ano 5 | número 1 | dez-jan-fev 2015 edição especial | encontro abca - recife/ pernambuco
distribuição gratuita | venda proibida
ENCONTRO DE CRÍTICA DE ARTE ABCA: ARTES VISUAIS EM PERNAMBUCO Caixa Cultural Recife, 25 a 27 de março de 2015 Av. Alfredo Lisboa, 505 - Bairro do Recife A Caixa Cultural Recife apresenta o Encontro de Crítica de Arte ABCA: artes visuais em Pernambuco, realizado pelo Instituto Cultural Raul Córdula - ICRC, com o apoio da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA e o patrocínio da Caixa Econômica Federal. A realização de um seminário nacional de críticos de arte com o tema artes visuais em Pernambuco nos dá a oportunidade de evidenciar em âmbito nacional a produção artística da região suas problematizações e suas perspectivas teóricas. O ICRC, junto com a ABCA, ligada à AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte) busca promover o encontro e o diálogo entre os profissionais, pesquisadores, teóricos, ensaístas, jornalistas e professores que atuam na área da crítica de arte e o público interessado no tema. Não apenas na esfera das artes visuais, mas também na área da educação e da cultura promovendo assim, vários enfoques que revelam as questões do papel da crítica de arte. O Encontro tem a Coordenação geral do artista plástico, curador e crítico de arte Raul Córdula, membro da ABCA, com participação de curadores, pesquisadores e críticos com reconhecimento nacional e internacional. Esta edição será composta de palestras e mesasredondas, feira de livros e visita a espaços culturais.
Instituto Cultural Raul Córdula | Presidente Amélia Couto Associação Brasileira de Críticos de Arte | Presidente Lisbeth Rebollo Caixa Cultural Recife | Gerente geral Marcos Kimura
Programação Dia 25/03 19h - Palestra de abertura com Marcos Kimura (Caixa Cultural) e Elvira Vernaschi (ABCA/AICA) Dia 26/03 09h às 12h - Mesa-redonda com Raul Córdula, Olívia Mindêlo e Carlos Trevi (Santander Cultural) 14h às 17h - Mesa-redonda com Joana DʼArc Lima, Elvira Vernaschi e Marcus Lontra Dia 27/03 09h às 12h - Mesa-redonda com Valquíria Farias, César Romero e Cláudia Fazzolari 14h às 17h - Mesa-redonda com Agnaldo Farias, Dyógenes Chaves e Lisbeth Rebollo
Equipe técnica Coordenação geral | Raul Córdula Secretaria geral | Cláudia Fazzolari Produção executiva | Mariana Ratts Produção | Alexandre Barros | Bety Córdula Projeto gráfico | Pedro Alb Xavier Comunicação | Ofã Produtora Tradução | Erika Essinger
editorial Desde que conhecemos o artista (e esteta) Raul Córdula sabemos da sua disposição e firme determinação de insistir na reflexão, documentação, estudo e divulgação sobre artistas, instituições e movimentos que fazem/fizeram a história das artes visuais na região nordestina. O próprio Raul, anos atrás, já escreveu que “além da luta por espaços expositivos, os artistas nordestinos engajados numa produção ʻprogressistaʼ sofrem a carência de textos que teorizem suas produções em uma terra onde o papel da crítica é substituído por um colunismo social a serviço da produção de pintura tradicional que, na maioria das vezes, apenas se parece com uma produção de arte”. Noutra oportunidade, em 1995, alertava da necessidade dos artistas plásticos, no Nordeste, eles mesmos, terem de escrever seus textos analíticos, ensaios críticos: “Não temos tantos estetas atuando por estas bandas do Nordeste e, pior, aqueles que escrevem bem moram agora entre o Rio e São Paulo”. Daí que, tornando-se vice-presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA para o Nordeste e, com a criação do Instituto Cultural Raul Córdula, lhe veio a vontade, mais uma vez, de propor um seminário de crítica de arte no Nordeste. Finalmente, com a aprovação deste projeto junto ao Edital da Caixa Econômica Federal, seu antigo desejo virou realidade.
Índice História e critica de arte: o papel da ABCA (1949-2015), por Elvira Vernaschi 4 O olhar e a palavra: artistas-escritores no Nordeste, por Raul Córdula 7 Crítica, arte e ação política: olhares em Pernambuco, por Olívia Mindêlo 10 O País da Saudade, 1982. História, política e memória, por Joana DʼArc de Sousa Lima 15 Bienais do Mercosul: modos críticos para interpretar a arte latino-americana, por Lisbeth Rebollo Gonçalves 17 Guita Charifker, flor plural, por César Romero 18 O Modernismo em Pernambuco ‒ Uma contribuição para a Modernidade no Brasil, 1930-2000, por Elvira Vernaschi 23 Tô dentro, tô fora, por Dyógenes Chaves 27 Reflexões sobre o apoio à arte contemporânea em Pernambuco, por Carlos Trevi 29 Os desenhos de Inimigos, de Gil Vicente, 10 anos depois, por Valquíria Farias 30 Tudo é Brasil ou Siamo Tutti Brasiliani, por Marcus Lontra 33 Eu vi o mundo...ele começava no Recife: o projeto e a presença de Radha Abramo, por Cláudia Fazzolari 35
E, com o imprescindível apoio da ABCA, em especial de sua presidente, Lisbeth Rebollo, o Encontro de Crítica de Arte ABCA: artes visuais em Pernambuco reuniu um grupo de expressivos expoentes da crítica de arte local e nacional, também, alguns dirigentes de instituições culturais, como Elvira Vernaschi, Lisbeth Rebollo, Agnaldo Farias e Cláudia Fazzolari (SP), Marcus Lontra (RJ), César Romero (BA), Carlos Trevi, Olívia Mindêlo e Joana DʼArc Lima (PE), Dyógenes Chaves e Valquíria Farias (PB), capitaneados por Raul Córdula e ʻabraçadosʼ pela competente equipe de produção, tendo à frente a museóloga Amélia Couto. Assim, a Segunda Pessoa, selecionada no Edital Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Funarte/ Ministério da Cultura, sugeriu à coordenação do Encontro essa edição especial contendo o resumo das intervenções de cada palestrante presente na Caixa Cultural Recife, dirigida por Marcos Kimura e que tão bem acolheu esse raro e profícuo momento da crítica de arte exercida na região. São textos, em sua maioria, que abordam artistas, movimentos e momentos locais, mas que também servem de farol ‒ mesmo que de porte reduzido, em função de espaço ‒ para melhor orientar e entender os rumos e a problemática das artes visuais não apenas no Nordeste, mas em todo esse país tão continental. A capa é uma fotografia do Recife (Rio Capibaribe) pelo paraibano Adriano Franco. Boa leitura.
História e crítica de arte: o papel da ABCA (1949-2015) Elvira Vernaschi
Em 1995 transferiu-se novamente para São Paulo, graças também aos esforços de José Roberto, onde desenvolve novos projetos e permanece até hoje.
Em 2015 a Associação Brasileira de Críticos de Arte completa 66 anos. É, portanto, uma jovem senhora. É uma Associação de abrangência nacional. Seu trabalho se intensifica a partir dos anos 1960, simultaneamente com o da crítica brasileira e concomitante a participação atuante de profissionais da crítica no Brasil e no exterior. Entre seus membros ilustres, além dos fundadores, encontram-se Clarival do Prado Valladares (BA), Geraldo Ferraz (SP), José Simeão Leal (PB), Lourival Gomes Machado (SP), Murilo Mendes (MG), Paulo Mendes de Almeida (SP), Casemiro Xavier de Mendonça (SP), Roberto Pontual (PE), Walmir Ayala (RS), Walter Zanini (SP). Os quadros atuais não são menos relevantes, num total de cerca de 160 associados em todo o Brasil. A ABCA nasceu ligada à Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), fundada em 1948, em Paris, no âmbito da UNESCO, ainda sob o impacto do final da segunda guerra mundial. Organismos, estes, criados na expectativa da construção de uma educação e de uma cultura que se firmava como um ideal de novos tempos, buscando eliminar as diferenças entre os povos e em direção a uma realidade mais humanista.
Em seus estatutos, a ABCA apresenta-se como “uma sociedade civil, cultural, autônoma e não lucrativa” que tem como finalidade “reunir os críticos de artes visuais, aí amplamente incluídos os profissionais da crítica de arte, pesquisadores, historiadores, teóricos, ensaístas, jornalistas, jornalistas culturais e professores de história da arte e de estética, brasileiros ou domiciliados no Brasil”. Como meta, a ABCA busca promover a aproximação e o intercâmbio entre profissionais que atuam na área da crítica de arte e incentivar a pesquisa e a reflexão no domínio das disciplinas significativas para a arte, contribuindo para a produção artística e da teoria da arte, não só na esfera das artes visuais, mas também na da educação e da cultura. À associação interessa, portanto, colaborar com instituições e entidades que objetivam fins essencialmente culturais. Outro objetivo é assegurar a prática da crítica com fundamentos metodológicos e éticos, defendendo os direitos profissionais dos críticos e proporcionar a interação permanente entre seus membros associados, favorecendo a realização de encontros para discussão e divulgação do pensamento crítico.
A UNESCO incentiva a criação de uma associação internacional de críticos e de associações nacionais, com o objetivo de promover a aproximação das diversas culturas e o intercâmbio de distintas estéticas. O Brasil se faz representar e críticos brasileiros, respondendo a esse chamado, participam desse primeiro encontro.
Desde meados dos anos 1930, iniciando com Sérgio Milliet, os críticos tiveram, em jornais e periódicos, principalmente, de São Paulo e Rio de Janeiro, espaços para suas ideias e críticas. No final dos anos 40 e princípio dos anos 50, com a inauguração dos museus de arte e da organização da I Bienal Internacional de São Paulo, esses espaços se tornam os novos meios de atuação desses profissionais. Surge, então, uma outra figura importante, e que se tornará dominante em meados dos anos 80, a do curador. Ela se justapõe no exercício do papel do crítico: exercitando seu olhar propicia ao público a possibilidade de ver e experienciar a obra-de-arte. Nesse contexto, Lourival Gomes Machado é, digamos, o nosso primeiro crítico-curador. Ele foi diretor artístico do Museu de Arte Moderna - MAM São Paulo (1949/1951) e da Bienal Internacional de São Paulo (1951/1959).
Após essa reunião em Paris, a ABCA, a mais antiga associação brasileira de profissionais da área das artes visuais, é criada em 1949, no Rio de Janeiro. Do ato de fundação participaram os críticos Sérgio Milliet (SP), seu primeiro presidente, Mário Barata (RJ), Antonio Bento (PB) e Mário Pedrosa (PE), também presentes em Paris, quando da realização das duas reuniões para a constituição da AICA. Na ocasião, três secretários regionais foram nomeados, entre eles, Sérgio Milliet, para a América Latina. De acordo com depoimento de José Roberto Teixeira Leite, como seu primeiro presidente, Sérgio Milliet, era residente em São Paulo, a ABCA aqui atuou logo após sua fundação até final dos anos 1960, quando retornou ao Rio de Janeiro.
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A crítica que se faz hoje é diferenciada daquela da segunda metade do século passado. Mesmo em período de crise política, nos anos 1960/70, e durante os anos 80, críticos como Olívio Tavares de Araújo, Olney Krüse, Roberto Pontual e Ronaldo Brito, por exemplo, tinham espaço garantido em jornais como O Estado de São Paulo, Revista Veja e Isto É, Jornal da Tarde, Jornal do Brasil e O Globo, respectivamente. Nesses espaços, o público encontrava, semanalmente, textos sobre os acontecimentos artísticos, em que eram apreciadas obras e artistas pontuais da arte brasileira e internacional. Das poucas “colunas de arte”, como eram chamadas, lembramos que o único crítico filiado a abca que mantém, ainda hoje, coluna semanal é César Romero (“Artes Plásticas” ‒ Correio da Bahia).
Crítica de Arte (1961-1983); os Cadernos de Crítica (1983), além de anais de congressos e seminários como os do II Congresso Nacional de Críticos de Artes (1962) e os do XLI Congresso da AICA (2007), ambos realizados em São Paulo. Entre as mais recentes encontram-se: a Coleção Crítica de Arte, o Jornal da ABCA e o Jornal da Crítica On Line. Coleção Crítica de Arte A coleção “Crítica de Arte” foi criada, em 2005, com o objetivo de abrir, de forma sistemática, o debate sobre crítica de arte, alargando e aprofundando o espaço já instalado pelo Jornal da ABCA. Coordenada por Lisbeth Rebollo Gonçalves e organizada com a colaboração de colegas associados, sua orientação se dá em duas vertentes:
A ABCA vem procurando, através de suas atividades, sanar essa carência de espaço definindo seu próprio papel e o da crítica com a realização de encontros, debates, seminários e congressos nacionais e internacionais onde são discutidos novos pensamentos e teorias; ou através da publicação das reflexões críticas de seus associados. Essa atuação se dá nos mais variados campos.
(1) resgate da contribuição dos principais críticos de arte do século XX, que desenharam o perfil de nossa modernidade artística, projetando questões teóricas fundamentais para a História da Arte no Brasil, como é o caso do livro sobre Sérgio Milliet. (2) reunião de informações básicas, históricas e teóricas, para a compreensão da crítica de arte no cenário cultural do séc. XX, com a publicação, por exemplo, o livro sobre Arte Brasileira no Século XX.
Atividades de crítica e de pesquisa Laboratório e pesquisa O Arquivo e Laboratório de Crítica de Arte foi criado junto a Escola de Comunicações e Artes da USP (2000). No Arquivo trabalha-se a documentação da produção dos críticos de arte, desenvolve-se o estudo da história da entidade, debate-se a história e a prática da crítica de arte e da arte contemporânea.
Jornal da ABCA Entre as publicações encontra-se também o Jornal da ABCA (2000) com edições bianuais e que sucedeu ao Jornal da Crítica (1996-2000). Entre abril de 2007 e dezembro de 2009, essa publicação se tornou trimestral. O Jornal é um periódico elaborado e escrito por seus associados e voltado exclusivamente para as artes plásticas. Com matérias enviadas de todo Brasil despertou enorme interesse dos associados, de bibliotecas e instituições do país, sempre colocando em evidência um tema de interesse da comunidade/sociedade, como o Prêmio ABCA, as bienais, os 100 anos da imigração japonesa, a comemoração dos 60 anos da associação ou ainda fazendo homenagens a artistas, críticos e personalidades atuantes. Para tanto a ABCA contou com a parceria inestimável da IO-Imprensa Oficial do Estado. Em 2010 o jornal impresso passou a ser denominado de Arte & Crítica, com 2 números impressos e a partir de 2012 o jornal circula on line.
Biblioteca ABCA A organização de seu arquivo documental e de um biblioteca que concentra livros, catálogos e impressos de seus associados, essencialmente encontra-se no espaço da Biblioteca do Instituto de Arte da UNESP-Universidade Estadual Paulista (2012), para consulta pública. Publicações Como já foi mencionado, o ponto alto de sua atuação está nas publicações, onde seus filiados encontram espaço para discutir suas ideias e pensamentos. Destacamos a Revista
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Outros eventos já realizados são: O 1º Congresso Brasileiro de Críticos de Arte, para a I Bienal de São Paulo (org. Mário Pedrosa, em 1951); Congresso Internacional Extraordinário e Assembleia Geral da AICA, Brasília, São Paulo (V Bienal) e Rio de Janeiro, em 1959. Em 2007 foi organizado, em São Paulo, o segundo congresso internacional da AICA no Brasil (XLI AICA Congress). Em 2009 foi realizado o fórum de debates “Arte e Crítica ‒ Trajetórias e Perspectivas”, como parte do projeto ABCA 60 Anos e a mostra de artes plásticas “Olhar da Crítica ‒ Arte Premiada da ABCA e o Acervo Artístico dos Palácios”. Diversos seminários nacionais e regionais foram realizados em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Rio de Janeiro e agora, em 2015, este “Encontro de Crítica de Arte ABCA: artes visuais em Pernambuco”.
Site ABCA Outra forma de atuação é o seu site, organizado em 2003 (abca.art.br) e agora remodelado, com itens como Notícias (sempre um texto, um relato ou atividades de seus associados); Sobre a ABCA (histórico da associação); Jornal da ABCA (publicação on line do jornal); AICA-internacional (notícias e eventos da AICA). Eventos Prêmio ABCA Surgido em 1960, o Prêmio ABCA é o reconhecimento da atuação e produção do crítico, do artista e de outros agentes da sociedade em prol da arte brasileira. Hoje abrange 10 categorias: trajetória e atuação do crítico, contemporaneidade e trajetória do artista, instituição, personalidade, curadoria, exposição, destaque na mídia, publicação de pesquisa.
Exposições Por fim mas não menos importante e colocando lado a lado críticos e artistas, teoria e criação, a ABCA realizou algumas exposições visando essa interação mais intensa e profunda. Destacam-se o Painel da ABCA, em cooperação com o Museu de Arte Contemporânea da USP (1994-1998 e 20032004), a mostra “Artistas Contemporâneos ‒ Prêmio ABCA 2000/2001”, em cooperação com o Centro Cultural Banco do Brasil (2002); a mostra “Olhar da Crítica ‒ Arte Premiada da ABCA e o Acervo Artístico dos Palácios”, em cooperação com o Acervo Artístico dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo (2009).
Desde 2003 o Prêmio ABCA sofreu modificações importantes em sua estrutura, na forma e na condução do próprio processo. Os troféus oferecidos aos ganhadores são verdadeiras obras de arte, o de 1978, foi idealizado por Mauricio Salgueiro; em 1990 era uma peça de Haroldo Barroso; entre 1995 e 1999, o troféu constituiu-se de uma escultura de Bruno Giorgi, gentilmente cedida pela viúva do artista, Sra. Leontina Giorgi; desde o ano 2000 é uma obra de Nicolas Vlavianos, escultor grego radicado no Brasil há mais de 20 anos.
Gostaria, ainda e finalmente, de enfatizar que a ABCA vem cumprindo suas finalidades também através da colaboração com os poderes públicos e a iniciativa privada, a participação em ações e realizações culturais de utilidade social e cultural que visam despertar e intensificar o interesse do público pelas artes plásticas.
O processo, anual, se dá através de eleição realizada por voto secreto. A divulgação das indicações e dos premiados nos principais órgãos de imprensa de todo o país repercute e dinamiza o processo, o que colabora com os objetivos da direção, de dar maior visibilidade à associação.
Elvira Vernaschi é historiadora, crítica de arte e curadora. Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes, ECA/USP. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA.
Congressos, seminários e debates Um outro veículo que possibilita a discussão e difusão do pensamento teórico e a compreensão da produção artística e estética são os debates, encontros e seminários organizados nacional, regional e internacionalmente, como este que estamos realizando agora em Recife sobre as Artes Visuais em Pernambuco, através do Instituto Raul Córdula e da Caixa Cultural.
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O olhar e a palavra: artistas-escritores no Nordeste Raul Córdula
O Instituto Cultural Raul Córdula, homenagem que Amélia Couto, minha mulher, e Cláudio Córdula, nosso filho, me fazem, nasceu sob o signo da educação para a arte e cultura visual e neste princípio seus integrantes estruturam sua ação. A questão da crítica de arte, portanto, não poderia deixar de ocupar com destaque um espaço em seu contexto. Sendo filiado à ABCA vi-me motivado para sugerir ao ICRC a realização deste Encontro.
Meu objetivo, porém, é citar e comentar sobre a existência no Recife de muitos artistas que, como eu, escrevem. Pela característica desses textos se pode pensar que a escrita é essencial para mediação de suas obras e pensamentos com o público. Não me refiro apenas a textos literários, mas também a escritos reflexivos referentes à arte que nos abraça, escritos que eu chamaria de especiais, fora de sintonia com os padrões normais dos que escrevem profissionalmente, mas carregados de íntima verdade. Embora a crítica seja uma forma de literária e os artistas também escrevam “crítica de arte”, eles escrevem da mesma forma a literatura comum, como vemos em Nuno Ramos nas páginas do belo e instigante “O Mau Vidraceiro”, ou em José Rufino, que além do grande artista que se conhece também é paleontólogo e recentemente editou pela CosacNaify o livro de contos “Afagos”, e também José Cláudio; Pedro Américo; Marcos Cordeiro, Montez Magno; Jota Medeiros, entre tantos.
