal da Paraíba aos jovens que aqui renovavam a criação artística, em vez de propor a criação de uma escola de belas artes. Com isto tivemos finalmente a modernidade. Foi possível pensar livremente, sem o mofo belasarteano, ouviram-se os jovens, renovaram-se idéias numa província vocacionada ao questionamento, de cultura mais galega e gaulesa do que lisboeta ou carioca. Nesse clima de renovação, que era também nacional, nasce a arte de Chico Pereira.

Esta exposição “Memória e Anotações”, com a qual brinda seu público, é um panorama da vida que passou diante do olhar do artista, um flash back do século XX. “Memórias da Segunda Guerra Mundial”: a bomba de Hiroshima: memória do Vietnã: “Menina Incendiada”; o “Chão de Estrelas” que encantava sua infância; “Che/Glauber”: memória da memória, Brasil profundo, “Terra em Transe”; memória do futuro, a “Vaca Louca”, louquíssima, fome no mundo, Terra em Transe... A Terra é Azul, mas é também marrom, escatológica. A Terra vista da Lua, a Lua vista da Terra, a Lua do Islã, “Sheherazade”, o fértil crescente, a Lua de petróleo, sobre a Lagoa, feminina e perigosa, sangrando em óleos, sangrando os olhos do “Cão Andaluz”. Lua de papel, estrelas de confete, “Lua de São Jorge”. Carnaval, Carnaval de Olinda, confetes pelo chão, o que Ghandi faz aqui? “Maracatus retardados”, as sobras do banquete: o “Joelho do Bode” articula suas teses. O “Avião” joga suas bombas, o “Procurador” procura, carrega sua pasta e denuncia o Brasil aos brasileiros.

Em Campina Grande, a grande feira, a encruzilhada, o meio do mundo, sua pintura crítica compõe, comenta, constrói discussões, aponta saídas e opções. Na direção do Museu de Arte Assis Chateaubriand definiu rumos recentemente demonstrados como a melhor estratégia para a conservação daquele precioso acervo. Integrando a Equipe 3, primeiro grupo de artistas de vanguarda da Paraíba, montou protestos e performances já nos anos 60, criticando o regime militar. Seu mural pintado na Escola de Administração inaugura aqui a Pop Art. Já em João Pessoa, entre os anos 70/80, como assessor do Reitor Lynaldo Cavalcanti, ele estava no centro das decisões que criaram, no Departamento de Artes e Comunicação, o Curso de Educação Artística, onde ensina a sucessivas gerações como artista-educador. Porém, foi nas discussões para criar os Núcleos de Extensão e Pesquisa que sua articulação política tornou-se uma valiosa contribuição: uma das unidades criadas foi o Núcleo de Arte Contemporânea-NAC. Enquanto funcionou dentro de sua verdadeira finalidade, o NAC agiu no sentido de obturar o abismo existente entre o ensino de ciência e tecnologia, afinado com os avanços do século XX, e a área cultural, empalhada no romantismo do século XIX. O NAC, no seu início, não era apenas uma galeria de arte, apesar das exposições da arte de alta qualidade que apresentava: sua finalidade era a ação educativa, implantada pioneiramente no meio universitário. As mostras eram apenas a atividade meio, o objetivo mesmo era a formação do olhar do público em direção à contemporaneidade. Verificamos hoje que, sem o NAC, certamente não teríamos a qualidade artística que temos atualmente, estaríamos pintando chorosas paisagens acadêmicas ou alegorias armoriais. O NAC revive.

“Mandacarus, Mandacarus, que técnica vos fez tão torres?” Vaca Louca, o turista louco na plataforma espacial: a fome no mundo. Vaca Louca, tu que jogas tuas bostas sobre nós, que fertilizas este solo de FMI, tu que sugas nosso sangue, Vaca Louca, saiba que comemos grama, por isso somos fortes. Mandacarus, maracatus, desencavem este EGO, desenterrem o augusto nome, “ao gosto dos anjos”. As pinturas passeiam na história, na sensualidade do seu povo, filho de sucessivas gerações de exacerbada sexualidade. Na carta, a pergunta: “Pero, Vais de Caminha?” Índio, carnaval, caboclinhos. Antropofagia. República velha, Nova República, “República de Getúlio Vargas”, novo Infante Dom Henrique: “Um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido...” O fôlego do gato esmagado no asfalto e a erótica massagem no ego é como o país negro de alma branca valsando no Sonho de Valsa. Berlim antes do muro era o começo do fim do sonho e o mapa mundi descosturandose no tempo virou moda. De repente um “Elefante” irrompe sobre nós da grama do jardim na sala de exposições, a sala de visitas da cultura, no “Jardim do Solar”, na sala de

21


Dois artistas: mundos paralelos Amélia Couto Olinda, junho de 2007

jantar, “...no tablado, feito de ouro e prata e de filó de nylon”. Tropicalismo, “inventário do nosso feudalismo” a Pomba da Paz foi servida no jantar. Parangolés, “Porteiros do Inferno”, “A Ilustração da Arte”: “Uns são Artistas, Outros Não”.

