O Último Adeus (excerto)

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Título Original: “O Último aDeus” Autor: António José Veiga Henriques Capa: Composição sobre pintura de Raquel Ribeiro, “Amanhecer” óleo s/ tela

Execução gráfica: Diva’lmeida, atelier gráfico Encadernação e acabamentos: MJ Real Imo

ISBN 972-8670-60-5 2 0 0 6


À memória do meu Pai António José Veiga Henriques

“Tudo o que alcançamos E tudo o que deixamos de alcançar É consequência directa Dos nossos pensamentos” - James Allen



Neste livro escrito por meu Pai está a minha origem. O projecto do que eu seria concretizou-se com o nascimento da minha mãe. Tive apenas de esperar que o desejo dela se unisse ao do meu pai para ser inevitavelmente atraída para este mundo. Ser eu a fazer a apresentação a este aDeus, encheu-me de responsabilidade e orgulho. Responsabilidade por ser sua filha, e orgulho por ser meu pai. Que as palavras que irão ler de seguida, sabiamente escritas por ele, vos transmitam o êxito dele enquanto ser humano. Que esse êxito não residiu na quantidade de bens materiais que possuiu. Também não residiu na forma como se relacionou com as aflições do momento, mas sim na maneira como utilizou o que possuía, como enfrentou os desafios, e como os transformou em crescimento e numa vida cheia de amor. Penso na temporalidade da existência e, apesar da dor que me causa, fico convicta de que a vida humana, por mais longa que seja, é apenas uma gota no caminho da eternidade. No fim de contas é isso que importa. Que alguém perdure na memória graças ao poder das suas palavras. E as minhas para ti, são: Querido papá, parte em paz e que as palavras te acompanhem. Quando ao morrer fechaste os olhos, eu abri o meu coração, e por esse motivo acredito sempre que dias mais felizes estão por vir…

Tua filha Xana



O Último aDeus

António José Veiga Henriques



Preâmbulo O mistÊrio do maravilhoso merece que se fale dele.



Prefácio

Se a vida tem algum sentido, este reside na tentativa de compreender todo o mistério que é a nossa vida, o porquê e o para quê da nossa existência. Muito se tem escrito, falado e discutido, desde a antiguidade até aos nossos dias: filósofos, cientistas, pensadores; a fé e ciência na sua ânsia de se completarem mais se afastam, principalmente devido aos progressos desta, mostrando assim a falta de argumentos daquela. Sem quaisquer pretenciosismos, assumindo-me como entre todos os seres mortais, que só pela razão de o sermos, nos leva a tantas interrogações, decidi, depois de muito pensar, compartilhar com quem a isso estiver disposto, as minhas dúvidas, incertezas, convicções. Será que alguém nunca pôs nada em causa? Não creio. Assumindo-me, não como estudioso, mas como leitor interessado em ser mais esclarecido, e muito tenho lido dos tais intitulados filósofos, pensadores, cientistas, homens de fé entre outros, restando, de todo esse tempo despendido e não perdido, pois serviu como recreio de todo o meu espaço temporal, um vazio, um todo repleto de interrogações que decidi passar a escrito. Para que as palavras sejam mais que isso, decidi criar duas personagens, uma o António que valoriza a parte mais racional do seu cérebro, o outro o José que dá mais valor ao lado intuitivo, amigos desde a concepção, unidos num único ser que responde de António José, este vosso amigo.

António José Veiga Henriques



“O QUE É O HOMEM?”

O que é o Homem? Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: um animal que fala, um animal político, um bípede sem penas, um animal racional, uma realidade sagrada, um ser que pensa, um ser que trabalha, um ser que cria, joga, ri, chora...... saído da aventura cósmica com 15000 milhões de anos. Simplificando – É um ser humano, qualquer ser nascido de dois seres humanos – · Homem que sabe e sabe que sabe que não sabe ilimitadamente, tem consciência do limite e, por isso, pergunta e procura para lá de todos os limites até ao infinito. Outras capacidades poderiam acrescentar-se: o choro, a contemplação, a beleza, a inveja, o ódio, o saber não só que é mortal como o não saber o que o espera para além da morte... Trata-se agora de dar um salto e passar à pergunta decisiva: o que é realmente o homem? Qual é a sua constituição, qual a sua reali-dade constitutiva? · Ao longo da história do pensamento religioso e filosófico surgem duas respostas: o materialismo e o dualismo. O monismo materialista reduz o espírito humano e o eu a processos físicos e químicos ao nível do cérebro e apesar de avanços e investigações neste domínio, não será exagerado afirmar que a autoconsciência e o eu manterão uma reserva de insondável e incompreensível para a ciência objectivamente. Mas se se defende o dualismo como se o homem fosse um composto de corpo e alma – uma alma espiritual criada e infundida directamente por Deus – é preciso perguntar, por exemplo, se os pais, que teriam apenas dado origem ao corpo – a alma viria de fora – ainda são verdadeiramente pais dos seus filhos.