É sabido que no Recife acontece intensa manifestação da atividade comumente chamada de “crítica de arte” que se manifesta em textos críticos que podem ter diversas formas, como apresentações de exposições, jornalismo de arte, historiografia da arte e curadoria, por exemplo. Observa-se também a produção de dissertações no Mestrado de Artes Visuais desenvolvido em conjunto pelas universidades federais de Pernambuco e Paraíba e de Mestrados em outras áreas do saber como História e Teologia, na Universidade Católica do Recife, por exemplo. Há também atividades curatoriais praticadas nas instituições culturais públicas e privadas como a Caixa Cultural, a Fundação Joaquim Nabuco, o Instituto Santander, o Espaço Cultural dos Correios, o Instituto Ricardo Brennand, o Instituto Abelardo da Hora e o Instituto Ladjane Bandeira entre outros, por exemplo.
Peço paciência e compreensão à plateia pois, para caucionar esta pulsão de rebuscar este tema, eu tenha de exemplificar com experiências vividas. Escrevo textos, em nada especiais, sobre artistas que me tocam com a chama de seus talentos. Comecei a escrever para preencher o vazio do diálogo com a arte, mas também motivado por exemplos de artistas como Ladjane Bandeira, pintora e desenhista do Recife responsável por vasto material crítico publicado nos jornais da cidade nas décadas de 1950/60, que tem hoje sua obra artística e crítica sob a guarda de um Instituto com seu nome dirigido por sua sobrinha Márcia Miranda Lyra, já citada. Muito me tocaram também os textos do pintor conterrâneo Tomás Santa Rosa, que viveu no Rio de Janeiro e publicou na imprensa carioca nas décadas de 1940-1950. Então, em busca de conhecimento, nos primórdios do artista que me tornei, ainda adolescente fui à busca dos escritos dos paraibanos Rubem Navarra, Antônio Bento e Mário Pedrosa.
Antes de me enfronhar no tema eu gostaria de citar nesta comunicação alguns livros de autoria de escritores e críticos de arte sobre a obra de artistas pernambucanos: “Biopaisagens de Ladjane Bandeira ‒ A Transformação da Natureza em Conhecimento” de Márcia Miranda Lyra, presidenta do Instituto Ladjane Bandeira; “Cartografia das Artes Plásticas no Recife dos anos 1980 ‒ deslocamentos poéticos e experimentais”, tese de doutorado de Joana DʼArc Lima; “O Grupo dos Independentes ‒ Arte moderna no Recife 1930”, de Nise de Souza Rodrigues; “Viver a Vida / Guita Charifker ‒ Aquarelas, Desenhos, Pinturas”, ensaio de Olívio Tavares de Araújo com prefácio do teatrólogo pernambucano Ronaldo Correia de Brito; “Paulo Bruscky ‒ Arte em todos os sentidos”, de Cristiana Tejo; Murilo La Greca sua arte e sua vida, de Carlos Alberto Barreto Campello de Mello e Fernando Borba; “Sedução da Arte em Vera Bastos”, da poeta Lourdes Sarmento; “O olhar de Corbiniano Lins sobre sua arte” e “Ensaio com Abelardo da Hora” de Weydson do Rego Barros Leal; “Hélio Feijó”, de Eduardo Cavalcanti.
A lista dos conterrâneos não fica aqui, fundamental para mim foi a aproximação com o pintor e poeta Archidy Picado que, quase desconhecido fora de João Pessoa, ele foi um dos artistas importantes na formação do olhar dos jovens postulantes à arte na nossa cidade, autor de instigantes artigos publicados na imprensa local, que entre os anos 60 e 70 preconizavam a pós-modernidade. Ainda mais frutíferos
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Crítica, na verdade, é uma especialização no estudo da literatura. Hoje a ABCA comporta os críticos propriamente ditos e também os jornalistas, cronistas, historiadores, psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, entre outros, que escrevem sobre arte.
foram meus contatos com outro escritor paraibano, José Simeão Leal, também filiado à ABCA e diretor do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Saúde nas décadas de 1940-60, onde dirigiu a coleção “Artistas Brasileiros”, e editou em 1955 o magnífico álbum “Goeldi” de Aníbal Machado e, entre outros, o livro sobre Jeronimus Bosch de autoria José Roberto Teixeira Leite, um dos mais antigos sócios da ABCA, resultado da sua Bolsa Guggenheim. Simeão foi também um dos diretores do MAM/RJ e criador da Escola de Comunicação no Rio de Janeiro. Um exemplo notável de amor à arte é que, com mais de sessenta anos de vida dedicada à observação e ao estudo das artes plásticas, ele iniciou sua carreira de artista, desenhando e fazendo colagens e esculturas. Simeão chegou a expor em Turim numa mostra conjunta com Cildo Meirelles. Temos aqui exemplo semelhante, trata-se de Carlos Trevi, diretor do Centro Cultural Santander, que em plena maturidade se revelou artista de grande interesse, fazendo sua esteia ano passado na Galeria Sobrado, em Olinda.
Recife e Olinda: cidade dupla “Então pintei de azul os meus sapatos Por não poder de azul pingar as ruas.” Carlos Pena Filho
Recife e Olinda são pródigas em artistas-escritores, tanto de crítica ou crônica da arte como de literatura propriamente dita: poesia e prosa. Na década de 1960 Adão Pinheiro apresentou vários folhetos ‒ que chamávamos “catálogos” ‒ das exposições da Galeria de Arte do Recife, que ficava ao lado do Edifício dos Correios, na Rua do Sol sob o canteiro que beira o Capibaribe. Tratava-se de um equipamento cultural da Prefeitura de Miguel Arraes, gerida pelo escultor Abelardo da Hora. Adão escreveu também os folhetos da Galeria da Ribeira, quando se iniciava o movimento dos artistas que, por iniciativa do Prefeito Eufrásio Barboza que cedera o Mercado da Ribeira para o grupo de artistas liderados por Adão e Ipiranga: o Movimento da Ribeira. Antes, Adão se instalara em Olinda integrando o ateliê que Montez Magno mantinha com Anchises Azevedo. Montez tem grande produção de textos e poesia, especialmente de vanguarda como ”Câmara Escura”, “Floemas e Memorabília”, e também apresentou folhetos e catálogos de exposições.
Então, nos anos de 1980 quando a Funarte editou o excelente ensaio “A querela do Brasil”, de autoria de Carlos Zílio, importante obra sobre a questão da identidade da arte que comenta a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari, marcando a compreensão da passagem da modernidade para a contemporaneidade, tive a certeza de que me deixaria contaminar com a mania de escrever. Entrei na ABCA na década de 1970 quando estava no Rio de Janeiro e o amigo, crítico de arte e escritor do Rio Grande do Norte, Geraldo Edson de Andrade, me falou da Associação e se colocou à disposição para apresentar meu nome como sócio. A ABCA se reunia numa sala da Escola Superior de Desenho Industrial ‒ ESDI, que era dirigida pela Senhora Carmem Portinho. Mesmo não me considerando crítico de arte eu aceitei o convite de Geraldo Edson, pois havia uma abertura que possibilitava outras formas de atividade literária desde que referentes à arte. Nos anos de 1990 por vários motivos a ABCA mudou-se para São Paulo que, entre outras coisas, tinha um número de sócios superior ao Rio. O crítico de arte típico desde a década de 1940, quando a ABCA foi criada, era ligado ao jornalismo, o que escrevia para o grande público, que mediava o fenômeno artístico com os leitores através dos jornais, embora já houvesse intensa atividade acadêmica em relação a teoria da arte.
José Cláudio, por sua vez, no seu livro de estreia foi “Viagem de um jovem pintor à Bahia” narra as aventuras vividas em Salvador onde conheceu artistas como Mário Cravo e Caribé, que o apoiaram. Com isto ele se coloca como um dos nossos maiores cronistas da arte, autor de documentos como “Memórias do Atelier Coletivo”, “Tratos da arte em Pernambuco”, “Artistas de Pernambuco”, livros de viagem “Os dias de Uidá”, “Bem dentro ‒ 3º livro de viagem” e crônicas como “Meu pai não viu minha glória” que contém todas as crônicas semanais que publicadas entre 1988 e 1995, para o Suplemento Cultural do Diário Oficial de Pernambuco.
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Francisco Brennand escreve reflexões que eventualmente chegam ao público através da imprensa como o que escreveu para o Diário de Pernambuco há mais de uma década. Vicente do Rego Monteiro, de geração anterior a Brennand, que o talvez tenha pois ele que está na base do modernismo pernambucano, foi poeta e escreveu textos avulsos no decorrer de sua vida. Seu irmão Joaquim do Rego Monteiro, modernista de primeira água, também foi poeta. Vicente está na base do modernismo pernambucano. Atualmente Paulo Bruscky, que organizou o notável livro sobre “Vicente do Rego Monteiro ‒ Poeta, tipógrafo e pintor”, publica em coletâneas de textos sobre arte contemporânea como as organizadas por Glória Ferreira que há muito percebeu esta propensão dos artistas para a escrita e a singularidade de seus textos. Como estes, o pintor Marcos Cordeiro se destaca como poeta e dramaturgo com textos premiados em vários concursos literários, e também como apresentador de exposições.
De geração mais recente encontramos o grupo que produz a revista “Tatuí”, realizada pela jovem e brilhante curadora Clarissa Diniz junto a uma equipe formada por Ana Luísa Lima, Bebel Kastrup e Daniela Brilhante. Para não dar a entender que esta prática se restringe à Paraíba e Pernambuco é importante citar artista-escritores de outras, cidades do Nordeste, como: Natal, com Newton Navarro, importante desenhista e poeta que movimentou a arte de sua cidade nas décadas de 1950-60; o pintor Dorian Gray, também poeta da mesma geração de Newton Navarro, poeta e cronista, autor de curadorias, algumas para acervos da cidade; e Jota Medeiros, pintor, e também importante poeta vanguardista, pioneiro do Poema Processo no Brasil; Salvador, onde destaco o pintor César Romero, também sócio da ABCA e que nos brindará com uma fala, que há quatro décadas escreve crítica de arte para o jornal Correio da Bahia; em Maceió a pintora Solange Lages Chalita, também sócia da ABCA e presidente da Fundação Pierre Chalita, e o pintor Benedito Nunes, colunista de artes plásticas em um dos jornais da cidade; em Fortaleza, José Guedes e Roberto Galvão colaboram com a imprensa impressa e virtual.
Da mesma geração de Paulo Bruscky são João Câmara, que também integra a ABCA e escreve o texto literário e o texto crítico, alguns publicados na imprensa local, e o pintor Plínio Palhano, autor de artigos sobre aspectos da arte, com os quais colabora com as páginas editoriais do Diário de Pernambuco e do Jornal do Commercio.
Na área dos escritos acadêmicos parece que o artista que primeiro se destacou foi Pedro Américo ao defender na Universidade de Bruxelas no final do século XIX sua tese de doutorado, “Da Ciência e dos Sistemas”, editada aqui pela UFPB.
Há poucos anos foi editado pelo Funcultura, fundo de incentivo cultural do Estado de Pernambuco, o poético livro “Virgolino ‒ O Cangaceiro das Flores”, de autoria do seu irmão Wilton de Souza, também artista e professor que formou gerações de artistas.
Volto a citar paraibanos como Francisco Pereira da Silva Júnior (Chico Pereira), professor de história da arte na UFPB e autor de vários trabalhos, destacando-se “A Feira de Campina Grande”, ensaio ilustrado com fotografias de Roberto Coura, e “Paraíba ‒ Memória Cultural”, panorama da vida cultural do Estado, e Dyógenes Chaves, sócio da ABCA que teremos o prazer de ouvir também, que escreveu para o jornal O Norte e é autor de um “Dicionário de Artistas Paraibanos”.
Na atualidade temos artistas, historiadores e sociólogos munidos de dissertações resultantes dos mestrado de artes visuais dividido entre as universidades federais de Pernambuco e Paraíba e de cursos de outras áreas de conhecimento. Exemplo disto é o ensaio da artista Ana Lisboa “Arte como prece ‒ a religiosidade no trabalho de quatro artistas pernambucanos”, sobre a obra de Luciano Pinheiro, Montez Magno e Renato Vale, defendido no curso de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco e o já citado “Cartografia das Artes Plásticas no Recife”, de Joana DʼArc Lima. Importante também é o livro do artista e professor do Departamento de Arte da UFPE, Sebastião Pedrosa, “O Artista Contemporâneo Pernambucano e o Ensino de Arte”.
Seguiram pelo caminho inverso, isto é, do escritor para o artista, e é interessante também citar, autores como: Gilberto Freyre, severo crítico do modernismo proclamado pela Semana de 22 quando lançou o polêmico Manifesto Regionalista, na maturidade tornou-se pintor de singulares
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Crítica, arte e ação política: olhares em Pernambuco Olívia Mindêlo
paisagens que mereceram elogios num texto de José Cláudio; o poeta alagoano Jorge de Lima que foi pintor e médico, como o paraibano Rodolfo Athayde; o poeta pernambucano e excelente desenhista Jaci Bezerra.
No filme “A história da eternidade”, do cineasta pernambucano Camilo Cavalcante, o ator Irandhir Santos interpreta a contradição em meio a um povoado sertanejo onde ser homem significa ser macho; dar duro na lida diária sem arrodeio. Ele é um artista pobre e surge nesse cenário como a negação do seu habitat. Sua grande (e talvez única) admiradora é a sobrinha Afonsina (Debora Ingrid), uma menina de 15 anos que sonha conhecer o mar e tem no tio sua fonte de sonho e inspiração na vida. Certo dia, o artista Joãozinho volta de uma apresentação na feira e então a sobrinha pergunta a ele como foi lá:
Além de escritores, encontramos músicos dedicados às artes plásticas como o poeta, compositor e cantor performático Lula Cortes que faz parte da seleta família dos músicos-artistas visuais do Recife, ao lado do nosso cartunista-guitarrista Lailson Holanda; Dorival Caymmi, pintor das praias e das gentes baianas; de Caetano Veloso, cuja única obra conhecida é o desenho da capa do LP “Joia”. Vale citar também, em outro registro, Miles Davis, poderoso pintor, Ron Wood, guitarrista dos Rolling Stones, e o suíço Julius Bissier, importante virtuoso do violoncelo tendo inclusive participado de uma Bienal de São Paulo. Gostaria de lembrar ainda que Carlos Drummond de Andrade foi excelente desenhista, é de sua autoria um pequeno retrato de José Simeão Leal onde ele marca seu traço hábil e sintético.
‒ Foi mais ou menos, Fonsina. Ninguém hoje quer saber mais desse negócio de arte, não ‒ responde o tio. Eis uma questão importante: quem quer saber de arte hoje em dia? É justo sobre isso que trata este texto. Não na tentativa de dar conta de quem são as pessoas interessadas em apreciar a produção artística, mas de procurar abordar essa questão como uma problemática que ainda enfrenta o meio, em São Paulo ou no vilarejo de Santa Fé. Para tanto, trazemos aqui um pouco do Encontro de Crítica de Arte ABCA ‒ Artes visuais em Pernambuco, realizado este ano na Caixa Cultural Recife. Na ocasião, procurei dividir a inquietação que me motiva a trabalhar com arte: como Afonsina e seu tio, eu desejo imensamente que mais pessoas queiram saber de arte neste mundo. E por isso, apesar de ainda circunscrita em um universo de poucos, tal qual a arte, vejo na crítica um potencial desbravador. É o que me interessa nela, sendo esta uma questão de política ‒ ou de militância, até.
Raul Córdula é artista visual e crítico de arte (ABCA/AICA). Vicepresidente para o Nordeste da Associação Brasileira de Críticos de ArteABCA. Criador e dirigente do NAC/UFPB (João Pessoa) e do Museu de Arte Assis Chateaubriand (Campina Grande-PB). Publicou os livros Anos 60 (Funarte, UFPB), Memórias do Olhar (edições Linha DʼÁgua), Fragmentos (edições Funesc) e Utopia do Olhar (Funcultura, Fundarpe, Governo de Pernambuco).
Contudo, é preciso dizer que o território da crítica se mostra também um espaço minado por disputas ‒ como, aliás, tendem a ser os espaços sociais. São as disputas conceituais e simbólicas por natureza. Basta lembrar que o mesmo jornal pernambucano onde vimos a palavra frevo ser publicada pela primeira vez na história, em 1907, foi também o local onde Mário Melo estampou, na década de 1920, a seguinte frase: “Já não se fazem mais críticos como antigamente”. Até hoje, pensamentos como o do jornalista e político recifense, impresso no Jornal Pequeno¹, parece sair do senso comum, ecoando entre os insatisfeitos com a produção crítica feita em torno da arte no Brasil. Afinal, quem do meio nunca ouviu algo do tipo? Parece tão comum quanto “isso não é arte”.
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O livro “Crítica de arte em Pernambuco: escritos do século XX”, de 2012², registra outro dado curioso: “o dito ʻestabelecidoʼ pela crítica de arte em Pernambuco é que ela teria sido inexistente até a década de 1990”³. Isso, por si só, abalaria o saudosismo de Mário Melo, para quem a “crítica boa” havia se perdido antes mesmo dos anos 1920. Como resolver esse impasse, então? Apesar de ambas as ideias soarem divergentes sob o ponto de vista histórico e conceitual, existe nelas algo em comum: uma dada referência do que é crítica de arte e a tradição popular, digamos assim, de se criticar (julgar) a crítica. Além disso, o próprio livro (idem) se encarrega de desmistificar ambos os “postulados”, ao argumentar que precisamos nos permitir “enxergar um pensamento crítico que destoa das expectativas em torno de um modelo recorrente de crítica de arte, habitualmente argumentativo e judicativo”⁴; ou seja, para além do sentido moderno (e tradicional) de “uma atividade humana voltada para os julgamentos, em particular, os julgamentos de apreciação (juízo de valor) da obra de arte”, como define a pesquisadora e crítica de arte Maria José Justino⁵.
perspectiva formal na pintura, passando pelas ideias essencialistas de belo e de juízo de gosto construídas por Kant⁷ até as desconstruções que fazem hoje as possibilidades de crítica se alargarem. Maria José Justino⁸ aborda a definição geral que ainda sustenta boa parte da noção que temos de texto crítico, ao mesmo tempo em que reconhece a crise desse mesmo modelo, principalmente desde a inserção mais recorrente da arte contemporânea no meio artístico: (...) no sentido moderno, (a crítica) surge como uma atividade humana voltada para os julgamentos, em particular, os julgamentos de apreciação (juízo de valor) da obra de arte. Todo julgamento apresenta uma perspectiva da obra ou várias perspectivas. A crítica surge, então, dando conta tanto da avaliação como da interpretação. Sem dúvida, essa ocupação faz do crítico, em relação à obra, uma autoridade, amada ou odiada⁹.
A definição colabora também no entendimento do motivo de alguns críticos, e mesmo avaliadores dos críticos, costumarem confundir, até hoje, crítica, juízo de valor e gosto pessoal; mais ainda: de eles demonstrarem insatisfação quando isso não acontece ou até mesmo quando acontece (pela forma como acontece), daí a relação passional e às vezes um tanto “esquizofrênica” com esse ofício. Porém, ao tempo em que entendemos uma visão como algo que perdura, precisamos compreender que o pensamento não pode se espremer mais em um único compartimento, sobretudo para quem se arvora a refletir acerca da produção artística contemporânea. A própria Maria José Justino (idem) reconhece que “a crítica de arte precisa de rigor e flexibilidade. Por isso mesmo, deve construir um método aberto, capaz de dar conta dessas dificuldades e captar o novo”¹⁰.