Chico Pereira e Raul Córdula são amigos desde os anos 60. Não dividem suas artes, mas suas ideias. Dividiram a participação e administração de movimentos independentes de artistas e de instituições culturais na Paraíba, como o Museu de Arte Assis Chateaubriand, de Campina Grande, o Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, e a Associação Le Hors-Là, de intercâmbio cultural entre o Brasil e o Sul da França, através da cidade de Marselha, entre tantas outras ações envolvidas numa cumplicidade voltada para movimentos coletivos e socializantes de artistas.

Nos anos 90 Chico integrou e presidiu aqui a Associação Cultural Le Hors-Là, possibilitando o intercâmbio de artistas paraibanos e franceses, participou da associação REDE, de intercâmbio de artistas com a Suíça. Hoje, na política cultural do Estado, exerce sua função como um homem dos bastidores, dos urdimentos da cultura, dos ateliês e oficinas, dos ensaios e mostragens. Um artista, finalmente, na política, que não é para ele apenas uma função, mas um exercício de linguagem. Dizia-se nos anos 60 que as duas principais vocações da Paraíba eram política e arte, hoje se faz arte na política. Será que, para o bem do povo, estaria também sendo feita a arte da política?

Esta, porém, é a primeira vez que estes eles realizam uma exposição conjunta. Para tanto nada melhor do que um espaço universitário, espaço de discussão ‒ a Pinacoteca da Universidade Federal de Alagoas ‒ para mostrarem, sem nenhuma preocupação de formato ou de linguagem museográfica em função do marketing. Será uma mostra de suas obras recentes e de documentos que envolvem as parcerias político-culturais dos dois artistas.

Sabemos que a arte pode ser o veículo perfeito para o questionamento ideológico. Essa condição a faz melhor, fundamental para na existência humana. Mas, além de sua dimensão ideológica, a linguagem artística nutre a realidade social, como o sonho alimenta a alma.

A última exposição individual de Chico Pereira acontecida em 2000 no Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB ‒ Memórias e Anotações ‒ foi um painel da realidade sócio, política e cultural do fim do Século XX: um bombardeiro da Segunda Guerra sobrevoava o espaço da galeria, despejando uma bomba atômica; um luar crescente no carnaval de Olinda, compondo-se com uma palmeira, lembrava Shehrezade ouvida no som do carro, na volta à Paraíba; lembranças de amores contidos em papéis celofanes de Sonhos de Valsa escondidos em páginas de antigo livro romântico (embalagem de Ovo de Páscoa, uma incógnita namorada?...); salas negras, luzes negras, e o misterioso e surpreendente Procurador Federal Luis Francisco de Sousa irrompendo da parede da galeria com uma pasta debaixo do braço, talvez a caixa de Pandora que se abriu revelando o Brasil que se deu conhecer. Um cenário nos anos 90, antes dos cenários serem vulgarizados na “arte contemporânea” de agora. Entre ironias e um certo humor cáustico o artista revela do seu arquivo implacável e amoroso, lembranças aleatoriamente arquivadas durante décadas, reconstituídas artisticamente como um quebracabeça. O espectador verá algumas dessas obras e outras mais recentes nesta exposição amadurecida do artista.

Chico Pereira sempre teve na pintura um instrumento de crítica à ideologia, usando estrategicamente a ideologia da própria arte. Com isso ele vem construindo uma obra além da estética, de referência tecnológica, cenográfica, narrativa, publicitária e gráfica. Uma obra para se ver e pensar.

Raul Córdula é artista visual e crítico de arte (ABCA-AICA).

Nota 1. Texto publicado no catálogo da exposição Chico Pereira - Memória e Anotações (NAC/UFPB, João Pessoa, 2001).

22


Além de dirigir o museu de Campina Grande, Chico foi nos anos 70, assessor do Reitor Lynaldo Cavalcanti, da UFPB. Através dele se deu a instalação dos Núcleos de Extensão Cultural, entre eles o NAC, para o qual convidou Raul Córdula, Paulo Sérgio Duarte e Antônio Dias. Foi responsável na Paraíba pela direção da Associação Cultural Le Hors-Là e Subsecretário de Cultura do Estado, onde atuou implantando a lei de incentivo à cultura que hoje vigora. É sócio das Associações Brasileira e Internacional de Críticos de Arte-ABCA e AICA. Tem participado de exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior.

Entre as duas mostras, numa sala intermediária, o público verá documentação de sínteses das principais ações conjuntas dos dois artistas: memórias do NAC e da Le HorsLà. Uma metáfora do pioneirismo da solidariedade e da amizade entre artistas.