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· Perante a complexidade da questão, Pedro Entralgo (1908-2001) um dos maiores pensadores de Espanha, cientista, filósofo, humanista cristão, procurou um terceiro caminho que deu lugar ao que chamou uma “antropologia integradora, cosmológica, dinâmica e evolutiva” compatibilizando as afirmações cristãs sobre o homem criado à imagem e semelhança de Deus e titular de uma vida que não morre com a morte e a concepção actual das ciências que considera o homem como resultado da evolução do cosmos. Uma vez que estamos no domínio do enigmático, é razoável admitir que se possa ser agnóstico, crente ou ateu. · Afinal o que é que se espera: Que a vida pessoal possa ter dois fins distintos; a aniquilação total para quem crê e pensa que não é possível uma existência trans-mortal ou uma sobrevivência misteriosa para lá da morte. Quem espera? É o homem todo. Para muitos, é a tese mais tradicional no mundo cristão – o homem é o resultado da matéria cósmica (a que dá consistência material ao seu corpo) em união com uma forma substancial específica e pessoalmente humana chame-se alma, espírito ou mente. A morte separa estes dois princípios: o corpo apodrece, e a sua matéria passa à dinâmica material do cosmos, e a alma fica como “forma separada à espera da nova vida que a ressurreição dos mortos lhe dará. Frente a eles, não são poucos os cientistas e os filósofos para os quais o homem, cada homem é todo e só o seu corpo. · Ciente de que a realidade e o destino final do homem nunca deixarão de ser para a nossa mente um enigma, há que ter em conta que o homem é uma estrutura material – o seu corpo – que apareceu na evolução do universo como resultado de uma mutação biológica do corpo do hominídeo Australopithecus.

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Uma vez que a esperança pertence ao nosso psiquismo, quando eu espero, o que na realidade espera é o meu corpo, um corpo a cujo modo de ser pertence a possibilidade de dizer “EU”, a esperança poderá ter na morte a aniquilação total de quem morre, ou uma passagem súbita e misteriosa a uma vida nova que tradicionalmente se chamou “ressurreição”. · Na filosofia, há duas perguntas essenciais: quem sou eu? O que será de mim? · Se pela morte, a resposta à segunda pergunta for: no fim “nada”, isto é, “ninguém”, a primeira pergunta anula-se a si própria, isto é, ainda terá sentido perguntar “quem sou eu?”. Mas se ser homem é ser alguém, como é que se passa de “alguém” a “ninguém”?

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A CONCEPÇÃO (DIÁLOGO)

António – Olá, José, como estás? José – Eu estou bem, graças a Deus, e tu? A – Menos mal, mas talvez não tão bem como tu, pois tens sempre alguém a quem podes dar graças. J – Só não tens porque não queres. A – As coisas não são assim tão fáceis, não dependem do nosso querer. Olha, já pensaste porque existes? J – Que pergunta, foi Deus que assim o quis! A – Pois para mim, nascemos de um acto completamente arbitrário dos nossos progenitores, voluntário ou involuntário, isso pouco importa, sem o nosso consentimento, sem nos impor quaisquer obrigações, sem nos traçar quaisquer objectivos, e espero bem que tenha sido por amor ou quem sabe na ressaca de um prévio amuo. J – Mas com eles já sucedeu o mesmo e nós com os nossos filhos. A – É verdade, mas isso não invalida o que eu disse. Está nas nossas mãos o arbítrio de trazermos ao mundo as criaturas que quisermos e quando quisermos sem ter que dar satisfação a quem quer que seja. J – Um filho é uma dádiva de Deus. A – Pois, conversa, ele resulta de um acto de prazer, e mais, uma vez nos braços dos pais estes pensam que são sua propriedade que os utilizam no seu belo prazer como se tratasse do brinquedo que nunca conseguiram ter quando crianças. Olha, amigo José, tu só tens um filho e, sendo uma dádiva de Deus, porque não tens um rancho, ou Deus te disse que não tens direito a mais nenhum? As dádivas não se recusam. J – Um filho custa muito a criar e a situação não permitia ter mais. A – Podias pedir a Deus a Sua ajuda, pois se Ele é o