No texto de apresentação do livro sobre crítica em Pernambuco (2012), os organizadores defendem que possamos ampliar a noção de texto crítico, ao trazer um recorte de diversos tipos de escritos (cartas, artigos, manifestos, ficções, entrevistas, ensaios, manuais, depoimentos etc.), produzidos em torno da arte pernambucana, por autores como Gilberto Freyre, Joaquim Cardozo, Joaquim Inojosa, Vicente do Rego Monteiro, Montez Magno, Jomard Muniz de Britto, Moacir dos Anjos e até Mário Pedrosa, do início do século 20 para cá. Sob este viés, também defendido aqui, podemos afirmar que a crítica ‒ ou, se preferirmos chamar, as apreciações escritas sobre a arte produzida por nossas bandas ‒ não faltou e não falta em Pernambuco há um bom tempo. Não precisamos julgar essa produção, necessariamente, mas apenas considerar que onde há arte, há crítica ‒ pelo menos desde a inauguração do pensamento moderno e, mais fortemente, desde que o campo artístico passou a ter autonomia, no século 19⁶. Arte aqui entendida como filha da modernidade, portanto diferente de sua noção prérenascentista; e crítica, por sua vez, vista como um conceito que vem a reboque da criação artística e, como esta, só fez se reinventar após inúmeras crises, desde a elaboração da
Como alguém que tem buscado tecer olhares sobre a arte pernambucana desde 2002, me considero um aprendiz nesse desafio. Confesso, aliás, ter dificuldade de vestir a roupa de crítica, muito pelas simplificações geralmente feitas em torno dessa atividade, ainda mais recorrentes por quem já passou pelo jornalismo cultural diário. O público de jornal geralmente espera um posicionamento, ou um juízo de valor, do crítico (na verdade, um resenhista) sobre uma exposição ou um filme que acabou de ser lançado, por exemplo. Isso pode até ter sua utilidade, quando colocado
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Entre muros e catálogos
em prática, a questão é que, do lado do jornalista, há geralmente pouco espaço disponível para o texto e uma tendência a um julgamento superficial, muitas vezes repleto de adjetivação. Em parte, isso justifica reducionismos de interpretação por alguns leitores em relação ao trabalho do jornalista ‒ algo do tipo “fulano falou mal (ou bem) do trabalho”, “sicrano não entende nada de arte”, “ele é um artista frustrado” ou “nos jornais, a crítica não existe mais”.
Livros de arte, revistas especializadas, catálogos e paredes de projetos expositivos se configuram espaços cada vez mais recorrentes para o exercício da crítica da arte, em particular das artes visuais. Nesse sentido, Pernambuco não é diferente do restante do Brasil. Sabemos que isso tem a ver com a institucionalização da arte e a crítica corrobora esse processo, pois os textos são recursos legitimadores. Assim como a arte contemporânea tende a atrair os olhares de uma elite culta e privilegiada em sua formação¹², essa crítica geralmente também chega a poucos. Saber disso é importante. Mas o jornalismo cultural ou uma mostra como a Bienal de São Paulo, por exemplo, tende a seguir destino semelhante, mesmo atingindo um maior número de pessoas¹³. Se o crítico, principalmente o crítico-curador, “assume, apenas, a posição de um ʻleitorʼ especializado, porque todo receptor da obra de arte contemporânea, por sua interpretação ou mesmo participação, a absorve a seu modo”, como diz Lisbeth Rebollo¹⁴, é também dele a tarefa de saber seduzir novos olhares, para além do processo legitimador da arte em si.
Todas as vezes nas quais tentei, pelas folhas do jornal¹¹, emitir uma valoração mais direta ou precipitada sobre um trabalho artístico, não fui muito feliz. Não apenas por gerar insatisfações na cena local ‒ pois eis um osso do ofício jornalístico com o qual é preciso lidar ‒ e, sim, por sentir que não estava desempenhando meu papel de forma plena. Acabava, dessa maneira, por ajudar a engrossar o caldo de visões precipitadas sobre a crítica e sobre a própria arte, em vez de contribuir para promover percepções mais alargadas e aprofundadas em torno da criação, como sempre acreditei ser o papel do crítico ou de quem produz pensamento em torno dessa área. A arte costuma nos mostrar tantas possibilidades de reflexão e interpretação que reduzi-la a uma crítica movida pelo juízo de valor parece ser mesmo um caminho sem muito razão de ser. Ainda que a atividade crítica demande conhecimento e certo aparato conceitual, a produção textual pode ser tão ampla quanto a arte. Se é preciso reconhecer o campo artístico como um espaço de disputas por legitimação e poder, sendo o crítico um agente desse processo, também é interessante perceber como a arte pode ser uma exceção à cultura (à regra), para lembrar Godard, e assim também ser a crítica, ante seus modelos pré-estabelecidos.
No Recife, venho atuando nesse desafio, junto aos projetos expositivos, desde 2008. Além de ter escrito sobre artistas tão diferentes, em idade e criação, pude também escrever para públicos mais diversos, sobretudo nas experiências da Galeria Janete Costa. Sob a gestão da Prefeitura do Recife, o espaço merece um estudo de caso em relação aos seus visitantes espontâneos, afinal não é todo dia que vemos pessoas de diferentes classes sociais, perfis e faixas etárias visitando uma exposição de arte. Na galeria do Parque Dona Lindu, projetada por Oscar Niemeyer, em Boa Viagem, é geralmente assim. Por isso, escrever para um público como esse é um pacote de sorte, responsabilidade e alegria ao mesmo tempo.
Acredito ser prudente não tentarmos definir hoje tantos parâmetros para a crítica e, sim, buscar diferentes possibilidades. Tento colocar isso em prática e prefiro atualmente dividir com os leitores palavras escritas para paredes e catálogos de exposição a tentar convencê-los a ir (ou não) a uma mostra de artes visuais em cartaz no Recife, por meio de uma matéria, por exemplo. Mesmo que isso signifique estar defendendo o trabalho de um artista ou um ponto de vista, o que, afinal, é quase sempre o propósito de um texto.
Passei por momentos assim produzindo textos para as exposições individuais “Raul Córdula: 50 anos de arte, uma antologia”, em 2012, e “Tudo se liga. Siga”, de Cristiano Artur, em 2014. Em ambos os casos, pude ver várias pessoas não apenas lendo o texto, ao vivo, na parede, enquanto eu espiava as reações com misto de apreensão e felicidade, como andando por toda a mostra, olhando obra a obra, tecendo comentários sobre elas, tirando fotos ao lado e, em alguns casos, participando de ações da mostra.
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Na retrospectiva de Raul, o pessoal do hip hop dançou, a convite do artista, literalmente em cima da obra “Araguaia” (pintura sobre papel, 450 x 150 cm), numa cena emocionante, com significados poéticos, políticos e estéticos. Isso muda a atividade e o olhar de um crítico. Paraibano radicado em Pernambuco há décadas, Raul Córdula é um artista mais do que consagrado no Brasil, mas certamente boa parte daqueles visitantes jamais havia visto sua obra ou sequer ouvido falar dela. Mais importante era que Raul estava ali para revelar uma face pouco conhecida de sua trajetória, quase sempre associada à pintura abstracionista geométrica. Foi isso que procurei defender em palavras para a exposição. Muito além das geometrias, o que poucos provavelmente sabiam era de seu engajamento político na arte, finalmente estampado ali para todo mundo ver, colocando-o lado a lado da geração 1970/1960, de nomes como Hélio Oiticica, Lygia Pape, Antônio Dias. “Realmente me impressionei quando ele me confessou que passou a pintar figuras abstratas por medo da repressão ‒ e depois por necessidade de sobrevivência”, reportei à época, no texto do catálogo¹⁵. Não que houvesse por parte dele uma recusa em afirmar sua escolha como pintor abstrato, mas naquele momento seus quadros de motivo geométrico surgiam para evidenciar “uma renúncia do artista aos seus ideais, à sua vocação” (idem, p. 13). Na galeria, ele fazia, então, seu caminho “de volta” às origens e a exposição era um retorno para que ele finalmente pudesse fazer justiça com a própria obra.
Irandhir Santos em A história da eternidade
O caso de Cristiano Artur foi diferente, mas não tanto. O artista é mais jovem do que Raul Córdula cerca de duas décadas. Pertence à geração 1980, mas já fazia 21 anos que não expunha nada; ou melhor, que praticamente não produzia nada. Durante esse tempo, e ainda hoje, precisou se dedicar a uma outra vocação, a de cabelereiro, também renunciando aos seus ideais. A Galeria Janete Costa foi seu palco de ressurgimento e um momento para pinçar olhares nunca dantes alcançados. Olhares para obras produzidas, em grande parte, durante cerca de dois anos (2012/2014), tempo no qual o artista promoveu rompimentos e ligações com o seu passado artístico. Como em Raul, também milhares de pessoas foram conferir sua individual, cujas obras e o texto crítico cumpriram, acredito, o papel de aproximar a cidade de seus trabalhos.
Do filme A história da eternidade
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6. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Bourdieu e Darbel¹⁶ certamente olhariam com desconfiança para essa afirmação, mas ela não é metáfora. Quando cheguei ao Dona Lindu na abertura da exposição de Cristiano, no dia 26 de novembro de 2014, o guardador de carros do parque já foi logo me recomendando entrar na mostra, porque “estava imperdível”. De especialistas a não especialistas, a imensa porta de vidro da galeria não parece afrontar os visitantes. Para olhar de perto as pinturas, as colagens e os desenhos de Cristiano, os frequentadores do parque entravam de skate e tudo na mão, por exemplo. Poderiam sobreviver sem texto algum, mas fazer parte disso é poder contribuir para promover uma ponte entre a arte e diferentes olhares, atualizando o papel da crítica e ainda, quem sabe, ajudando a alargar percepções humanas. Não em torno de um olhar estético especializado, também parte da arte contemporânea e seus códigos, mas de um olhar sem distanciamentos, feito para tentar aproximar as pessoas da arte.
7. KANT, Imannuel. Crítica da faculdade de julgar. Tradução de Daniela Botelho B. Guedes. São Paulo: Ícone, 2009. Coleção Fundamentos do Direito. 8. Maria José Justino é crítica, pesquisadora e professora de arte, com doutorado em estética e ciência das artes pela Universidade de Paris (VIII). 9. Idem, p. 14. 10. Idem, p. 32. 11. Principalmente do Caderno C, no Jornal do Commercio (Pernambuco). 12. Por exemplo: 86% do universo de visitantes espontâneos entrevistados durante pesquisa realizada para minha dissertação de mestrado, na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, estavam na graduação ou acima do nível superior. In: MINDÊLO, Maria Olívia Medeiros. ʻA arte não exclui. Só incluiʼ: a relação do público com a arte contemporânea na 29ª Bienal de São Paulo. Recife: O autor, 2011. 13. Estima-se que cerca de 260 mil visitas espontâneas foram registradas na 29ª Bienal de São Paulo ‒ idem, p. 75. Do público pesquisado (100 pessoas), 14% afirmaram ter artistas da arte contemporânea entre seus preferidos, enquanto mais de 50%, artistas consagrados.
Concordo com Lisbeth Rebollo, quando ela diz, à luz de Sérgio Millet, que “além da inteligência, importa no ato crítico (e essa importância é fundamental) o sentimento, a sensibilidade, a simpatia, a fé ‒ uma ética”¹⁷. Criticar na arte deve ser algo diferente de emitir juízo de valor simplesmente, pois a criação artística costuma nos mostrar um campo de visão muito mais amplo e evoluído. A crítica de arte pode ser como o seu objeto de análise: uma ação política libertadora em qualquer terreno de aridez.
14. REBOLLO, p. 41-42, 2005. In: BINI, Fernando A. F. et. al. Os lugares da crítica de arte. Lisbeth Rebollo e Annateresa Fabris (org.). São Paulo: ABCA ‒ Imprensa Oficial do Estado, 2005. 15. MINDÊLO, p. 13, 2012. In: MINDÊLO, Olívia. Muito além das geometrias. Texto para o catálogo da exposição “Raul Córdula: 50 anos de arte, uma antologia”. Recife, 2012. 16. Os pesquisadores defendem a existência de um “olhar estético” (do especialista da arte) em oposição ao “olhar ingênuo” (do leigo), responsável por separar aqueles que podem dos que não podem ter real acesso à arte. In: BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução de Guilherme J. F. Teixeira. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2007.
Olívia Mindêlo é jornalista e pesquisadora em arte. Trabalhou no Jornal do Commercio de 2004 a 2014, em períodos intercalados, e escreve textos críticos para exposições de artistas de Pernambuco desde 2008. No mestrado em sociologia (UFPE, 2009/2011), realizou pesquisa sobre a relação do público com a arte contemporânea na 29ª Bienal de São Paulo (2010).
17. REBOLLO, p. 46, 2005. In: BINI, Fernando A. F. et. al. Os lugares da crítica de arte. Lisbeth Rebollo e Annateresa Fabris (org.). São Paulo: ABCA ‒ Imprensa Oficial do Estado, 2005.
Notas 1. Jornal que circulou no Recife entre fins do século 19 e meados do século 20. 2. BARBOSA, Ana Mae et. al. Crítica de arte em Pernambuco: escritos do século XX. Clarissa Diniz, Gleyce Kelly Heitor, Paulo Marcondes Soares (org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012. 3. DINIZ, Clarissa; HEITOR, Kelly; SOARES, Paulo, idem, p. 13. 4. Ibdem, idem. 5. JUSTINO, p. 14, 2005. In: BINI, Fernando A. F. et. al. Os lugares da crítica de arte. Lisbeth Rebollo e Annateresa Fabris (org.). São Paulo: ABCA ‒ Imprensa Oficial do Estado, 2005.
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O País da Saudade, 1982. História, política e memória Joana DʼArc de Sousa Lima
Em algumas das passagens do manifesto pode-se observar que o artista assume como legado da arte as experiências mais remotas dos povos que imprimiram, por meio da representação geométrica, gravados ou pintados, em suportes variados seus signos e narrativas visuais. Estes são imagens remotas que por serem trazidas ao presente pelo artista adquirem força poética e artística, aí reside seu interessa na arte. Uma vocação geometrizante oriunda dessas experiências e visualidades retiradas “do seu contexto”, de sua ambiência do seu entorno de referencias. Uma vontade geométrica construtiva, conclui então, (...) Nunca me considerei filho do colonialismo cultural que está a serviço do poder há mais de quatro séculos. Minha busca é muito mais Cariri do que Rococó.
O exercício proposto nesse texto sugere uma reflexão objetivando pensar a prática e o trânsito do artista e crítico de arte Raul Córdula em sua dupla atividade: como observador da dinâmica do campo das artes visuais que resultou em inúmeros textos críticos e como propositor/ criador de trabalhos visuais, sobretudo uma proposição que gerou um trabalho colaborativo, em rede, com outros artistas brasileiros. Entendo que esses deslocamentos podem ser nomeados como uma prática intelectual2- tomo a liberdade de me localizar entre os analistas que tenderam a reunir sob o rótulo de intelectual todas as pessoas envolvidas na esfera da cultura, isto é, no mundo dos símbolos, dos criadores aos produtores culturais. O trabalho, especificamente que vou me ater é a série intitulada O País da Saudade, proposto como arte em rede ‒ arte postal ‒ em 1982. Interessa-me pensar como Córdula estrutura, compõem uma rede de artistas que, ao seu chamado e ativação, produziram narrativas poéticas, visuais (textos críticos) sobre o Brasil em tempos de abertura política. E como tais aspectos críticos presentes nesse trabalho, se assemelham à verve da escrita crítica que o artista, já nos anos 1960 inicia como prática de escrever para artista, sobre arte e sua dimensão ampliada no campo da cultura.
Nota-se nesse breve fragmento uma busca por distanciamento das posições relativamente próximas ao colonialismo representado aqui pela classificação do barroco, ou ainda, da evocação que na época será levantada pela crítica literária e das artes, o neobarroco, em prol dos elementos culturais que se aproximam do que poderia ser considerada uma representação do “nativo”. Para Córdula, paraibano em terras pernambucanas a ironia prevalece em evocação do Cariri. Daí que a linguagem da crítica se torna irônica entrelaçando os opostos, não porque os concilia, mas porque consegue operar uma dupla recusa (Bourdieu: 2010).
É imperioso comentar que essa escrita crítica de Raul Córdula3 versa sobre a obra de artistas próximos do seu universo poético, ético e plástico, também, traz à luz temas polêmicos da vida política e cultural do Brasil, assim como, textos contundentes, à semelhança de manifestos, cuja visão de mundo do artista e de seu processo de criação deixa-se explicitar. Nesse sentido esses inúmeros textos compõem o que Glória Ferreira, pesquisadora, curadora e crítica de arte chamou como escrita de artista4. Não obstante será sobre esse último aspecto de suas narrativas críticas que tratarei nesse artigo.
Texto escrito em um contexto particular da trajetória de afirmação e legitimação do artista no campo das artes plásticas na segunda metade dos anos 1970. Córdula na ocasião havia obtido o prêmio de viagem no II Salão de Arte Global de Pernambuco com os primeiros que irão compor a série Borborema. Ali já se esboçava a abstração geométrica que Raul Córdula vinha desenvolvendo em um ambiente completamente avesso a essa visualidade e linguagem. Em larga medida o artista recoloca em seu manifesto as experimentações do construtivismo, do concretismo e do neoconcretismo, como as heranças que podem dialogar com as representações icônicas mais remotas vistas por ele, por exemplo, na Pedra do Ingá.
Vou me apropriar de um único escrito e da série O País da Saudade para pensar como ambas proposições possuem contundências políticas e tomadas de posições em relação ao campo da política e ao campo das artes. O texto escrito por Córdula em 1976 a propósito do prêmio de viagem obtido no II Salão de Arte Global de Pernambuco denomina-se como Manifesto Mais Carirri que Rococó, anunciando de primeira seu propósito.
Nesse ponto as reflexões se cruzam. Sua escrita crítica, no exemplo citado do manifesto ‒ uma escrita particularmente provocativa e bélica ‒ e a série visual O País da Saudade, ambas, podem ser lidas como particularmente marcas
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2. Em um levantamento sumário dos textos escritos por Córdula em seu arquivo foi mapeado aproximadamente 200 escritos, dos anos 1960 à atualidade. Verificar mapeamento no livro, Raul Córdula: Poética. Instituto Raul Córdula, Recife, 2015. 3. Verificar com acuidade o livro, Escritos de Artistas: anos 60/70, organizado por Glória Ferreira e Cecília Cotrin, publicado pela Jorge Zahar Editora. Trata-se de uma compilação de escritos de artistas, produzidos na década de 1960 e 1970 e que possibilita a aproximação do leitor e apreciador das artes visuais de questões ligadas ao universo, de intenções e de análises que tais artistas produzem de sua própria produção, da de outros artistas e do campo no qual estão inseridos.
indeléveis da posição crítica assumida no campo das artes pelo artista. A série se apresenta como um inventário da cultura experimental, dos anos 1960 e 1970, e os ecos da produção radical das vanguardas artísticas modernistas. Quantas memórias não são acionadas ao revisitarmos essa coleção? Quantas experiências não atravessaram o corpo de muitos brasileiros, ao olhar e rever esses ícones fora e dentro dos contextos propostos pelos artistas? Quantas histórias não foram enunciadas? Reside nessas indagações, que podem ter muitas respostas a depender dos espectadores, a força contemporânea dessa coleção e das intervenções de Jomard Muniz de Brito/Raul Córdula/Chico Pereira/Ana Carolina/Arlindo Daibert/Maurício Silva/ Frederico Fonseca/Laurindo/Piedade Moura/Paulo Klein/ Barrio/Alex Flemming/Almandrade/J. Medeiros/ Unhandeijara Lisboa/Falves Silva, entre outros. E, em uma necessidade vital para o tempo presente que essas experiências trazidas por meio do discurso artístico sobreviva, viva! Raul Córdula a meu ver assume como artista e como crítico das artes um papel de vanguarda crítica, uma espécie de intelectual do campo que pretende explodir os espaços bem comportados e subsumidos pelo sistema e abrir uma agenda política que possibilite mudanças e reposicionamentos no campo artístico.