Amélia Couto é artista visual e museóloga pernambucana.

Nota 1. Texto publicado no catálogo da exposição Chico Pereira e Raul Córdula - Dois artistas: mundos paralelos (Pinacoteca da Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2007).

Raul Córdula mostra sua fase geométrica mais conhecida do público, que ocupou metade de suas criações desde os anos 70, resultantes de uma investigação sinalética que envolvia sua verdadeira procura de caminhos. Interrompendo a geometria por uma década, ele retornou este caminho pictórico recentemente, retomando antigos desenhos criados mesmo para a repetição e articulação da cor no espaço. Sobre esta mesma fase de pintura escrevi em 1995: “Essas pinturas não se enquadram apenas na qualificação de geometrismos ou construtivismos. Sua vontade geométrica é flagrante, mas isso não atende a uma questão apenas estilística. O que Raul parece propor é que seus quadros sejam instrumentos de contemplação da ordem do universo sugerido no próprio ritmo do seu trabalho, na compulsão de repetir formas, cores signos e tantos outros elementos. Na verdade, não sendo uma repetição mecânica, estes elementos nunca se repetem de fato, pois os movimentos da vida (a ação) fazem com que a mesma pintura seja sempre e a qualquer momento, diferente.” Nos anos 60 Raul supervisionou o setor de Artes Plásticas da então recente UFPB. Foi o Diretor Fundador do Museu de Arte Assis Chateaubriand, posteriormente foi cenógrafo de televisão e viajou ao México para preparar sua primeira curadoria: o Salão de Arte Global ‒ O Artesanato e o Homem. Em consequência passou a representar no Brasil o Conselho Mundial de Artesanato. Depois, convidado por Chico Pereira e por indicação da Reitoria, coordenar o NAC/UFPB. Nos anos 90 criou a Associação Le Hors-Là / Brasil. Há pouco atuou na presidência do Conselho de Cultura da Cidade do Recife. É sócio das associações brasileira e internacional de críticos de arte ‒ ABCA/AICA.

23


Conexões desconexas

Amélia Couto Olinda, outubro de 2008

Essas desconexões entre as obras é apenas uma aparência porque, no conjunto, elas são convergentes quando pertencem à cultura geral do nosso tempo. Representam a materialização de ideias que o artista extrai da sua visão do mundo e que ela pode ser compartilhada.

Alguns artistas constroem sua trajetória através de uma constante linearidade, onde cada obra se soma a um caráter único, que mesmo se alterando guarda uma identidade facilmente reconhecida. Outros se bifurcam em diferentes caminhos, circulam e às vezes voltam ao ponto de partida. Nesses, a identificação se toma mais complexa, exigindo para sua compreensão uma atenção mais exaustiva.

Afinal, não é essa a função do artista?

Amélia Couto é artista visual e museóloga pernambucana.

Enquanto mercadoria, o produto artístico necessita dessa identidade reconhecível como marca, para que se instale seu prestígio, enquanto o artista se compromete a manter essa fidelidade, senão acontece como um veículo fora de linha que por não ter sucessor, perde o valor, mesmo que esteja em ótimas condições.

Nota 1. Texto publicado no catálogo Chico Pereira - Memória e Anotações (Editora Grafset, João Pessoa, 2012) e para apresentação da exposição Chico Pereira - Conexões Desconexas, Usina Cultural Energisa, João Pessoa, 2008.

Daí a dificuldade das obras contemporâneas, notadamente as instalações ou aquelas efêmeras, cujos suportes distanciados das tradições do quadro, do pedestal ou da parede não podem ser “mercadizados” quando não possuem a perenidade da contemplação. A trajetória de Chico Pereira se enquadra nessa dicotomia entre permanência e morte, sem compromissos que não sejam as suas próprias vontades e escolhas. É um artista “infiel” a si mesmo, sem pudor de fazer o que quer e sem pensar no proveito material que poderia lhe trazer uma “fidelização” ao mercado, já que é senhor do saber e das técnicas artísticas. Nesta exposição, que ele denomina de “Conexões desconexas”, o próprio título já afirma o caráter do seu fazer artístico, onde cada evento (ou obra) simboliza uma ideia a respeito de algumas coisas que decodificado abrirá a mente do espectador para suas próprias ideias a respeito do que vê. Cada obra é a chave para o território da percepção quando a arte deixa de ser um mero objeto contemplativo para ser o OUTRO SER que se inicia a partir dele, sem perder em nenhum momento a poesia, condição indispensável para ser uma obra artística. Situações estéticas que não pretendem se esclarecer através da beleza, mas problematizá-la.