Joana dʼArc de Sousa Lima é Doutora em História no Programa de Pós- Graduação em História da UFPE. Diretora da Galeria de Arte Janete Costa (Recife), pós doutoranda no PPGH/UFPE onde desenvolve a pesquisa “O País da Saudade - Arte e política nas margens do Capibaribe - Narrativas orais e visuais entre a História e a Memória (1980)“, sob orientação do Profº Dr. Antonio Paulo Rezende. Coordenadora do grupo de pesquisa Coletivo Arte em Diálogo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Mamam/Recife.
O País da Saudade | Maurício Silva
Notas 1. Por intelectualidade pode-se entender a “categoria social definida por seu papel ideológico: eles são os produtores diretos da esfera ideológica, os criadores de produtos ideológico-culturais”, o que engloba “escritores, artistas, poetas, sábios, pesquisadores, publicistas, teólogos, certos tipos de jornalistas, certos tipos de professores e estudantes etc. (Michel Lowy ‒ Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. SP: Ciências Humanas, 1979). O País da Saudade | Abaixo a Ditacuja | Jomard Muniz de Britto
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Bienais do Mercosul: modos críticos para interpretar a arte latino-americana Lisbeth Rebollo Gonçalves
Abrir um debate sobre a Arte em Pernambuco, como fazemos neste Encontro organizado pela ABCA e pelo Instituto Raul Córdula, sob os auspícios da Caixa Cultural, provoca uma reflexão sobre os modos críticos de abordar a arte no contexto da Cultura Contemporânea, considerando a diversidade dos processos históricos em diferentes partes do mundo. A reflexão que trago abordará uma experiência no Brasil que marcou o circuito das artes. Refiro-me à Bienal do Mercosul que abriu espaço para novos modos críticos de interpretação da arte-latino americana. Neles se exemplifica uma dinâmica marcada pela intenção de olhar a um território cultural que ainda é pouco estudado entre nós.
Justifica-se, portanto, observar como vem sendo feita a abordagem da arte latino-americana no espaço da Bienal do Mercosul quais enfoques foram privilegiados nas curadorias, qual o seu efeito político no circuito das artes. Considera-se que os modos críticos que se apresentam na estruturação das diferentes edições da Bienal permitem perceber as estratégias no tratamento crítico interpretativo da arte na América Latina e pensar esta contribuição para uma possível teoria da arte latino-americana.
Desde sua primeira edição, em 1997, e em movimento ascendente, a cada nova exposição, a Bienal do Mercosul vem se tornando importante referência para o estudo da arte na América Latina, seja em sua dimensão histórica, seja para o conhecimento da produção contemporânea. A emergência desta Bienal no circuito das artes visuais coincide com a afirmação de uma nova estratégia historiográfica e critica nos estudos culturais, estratégia esta advinda, em parte, do debate do pós-colonialismo. Trata-se de um modo diverso do implantado pela História da Arte tradicional que analisa a arte nascida fora dos centros europeu e norte americano como periférica. Vale a pena observar, a partir dessa mudança, o que acontece com a circulação da ideia de arte latino-americana no circuito artístico global.
‒ O resgate da trajetória histórica da arte na América Latina se faz com uma forte estratégia sociocultural nas 4 primeiras bienais. Mostras de reconstrução histórica de vertentes predominantes na arte desta região cultural ou da trajetória particular de artistas promovem o exercício da comparação: as especificidades e semelhanças dos processos culturais locais são sugeridas.
Acompanhando o percurso da Bienal e suas curadorias até a definição do projeto da X edição ora em preparo, algumas constatações a propósito do trabalho crítico das curadorias podem ser apontadas:
‒ Na busca de conceitos fundamentais para a abordagem da realidade artística latino-americana emerge necessariamente a categoria da identidade (entendida como qualidades de semelhança e diferença). A pluretnia das sociedades latino-americanas estimula abordagens sob a ótica da sociologia, da política, da arqueologia e antropologia. Assim também, a ideia de territorialidade física e cultural é posta em evidencia (fala-se em cartografias, geopoéticas). A dimensão política na produção latino-americana contemporânea é sempre relevante. ‒ Na estratégia da exposição, somente em um caso (VI Bienal), aparece maior ênfase na abordagem da arte como linguagem formal, do que como linguagem simbólica que aponta identidades específicas.
O debate crítico produzido no âmbito dos estudos póscoloniais levou à revisão dos cânones da modernidade ocidental, assim como à adoção de uma nova compreensão das realidades artísticas dos países que eram considerados “periféricos” ou “não ocidentais”. Assim também, nesse contexto de revisão e de novas interpretações, a sua produção contemporânea passou também a ter outro reconhecimento. Evidenciou-se uma verdadeira reviravolta que levou seus ecos aos espaços das Bienais e dos Museus, com a realização de grandes exposições nas quais é posta em evidência a possibilidade de pensar a arte num aspecto plural. A Bienal do Mercosul, torna-se, assim, um exemplo heurístico para a nossa reflexão.
‒ A Bienal do Mercosul constitui-se em privilegiado espaço que nos permite ver em confronto e em contato a produção atual de artistas latino-americanos. A visão comparativa é fundamental para a um pensamento teórico sobre arte.
Na ocasião do Seminário realizado em Recife, acompanhouse sucintamente os projetos curadorias que se apresentaram desde a primeira bienal à atualidade.
Lisbeth Rebollo Gonçalves é professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA.
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Guita Charifker ‒ Desafios e Paixões César Romero
sensibilidade e cuidado. Uma forma de carinho com a vegetação, as praias, os pequenos montes. As naturezas mortas tinham um sabor de Henri Matisse. Seu encontro com a flora e a fauna era delicada, aliciadora, algo encantatório. Quem teve quintais em casa sabe que os sonhos moram lá, o paraíso na terra. Guita com o tempo foi se aprofundando em suas aquarelas, os recursos se tornando mais efetivos e os resultados mais criativos e plurais.
Ser artista é uma determinação, trazemos do ventre. Guita Charifker nasceu em Recife ‒ Pernambuco no dia 10 de setembro de 1936. Seus pais eram da família Greiber, judeus tradicionalistas da Europa Central que imigraram para o Brasil fugindo das perseguições antissemitas em 1914. O casal teve dois filhos Guita e Fernando, educados dentro da comunidade e dos preceitos das leis judaicas. Guita se enamorou por um rapaz judeu, de nome Júlio Charifker e se casou em 1957, um ano depois engravidou de Rosaly (1958) e depois de Saulo (1961) viviam num casarão, com muito conforto. Guita era apaixonada pela vida. Livre pensadora viveu as questões dos anos 60 e 70 com intensidade. Todas as pessoas para ela eram irmãos, otimista, só via o lado bom da vida. Tudo fazia bem.
Artistas constroem história para que valha a pena a aventura humana. Guita acreditava que era melhor aquarelista. Um juízo dela. Na vida de Guita um importantíssimo colaborador que registrou sua obra, sua carreira, o fotógrafo Aderbal Brandão. Tem Brandão um poderoso acervo do trabalho da artista, uma contribuição de envergadura para a memória da arte brasileira. Guita em sequência trabalhou em desenho, pintura, aquarela, voltou à pintura, com incursões pela gravura em metal.
Os pais de Guita fugindo da IIª Guerra vieram da Ucrânia para o Brasil em navios diferentes era Salomão e Rosa Greiber. Conheceram-se, casaram-se e foram morar em Carpina, pequena cidade perto de Recife. Guita nasce por acaso em Recife, mas passou a infância em Carpina. Ainda pequena morreu seu pai e logo em seguida sua mãe, de doença não diagnosticada. Guita passou a ser criada pelos tios, num ambiente protetor. Mas Guita ficou na infância anos sem referências, perdida em recordações dos pais, portou-lhe uma amnésia que começou a aparecer nos primeiros desenhos. O inconsciente, que é soberano, aponta os primeiros sinais, nos desenhos as primeiras linhas, formas, quase sempre partidas, unidas por estranhamentos, algo surrealista, algo realismo fantástico. Os desenhos trazem sempre uma incompletude de tons terrosos que contrastam com o papel. Guita buscando juntar pedaços, memórias, reflexões, o encontro com seu centro, sua descoberta.
A aquarela ela aprendeu no ensaio e erro, foi forma de registrar a natureza e por morar em Olinda transmitia a grandeza dos trópicos em suas luzes e silêncios. A aquarela não admite erros, os gestos, as pinceladas são definitivas, não há retoques, o que foi, foi, não haverá arrependimentos. Guita tinha paixão pelo papel, alisava sua textura, observava a gramatura, um enamoramento profundo até sentir-se pronta para a primeira aguada e os desafios que viriam, até o produto final. Tudo sem pressa, nada era para ontem. Ela insistia que as pessoas eram coautoras da obra, completava suas intenções, cada uma a seu jeito. O engenho na captura de estranhamentos, marcados no mundo real, é que determina o poder de criação.
Depois Guita vai para a pintura a óleo quando pinta paisagens. Pode-se considerar Guita Charifker uma paisagista, seguindo depois para as aquarelas as paisagens são constantes, especialmente os quintais de Olinda. Todos sabem que existem poucos paisagistas de qualidade no Brasil entre alguns Clodomiro Amazonas Monteiro, Claudia Casella, Antonio Parreiras, Eliseu Visconti, Inimá de Paula, Manoel Santiago, Pancetti, Rebolo, Jenner Augusto, Diógenes Rebouças. O jardim dela era especial. Bem cuidado, com uma profusão de plantas, árvores, cipós, frutas. A artista registrou a natureza com grande
O casamento de Guita ia caminhando seus dias em plena paz, marido generoso, os dois filhos Rosaly e Saulo saudáveis, alegres, viviam numa casa grande, confortável. Ainda havia a casa de campo em Gravatá para finais de semanas e temporadas de férias. Seu sogro era um exímio joalheiro e sempre lhe presenteava com pérolas e safiras. Seu guarda roupa ostentava roupas de fino corte, tecidos da melhor qualidade, sapatos refinados.
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Um dia conta Ronaldo Correia de Brito “a mulher feliz, bem posta, altiva, olha-se casualmente num espelho, e estranhase, não se reconhece”. Não era dela aquela imagem que o espelho refletia. Teria que fazer uma escolha que marcou sua vida.
escrevia a frase no fundo ou junto a sua assinatura no quadro. Celebrar a vida era um desejo enfurecido, por vezes causava embaraços. O endereço da vida era o mundo viajou por Israel, Portugal, Argentina, França, Alemanha e México. No México participou de uma exposição ibero-americana de desenhos e gravuras, em 1974 apaixonou-se pela exuberância das cores, das roupas típicas, das feiras e tratou de comprar uma caixa de aquarelas, papeis, pincéis e sem qualquer curso se tornou aquarelista.
A vida não tem nenhum sentido. Cada um de nós vai buscar um, para se manter vivo. Guita escolheu a arte. Radicalizou nesta escolha. Trabalhava à noite na garagem de sua casa, enquanto os filhos dormiam e pela manhã acordava ao meio-dia. Para que isso ocorresse Guita contava com o marido que cuidava das crianças. Guita chegou a conclusão depois de muito pensar que casamento e arte são vocações incompatíveis e não era possível se dedicar de maneira profunda as duas. Ela era intensa, impetuosa, decidida. Escolheu a arte, saiu de casa com uma mala de roupas e outra com desenhos. Deixou o marido e os dois filhos, escolheu a arte. Ficou muito tempo despedaçada, mas não voltou atrás. Foi para o Rio de Janeiro em 1970 era seu destino, estava decidido. Há quem no mundo que possa julgar alguém? Nascemos livres. Juízes e religiões nunca alcançarão o inconsciente. Pecado é o que fazemos contra nosso desejo, nossas aspirações, nossa liberdade.
Absolutamente despoliciada iniciou uma aventura que a tornou uma das melhores e mais importantes do país. Seu colorido abriu-se quase lisérgico. A luz apreendida no México tornou-se nordestina e iluminou sua palheta de forma plena e plural. Brilhavam naturezas mortas, oceanos com suas espumas e pedras, as frutas, as florinhas dos quintais, as bananeiras, o coqueiral, os cipós que volteavam, como a vida. Reproduzir a natureza não é matéria para um artista criador, mas sim transfigurá-la nas suas mais amplas possibilidades. Novos significados ao já visto. Estranhamentos ao cotidiano, reprocessamento de vivências são tarefas pertinentes ao ofício. Esta era a busca de Guita que realizou tudo com correção. Magnífica exuberância. Todo artista é refém do seu fazer, marca autoral, grafia e pensar. Um remover-se no autoconhecimento, na vida instintiva profunda.
Guita era extravagante nos gestos, no vestir, nas atitudes. Ruiva, cabelos longos que penteava de várias formas - tranças duplas, únicas e também popa ou cocó. Uma mulher perseverante que a tudo enfrentava em nome da arte. Aos dezesseis anos, descobriu o Atelier da Sociedade de Arte Moderna do Recife, dirigido por Abelardo da Hora, e tinha como colegas Samico, José Claudio, Wellington Virgulino, Ivonaldo Marins. Logo depois foi colaboradora em 1964 na fundação do Atelier da Ribeira, em Olinda. Em 1966 cria e dirige a Galeria do Teatro Popular do Nordeste.
Há mulheres que engrandecem o mundo por sua obra intelectual e ainda mais por sua vida particular. Pelos desafios, pelo enfrentamento as estéticas vigentes e obtusas e pela coragem de ser o que se quis. Gertrud Stein, Frida kahlo, Leila Diniz, Florbela Espanca, Jean Seberg, Dora Maar, Lina Bo Bardi, Lota de Macedo Soares, Elizabeth Bishop, Edith Piaf, Lygia Sampaio e outras. Acordava e já estava maquiada, batom de vermelho intenso, sombra nos olhos azuis em exagero. Foi uma das pioneiras no carnaval de Olinda, organizou vários blocos carnavalescos.
Guita Charifker tinha como característica marcante a determinação, a teimosia e a vocação pela liberdade. Era o que ela queria, a cada hora. A maioria dos artistas do atelier era do sexo masculino, e de mulher Guita, Celina Lima Verde e Maria de Jesus Costa. Nesta época as mulheres se dedicavam em sua maioria a prendas domésticas. Elas eram as exceções e quem é exceção é sempre visto de maneira diferente. As versões proliferam, o imaginário aflora, e as estórias preenchem o tempo das pessoas sem história. Guita era diferente mesmo, uma mulher de vanguarda, desafiadora, sempre adagiava “viva a vida”. Por vezes
Embora judia em seu atelier haviam símbolos de varias religiões. Dizia que o ecumenismo era a única saída para as intolerâncias religiosas. Acreditava em um só Deus, se considerava mística. Pintava santos e santas, usava contas de candomblé e se declarava filha de Oxum o orixá das
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Guita Charifker | Sítio Santa Clara | OST | 70x80cm | 1994 (foto: Aderbal Brandão)
águas doces, das cachoeiras dos rios, do amor, da riqueza da beleza e da prosperidade. A cor era amarela. Oxum no sincretismo é Nossa Senhora das Candeias ou Nossa Senhora Aparecida, seu dia é sábado, a cor e as contas amarelo-ouro. Suas características são a vaidade e faceirice.
políticos e colecionadores de fama. Seu afeto era distribuído a todos com a mesma intensidade, a mesma ternura. Fumegava, o cigarro sempre a mão. Guita vivia no risco, sejam nos desenhos, seja na vida. Ganhos, perdas e consequências. Nenhum temor, o medo era ter medo.
Guita tinha muito de Oxum. Gostava de anéis, pulseiras, braceletes, correntes, argolas. Tudo isso junto às saias compridas, o batom vermelho que cobria além dos lábios, as sombras azuis em exagero, fazia dela uma mulher de raro exotismo. Na realidade ela gostava de “causar”. Ser diferente também fazia parte da artista.
Guita era plural desenhista, pintora, escultora, aquarelista, professora, figurinista e aderecista. Realizou figurinos para a peça Andorra e objetos de cena para a montagem de O Melhor Juiz. Participou de muitas coletivas e Salões Oficiais 1ª, 2ª Bienal Nacional de Artes Plásticas em Salvador ganhou na 2ª o prêmio de gravura. XIX Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro (prêmio de aquisição) em 1970.
Guita só poderia ter nascido em Recife, era a terra lúdica, histórica, banhado pelo mar, desafiadora, que lhe oferecia o que ela necessitava para criar. Tudo está imerso em nossas vivências, nada é por acaso. A terra que a gente nasce é quase sempre referência para nossas criações.
Nos anos 70 seu desenho tomou uma direção surrealista gafanhotos, animais incendiados, cabras, peixes sendo invadidos pela boca por navios, bois e borboletas se fluidificando, rãs, serpentes de estranhos volteios, tartarugas de bico-pássaro, conchas de caramujos esvaziados, cheios de ar, pombas-águias. Toda sua produção em desenho era trabalhada a exaustão, às vezes levava dois meses para concluir. Daí sua produção não ser extensa, mas toda de qualidade.
Pernambuco tem raízes multiculturais, a arte, hoje especialmente o cinema e as artes visuais, a dança, a música a culinária. A luz é intensa, que acende a terra. O litoral de Pernambuco traz praias de grande beleza. Porto de Galinhas foi eleita por seis vezes consecutivas a praia mais bonita do Brasil. Existem outras Praia de Maracaípe, Praia dos Carneiros, Itamaracá. O por do sol no Forte do Boldró e o arquipélago de Fernando de Noronha, são de impossível definição tal a generosidade da Natureza. Fica na retina uma nódoa irretirável. A variedade gastronômica é relevante, peixes, ensopados de aratu, caranguejos cozidos, queijo coalho na brasa, ovo de codorna e caldos caseiros. Nas ruas de Olinda os artesãos enriquecem a cultura local. Em Recife A Casa da Cultura, antiga casa de detenção hoje é um grande centro de artesanato. O Carnaval é uma das maiores festas do mundo. Foliões fantasiados, passistas, bandas de frevo, bonecos gigantes, o rico e o pobre confraternizando na mais perfeita paz. Tudo isso foi assunto para o trabalho de Guita. Traduzia Pernambuco em forma, linha e cor.
Quanto à sua pintura trazia um profundo tom humanístico, um tanto realista, romântico. Reunia um gestual de timbre alto, com suaves pinceladas que por vezes passavam pela fluidez. Tudo luminoso, a luz tropical do Nordeste sobre pedras, cactos, pássaros de fogo, exuberante vegetação, os cipós se entrelaçando, numa dança sensual. Sua pintura contemplava a flora nordestina. Na década de 1970, transfere-se para o Rio de Janeiro, e realiza pesquisas em gravura em metal na Oficina do Ingá em Niterói sob a orientação de Anna Letycia. Expõe com assiduidade nas galerias do Rio, recebe elogios dos críticos Walmir Ayala, Frederico de Morais, Geraldo Edson de Andrade, Roberto Pontual e outros. Nesta época Guita era uma profissional com bom mercado, amiga de muitos artistas importantes. Juntou dinheiro com seu trabalho.
Guita sempre vinha na contra mão dos costumes, fugia da estética da norma. Quando as mulheres usavam saia e cabelos compridos, ela calças longas e cabelos “Joãozinho”. Ostentava vestidos ou curtos, acima do joelho ou saias folgadas cobrindo os pés. Falava com todos, recebia em casa Negão um afrodescendente, completamente “aluado”,
Em 1974 recebe Prêmio de Viagem ao México no Salão Global de Pernambuco. Lá descobre a luz, apaixonou-se pela exuberância das cores das roupas típicas, das feiras e cuidou de comprar uma caixa de aquarela, papéis, pincéis e sem qualquer curso se tornou aquarelista.
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Nos anos 60 e 70 no Brasil Guita tinha entre 24 a 40 anos e viveu estas duas décadas com grande intensidade. Nos 60 a televisão se tornou um fenômeno de comunicação, com as telenovelas e programas de auditório. Os profissionais de comunicação mais importante era Chacrinha, pernambucano como ela, Flávio Cavalcanti, Hebe Camargo e Silvio Santos, cada um com características próprias. Aparelhos como rádio, geladeira e televisão como outros eletrodomésticos invadiam a casas. Surgiram outros indicadores de renda como aparelhos de TV, colchões de mola, máquinas de lavar roupa, refrigerantes, liquidificadores e enceradeiras. A década de 60 foi embalada pelo iê-iê-iê com Roberto Carlos e a Jovem Guarda. Festivais de música popular, onde despertaram nomes como Elis Regina e Jair Rodrigues. Com a Bossa Nova, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Nara Leão, Johnny Alf, Carlos Lira e Baden Powell entre outros. No meado da década de 60 veio o Tropicalismo liderado pelos cantores e compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil. A Tropicália exerceu grande influencia no comportamento do povo brasileiro inclusive em Guita. Também surgiu o movimento Hippie que acreditava na paz como uma maneira de resolver as diferenças entre os povos, ideologias e religiões. Amor e tolerância. Era isso também que pensava Guita. Tinha um estilo hippie. A moda hippie era essencialmente não seguir a moda. Guita tinha uma maneira especial de vestir que representava um sinal de atitude e liberdade.
Durante os anos 70 a opinião pública protestou condenando os governos ditatoriais e racistas ‒ Guita odiava o racismo, a corrida armamentista, o perigo da guerra e das usinas nucleares, a guerra do Vietnã, o apartheid na África do Sul e Rodésia, a descriminação racial e social, a devastação dos recursos naturais do planeta. A América Latina sofreu uma sucessão de golpes de direita para implantação de ditaduras militares como Argentina, Uruguai, Chile, Peru, Bolívia. Em Março de 1970 um fato traumático na música internacional acaba a banda de rock Beatles. Cinco meses depois morre o rei do rock Elvis Presley. Banda Deep Purple, Rolling Stones, Led Zeppelin, Kiss, Bee Gees, Queen, Pink Floyd e outros. Além destes fatos os costumes mudaram havia maior tolerância e as pessoas queriam viver intensamente a vida. Nos anos 70 no Brasil acendeu-se a marca da ditadura brasileira, o regime imposto pelos militares em 1964. Foi o auge da brutalidade, a censura alcançou seu nível máximo. Para tentar enganar os censores os artistas criaram algumas estratégias. O Pasquim criado pelo cartunista Jaguar e pelo jornalista Tarso de Castro e Sérgio Cabral que combatiam com humor cáustico a ditadura militar. Entre as entrevistadas mais marcantes as de Leila Diniz e Ibrahim Sued. Ainda no ano 1970 toda redação foi presa. Fechou o Pasquim, fato triste, que foi pouco digerido pelos intelectuais. Muito futebol, Brasil Tricampeão do mundo e muitas bicicletas pelas ruas. As indústrias de automóvel deu um salto qualitativo e quantitativo. Surgiram as pornochanchadas filmes produzidos na Boca do Lixo no centro de São Paulo.
O Brasil enlutou-se com o golpe militar de 1964 que abafou a efervescência cultural da época. O cinema brasileiro nesta década ganhou o mundo, especialmente pela presença de Glauber Rocha. A conquista da Copa do Mundo no Chile deixou o Brasil num completo clima de euforia.
Os anos 70 foi o auge do tabagismo no Brasil. E a arte era vigiada a cada segundo. Guita viu tudo isso e mostrava-se intolerável ao regime. Liberdade era seu sonho maior e viuse muitas vezes obrigada a calar. Guita vivenciou estas duas décadas e soube tirar informações e experiências tanto para sua arte como para sua vida pessoal.
Guita iniciou sua carreira com uma coletiva em 1954 no 12º Salão de Arte de Pernambuco e deu impulso nos anos 60 e especialmente 70. Foi o tempo da primeira transmissão de TV em cores no Brasil em fevereiro de 1972, criou-se o Sistema Telebrás, os primeiros telefones públicos no Rio de Janeiro o Sistema Brasileiro de Telecomunicação via Satélite (SBTS) e o sistema de cabos submarinos ligando nosso país a Europa e Estados Unidos. Assim a cultura brasileira chegava aos poucos ao exterior. Levando a bossa-nova e nossos cantores. Repressão militar no Brasil, Guerra Fria, Estados Unidos e Rússia (URSS) estabeleceram confronto de opiniões e quase aconteceu a 3ª Guerra Mundial.
Ao voltar do México trabalha por algum tempo no atelier do João Câmara. Vem a Bahia, mais exatamente a Nova Viçosa onde frequentou o atelier de Frans Krajcberg. Fez sua famosa série de cajus. Volta a Recife em 1985 e organiza o Ateliê Coletivo, com o pintor Gil Vicente, José Claudio, Gilvan Samico entre outros. Em 2000 recebeu o Troféu
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Cultural do Recife. Ano Seguinte Guita tem seu grande momento. A secretaria de Educação e Cultura do Recife publicou o livro “Viva a Vida! Guita Charifker: Aquarelas, Desenhos, Pinturas” organizado por Carla Valença sua amiga e produtora cultural que desde os anos 90 acompanha sua trajetória. Guita Charifker | Olinda | Aquarela | 80x60cm | 1987 (foto: Aderbal Brandão)
Guita teve em 2003 uma retrospectiva no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) no Rio de Janeiro e outra na Pinacoteca do Estado de São Paulo (PESP). Duas extraordinárias mostras com grande repercussão na mídia, público e crítica. Nunca se poderá ter certeza, mas parece que Guita estava se despedindo em grande estilo das artes visuais. Algumas coletivas mais e Guita foi parando. Problemas pulmonares, isquemia, depressão e deterioração da memória. As coisas foram acontecendo vagarosamente, no início trabalhava pouco, logo ela que era um dínamo, depois desistiu. Não queria mais pintar. Guita parou há mais ou menos sete anos. Fazia um trabalho para dois meses depois voltar a ele. Não tinha mais a disciplina de antes, nem compromissos profissionais. Até o silêncio das cerdas, das tintas e papéis.
Nada e ninguém apagará esta obra. Ela testemunha uma estada, um tempo na terra. Está feito, sobre um olhar longuíssimo e pulso firme. Sempre vigilante, Guita nunca estava satisfeita com o que fazia, achava que podia fazer melhor. Cuidava primorosamente do seu fazer. Era uma questão de honra. Os desafios tornavam-se paixões. Tudo que um dia foi sentido de vida, estancou. Guita não sente mais esta perda. Sentimos nós, todos nós. Fechou-se mais um capítulo de uma vida tão fecunda, intensa, tão plural. Hoje em 2015, vive com a filha Rosaly, cercada de cuidados e carinho. Absoluto acolhimento. Guita Charifker é um marco nas artes de Pernambuco tanto como artista visual, como uma mulher que desafiava os padrões da época. Nela morava tudo que um ser humano busca ‒ a liberdade e o trabalho. Contenha a liberdade todos os símbolos que ela representa e o trabalho o rastro da existência.
Quem acompanha o envelhecimento, sem sofrer? Melhor idade quando os músculos e o sistema ósseo fragilizam? O espessamento progressivo das paredes das artérias com diminuição de sua elasticidade? Isto é universal, se não formos antes, mais jovens, chegaremos a essa realidade. Os limites ficam esfumados. A visão tão necessária ao artista visual perde-se aos poucos. Como olhar com minúcias os cajus, os peixes, os barcos, o bananal, os coqueiros, o mar que se elastece sobre as areias? Como subir nas árvores, colher as frutas e saboreá-las? Como correr nos quintais? Dançar o frevo com sombrinhas coloridas apoiadas no ar? Guita fundou muitos Blocos de Carnaval, adorava a festa e era motivo para caprichar nas fantasias, nas purpurinas, nas invenções no cabelo. Na boca alargada por um batom muito vermelho e por cima dos olhos claros, fortes sombras azuis. As sombras dos olhos de Guita eram pura extravagância. Nossas vivências vão se apagando com o tempo, aos poucos, tanto as boas como as más. Para que tanta lembrança se o que ela fez como obra visual é registro para a eternidade? Está fixada no tempo. No nosso tempo e no de outras gerações.
César Romero é médico psicoterapeuta e artista plástico. Atua como crítico de arte no Correio da Bahia. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA.
Referências Ayala, Walmir. Dicionário de Pintores Brasileiros. Ed Spala. Rio de Janeiro, 1985. Cavalcanti, Carlos; Ayala, Walmir. (org). Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos. MEC/INL. Brasília, 1973-1980. Leite, José Roberto Teixeira. Dicionário Crítico da Pintura no Brasil. Artelivre. Rio de Janeiro, 1988. Valença, Carla. Viva a Vida! Guita Charifker: Aquarelas, Desenhos e Pinturas. Pontual, Roberto. Dicionário das Artes Plásticas no Brasil. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. Vainsencher, Adler Semira. Guita Charifker.
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O Modernismo em Pernambuco ‒ Uma contribuição para a Modernidade no Brasil, 1930-2000 Elvira Vernaschi
No significação de modernismo está inserido o conceito de ruptura com as tradições, redefinição de várias noções estéticas, formais e conceituais; agregando, por sua vez, outros conceitos e definições. No Brasil, a Semana de Arte Moderna o faz até com estardalhaço, para chamar a atenção sobre a questão da “atualidade” que os intelectuais buscavam.
Foi a partir do final dos anos 90 que o processo de intercâmbio entre as várias regiões do país mostrou um nítido processo de aceleramento. Num mundo sem fronteiras pretendia-se renovar o olhar do eixo Rio-São Paulo num viés para a questão das identidades regionais e ao mesmo tempo introduzir as poéticas pernambucanas no circuito nacional. Dessa forma, Pernambuco se insere e se integra ao circuito, mas, mantendo seu perfil dual e questionador ao lado de uma tradição iconográficofigurativa que também faz parte de sua realidade. Inicia-se na cidade um processo de assimilação de uma visão ainda mais “moderna”. Recife diversifica sua produção através de uma maior experimentação de seus artistas emergentes desenvolvendo sua própria cultura visual que rejeita ou assimila as correntes internacionais com autonomia. De um lado, influenciados pelas ideias de Ariano Suassuna que pregava uma abordagem cultural com ênfase na visualidade da terra e uma narrativa permeada de significações (Movimento Armorial) e, de outro pelas ideias de Muniz Britto que propagava uma linguagem mais internacional embasada na teoria da pós-modernidade, em um claro limite entre arte popular e arte erudita.
Os modernistas propunham uma renovação radical na linguagem e nos formatos, marcando a ruptura definitiva com a arte tradicional. Cansados da mesmice na arte brasileira e empolgados com inovações que conheceram em viagens à Europa, os artistas romperam as regras preestabelecidas na cultura. Movimento radical, rico em manifestos, se alastrando pelo Brasil como um espírito destruidor, como diz Mário de Andrade. Essa “modernidade” não está estagnada e não é só pensada a partir da Semana de Arte Moderna. Em seus vários aspectos a encontramos desde a época do renascimento. No Brasil o moderno está contido em diferentes momentos da nossa História da Arte. É por isso que se fala em gerações de modernistas, em distintas épocas. A modernidade está na forma de se entender a realidade, os fatos e a necessidade de se distanciar do passado. Essas ideias demoraram a atingir as outras regiões do país, embora houvesse uma consciência de mudança nos rumos da cultura, das artes e da literatura. E isso motivava os jovens de fora do eixo Rio-São Paulo rumo às tendências estéticas.
A multiculturalidade do nordeste e a pluralidade entre os jovens artistas de Recife, muito se beneficiariam com a ampliação do espaço crítico e de visões alternativas, tão urgentes e necessárias nas artes plásticas no Brasil e que vem sendo nutridas, em seus diversos momentos, por mestres, como Abelardo da Hora João Câmara, Francisco Brennand, José Cláudio, Montez Magno, Paulo Bruscky, Gilvan Samico.
Segundo os historiadores, a consolidação do fenômeno acontece em meados da década de 30, principalmente, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Pernambuco, no entanto, marcou presença no cenário modernista brasileiro através de ações e realizações que o integrou ao vocabulário moderno paralelamente ao eixo Rio-São Paulo e não só pela presença de Vicente do Rego Monteiro.
A arte hoje, cuja autonomia vem sendo relativizada pelos estudos culturais, dispensou os modelos modernistas europeu e norte-americano e pleiteia por diversidade, por uma política da diferença. O respeito à diferença é instrumento de consciência estética no Nordeste. Modernismo em Recife
Em Recife, nos anos de repressão da ditadura (1964-1985), instalou-se um vocabulário pictórico, figurativo e, em grande parte, voltado para o social e para o resgate da cultura nordestina, como Samico, Brennand e Câmara. Há poucas exceções que se ligam às correntes internacionais, como Montez Magno, Anchises Azevedo ou Paulo Bruscky e Daniel Santiago.
Assim, historicamente o processo artístico em Recife se articulou entre a tradição e o novo. Já nos anos 30 percebiase essa dicotomia. Em 1932, por exemplo, foi criada a Escola de Belas Artes de Recife com a introdução de um ensino sistematizado e acadêmico em paralelo à introdução de um
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vocabulário moderno. Essas ideias de modernismo vinham de artistas que haviam se deslocado para centros hegemônicos, como Paris, como é o caso de Vicente do Rego Monteiro e de Cícero Dias. Consolidou-se no cenário local, através do Grupo dos Independentes, fortalecendo-se ainda mais com a criação da Sociedade de Arte Moderna de Recife (SAMR) e do Ateliê Coletivo em um processo de investigação, liberdade de ideias e de expressão.
Roberto Amorim, João Câmara Filho e posteriormente Tiago Amorim e João Sebastião, com uma primeira exposição coletiva realizada em 1964 em sua própria galeria. Ou ainda, a partir de 1974, a Oficina Guaianases de gravura atelier especialmente dedicado a litogravura cuja produção é reconhecida nacionalmente. Grupo iniciado por João Câmara, com a filiação de outros artistas como, Gil Vicente, José Carlos Viana, Francisco Neves, Luciano Pinheiro, Maria Tomaselli e Thereza Carmen. Todos nomes que modificaram o panorama das artes em Recife e no Nordeste.
Grupos e Instituições Grupo dos Independentes (agosto de 1933) composto por Augusto Rodrigues, Bibiano Silva, Carlos de Hollanda, Danilo Ramires, Hélio Feijó, Luiz Soares, Manoel Bandeira, entre outros, teve um papel renovador e de atualização da arte brasileira em Recife. Norteados pelos precursores, Vicente do Rego Monteiro, Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, a ação coletiva marcou uma ruptura com a arte tradicional, inclusive contra a recém inaugurada Escola de Belas Artes. Foram organizados dois salões, em 1933 e 1936,
Atualidade A determinação em continuar na rota do modernismo se dá também através do surgimento de museus, galerias e instituições que, nos dias de hoje, desenvolvem programas de caráter atual e de interesse da comunidade artística e da sociedade recifense. Neste sentido é preciso salientar o papel do Instituto de Arte Contemporânea (1996-1998) teve como base uma política cultural de novos modelos de conhecimento em arte e educação. Um espaço, promovido pelo Departamento de Cultura da UFPE, para pesquisas no campo das artes plásticas contemporâneas, sem as amarras aos currículos formais. Uma trajetória curta mas de intensa atividade e bons resultados. Teve um papel importante na vida artística da cidade; do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), criado em julho de 1997. Seu acervo que abrange desde os anos 1920 até os dias atuais e é fundamental para a renovação e compreensão da arte moderna e contemporânea recifense e brasileira. Destaques da coleção: João Câmara, Vicente do Rego Monteiro, Aloisio Magalhães, Gil Vicente, Lula Cardoso Ayres, Abelardo da Hora, Joaquim do Rego Monteiro, Francisco Brennand, Gilvan Samico, José Patrício, Paulo Bruscky, Nelson Leirner, Alex Flemming, Carlos Fajardo, Marcelo Silveira, Rivane Neuenschwander, Ernesto Neto e Vik Muniz; do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (MAC-PE), inaugurado em 23 de dezembro de 1966, com a doação de parte da Coleção do Embaixador Assis Chateaubriand ao Estado, reúne obras de nomes como Portinari, Cícero Dias, Eliseu Visconti, Djanira, Telles Junior, Wellington Virgolino, Di Cavalcanti, João Câmara, Guignard, Burle Max, Francisco Brennand; da Caixa Cultural Recife, inaugurada em 2012.
Após essa primeira fase, os historiadores registram um segundo movimento moderno ou a sua consolidação datada dos anos 1950. Vão se firmando escritores como Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto, com seus regionalismos e literatura intimistas e nas artes de um Cícero Dias, Abelardo da Hora e Lula Cardoso Ayres. Abelardo da Hora e Hélio Feijó fundam a Sociedade de Arte Moderna do Recife (1948), o Ateliê Coletivo (1952). O Ateliê através de uma ação inovadora, ao promover cursos livres de pintura, escultura e gravura, rompeu com os padrões acadêmicos vigentes na Escola de Belas Artes de Recife. Foi um celeiro da criação artística, formando jovens que se tornariam referências nas artes plásticas nacionais. Participaram do grupo Gilvan Samico, Ionaldo, José Cláudio da Silva, Wellington Virgolino e Wilton de Souza, além de, Campelo Neto, Bernardo Dimenstein, Celina Lima Verde, Corbiniano Lins, Genilson Soares, Guita Charifker, Ladjane Bandeira, Leda Bancovski e Reynaldo Fonseca, entre outros. Outros espaços são criados a partir dos anos 1960, como o Movimento da Ribeira do qual participam José Barbosa, Guita Charifker, José Tavares, Adão Pinheiro, Ypiranga Filho,
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Samico | O fruto amargo | 2010
Cícero Dias | Visão do Porto do Recife | 1930
A Caixa Cultural, instalada em prédio histórico no centro de Recife, abriga galerias de arte, um espaço de teatro, uma sala de multimídia e oficinas de arte-educação onde são realizados eventos, espetáculos de música, teatro, dança, e exposições de artes visuais, numa programação plural e diversificada.
a arte de Vicente do Rego Monteiro. Contido nas cores e contrastes sua obra é ao mesmo tempo mística e metafísica. Suas figuras, pela densidade e volume, se aproximam da escultura. Cicero Dias (Escada, PE, 1907- Paris, 2003) No início ele produz principalmente aquarelas, trabalhando um universo de sonhos e inquietudes. Seus personagens, muitas das vezes em escala diferente, parecem flutuar nas paisagens. Elas podem evocar o mundo do inconsciente, num desenho delicado e com uma gama cromática muito rica, onde o erotismo é frequente. Na opinião do crítico Antonio Bento, sua obra relaciona-se ao surrealismo e também a um imaginário fantástico nordestino, em que mitos e fábulas estão presentes.
Por seus acervos, suas atividades e a qualidade de serviços culturais prestados à comunidade é preciso mencionar também a Oficina Brennand que surge em 1971 nas ruínas de uma olaria do início do século XX, como projeto do artista Francisco Brennand. Lugar único, a Oficina constituise num conjunto arquitetônico monumental, onde a obra se associa à arquitetura com uma visibilidade diversificada da produção do artista; o Instituto Ricardo Brennand, fundado em 2002, é um complexo arquitetônico de estilo medieval composto de três edifícios: Pinacoteca, Galeria e Museu Castelo São João. Na coleção estão expostas pintura brasileira e estrangeira, esculturas, além da maior coleção privada do pintor holandês Frans Post; o Instituto Joaquim Nabuco, criado em 1949, dedica-se a pesquisas na área de ciências sociais, privilegiando o homem do campo no nordeste. Em 1979 o Instituto transformou-se na Fundação Joaquim Nabuco, que hoje é composta por diversos espaços culturais, entre eles a Galeria Vicente do Rego Monteiro (exposições e atividades multimídias) e o Museu do Homem do Nordeste (acervo, representativo da formação histórica, étnica e social da Região Nordeste).
Lula Cardoso Ayres (Recife, 1910-1987) A partir do popular sua obra se aproxima de uma abstração desinteressada de pureza absoluta, permeada por uma figuração lírica beirando o surrealismo. Nas pinturas ele se vale das possibilidades que a cerâmica lhe sugere, composições ao mesmo tempo realista e transfiguradora. Cenas, cores, luminosidade, formas, volumes, religiosidade popular mesclam-se com rara beleza. 2ª. Geração Francisco Brennand (Recife, 1927) O artista trabalha a cerâmica não só com a forma mas também com a cor, seus tons e semitons conseguidos através da variação da temperatura ao queimar as peças. São totens que se relacionam a signos da tradição popular, representados por criaturas sensuais ou aterradoras, monstros, seres deformados ou que revelam um caráter trágico.