Roberto Coura | Feira de Campina Grande | 1978

24


Chico Pereira: o mais exato artista contemporâneo Dyógenes Chaves Gomes O Norte, 30 de novembro de 2008

Nos dias de hoje, a própria história da arte não dá conta de toda a multiplicidade de poéticas das artes visuais. No caso da Paraíba, ainda há enorme lacuna no que tange ao reconhecimento de obras, ações e artistas considerados seminais para “explicar” a arte contemporânea no Estado. Felizmente, ainda há tempo e oportunidade para tal reconhecimento, notadamente por intermédio da universidade, onde se pode resgatar tudo aquilo que sempre esteve à margem da narrativa oficial.

de mil instrumentos: aquele que atua em várias frentes ‒ da diversidade de linguagens à profusão de suportes ‒ e para quem tudo se torna campo de ação e objeto de investigação. Meios e técnicas não determinam sua prática artística, Chico revela-se um colecionador de “lembranças arquivadas aleatoriamente durante décadas e reconstituídas artisticamente como um quebra-cabeça”. Sua obra é um verdadeiro relicário nos moldes dos arquivos do pernambucano Paulo Bruscky, do alemão Boris Nieslony ou do internacional grupo Fluxus.

Pouca gente sabe, por exemplo, que a trajetória do artista Chico Pereira se confunde com a própria história da arte da Paraíba. Basta dizer que sua vida (e sua arte) está diretamente associada a todas as ações de vanguarda no campo das artes visuais no Estado. Das incursões na arte multimídia ‒ em que foi forjado um artista completo ‒ até a atuação de técnico idealista e visionário na articulação do curso de Educação Artística e do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB (NAC), assim como na instalação do Museu de Arte Assis Chateaubriand e da Associação Le Hors-Lá (promotora de intercâmbio internacional entre França e Brasil), Chico Pereira tem sido, ao mesmo tempo, mentor e ator coadjuvante de nossa história artística ‒ e política, claro ‒ mais recente.

Este catálogo, que ora apresentamos, não pretende uma organicidade em sua imensa produção, seja artística ou intelectual. Parte do registro de suas mais recentes exposições na área ‒ o projeto Conexão desconexas e a mostra com o parceiro e amigo, Raul Córdula, por exemplo ‒ até o resgate de um mural executado nos anos 60, em Campina Grande, talvez um dos primeiros a serem produzidos na técnica do grafite em todo o país. Também há lugar para falar de outro importante parceiro: José Simeão Leal, e informações sobre duas obras que, hoje, certamente configuram marco imprescindível na recente história da arte na Paraíba: o mural Varanda de rede (instalado na Estação Cabo Branco) e o livro Paraíba: Memória Cultural.

A produção de Chico Pereira nas artes visuais se constitui em um exercício experimental da mais completa liberdade. Sua mensagem poética e sua postura política remetem aos múltiplos sentidos da arte contemporânea, em que a opção do indivíduo por ser artista é apenas um fato transitório entre criação e ação. Desde que, em Campina Grande, no final dos anos 60, se integrou como artista ao grupo Equipe 3 (juntamente com Eládio Barbosa e Anacleto Elói), até a realização de seu último trabalho (um painel de cobogós produzido especialmente para a Estação Cabo Branco, em João Pessoa), Chico Pereira “viajou” em todas as possibilidades de interação entre utopia e realidade, imaginação e ação produtiva, arte e vida, atelier e escritório, amor e ódio.

A mostra, Conexões desconexas, patrocinada e organizada pela Usina Cultural Energisa em 2008, teve sua primeira versão apresentada no Núcleo de Arte Contemporânea, em 2002, e também exibida na Pinacoteca da Universidade Federal de Alagoas, em Maceió, em 2007. A mostra evidencia apenas uma face da obra de Chico Pereira, não por acaso pouco conhecida entre nós. Trata-se de um arquivo de ideias, documentos e objetos, que tem origem no exercício de observação cotidiana realizado pelo artista e engloba desde fatos nas áreas da política e da comunicação até uma profunda pesquisa da cultura popular. Nada escapa ao seu trabalho de memorialista ‒ às vezes, irônico e sarcástico ‒ deste mundo contemporâneo cada vez mais escravo da “ditadura da imagem visual” e das efemeridades que nos assolam.

Que fique bem claro, no entanto: este não é um artista “comercial”, daqueles que buscam os holofotes nas colunas sociais. Melhor seria vê-lo como misto de Dom Quixote e Sancho Pança, embora qualquer definição que a Chico se atribua seja de fato insuficiente. Chico Pereira é um homem

O próprio artista avisa: “Esta mostra é apenas um capítulo de um projeto mais abrangente ‒ a que chamei de Memórias e anotações ‒, que possui certa anarquia

25


ideológica e nenhum compromisso com a angústia do perfeccionismo da arte tradicional, embora, ao mesmo tempo, seja comprometida com a história humana e com meu livre pensar como artista”. Esta instalação (ou site specific), mesmo obedecendo a uma museografia que pode ser “lida” do começo ao fim (ou inversamente), deve ser “degustada” item a item, ou não. É o mesmo caso desta publicação ‒ algo work in progress ‒ em que o artista claramente convoca o espectador a enveredar nos meandros da própria história da arte em busca de algumas das perguntas (e respostas) que dão sentido à construção de nossa identidade cultural.