Os Artistas O papel dos artistas nesse contexto tem sido o de marcar e ampliar o espaço de atuação dessa cidade, desse estado e dessa região na arte brasileira. Sem pensar muito em qual segmento da crítica estética os artistas poderiam se enquadrar, encontrei uma ordem para analisar alguns deles e aspectos de suas obras: um pouco pelo aspecto cronológico da própria história das artes em Recife ou um pouco pela cronologia dos seus artistas, que penso podem representar a arte pernambucana e a recifense em particular.
Gilvan Samico (Recife, 1928-2013) Seu meio de expressão é a gravura, sempre plena de personagens bíblicos ou provenientes de lendas e narrativas populares, onde são frequentes animais e seres fantásticos, leões, aves, serpentes ou dragões. Segundo Ferreira Gullar é uma linguagem clara, límpida. A linha, que Samico traça, para definir as figuras, é também expressiva em si mesma e como linha, tem intensidade e melodia. É uma gravura sem truques, sem retórica, sem falsas emoções.
1ª. Geração Vicente do Rego Monteiro (Recife, 1899-1970) Marcada pela sinuosidade advinda do art déco (temática religiosa e do cotidiano) e pela sensualidade dos trópicos é
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3ª. Geração João Câmara Filho (João Pessoa, 1944) O artista é reconhecido mundialmente por obras cuja temática são os retratos e os políticos, com caráter regionalista em cenários de Recife e Olinda. Para a estudiosa Almerinda da Silva Lopes, o projeto poético de João Câmara consiste em traduzir, plasticamente, uma visão crítica da sociedade. Sua obra dialoga com a história política brasileira, com a arte e a mitologia. O artista cria metáforas com as quais ironiza o poder e as relações sociais.
José Patrício (Recife, 1960) Dados, botões, dominós e pregos são empregados pelo artista de forma reorganizada e tirando-lhes a condição de sua funcionalidade primeira. Privilegia as caracterpisitcas do geometrismo e do concretismo, mas sem sua rigidez. Seus trabalhos enfatizam a relação frágil entre ordem e sua possível dissolução, sugerindo que mesmo a mais rígida das fórmulas matemáticas está carregada de expressividade. Carlos Mélo (Riacho das Almas, PE, 1969) O artista trabalha muito com performances como eixo de investigação e usando seu corpo como principal motivo, inclusive como forma de transpor limites e de materializar imagens e sentimentos.
Raul Córdula Filho (Campina Grande, PB, 1944) No início da carreira realiza obras figurativas e mantém diálogo com a arte pop e anova figuração. Seu trabalho apresenta concisão de formas e cores, utilizando também signos e símbolos do abstracionismo geométrico e planos pensados para uma nova geometria. Segundo Paulo Sérgio Duarte, Córdula revela também uma ligação com a paisagem nordestina, que transparece no uso da paleta de tons luminosos. Sua série sobre a bandeira da Paraíba é feita de formas definidas e cores fortes.
Juliana Notari (Recife, 1975) Em alguns aspectos sua obra me reporta ao colecionismo, juntando peças e objetos e com eles construindo um “objeto” único. Usa e abusa da repetição de signos. A leitura que ela se permite é pontuada por ruídos conflitantes e incompreensões linguísticas que exigem uma atenção mais acurada. Nesta instalação, ela descreve o cotidiano quase como o homem das cavernas fazia ao registrar e tomar posse do objeto de desejo.
Paulo Bruscky (Recife, 1949) Pioneiro na utilização de mídias contemporâneas, como a arte postal, audioarte, videoarte e xerografia no Brasil, Paulo Bruscky é um dos grandes artistas da arte conceitual brasileira e internacional. O artista desenvolve, através do uso de palavras e intertextualidade, um trabalho carregado de significado. Nos anos 1970, através da arte correio, ele pôde burlar a censura. Bruscky também faz experimentações relacionadas ao corpo e novas tecnologias.
Bruno Vieira (Recife, 1976) Um dos projetos do artista é que seus trabalhos possam de alguma maneira dialogar com a tradição da pintura. Ele transpõe para a fotografia lições da tradição clássica da pintura como a perspectiva, o “sfumato” e o claro escuro e que na fotografia consegue captar em um clique. Segundo o artista, “Utilizando uma fotografia de paisagem, com toda esta referência, sobreponho o desenho de arestas da janela, que na verdade é um molde vazado. Assim é criada a ilusão de que a paisagem passa por trás da parede e apesar de o trabalho denunciar facilmente seu truque, o olho engana”.
4ª. Geração Gil Vicente (Recife, 1958) O artista utiliza os mais diversos materiais para a feitura de suas obras, mas respeita cada uma de suas características e não mistura materiais e suportes, buscando a simplicidade desses meios. Gil Vicente não deixa de expressar politicamente suas opiniões, um exemplo eloquente disso é a série Inimigos, de 2005, em que ele se retrata, matando violentamente líderes políticos atuais, brasileiros ou estrangeiros.
Elvira Vernaschi é historiadora, crítica de arte e curadora. Doutora em Artes pela Escola de Comunicações e Artes, ECA/USP. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA.
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Tô dentro, Tô fora
Dyógenes Chaves
Por se tratar de um encontro realizado no Nordeste, mais precisamente em Recife, capital de Pernambuco, portanto, um dos mais importantes estados da região, e sendo esse autor natural do estado vizinho, a Paraíba, seria então muito natural propor nesse pequeno texto algumas situações relacionadas às semelhanças entre esses Estados, em várias instâncias, níveis e épocas, mas tendo como objetivo principal as artes, as visuais, em especial.
(alguns, revestidos de folhas de ouro), assim como portas e móveis. Para quem não conhece ainda, sugiro uma visita a estas cidades... Aliás, muitos não sabem, mas João Pessoa e Recife, dentre as capitais dos estados brasileiros, são as duas mais próximas. 120 quilômetros as separam. Hoje, de João Pessoa até Abreu e Lima leva-se apenas quarenta minutos, e com mais quarenta ou cinquenta, chega-se ao Recife Antigo...
A ideia é iniciar com um modesto relato, histórico, mas que ao final possamos concluir que nossas semelhanças (e mesmo as diferenças) mais nos unem que nos afastam. Afinal, num certo momento do passado, Jackson do Pandeiro, já disse que, para ele, Pernambuco e Paraíba era uma coisa só, referindo-se aos lugares de seu nascimento e formação artística.
Muito bem. Na verdade, agora inicio o relato mais detalhado no quesito “artes visuais” nos dois Estados. Já estamos no século XX, precisamente em 1913 quando há registros de que o pintor Aurélio de Figueiredo, irmão do famoso neoclássico, o também pintor Pedro Américo, tenha chegado à capital da Paraíba para dar início à formação de um museu ou galeria de retratos, por sugestão e convite do presidente da Província, Castro Pinto. Outro pintor, Antonio Parreiras, também esteve na Capital para a execução de uma obra sobre a revolução de 1817, por recomendação de Epitácio Pessoa, então presidente do Brasil. Mas, apenas em 1924, quase dez anos depois, é que nossos primeiros pintores realizaram uma grande exposição coletiva com mais de 200 obras. A exposição, de forte tendência regionalista, foi denominada de “Salon Philipeia” em resposta à mostra organizada pelo pernambucano Joaquim do Rego Monteiro, que acabara de trazer à Paraíba os primeiros exemplos de pintura “moderna”. Essa atitude dos paraibanos, de certa forma revanchista, é que traduz fielmente a manutenção, por longo período à frente, de uma pintura local baseada no retrato, na paisagem e na natureza morta.
Antes dos portugueses, os nossos antepassados ‒ os índios das famílias Tupi (litoral) e Jê (interior) ‒, basicamente ocupavam o mesmo espaço geográfico de Pernambuco e Paraíba, do litoral ao sertão. Séculos depois, com a vinda dos holandeses da Companhia das Índias Ocidentais, toda essa região produtora de cana-de-açucar teve um mesmo governo, mesmo que a Paraíba tivesse seu próprio governador, Elias Herckmans, entre 1636-39. Aliás, assim como Maurício de Nassau, governador-geral em Pernambuco, Elias era também homem culto. Desse referido período, Herckmans produziu um relatório etnográfico, econômico e geográfico ricamente detalhado sobre a capitania da Paraíba. E nessa época, quase duzentos anos antes da chegada da Missão Francesa, no Rio de Janeiro, os artistas trazidos por Nassau retrataram nossa fauna e flora, engenhos e senzalas, índios e colonos. Vem daí as primeiras pinturas de paisagem realizadas em solo paraibano (e também pernambucano), por Albert Eckhout e Frans Post, especialmente. Como se vê, estávamos no mesmo barco (ou no mesmo canavial).
Somente em meados dos anos 1940, o Centro de Artes Plásticas da Paraíba-CAP ‒ certamente o primeiro grupo de artistas locais ‒, foi o responsável pela modernização tardia das artes plásticas no Estado, com as primeiras tentativas de ruptura com o academismo sem, no entanto, alguns de seus artistas abandonar a tradição do retrato e da paisagem marinha. Mas, é importante afirmar a influência do CAP para as gerações futuras, como escreveu Raul Córdula no livro “Os anos 60”: “Foi no CAP que Ivan Freitas, Archidy Picado e Breno Mattos iniciaram-se através da orientação de José Lyra, Olívio Pinto, Pinto Serrano e Hermano José. Ivan Freitas deixou a Paraíba em 57, mas continuou aqui o seu gesto criador como lenda que servia de apoio às novas atitudes dos então ʻenumeradosʼ artistas jovens advindos da
Claro, é importante deixar aqui registrado os monumentos religiosos erigidos durante a colonização portuguesa. Não há como não reconhecer a beleza e riqueza (interior e exterior, diga-se) das igrejas e mosteiros de Olinda, Recife, Itamaracá, João Pessoa e Igarassu. O nosso barroco é muito rico, belo e único. Aí estão valiosos tesouros da escultura em pedra calcária e da azulejaria. Altares em fina talha
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Geração 59. Archidy desde cedo rompeu com a norma vigente e, entre viagens ao Rio, frequentou o atelier de Ivan Serpa no MAM e conheceu artistas atuantes e novas realidades. De volta a João Pessoa, Archidy instalou em sua casa, em Jaguaribe, seu atelier que foi frequentado por Antônio Cândido, Marconi Beniz e por mim.”
E as ações não pararam aí. Cada vez mais paraibanos circulavam pela Oficina Guaianases de Gravura, em Olinda, muitas vezes interessados mesmo nos encontros que se sucediam ao trabalho coletivo, coisa de gente que faz gravura e arte postal. Como também aqui aportavam pernambucanos, alguns como Jomard Muniz de Britto, para lecionar na UFPB.
Os anos 60 se caracterizaram pela dinamização das artes plásticas, através da ação cultural dos novos artistas que passaram a ocupar o Theatro Santa Roza, com um ateliê coletivo nos mesmos propósitos do CAP. Foi uma época de inúmeras exposições para mostrar as recentes produções da arte moderna. Nesse momento, a Biblioteca Pública do Estado teve grande importância como ponto de encontro das artes. Em 1962, a nossa universidade federal [UFPB] criou seu Departamento de Artes, a partir da colaboração dos artistas do Santa Roza. O setor das artes plásticas da universidade, funcionando no centro da cidade, logo abriu inscrições para cursos de pintura, desenho e modelagem, escultura, iniciação às artes plásticas e história da arte. Mais de 300 pessoas foram inscritas. Desses cursos, surgiram artistas que se destacariam mais tarde no panorama das artes plásticas. Os professores, artistas ainda sem o devido preparo, necessitavam de aprimoramento. Foi quando entrou em cena José Simeão Leal, na época Diretor do Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Saúde Pública, que enviou à Paraíba o pintor abstracionista, Domenico Lazzarini, que introduziu os artistas locais nas técnicas antigas da pintura, além da manufatura de telas e organização de exposições.
Mas, há inúmeros outros “casos de amor”. Falo dos vários artistas paraibanos que hoje residem em Olinda-Recife, casos de Raul Córdula, João Câmara, Roberto Lúcio, Francisco Neves, Flávio Gadelha, Marcelo Coutinho, Alice Vinagre... Das atividades promovidas no Centro de Artes Visuais Tambiá (leia-se Marlene Almeida e família), em João Pessoa, que sempre tinha a presença de jovens artistas pernambucanos, tal como aconteceu em curto período no NAC/UFPB, também nos anos 1990. As atividades da Fundação Joaquim Nabuco e a criação da Associação Cultural Le Hors-Là, em Recife, foram outros bons momentos de congraçamento entre artistas dos dois territórios. Aliás, nos dias de hoje, considero que o apogeu desta convivência Pernambuco-Paraíba está no atual programa de Pós-Graduação em Artes Visuais promovido em conjunto pelas nossas universidades federais. São professores, artistas e alunos em torno de uma discussão/reflexão sobre algo muito maior que nossas fronteiras. Ainda bem.
Dyógenes Chaves é artista visual, designer têxtil, membro da ABCA/AICA e do Colegiado Setorial de Moda/SEC/Ministério da Cultura. É professor do curso superior de Moda/Unipê. Autor do livro 20052010: ensaios sobre artes visuais na Paraíba (Programa Banco do Nordeste de Cultura, 2ou4 Editora, 2013). Organizou o livro Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba-NAC (Edições Funarte, Rio de Janeiro, 2004). Editor geral da Segunda Pessoa.
A partir de então, os anos 1970, inicia-se nova aproximação entre Pernambuco e Paraíba. E um dos primeiros momentos deu-se com a vinda de vários artistas de Recife/Olinda ‒ Montez Magno, Roberto Lúcio, Tereza Carmem, Gilvan Samico, Raul Córdula ‒ ministrarem aulas na Coordenação de Extensão Cultural da UFPB. Logo depois veio o pessoal da Arte Correio ‒ que já fazia o circuito Recife-Campina Grande-Olinda-João Pessoa-Natal ‒ com frequentes atuações no Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, exibindo livro de artista, poema processo, arte correio/ postal, poesia visual etc. Deve-se registrar que daí o NAC veio a organizar uma sala especial de Arte Postal/ Arte Correio, a convite de Walter Zanini, na XVI Bienal de São Paulo, em 1981.
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Reflexões sobre o apoio à arte contemporânea em Pernambuco Carlos Trevi
contemporânea que é produzida no nordeste, quando vista por esses curadores de outros Estados, abre uma inovadora possibilidade de diálogo dos nossos artistas com a arte contemporânea do Brasil e do mundo.
A falta de incentivo à arte contemporânea de Pernambuco, principalmente por parte do poder público, é um desafio que artistas, curadores, incentivadores da cultura e da arte enfrentam diariamente. Grandes exposições apresentadas no MAMAM ou Museu do Estado ou MAC, não são privilegiadas com incentivos financeiros, de ativação ou sequer o simples prestígio da presença de autoridade local no evento de abertura.
Ao mostrar as dificuldades enfrentadas pela arte contemporânea em Pernambuco deixo aqui a proposta de discutirmos possíveis projetos para apresentarmos à Prefeitura de Recife e ao Governo do Estado. Com o intuito de criar mecanismos que facilitem e tornem necessários investimentos, pelos poderes público e privado, na arte contemporânea.
É notório o apoio dos Governos para manifestações populares de grande apelo midiático ou de lazer em Pernambuco, em detrimento das expressões contemporâneas locais. É lamentável perceber que os governos parecem querer imprimir um padrão estético nessa região, segmentados no armorial, no popular, nas manifestações rurais ou religiosas. Somos armoriais, somos populares, somos ritualísticos, mas somos contemporâneos também. Não podemos virar as costas para a produção contemporânea, correndo o sério risco da estigmatização de uma região, em função da falta de conhecimento ou simplificação de conceitos, reduzidos ao gosto pessoal de seus governantes.
Carlos Trevi é coordenador geral do Santander Cultural.
A percepção dessa falha e a busca por uma solução por parte da área de cultura do Santander resultou em um projeto simples, de baixo custo e com grande repercussão, tanto de mídia quanto de na promoção da nova geração de artistas pernambucanos e jovens curadores de outros estados. Em 2006 implantamos na unidade de cultura do banco em Recife o projeto Contemporâneos Pernambucanos, que visava o incentivo à arte contemporânea do Nordeste do país. Com o projeto apoiávamos artistas locais com exposições e edição de catálogo de suas obras. Muitos desses artistas, até então, nunca tiveram a oportunidade de uma exposição individual e com apoio de equipe profissional para montagem e divulgação de sua produção. A ideia do projeto, que recebeu críticas elogiosas de personalidades da área de cultura, está no acompanhamento do trabalho de um jovem artista por um curador, também de outra região do país. A arte
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Os desenhos de Inimigos, de Gil Vicente, 10 anos depois Valquíria Farias
Dez anos se passaram desde que escrevi O Energúmeno, texto para uma das séries de desenhos de conteúdo político que o artista pernambucano Gil Vicente me convidou a construir. Os desenhos, autorretratos de Gil, segundo alguns especialistas, são vistos como uma das séries em papel mais polêmicas até então surgidas na história recente da arte brasileira. Contudo, continuam sendo, no meu entender, autorretratos de apelo não panfletário, não caricato, do ponto de vista da Política escrita com “P” maiúsculo. A escritura do texto foi um desafio dos mais dolorosos que enfrentei... E para mim escrever é sempre isto: um desafio crítico, no sentido pleno da palavra.
De um ponto de vista mais amplo, junte-se a todos esses problemas, claro, a crise econômica ocorrida em 2008, que afetou diretamente as potências mundiais ‒ os Estados Unidos e os países europeus ‒, que resolveram reagir com grandes ações programadas de terror, violência e guerra para todos os lados e, assim, continuarem potências ocidentais economicamente. Hoje, podemos assistir em tempo real, pela Internet, o resultado de toda essa desordem. Daí, então, basta uma pesquisa no Google para se ver o resultado de tanto terrorismo político e guerras sangrentas. Tudo pelo poderio econômico.
O tema desse importante encontro: Arte Visuais em Pernambuco, promovido pelo Instituto Raul Córdula, com o apoio da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Caixa Cultural, reflete um momento propício para se discutirem novamente esses desenhos incríveis nos quais o artista Gil Vicente se desenha como um ativista de si mesmo, indignado e pronto a exterminar todo o mal que, para ele, representa o sistema político, social e econômico do mundo. Nos desenhos, Gil é a figura que “aciona” cenas violentas de morte de personalidades atuantes no mundo político globalizado.
Cito aqui alguns exemplos: a crise financeira da Zona do Euro, desde 2010, com países como Portugal, Grécia, Espanha e Itália vivendo seus piores momentos de endividamento público e privado, com altas taxas de desemprego, problemas estruturais, baixa produção industrial e falta de alimentos; o fundamentalismo armado do Estado Islâmico no Iraque e na Síria, e do Boko Haram, na Nigéria; o eterno conflito entre Israel e Palestina, que em 2014 provocou mais milhares de mortes na Faixa de Gaza, um verdadeiro genocídio comandado pelo primeiroministro israelense Benjamin Netanyahu, com a interferência direta dos Estados Unidos e a omissão desmedida do Conselho de Segurança da ONU; a recente crise entre a Ucrânia e a Rússia, que está envolvendo a União Europeia e também os Estados Unidos, cuja intenção é desarticular estrategicamente o poder político e bélico do Presidente russo Vladimir Putin naquela região; entre outros. Relembrando que foi em 2008 que os Estados Unidos não puderam impedir o chamado estouro da bolha imobiliária, que abalou seu sistema financeiro, gerando ondas de impacto pelo mundo.