em conformidade com a viúva, Eloah Drummond, doá-la ao Governo do Estado. E hoje, graças à dedicação da professora Bernardina Freire, a biblioteca de Simeão Leal é objeto de inúmeras pesquisas acadêmicas e de registro documental e guarda do seu acervo, que também inclui dezenas de obras de arte de sua autoria e de objetos pessoais. Por causa do gesto do confidente e amigo, Chico Pereira, talvez seja, hoje ‒ e no futuro ‒ devidamente reconhecida a vida (e obra) de uma das personalidades mais festejadas da cultura brasileira, entre os anos 1940 e 60, quando atuava no Ministério da Educação e Saúde ou colaborando com o governo do Rio de Janeiro.

Não por acaso, a mostra realizada em Maceió teve a participação do amigo de longeva parceria, Raul Córdula. A pertinência da apresentação da dupla reitera as experiências e vivências administrativas desde 40 anos quando, juntos, ajudaram a criar e foram os primeiros coordenadores do Museu de Arte Assis Chateaubriand (Campina Grande) e do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB (João Pessoa), além de produzirem o livro Os Anos 60 ‒ Revisão das artes plásticas da Paraíba e o documento gráfico Almanac (edições da Funarte e UFPB). Simultaneamente à exibição de pinturas de Raul Córdula e assemblages do projeto Memórias e anotações, Chico Pereira apresentou uma mostra iconográfica do livro Os Anos 60, momento em que divulgou, além mares, um resumo da nossa produção de artes plásticas na capital alagoana, fato que se confunde com a atuação destes dois artistas ‒ Raul Córdula e Chico Pereira ‒ seminais para a arte paraibana.

Mas, das obras artísticas de Chico Pereira ainda pouco reconhecidas estão seus trabalhos em murais e, embora tenha produzido diversas peças de arte pública, há duas que se destacam. A primeira, dos anos 1960, é um painel “tropicalista” pintado numa dependência num edifício da UEPB, em Campina Grande. Nesta obra, o artista empregou a técnica do grafite, técnica que viria se transformar, alguns anos depois, nos Estados Unidos, na mais pura e verdadeira expressão da arte pública. A outra obra é o imenso painel Varanda de rede, confeccionado em peças de cobogós e instalado recentemente, por decisão pessoal do arquiteto, Oscar Niemeyer, na Estação Cabo Branco. Esta obra é homenagem à nossa cultura popular e nos apresenta formas tão simples que, paradoxalmente, vão compor toda a complexidade da trama da renda nordestina. Nesta obra, o artista traz para a arquitetura contemporânea elementos ‒ gráficos, estéticos, sociais ‒ tão caros à nossa cultura popular de rendas e tecelagens. Por estas e por outras, de fato, a “obra” de Chico Pereira se constitui em um exercício experimental da mais completa liberdade e inventividade.

Aliás, a arte paraibana é o centro da sua obra mais recente, o livro Paraíba ‒ Memória Cultural (editora Grafset), em que o autor resgata apaixonadamente a cultura da Paraíba, da conquista do rio que lhe dá identidade até os dias atuais. A proposta, na verdade, além de documentar nossa história é atestar que um estado tão pequeno e com tamanhas limitações tem na cultura sua maior riqueza.

Dyógenes Chaves é artista visual e membro da ABCA-AICA. Editor geral da Segunda Pessoa. Nota

E a maior prova da “grandeza” paraibana está presente na profícua parceria entre Simeão Leal e Chico Pereira, a quem Simeão confiou, antes de seu falecimento em 1996, cuidar para que sua imensa biblioteca viesse servir aos conterrâneos da Paraíba. Altruísta, Chico Pereira resolveu,

1. Texto publicado no catálogo Chico Pereira - Memória e Anotações (Editora Grafset, João Pessoa, 2012) e para apresentação da exposição Chico Pereira - Conexões Desconexas, Usina Cultural Energisa, João Pessoa, 2008.

26


Conectando o bicho pega Marcondes Gadelha Brasília, novembro de 2008

Como a outra mão do mágico, o aparente despojamento de Chico Pereira nos ilude, nos atrai e descontrai, enquanto que por debaixo dos véus da imaginação, uma requintada armadilha se completa. De repente, espouca uma pomba ou um tigre, em lugar desusado. De repente, você é levado piedosamente (por entre urzes) ao Calvário e dá de cara com Madonna crucificada. De repente, um computador esquartejado e pregado na parede, para escárnio ou veneração dos passantes, é a figuração do genoma e, por extensão, da própria condição humana. De repente, você está enredado em mil astúcias e então, pára diante de uma porta que não se abre nem a passe de mágica: a realidade.

Vejamos agora o que não é só, Não é só pintura, não é só desenho, não é só fotografia colagem ou instalação; é tudo isto articulado em metalinguagem, em que o produto final é maior do que a soma dos elementos plásticos ou sensoriais e inclui necessariamente a surpresa, a perplexidade e, por fim, a reflexão como parte integrante da própria obra que sem elas se frustra. É também metáfora, paródia e crítica ao superficialismo e à pressa dos tempos modernos, em que o conteúdo é sacrificado pelo culto às exterioridades e à primeira percepção. Em resumo: o trabalho de Chico Pereira é mais do que arte ‒ é um manifesto em favor da derrisão e contra a “objetividade” e o império da forma. Há de ter, com certeza, um efeito didático. Depois de vê-lo, o nosso olho não terá a mesma quietação. Aprendemos a enxergar ou seremos tentados a buscar desconexões por trás de todas as conexões; a lobrigar o absurdo e o ridículo e incorporar a surpresa, como gozo estético.

Se como dizia Baudelaire, em arte o que importa é o espanto, a mostra “Conexões desconexas” excede em seus propósitos ‒ entra-se desprevenido e sai-se sobressaltado ou no mínimo, desconcertado. Chico explora antinomias, paradoxos, contradições e ambigüidades, para dizer que quando se associam, quando se juntam partes da realidade (entes, pessoas, coisas) cada situação criada comporta mais de uma interpretação, ou seja, uma dúbia ou múltipla razão semiótica. Ele busca sempre o discurso oculto, de preferência o mais ácido, como se o universo se fizesse de segundas intenções. Uma coisa é uma coisa, isoladamente. Conectando-se o bicho pega. O próprio título da mostra, “Conexões desconexas”, parece despretencioso, mas já crava um alfinete em nossa atenção e nos remete a uma questão hermenêutica, sobre se as duas palavras podem conviver, ou pelo menos estar juntas; ou, o que é mais grave, se o conteúdo de uma pode se misturar ou se transferir ou, de qualquer forma se conectar com o da outra, principalmente quando elas acontecem assim, agarradinhas; isto é, sem conectivos.

Que fique claro: Chico Pereira é um intelectual refinado e um observador arguto do cotidiano, que faz a sua sensibilidade transitar com absoluta naturalidade: dos salões acadêmicos à Feira de Campina Grande sem saltos ou gradientes de interesse. O seu rigoroso compromisso com a arte em si, por outro lado, não permite concessões ao mercado, apesar do escancarado mercantilismo que orienta hoje a produção artística. A propósito, já houve quem dissesse que se Boticelli fosse vivo, estaria trabalhando na Vogue. Tais premissas lastreiam a universalidade e qualidade do seu trabalho e lhe asseguram sutileza e liberdade para formatar uma das propostas mais originais e mais instigantes já apresentadas na Paraíba, e quem sabe no país.

Qual então o fio condutor desta exposição? Em que escola se enquadra? Em que suporte estético se ampara? É mais fácil dizer o que ela não é. Não é surrealismo embora tome emprestado dos surrealistas o sarcasmo, a ironia, a desconstrução da lógica. Não é dadaísmo, por que não se pauta pelo non sense; ao contrário. Não é trompe-lʼoeil por que não se vale de truques de perspectiva ou de ilusão de ótica.

Marcondes Gadelha é médico, ex-deputado federal e ex-senador pela Paraíba. Nota 1. Texto publicado no catálogo Chico Pereira - Memória e Anotações (Editora Grafset, João Pessoa, 2012).

27


Conexões desconexas

Bráulio Tavares Rio de Janeiro, novembro de 2008

Chico Pereira conta aos amigos que na noite de abertura de sua exposição Conexões desconexas ele levou os filhos pequenos, que se divertiram muito com os convidados, as obras de arte, o coquetel, o ambiente festivo. No dia seguinte, ele perguntou à sua filha de seis anos qual a coisa que ela tinha gostado mais na exposição, e ela respondeu: “As empadinhas”. É uma resposta pop, uma resposta de quem percebe intuitivamente que a Arte não é apenas a obra de arte pregada à parede, mas todo o aparato que a produz e a cerca. Arte sem empadinhas é como o cão de João Cabral sem plumas ou o rio de Guimarães Rosa sem terceira margem. Chico é um trocadilhista visual, um criador de jogos de imagens (no sentido em que praticamos jogos de palavras) que tanto servem para produzir uma fagulha de conhecimento como para descarregar, com escárnio, a pomposidade que uma imagem perde no momento em que é justaposta a outra. Vejam-se as experiências sucessivas que ele arma nesta exposição, com um espelho de moldura cheia de arrebiques, e depois com a “moldurização” dos retratos e Che Guevara e Roberto Carlos, e por fim com o uso de tampas de privada como molduras capazes de nivelar uma coleção heterogênea de imagens. A tampa de privada sugere a ordem para horizontalização do olhar, “para ver isso não olhe para baixo, olhe para a frente, olhe ao seu redor”. E o que vemos são os signos reduzidos à sua forma mais bruta e desgastada, Luís XIV parecendo Clóvis Bornay vestido de Luís XIV, e a Vênus de Willendorf parecendo uma versão sem cortes da Vênus de Milo. Quando perguntaram a Umberto Eco a razão do título O Nome da Rosa em seu primeiro romance, ele disse: “Uma rosa é tudo e não é nada, é um símbolo tão universal que é impossível alguém não conseguir projetar alguma coisa nela”. Madonna e Osama Bin Laden emergem de montes de pedra iluminados por uma luz vermelha demoníaca, como lava de vulcão, uma rachadura na couraça do consciente deixando aflorar mitos primordiais e destrutivos. A fruteira cheia de maçãs colocada junto ao espelho lembra a Branca de Neve, mas a maçã pode ser a dos Beatles e a seringa a dos Rolling Stones. No mundo pop, cada ícone é uma encruzilhada de leituras.