É também um momento oportuno, dada a crise atual que atravessa o sistema político-econômico brasileiro, que avança em meio a toda sorte de mobilizações e protestos ganhando as ruas e que, sem sombra de dúvida, representa o retorno da luta política entre classes sociais no nosso país. A disputa pelo poder, na verdade, nunca deixou de existir, ela apenas mudou de lado e hoje se apresenta com uma força brutalmente conservadora. Em razão disso, estamos vivenciando todo um processo de esgotamento do modelo político implementado pelos governos de base social no Brasil, desde a primeira eleição do ex-presidente Lula. Parece que nem as conquistas sociais dos últimos anos são agora suficientes para dar sustentação e continuidade ao projeto do atual governo. O tema da corrupção se tornou emblemático e tomou conta do País, com escândalos envolvendo políticos, empresas públicas e privadas sendo veiculados 24 horas pelos meios de comunicação tradicionais, muitas vezes de forma seletiva, e pela Internet. As classes conservadoras parecem ter encontrado seu nicho para, enfim, retornar ao poder. Parece?
Na América Latina, países como Equador, Venezuela e Argentina têm sofrido constantes críticas e sanções do chamado imperialismo americano. É possível que agora essa crise tenha se instalado no Brasil, segundo dizem alguns especialistas econômicos, o que compromete sobremaneira o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Isso explicaria as medidas de ajuste fiscal logo nos primeiros dias de seu governo.
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Por outro lado, há quem afirme que a crise brasileira tem origem no próprio País, na medida em que o aumento das classes políticas conservadoras ocupando espaços de poder teve seu auge na última eleição. Tem-se, assim, uma crise política que cresce agora com grandes contingentes de pessoas, em sua maioria de classe média, saindo às ruas contra o governo, claramente pautadas por um discurso xenofóbico que pede volta da ditadura militar.
Em seguida, os desenhos foram exibidos em outros centros culturais do país (na Casa da Ribeira, Natal; e no Atelier Subterrânea, Porto Alegre; e na Galeria Cilindro, Campina Grande, foram coladas reproduções para uma proposta de intervenção pública) até, finalmente, a série ser toda montada na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, para a qual Gil Vicente produziu um novo desenho, que foi o autorretrato Matando Ahmadinejad, completando e encerrando assim o conjunto de dez desenhos. Com o título Há sempre um copo de mar para se navegar, a 29ª Bienal também tratou de afirmar o envolvimento direto da arte com a política, tendo à sua frente a experiente curadoriageral do Moacir dos Anjos.
Todos nós sabemos que o Recife, Pernambuco, se consolidou como um dos principais centros de arte contemporânea do país. As três últimas décadas foram cruciais para que isso pudesse ter acontecido. Sobretudo a partir de meados dos anos 1990, quando ocorreu todo um processo de reestruturação e revalorização do circuito cultural local e uma tentativa bem-sucedida de articulação com os centros culturais do sul do país, o que produziu debates acirrados sem que nenhuma forma de manifestação artística fosse desmerecida ou posta no canto. Para as artes visuais, o resultado foi o reconhecimento dos artistas pernambucanos ‒ dentre eles o nosso querido Gil Vicente ‒, que passaram a ocupar espaços de relevância nos circuitos da arte nacional e internacional. Além de ter surgido uma inteligente produção crítica feita por profissionais comprometidos com a experiência estética, sem dúvida.
Era evidente que, em um evento de grande visibilidade como a Bienal de São Paulo, a simples exposição de Inimigos não passaria despercebida do público, desencadeando polêmicas. Houve repercussão a favor e contra, com a OAB de São Paulo polemizando ainda mais ao tentar impedir que os desenhos continuassem expostos durante o evento pelo fato de estarem supostamente fazendo apologia ao crime. Por fim, tive a satisfação de agora saber que a série Inimigos foi contemplada com o Prêmio CNI Sesi Senai Marcantonio Vilaça de Artes Plásticas no ano passado, o que permitirá que os desenhos passem a compor o acervo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, o Mamam, ficando aqui, bem perto de nós. É uma ótima notícia, pois sabia da intenção do Gil Vicente: de que o conjunto de autorretratos pertencesse a algum acervo público, de preferência; que não fossem adquiridos por colecionadores particulares apenas como meros desenhos isolados, porque, para Gil, isso iria de encontro ao que ele pretendia conceitualmente expressar quando resolveu produzi-los: ou seja, nada mais do que publicizar sua agonizante revolta com os desmandos do poder instituído.
Tive o privilégio de acompanhar de perto alguns passos do Gil Vicente na criação dos desenhos Inimigos. As conversas sobre política, as pesquisas na Internet, a preparação das cenas no seu ateliê, as fotografias e os estudos que iam sendo rabiscados no momento em que ele decidia qual “inimigo” iria “matar”. São experiências impossíveis de serem esquecidas. É interessante se fazer um breve percurso das exposições de “Inimigos”, os autorretratos de Gil Vicente matando Bush, Lula, Bento XVI, FHC, Eduardo Campos, Elizabeth II, Jarbas Vasconcelos, Fernando Henrique Cardoso, Kofi Annan, Ariel Sharon e Ahmadinejad, que primeiramente foram expostos ao público em 2005, aqui no Recife. O artista distribuiu a série pelos espaços da então recéminaugurada Galeria Mariana Moura. E também espalhou cartazes pelas ruas do centro do Recife, para atrair a atenção dos passantes para a sua ação política e para a mostra.
No meu texto, procurei de alguma maneira afirmar isso. Gil Vicente não é nenhum ser que se apresenta a favor da violência, tampouco a favor de sua pregação pelo mundo. O que quis o Gil, e acredito que ele tenha conseguido, foi através de sua arte “expurgar” e tornar pública toda sua revolta contra dez líderes, que, para ele, representavam uma ameaça à sua paz interior.
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Do ponto de vista do sistema social ao qual pertence, sua ação crítica de matar o poder instituído, nos desenhos representado pelas figuras dos algozes, se torna ainda mais contundente. Com os autorretratos, Gil Vicente expõe, de uma maneira violenta mesmo, aguerrida, sua total descrença em quaisquer possibilidades de mudança das condições de sobrevivência dos indivíduos nas sociedades. É através dos traços duros e fortes a carvão, realisticamente riscados no papel, que ele expõe sua necessidade urgente de acabar com as diversas formas de governo no mundo, os sistemas políticos e econômicos de dominação, todas as formas de exploração do homem, das ideologias e crenças que os conduzem. É como se Gil Vicente quisesse demonstrar, por meio da inversão do papel de vítima nas relações de dominação, o quão violentos são os modos de governar nas sociedades contemporâneas globalizadas.
Autorretrato matando George Bush | Carvão sobre papel | 200x150cm | 2005
Autorretrato matando Fernando Henrique Cardoso | Carvão sobre papel | 200x150cm | 2005
Cito o sentido da política em Hannah Arendt para dar vazão à complexidade que está expressa na relação violenta imposta pelas figuras da vítima e do algoz em Inimigos. Para Arendt, o sentido da política se baseia na pluralidade e liberdade dos indivíduos vivendo em sociedade e em condições de igualdade (isonomia), sentindo-se livres, portanto, para comunicar e atuar nos seus diversos espaços de socialização. Paradoxalmente, foi a partir dessa perspectiva arendtiana que pude, então, empreender uma linha de raciocínio a respeito dos desenhos de “Inimigos”. Isto é, com autorretratos, Gil Vicente não somente publiciza sua denúncia do “mal do mundo”, os poderes instituídos, como radicaliza seus atos em cenas de violência. O que se vê nos desenhos ‒ entre as duas figuras, vítima e algoz ‒ é, em si, uma espécie de força reativa que emerge como forma de defesa contra os sistemas de opressão combatidos por Gil. Para a filósofa Arendt, há que se fazer uma importante distinção entre o que é poder e o que é violência nas sociedades, observando que a compreensão atual de equivalência entre essas categorias advém da ideia de formas tradicionais de governo como estruturas de domínio do homem sobre outro homem por meio de diversas
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Tudo é Brasil ou Siamo Tutti Brasiliani Marcus Lontra Costa
formas violência. Sendo esse, portanto, o modelo de poder que vigora nas ditas sociedades modernas, sobretudo as capitalistas.
A Arte contemporânea brasileira reflete a complexidade de um país com oito milhões e meio de quilômetros, e no qual vivem quase duzentos milhões de pessoas de origens distintas: europeus, africanos e orientais que ao longo dos últimos cinco séculos vieram se agregar à população nativa.
Com a série “Inimigos”, Gil Vicente nos traz à luz uma questão política importante nesses tempos de crise global: O que está por vir?
No Sul, é marcante a presença dos povos europeus em especial alemães, poloneses e italianos, sendo que esses últimos formam a maior colônia europeia na cidade de São Paulo, principal centro industrial e populacional brasileiro. No Rio de Janeiro e na Bahia, a presença dos negros fundese à formação cultural portuguesa das antigas capitais. No Nordeste, berço da colonização brasileira, o lendário ibérico une-se a tradição indígena nativa, componente esse que se acentua na região amazônica.
Vale lembrar que os autorretratos foram produzidos em 2005, à exceção de apenas um, portanto 3 anos antes de a crise americana acontecer e começar a repercutir no mundo. No Brasil, já estávamos em processo de abertura política, ascensão democrática e no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que dizia nos trazer um histórico de conquistas do lado oprimido e um novo projeto político para o país.
O Brasil possui hoje mais de dezessete cidades com mais de um milhão de habitantes nas várias regiões e cada qual com características e situações distintas. Ao longo desses quinze anos iniciais do século, políticas públicas transformaram a realidade social e econômica do país historicamente marcada pelo desequilíbrio econômico e pela desigualdade social. Projetos eficazes retiraram mais de trinta e cinco milhões de pessoas da linha da miséria e permitiram a integração no mercado consumidor de trinta milhões de pessoas que hoje transformam a realidade elitista tradicional do país. Essas pessoas, que habitavam em favelas e executavam serviços domésticos com rendimentos irrisórios e relações trabalhistas próximas à escravidão assumem papel protagonista no novo pacto social do país. Elas trazem também, seus próprios valores; sua visualidade contemporânea dialoga com os movimentos internacionais filtrados e reciclados por uma realidade tropical e mestiça.
Encerro esse texto com outra pergunta: hoje, em se tratando da realidade brasileira, houve de fato mudanças na forma de governar o país?
Valquíria Farias é crítica de arte e curadora independente. Coordenadora do Casarão 34, Funjope, João Pessoa.
Num certo momento da história brasileira determinou-se uma máxima modernista que afirmava ser o Brasil um país de “vocação construtiva”. Hoje a realidade é bem distinta e talvez o Brasil seja o mais precioso laboratório de uma arte que se contamina por várias influencias, que aceita a superficialidade da cultura pop e a ela adiciona elementos tradicionais de culturas outrora desprezadas pela modernidade.
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Felizmente hoje a arte brasileira é apenas uma indicação de local e não a afirmação de uma especificidade artística. Naturalmente, uma metrópole dinâmica como São Paulo, verdadeiro caldeirão multiétnico formada por vários grupamentos humanos de formação cultural diferenciada há de produzir uma arte na qual a presença da urbanidade se impõe de maneira bastante distinta da noção urbana de uma cidade espetacular como Belém na qual a visualidade amazônica parece criar um cinturão protetor em torno dessa metrópole tropical e perfumada outrora conhecida como ”Feliz Lusitânia”. Da mesma maneira, uma cidade cartão postal brasileiro como o Rio de Janeiro e todos os seus clichês reproduz com eficiência as tensões contidas na ação cultural brasileira retrabalhadas e reinterpretadas de maneira diferenciada pela cidade do Recife, metrópole nordestina que teve a sua história marcada pela especificidade da colonização holandesa, por uma luta incessante por direitos libertários contra a colonização portuguesa e por uma elite transgressora na qual a escravidão articulou um discurso de tensão entre a conivência e a condenação.
estranhamento da cultura ibérica tradicional transportada aos trópicos por Francisco Brennand e pela inteligência generosa de Paulo Bruscky que nos ensina que a arte e a vida devem ser entendidas como diálogo e afeto permanente e também pela dedicação em nos revelar o universo do povo presente em Emmanuel Nassar cujas obras demonstram que a beleza e a inteligência caminham ao lado da simplicidade. Enfim, como tudo na vida que realmente importa, a arte brasileira contemporânea é um convite para se entender e amar a vida sem dogma e sem preconceito, caminho simples para se aprender a ser feliz.
Marcus Lontra Costa é curador e crítico de arte. Atualmente é curador no Museu de Arte Moderna da Bahia e professor da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro.
Portanto o Brasil de hoje são vários. E a Arte reflete essa variedade em todas as suas esferas, seja na música, nas artes visuais, no teatro e na dança, na literatura e no cinema e também na gastronomia e na moda. Essa capacidade de elaborar um discurso no qual as informações internacionais são filtradas e recicladas acaba por criar uma produção artística ao mesmo tempo próxima e distante, aparentemente óbvia porém repleta de mistério e fantasia. Para se entender a arte brasileira é preciso abandonar a bula, o molde, ou o livro de receitas. É preciso mergulhar nas curvas de Niemeyer, dançar com os parangolés de Oiticica, encantar-se com as trilhas e tramas de Ernesto Neto, Adriana Varejão, Beatriz Milhazes, abismarse com a densidade poética de Cildo Meireles e a gráfica de Mira Schendel e amar igualmente a bossa nova de Tom Jobim e o baião de Luiz Gonzaga. É preciso encantar-se com a variedade de formas, suportes e estilos da arte brasileira, da pintura de caráter dramático e expressionista de Iberê Camargo no Sul do país, do universo lendário das vozes do Planalto Central brasileiro encontradas em Siron Franco, no ritmo da azulejaria de Athos Bulcão que trouxe música e alegria para o modernismo de Brasília, para o
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Eu vi o mundo...ele começava no Recife: o projeto e a curadoria de Radha Abramo Cláudia Fazzolari
Pode parecer estranho, que em um debate sobre crítica de arte, destinado à reflexão sobre as artes em Pernambuco, um texto venha iluminar uma ação de uma museóloga e crítica de arte, chamada Radha Abramo, que viveu no sudeste do país, tendo desenvolvido sua prática profissional quase que exclusivamente na cidade de São Paulo, onde nasceu e fixou residência. Pode parecer quase um desvio do eixo central de nosso encontro, ainda que a presença de Radha Abramo possa ser recordada até os dias de hoje na cidade do Recife, na praça do marco zero, com a sua rosa dos ventos, em pedra e concreto pigmentado, mesmo que poucos saibam.
de uma vertente da empreitada: um conjunto de esculturas do artista Francisco Brennand e o desenho de um traçado circular com 30 metros de diâmetro para uma rosa dos ventos, no piso da praça cívica, criado pelo artista Cícero Dias como obra pavimentada no marco zero da cidade. Como sabemos, Eu vi o mundo...ele começava no Recife é referência direta ao nome da obra de Cícero Dias, criada entre 1926 e 1929, painel realizado em guache e aquarela, sobre papel Kraft, que narra entre cortejos, a vitalidade da cultura popular, a dimensão incontornável da presença nordestina em um país que se desconhecia então e ainda muito se desconhece.
Assim sendo, como houve entre as passagens da prática profissional desta mulher uma ação específica desenvolvida em Pernambuco, um projeto de grande repercussão, polêmica e importante vestígio, me pareceu oportuno comentar um trabalho realizado há quinze anos.
Obra fundante recriada pelo relato do artista, em sua autobiografia, o painel Eu vi o mundo...ele começava no Recife, trazia consigo a dinâmica de um projeto de execução material quase impossível, como recordava o próprio Dias, em uma passagem, que apesar de longa, é importante para melhor aproximação com o universo completo desta criação,
De fato, logo pareceu que coerente de minha parte, como pesquisadora envolvida com estudos sobre crítica de arte, seria desenvolver uma reflexão que discutisse uma ação profissional de Radha Abramo, até hoje pouco debatida e bastante complexa, desde um ponto de vista particular, aquele das intencionalidades e da razão curatorial do projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife, de 19992000, realizado pela FADE, Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco, unidade gestora do trabalho.
“Tudo se mexia na minha cabeça. Imagens do começo da minha vida. Tantas coisas: mulheres, histórias fantásticas, escada de Jacó, as onze mil virgens. Levaria todas essas imagens para dentro de um grande afresco? Executar um afresco era uma realização material impossível. Impraticável. Pensei então em executar uma grande tela. Decidi colocar tudo num painel, onde o imaginário se espalhasse por todos os lados. O mais representativo seria a realidade onírica. Eu pintaria a própria vida numa superfície de mais de cinquenta metros. Tudo teria grandes proporções. Corri todo o Rio de Janeiro à procura do material. (...) Enfim, indicaram-me um depósito de papeis, perto da Central do Brasil, passagem obrigatória de todo mundo devido ao célebre mangue. No depósito achei papeis, confetes, serpentinas, artigos de carnaval, lança-perfume. Encontrei-me diante do proprietário. Largos bigodes, de tamancos, grande lenço de rapé: “O que quer o rapaz?”, perguntou. Avistei-me com uma valentona bobina de papel com dois metros de altura. Gritou o bigodudo: “Papel de primeira, papel Kraft, venda em grosso para as indústrias”. Tudo resolvido. Uma feliz solução.” DIAS, 2011, p. 55.
O projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife¹, conhecido certamente por muitos, apoiado pelo governo do Estado de Pernambuco, pela Prefeitura da Cidade do Recife, pelo Ministério do Turismo, pelo Ministério da Cultura, pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco e pela Administração do Porto do Recife, teve como seus patrocinadores as empresas Telemar e Queiróz Galvão, entre outras. De fato, o projeto contemplava a modificação do entorno e da Praça Barão do Rio Branco, com o plano de instalação de uma imensa praça cívica, de acordo com as justificativas do documento original da obra, que contaria com 7.000 m2 de área livre incluindo duas intervenções como pontos centrais
Conforme o relato do artista acompanhamos o interesse pelo registro da própria vida, uma síntese de motivos e matéria fantástica citada também como eixo do projeto realizado na capital pernambucana.
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De volta à proposta que pretendo retomar, materializada em Recife, contando com a curadoria de Radha Abramo, uma equipe liderada pelos arquitetos Paulo Roberto Barros e Silva, Fernando Borba e Reginaldo Esteves juntamente com a consultora responsável pela memória dos trabalhos, Elizabeth Araruna², se propunha ao andamento de um múltiplo arranjo de compromissos e tarefas que não passaria despercebido na sociedade pernambucana.
Não cabe ao estudo ora apresentado acompanhar todos os objetos contratados na ocasião de lançamento do projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife, mas situar a contribuição de Radha Abramo para o desenvolvimento dos trabalhos e as responsabilidades de sua atuação. Não me cabe aqui levantar documentação referente aos outros profissionais contratados para a empreitada ou mesmo suas ações anteriores ao objeto contratado, excetuando é claro a situação dos artistas convidados que evidentemente por suas próprias trajetórias na arte brasileira já trazia um extenso memorial de criações que os credenciava para todo o projeto.
Como é possível acompanhar, pela publicação no Diário Oficial da União, do dia 09 de março de 2000, a contratação da curadoria do Projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife, mencionava a contratada Radha Abramo como curadora responsável pelos trabalhos, conforme fundamento legal do artigo 25, inciso II ou artigo 13 inciso III da Lei no. 8666/93.
Neste momento proponho um esforço de memória, um início de reconstrução histórica para que possamos acompanhar o teor da participação da crítica de arte no trabalho desenvolvido e, pontuar sua presença à frente da equipe do projeto.
Sabemos também, pois a publicação citada menciona, houve uso de extratos de inexigibilidade de licitação para contratação de diversos serviços do projeto, conforme diversas publicações disponíveis à consulta no Diário Oficial da União.
Como teria sido a contratação de Radha Abramo? Que documentação teria apresentado para consolidar a proposta curatorial apresentada ao órgão gestor do projeto? Sabemos, pela sua trajetória profissional que a crítica de arte sempre pautou suas ações por intensa investigação, pelo compromisso com a ética e com a lisura de processos. Podemos assim supor que tenha formalizado sua participação por meio de um memorial comprobatório de significativas ações realizadas, protocolado para análise do órgão gestor do projeto. Podemos deduzir então que Radha Abramo tenha apresentado um histórico de ações realizadas em, pelo menos três décadas de prática profissional, fato que certamente a credenciava para a empreitada e legitimava suas intenções como curadora de um projeto cultural que começava a tornar-se realidade.
Como é possível verificar, segundo o dispositivo da Lei 8666/93, compreendemos as variantes dos incisos quando o texto original apresenta a legítima garantia e a lisura de todo contrato para a administração pública, “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.” BRASIL, Lei 8666/1993.
Podemos crer que Radha Abramo tenha apresentado seu currículo documentado. Nele teria comprovação efetiva de suas atuações como Secretária Geral da Fundação Bienal de São Paulo, como Assistente Técnica Artística da mesma fundação, como membro do Conselho de Arte e Cultura da instituição, como Diretora do Centro de Pesquisa de Arte Brasileira³ do IDART, Departamento de Informação e Documentação Artística da Secretaria Municipal de Cultura
Já para a inexigibilidade de licitação são previstos os casos em que a licitação torna-se não necessária sendo a competição entre prestadores de serviço inviável. Tal situação é criada pela existência de fornecedor exclusivo do objeto exigido na contratação. Em tais casos a contratação sempre terá de ser comprovada por documentos inquestionáveis.
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Marco Zero | Bairro do Recife | Fotografia de Gustavo Bettini
de São Paulo, como membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA, da Associação Internacional de Críticos de Arte, AICA e como Curadora Chefe do Acervo dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.
fundamentou todo o projeto conceitual intitulado o ʻEspaço da Sé como suporte plásticoʼ. Da iniciativa resultou uma praça cívica, um museu aberto de esculturas que demonstrava uma evidente compreensão, por parte da dupla da Secretaria Municipal de Cultura, da complexidade do projeto, de sua visão socializante apoiada pelo compromisso com o sentido de integração promovida pela arte. Ao excluir “um papel meramente de decoração simplista do novo espaço” a comissão buscava a instalação de um texto poético compreendido por todos aqueles que desfrutassem do exercício e da potencialidade do prazer estético-visualsensorial.
Caso quisesse situar especificamente sua experiência com curadoria, certamente teria apresentado comprovação de sua participação como membro da comissão composta pelo Conselho de Arte e Cultura da Fundação Bienal para a curadoria da 15ª Bienal de São Paulo, em 1979 e também como curadora da representação brasileira para a 42ª Bienal de Veneza, em 1986. Como crítica de arte atuante na imprensa brasileira desde os idos da década de sessenta nos principais jornais do país teria reunido e documentado as inúmeras colaborações realizadas em veículos como a Folha de São Paulo.
É possível imaginar que Radha Abramo tenha, também nesta empreitada no Recife, sido motivada pela dimensão social de ações de uma praça cívica em meio a um projeto de múltiplas faces.
Também podemos supor que tenha apresentado sua atuação à frente de projetos de arte pública como aquele da praça da Sé, de museu aberto de esculturas, no centro de São Paulo, realizado entre 1977 e 1979.
Cabe destacar que embora a publicação do objeto de contratação da curadora esteja datado de 09 de março de 2000⁴, Radha Abramo trabalhava no projeto desde maio de 1999, conforme documentos gentilmente cedidos pela equipe da Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco, como podemos acompanhar pelos diversos textos sobre a justificativa do circuito de exposições, entre outras ações previstas no documento original, que se realizariam de março a junho de 2000, como parte do projeto cultural Eu vi o mundo...ele começava no Recife.
O projeto Espaço da Sé como Suporte Plástico, iniciativa nascida do diálogo entre um estudo elaborado pela EMURB (Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo), destinado à concepção de um novo espaço de convivência, constituído na fusão da antiga Praça da Sé com a Praça Clóvis Bevilacqua,“em consequência da demolição da quadra edificada que as separava, para a construção da grande Estação Central do Metropolitano de S. Paulo, a Estação Sé.” teria sua coerência conceitual construída pelo compromisso da representação indicada pela Secretaria Municipal de Cultura na empreitada, composta então pela dupla Maria Eugênia Franco e Radha Abramo.
Desta forma, percebemos que estavam esboçados, inicialmente, doze meses de trabalho do comitê gestor do projeto, sendo Radha Abramo encarregada da representação do grupo junto ao comitê executivo da FADE que acompanhava detalhadamente os trabalhos da empreitada.
Vale destacar que a comissão da área de Artes Plásticas designada pelo Secretário Municipal de Cultura, Sábato Magaldi, reunia Maria Eugênia Franco, então Diretora do Departamento de Informação e Documentação Artística, IDART, e Radha Abramo à época Diretora do Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, não apenas como representantes para interlocução com autoridades da EMURB, mas como responsáveis pelo estudo que
Conforme o relatório de curadoria⁵ apresentado por Radha Abramo ao FADE, a proposta conceitual, as intervenções físicas, os eventos culturais, as mostras especiais e atividades complementares ao projeto compunham o objeto completo da contratação realizada entre 1999 e 2000.
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Recife, que Radha Abramo tenha convencido Cícero Dias, amigo desde os tempos em que ambos viviam em Paris ‒ ele radicado na França desde a década de cinquenta, ela juntamente com o marido, o jornalista Claudio Abramo correspondente do Jornal Folha de São Paulo, residentes na capital francesa desde 1983, para que autorizasse o uso do nome de seu painel como título da empreitada e também fosse o criador da obra para a praça cívica, para o pavimento, no marco zero da cidade. Desta forma reconstruímos, pouco a pouco, o andamento de um projeto que conforme o texto apresentado por Radha Abramo previa iniciativas culturais organizadas em torno das comemorações do 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. Para melhor enxergar a envergadura de cada proposta, citamos duas ações destacadas pela curadora como importante desdobramento da empreitada: a formação de agentes culturais e a criação de um circuito de exposições integrando museus e instituições culturais de Recife ao projeto.
De acordo com o documento arquivado, redigido por Radha Abramo, a proposta contemplaria, “(...) dois eixos de atividades: as intervenções de natureza física, e os eventos de natureza cultural. No que se refere às intervenções físicas, busca-se a consagração de marcos e marcas do Recife, atuando sobre a Praça Rio Branco, os arrecifes e os armazéns ociosos do Porto. No tocante aos eventos de natureza cultural, busca-se consagrar a expressão da arte pernambucana, através de um painel diversificado e pluralista da nossa cultura, sob forma de exposição durante quatro meses, de 31 de dezembro de 1999 a 30 de abril de 2000.”ABRAMO, 1999.
Para implementar a formação de agentes culturais, Radha Abramo endereçou carta ao Sr. Alfredo Soares, secretário executivo da FADE, em 15 de setembro de 1999, solicitando especial atenção ao contexto único da visitação pública promovida pelo projeto como proposta geradora de interação que estimulasse o contato entre “o pensamento das pessoas deste final de século.”
O projeto que aqui iluminamos é citado em diversas situações, por distintas personalidades, algumas vezes entre conflitos. Como exemplo temos a menção feita ao projeto por Raymonde Dias, viúva de Cícero Dias, na abertura de sua participação na autobiografia do artista quando cita o projeto com algum ressentimento, cito
Em seu texto, que apresentava justificativa e propunha ações específicas, Abramo sinalizava a necessidade de reflexão sobre a pluralidade e a diversidade cultural garantidas pelas diferenças na composição do quadro de participantes do projeto quando argumentava, cito
“Quando Cícero interrompeu a escrita de suas memórias para se dedicar ao projeto de uma praça no Recife, pensávamos continuar juntos o relato de nossa época na França. Infelizmente o céu não o quis. Agora, é sozinha que devo evocar nossa vida e nossas lembranças, pois graças a elas continuo a fazer tudo para que a obra de Cícero Dias perdure e seja reconhecida pelas gerações futuras.” DIAS, 2011, p. 155.
“O conhecimento não está mais centrado e exclusivo nos centros de cultura, universidades e escolas. O conhecimento tornou-se nômade, sem endereço certo, sem lenço e sem documento. Através da informática, pulverizou-se, ele, no espaço conhecido e desconhecido, perdeu a autoria, a autenticidade, pureza, identidade e origem, tornou-se desterritoriado, sem lugar ou posto provisório, afirmando-se como um nômade do Ano 2000. (...) como o “Eu vi o Mundo ...” oferece-nos a bandeja servida de seus suculentos manjares, com todos os seus projetos artísticos, ao vivo, expostos aos nossos olhos e dispostos em nossas mãos, é de se crer que abertos ao sentimento do mundo, em franco processo de transformação, será possível inverter alguns procedimentos ortodoxos por outros, como o de ir a fonte beber a água em vez de tomá-la da torneira. Neste caso, específico, ao nosso dispor temos a matéria prima da arte ‒ o artista ‒ como centro e ponto de partida para todos os estudos e tudo o que se refira aos trabalhos de arte apresentados. “ ABRAMO, 1999.
A participação do artista no projeto, à convite de Radha Abramo, seria novamente mencionada nas memórias da viúva no tocante à materialização da obra criada por Dias, “No final de década de 1990 (e em começos do século XXI), uma crítica de arte de São Paulo, Radha Abramo, lançou a ideia a alguns arquitetos e políticos pernambucanos de, tomando como mote o painel Eu vi o mundo...ele começava no Recife, refazer-se a praça Rio Branco, posteriormente chamada Marco Zero, no bairro do Recife antigo. Naquele momento, Cícero se encontrava inteiramente empolgado e dedicado à elaboração deste seu livro de memórias. Mas interrompeu o trabalho para atender ao pedido que lhe fora feito, de criar uma nova obra para a praça. Mais uma vez, pesquisou exaustivamente. Resultou daí um projeto completo, que, infelizmente, não foi executado conforme ele o desejava. (...) Depois de concluir o projeto da praça do Marco Zero, Cícero não retomou mais o pincel. Voltou-se para a literatura, uma antiga e permanente paixão.” DIAS, 2011, pp. 208-209.
De fato, a proposta de formação de agentes culturais representava para a curadora um efetivo compromisso do intercâmbio com diferentes públicos, pois o curso previsto deveria adotar o conceito de que “o conhecimento se processa de forma nômade, muda de lugar, não está preso a um só lugar, está portanto, em todos os lugares. Entende[ndo]-se aí, que na formação do agente cultural, o importante é o reconhecimento da obra cultural, quem a produz e onde esta produção acontece.” ABRAMO, 1999.
Podemos supor, em outro esforço de reconstrução histórica das intenções do projeto Eu vi o mundo...ele começava no
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Outra ação que merece um olhar atento neste encontro para o trabalho de Radha Abramo teria no Circuito de Exposições: Museus e Instituições Culturais de Recife ‒ que deveria acontecer entre março e junho de 2000 projetando a maior e mais longa exposição de obras de arte, em extensão e duração, realizada em Pernambuco ‒ um efetivo compromisso da curadora com a memória do projeto e com seu legado à sociedade brasileira.
expostos e a participação e interação cultural com as coleções de arte instalando verdadeiramente a recriação do sentido de festa cultural, pública e aberta ao povo, segundo o pensamento de Radha Abramo. Finalmente cabe destacar que para a curadora a concepção geral do projeto sempre esteve apoiada na consagração da arte pernambucana, especialmente na exaltação da produção artística de um substantivo conjunto de passagens notáveis da criação brasileira.
O circuito de exposições contaria com a divulgação, apropriação e conhecimento dos acervos existentes em museus do Recife e de Olinda previsto para ocorrer no período compreendido entre dezembro de 1999 e abril de 2000. Dentre as instituições elencadas no projeto constavam na programação: o Museu do Estado de Pernambuco, o Museu de Arte Contemporânea, o Museu de Arte Moderna, a Estação Ferroviária, o Museu do Homem do Nordeste, o Museu da Cidade de Recife e a Oficina de Gravura Francisco Brennand.
Cláudia Fazzolari é professora universitária e curadora independente. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, Prolan/USP. Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte, ABCA.
Notas 1. O projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife foi autorizado pelo Processo nº 23076.012269/99-37. Convênio n 216/99-UFPE, celebrado entre a UFPE - Universidade Federal de Pemambuco, com a interveniência da FADE/UFPE - Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da UFPE; o Estado de Pernambuco; o Município do Recife, com a interveniência da URB/RECIFE; e a CODERN - Administração do Porto do Recife. Objeto: Cooperação técnica e operacional dos convenentes, visando a realização do Projeto ”Eu vi o Mundo... Ele começava no Recife” com vigência: até 31.05.2000. Data e assinaturas: 25.10.1999.
Rever a documentação do projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife requer deste esforço de recuperação histórica da participação de Radha Abramo um olhar atento aos propósitos da curadoria e também uma leitura cuidadosa das repercussões da empreitada. De fato, sabese que Radha Abramo não respondeu diretamente pelas intervenções físicas realizadas nos arrecifes, na Praça Rio Branco ou nos Armazéns 12, 13 e 14 preparados para receber exposições.
2. Maria Elizabeth França Araruna, produtora cultural, foi a profissional responsável pela organização dos registros de processo e documentação dos trabalhos realizados pela equipe coordenada pela crítica de arte Radha Abramo entre maio de 1999 e abril de 2000. Documentação referente ao projeto pode ser acessada pelo endereço eletrônico da empresa Brasil ‒ Arte Contemporânea, que atua em Recife. http://www.barte.com.br/vio_mundo.htm
Sua atuação deu-se principalmente no tocante às atividades relacionadas aos eventos culturais, às exposições e à formação de agentes culturais como também na mediação de contatos com os artistas Francisco Brennand e Cícero Dias, conforme documentação arquivada pela FADE, para aquisição de obras de arte segundo memorial justificativo apresentado à equipe gestora do projeto.
3. Pode-se consultar documentação referente ao período em que Radha Abramo atuou junto ao Centro de Pesquisa de Arte Brasileira do IDART, Departamento de Informação e Documentação Artística da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, conforme Cronologia de Artes Plásticas Referências 1975-1995. 4. Conforme registrava a contratação de Curadoria do Projeto Eu vi o mundo ... ele começava no Recife. Contratante: Fundação de Apoio ao Desenvolvimento· da Universidade Federal de Pernambuco. Contratada: Radha Abramo. Fundamento Legal: Art.25, inciso11 clc ou art.13, inciso 11 da Lei nº 8.666/93 com suas alterações. http://www. jusbrasil.com.br/diarios/1073275/pg-57-secao-3-diario-oficial-dauniao-dou-de-09-03-2000
De acordo com os documentos mantidos pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal do Recife e pela produtora cultural, Elizabeth Araruna, responsável pela guarda da memória dos trabalhos, as ações pensadas pela curadoria pretendiam priorizar o contato do público com as obras de criadores pernambucanos destacando a partilha de diversos acervos
5. Relatório da Curadoria de Radha Abramo para o Proj Eu vi o mundo... ele começava no Recife. Recife, Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco, FADE, 1999
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Referências ABRAMO, Radha. Projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife. Relatório da Curadoria de Radha Abramo. Recife, Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco, FADE, 1999. BASTOS, Janira. Cícero Dias: eu vi o mundo...ele começava no Recife. São Paulo, ECA/USP, 1985. (dissertação de mestrado). DIAS, Cícero. Eu vi o mundo. Cícero Dias. São Paulo: CosacNaify, 2011. DIMITROV, Eduardo. Regional como opção, regional como prisão: trajetórias artísticas no modernismo pernambucano, 2013, 331 p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) ‒ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. FAZZOLARI, Cláudia. Radha Abramo: compromisso com o diálogo entre arte e cultura junto ao projeto “O Espaço da Sé como Suporte Plástico”. In Seminário Pesquisa na ABCA: balanço e perspectivas, Associação Brasileira de Críticos de Arte, 2013, São Paulo, SP, Anais. São Paulo: ABCA, 2013. SOUSA LIMA, Joana DʼArc. Cartografias das Artes Plásticas no Recife dos Anos 1980: Deslocamentos Poéticos entre a Tradição e o Novo, 2011, 489 p. Tese (Doutorado em História) ‒ Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011. EU vi o mundo...começa a virar realidade no dia 2. JC OnLine, Recife, 24.09.1999. http://www2.uol.com.br/JC/_1999/0710/cd0710d.htm. Acesso em: 26 fev 2015. PROJETO exige licitação pública. JC OnLine, Recife, 13.08.1999. http://www2.uol.com.br/JC/_1999/1308/po1308d.htm. Acesso em: 26 fev 2015. CONVÊNIO garante R$ 1,5 para projeto. JC OnLine, Recife, 07.10.1999. http://www2.uol.com.br/JC/_1999/0710/cd0710d.htm. Acesso em: 22 fev 2015. Revista Veículo 4. ProCoa2012. Projeto Circuito Outubro Aberto. Arte é para todo mundo ver, julho 2012. UNIVERSIDADE Federal de Pernambuco. Fundação de Apoio ao Desenvolvimento. Secretaria Executiva. Extrato de Inexigibilidade de Licitação. Contratação de curadoria do Projeto Eu vi o mundo...ele começava no Recife. Contratante: Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco. Contratada: Radha Abramo. Diário Oficial da União, Brasília, n. 47, 09 mar 2000, seção 3, p. 57.
Marco Zero | Bairro do Recife | Fotografia de Gustavo Bettini
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Adriano Franco | Moldura de Tambaú, João Pessoa | 2013
ADRIANO FRANCO Nasceu em Conceição, Sertão da Paraíba, em 1972. Vive e trabalha em João Pessoa. Formação: Graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (2002). Atividades profissionais: desde 2002 atua como fotógrafo autodidata e profissional da área de web (internet) e design digital (programação visual, projeto gráfico, tratamento de imagens, arte finalista etc.). Desde 1999 trabalha na produção e montagem de exposições de artes plásticas e de fotografia. Também fez parte de equipes de produção cultural nas áreas de cinema, vídeo e arte educação, em Recife, João Pessoa e outras cidades da Paraíba. Principais participações em exposições: 2014 - Rede Arte Contemporânea - Mostra Inaugural (João Pessoa); 2013 - Novíssimos (Casa das Artes Visuais, João Pessoa); 2010 - Entre Mundos - Individual - Projeto Jovens Talentos da Paraíba (Aliança Francesa João Pessoa); 2008 - Pontos de Vista 1 (Galeria Archidy Picado, Funesc, João Pessoa); Diálogos da Casa (Casa Experimental de Arte, João Pessoa); 2007 - 12º Projeto Lambe-Lambe (Exposição Autorretrato, Casarão 34); 2007 - Coletiva Festival Mundo (Conventinho, João Pessoa); 2006 - Anônimos (NAC/UFPB, João Pessoa); Integração 275 (NAC/UFPB); 2006 - VIII Salão de Novos Artistas Plásticos da Paraíba (Sesc Paraíba, João Pessoa); 2005 - Laboratório 2005 (Galeria Archidy Picado, Funesc, João Pessoa); 2004 - Workshop Desenho e Paisagem/ X Fenart (Funesc, João Pessoa); 1999 - Projeto LambeLambe (NAC/UFPB). af.foto@gmail.com
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Adriano Franco | Areia, ParaĂba | 2013
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Capa: Adriano Franco | Barco no Capibaribe, Recife | 2014
expediente Segunda Pessoa Revista de Artes Visuais Ano 5, Número 1 ‒ Dez-Jan-Fev de 2015 Edição especial ‒ Encontro da ABCA (Recife, Pernambuco) Editor-geral | Dyógenes Chaves Gomes (ABCA/AICA) Jornalista responsável | William Pereira da Costa DRT-PB 792 Conselho editorial | Dyógenes Chaves Gomes | Francisco Pereira da Silva Júnior | Gabriela Maroja Jales de Sales | Madalena Zaccara | Maria Cristina de Freitas Gomes | Paulo Rossi | Paulo Sérgio Duarte | Raul Córdula | Rodolfo Augusto de Athayde Neto | Valquíria Farias | William Pereira da Costa Colaboradores | Adriano Franco | Carlos Trevi | Cláudia Fazzolari | César Romero | Dyógenes Chaves | Elvira Vernaschi | Joana DʼArc Lima | Lisbeth Rebollo | Marcus Lontra | Olívia Mindêlo | Raul Córdula | Valquíria Farias Projeto gráfico | Dyógenes Chaves | 2ou4 Fotografia | Arquivos enviados pelos colaboradores Impressão | Gráfica JB Ltda.
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Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010
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ISSN 2237-8081
9 772237 808001
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Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010