Fotografia de Rodolfo Athayde | 1994

28


À entrada, são contrapostas as imagens de Santos Dumont, indicando ao Brasil o caminho para o céu, e Epitácio Pessoa, indicando à Parahyba o caminho para o mar. Fidel Castro e Barack Obama parecem estar acenando um para o outro da porta de dois aviões, um que acabou de pousar e outro que se prepara para a decolagem: “Eu sou você amanhã”. A cada passo vemos a imagem pop sendo tratado por processos que lembram os processos classificados por Freud para a formação dos sonhos e dos chistes: deslocação, condensação, analogia etc.

série nos estonteia com sua sugestão das infinitas possibilidades de recombinação, colagem e paródia que essas fotos parecem implorar, exigir. Ainda mais na era da cópia com um clique, do cut-and-paste, do Photoshop, do scanner e das paletas digitais. Do lado oposto, o que vemos é um computador, com seus periféricos, totalmente desmontado, reduzido a suas partículas elementares, seus quarks; ou melhor dizendo seus genes, porque Chico Pereira batiza esta série de Projeto Genoma. Descoladas, desparafusadas, desencaixadas e desatarraxada umas das outras, essas unidades mínimas desmontam a máquina de produzir obras e se tornam, elas próprias, objetos estéticos, parodiando até o absurdo final o gesto de Duchamp: já não é apenas um objeto ready-made que pode ser elevado à condição de obra de arte, mas cada uma das partículas que o formam.

A figura de Carlitos parado numa praça de João Pessoa nos lembra que Chaplin também recorria insistentemente a esses mesmos processos. Carlitos comendo uma bota como se fosse uma refeição completa; Carlitos cravando dois garfos em dois pãezinhos e usando-os como os pés de uma dançarina... Tornar A parecido com B é o que basta para começar a tratar B como se fosse A de fato, e mergulhar numa montanha-russa de nonsense e surrealismo.

Pintadas de branco e agrupadas lado a lado as peças fazem este Projeto Genoma assemelhar-se àqueles dinossauros que, em alguns museus de História Natural, são montados osso por osso, lado a lado, ao longo de uma parede inteira. Cada pecinha é também produto final e matéria prima. Cada uma é parte do sistema tecnológico de produção de ícones e ao mesmo tempo uma possibilidade de ícone, tanto quanto um retrato de Marlon Brando ou de Marilyn Monroe.

Existe uma semelhança entre a cabeleira de Che Guevara e a de Roberto Carlos, mas a semelhança não é meramente dos cabelos, e sim do modo como fotógrafos e capistas de discos exploram visualmente esse efeito. A semelhança está mais na técnica dos retratistas do que na aparência dos retratados. O jogo de transposições Che/Roberto não visa apenas ironizar a transformação do Poder em Fama e da Fama em Poder, nem apenas ironizar dois indivíduos considerados “românticos” por motivos diferentes. É também um evidenciamento, por despojamento do excesso e exagero do resíduo, do quanto os processos de produção visual se assemelham quando criam mitos pop, não importa sua natureza. E é o mesmo processo posto em marcha por Chaplin quando fundamentou sua guerra a Hitler em uma mera coincidência de bigodes.

Chico Pereira é uma espécie de advogado-do-diabo da cultura pop. Trabalha no seu interior, trabalha muitas vezes ao lado dela e por ela, mas age como se lhe coubesse a função de a todo instante balançar suas estruturas para ver quais as que cedem. Por sorte, no pop o desabamento de uma estrutura pode ser também uma forma de arte.

Em duas paredes opostas da exposição, duas séries de objetos se espalham horizontalmente, lembrando a visão horizontal de uma galáxia ou de um cinturão de asteróides. A primeira é uma Galeria de Imagens Indeléveis: fotos clássicas ou obscuras de personagens que incluem Freud, Lênin, Bob Dylan, Carlos Drummond, Garcia Lorca, Brooke Shields, Monteiro Lobato etc. São, ao mesmo tempo, o produto final do pop, e também a matéria-prima original de que ele se alimenta em sua permanente autofagia. Vindo logo em seguida ao trocadilho icônico Che/Roberto, este

Bráulio Tavares é compositor, músico e escritor paraibano.

Nota 1. Texto publicado no catálogo Chico Pereira - Memória e Anotações (Editora Grafset, João Pessoa, 2012) e para apresentação da exposição Chico Pereira - Conexões Desconexas, Usina Cultural Energisa, João Pessoa, 2008.

29


Roberto Coura | Feira de Campina Grande | 1978

ROBERTO COURA Nasceu em Campina Grande-PB, 1954. Na infância, sua maior diversão era desenhar e pintar. Aos 13 anos, estudou desenho na Escolinha de Artes do Prof. Jorge Miranda. Com 15 anos, passou a frequentar o Museu de Arte Assis Chateaubriand, onde, por vários anos foi colaborador. Como artista plástico, participou de salões, exposições coletivas e individuais, na Paraíba e em outros Estados. Em 1972, descobriu a fotografia e abandonou as artes plásticas. Tornou-se pesquisador da técnica, da linguagem e da estética fotográfica. Passou a produzir ensaios fotográficos de temática social. Alguns destes já apresentados em várias instituições pelo país e publicados em revistas e jornais. Os ensaios mais completos, desenvolvidos em Campina Grande, foram: O Bairro da Cachoeira, 1977; A Feira, 1978 (que em 1980, obteve o Prêmio Marc Ferrez); Os Carnavais de Rua, 1979-1980; As Festas Populares de Rua, 19801981. É graduado em Desenho Industrial, professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba. A partir de 1990, desenvolve atividades acadêmicas no Depto. de Arquitetura do Centro de Tecnologia da UFPB, em João Pessoa. Foi membro da comissão de seleção da FotoNordeste/ Instituto Nacional da Fotografia (INFOTO). Convidado pela Unicamp (Campinas, SP), apresentou comunicação no seminário O Ensino Superior da Fotografia no Brasil. Em 1994, começou a aprofundar estudos e experimentos na fotografia de arquitetura, de produto, de obras de artes etc. Em 2000, obteve o primeiro lugar no concurso nacional Brasil 500 anos (na área de engenharia), instituído pelo Confea (Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia). Colaborou com a publicação Visões e Alumbramentos, de Joaquim Paiva (um completo dicionário da fotografia contemporânea brasileira)

Roberto Coura | Feira de Campina Grande | 1978

30


Capa: fotografia de Roberto Coura | Feira de Campina Grande | 1978

expediente Segunda Pessoa Revista de Artes Visuais Ano 4, Número 3 ‒ Jun-Jul-Ago de 2014 Edição especial ‒ Chico Pereira Editor-geral | Dyógenes Chaves Gomes (ABCA/AICA) Jornalista responsável | William Pereira da Costa DRT-PB 792 Conselho editorial | Dyógenes Chaves Gomes | Francisco Pereira da Silva Júnior | Gabriela Maroja Jales de Sales | Madalena Zaccara | Maria Cristina de Freitas Gomes | Paulo Rossi | Paulo Sérgio Duarte | Raul Córdula | Rodolfo Augusto de Athayde Neto | Valquíria Farias | William Pereira da Costa Projeto gráfico | Dyógenes Chaves | 2ou4 Colaboradores | Amélia Couto | Bráulio Tavares | Dyógenes Chaves | Machado Bitencourt | Marcondes Gadelha | Medeiros Netto | Roberto Coura | Raul Córdula | Walter Galvão Fotografia | Arquivo Chico Pereira Impressão | Gráfica JB Ltda.

Contatos para envio de artigos e colaborações: e-mail: dyogeneschaves@gmail.com 2ou4 Editora/ Revista Segunda Pessoa Rua Protásio Pontes Visgueiro, 111, Jardim 13 de Maio João Pessoa-PB ‒ 58025-680 Telefones: (83) 8787.6973 / 8808.7877 www.segundapessoa.com.br Os artigos publicados são de total responsabilidade de seus autores. Os interessados em publicar na Segunda Pessoa: devem observar as normas de publicação no site da revista. Esta edição de Segunda Pessoa (ISSN 2237.8081) foi impressa em agosto de 2014, na Gráfica JB Ltda., utilizando os tipos da família Kozuka Gothic e Caslon, em papel pólen (90g/m²), com uma tiragem de 10.000 exemplares, sob a responsabilidade da 2ou4 Editora.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


ISSN 2237-8081

9 772237 808001

10

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.