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Criador porque não ajudar as tuas e as Suas criaturas? J – Tu tens três filhos, uma mulher completamente diferente de ti na maneira de pensar, de se expressar e até de abordar os problemas, vivem numa harmonia de compromisso possivelmente a única forma de irem envelhecendo juntos, tens três netas que vão acompanhando e ajudando a crescer, foste uma pessoa de sucesso na tua vida profissional e tiveste sempre a teu lado este teu amigo como a tua sombra que nunca conseguiste agarrar, como é natural, ninguém agarra a sua própria sombra, eu tive o filho que sempre quiseste ter mas as circunstâncias da vida não te permitiram, enfim, sou aquele pouco que gostarias de também ter sido, enfim juntos somos como dois em um, como se diz, mas António, a parte mais visível de ambos és tu e eu me oculto na tua consciência crítica a quem recorres aquando das tuas interrogações, principalmente as de natureza mística, as mais difíceis de entender e que tento dar resposta, mas crê meu amigo sem grandes certezas. A – Mas meu caro José, certezas ninguém as tem, sendo o último patamar do nosso conhecimento sempre a incerteza. Olha, voltando à conversa sobre a liberdade que temos de fazer os filhos que quisermos, quando quisermos, como quisermos, que certeza temos de ter criado génios ou monstros? Quando muito teremos a esperança que no mínimo sejam como nós já que têm grande parte dos nossos genes. J – É assim connosco como com todos os seres vivos, é a lei da natureza, conforme Deus quis, nascemos destinados a morrer e neste percurso vamos crescendo, por ventura procriando, sem quaisquer condicionamentos, até me custa dizer, no salve-se quem puder. A – É a selecção natural, segundo Darwing, a lei do mais forte que tantas contrariedades criou na Igreja ainda agarrada ao Génesis da Bíblia, à criação do homem à imagem e semelhança de Deus. J – Mas apesar de ter que aceitar a evolução natural,

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conseguiu contornar essa evidência e continuar a considerar o homem à parte dos outros seres vivos como seres de eleição. A – Bem, meu caro José, já se está a fazer tarde, mas fica-te com esta, sendo o homem o mais inteligente à superfície deste calhau que habitamos, sendo o único que reconhece que um dia irá morrer e mesmo dizendo, alguns, que acreditam na vida eterna, têm um medo terrível da morte e assim procuram sempre argumentos para atenuar esse desidrato, mas isso será assunto para outro dia. Até amanhã José, beijinhos lá em casa. J – Até amanhã, António, beijinhos à tua mulher.

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A REALIDADE DA VIDA (REFLEXÕES)

Sendo verosímil que possa existir vida noutros astros, a única realidade que conhecemos é a vida terrestre. Por estudos de achados paleontológicos admite-se universalmente que os primeiros seres vivos se formaram há mais de 3.000 milhões de anos. Que teve que suceder para que os organismos incipientes se tornassem “matéria viva”, com capacidade de auto-replicação, sem outra possibilidade para além da continuidade da sua existência? Não é nossa intenção dissertar sobre o assunto mas tentando dar uma resposta científica muito sucinta mediante o conhecimento de que a análise química do universo foi ensinando, elementos biogénicos: hidrogénio e hélio, que formam mais de 98% da matéria do cosmos, o néon carbono, azoto e oxigénio, cerca de 1%; moléculas interestelares : água, amoníaco, monóxido de carbono, alguns aldeídos e ácidos por outro lado os biomonomeros (aminoácidos, lipídios, etc.) e os biopolímeros auto-explicativos (do ARN ao ADN) podem ter sido os responsáveis pelo aparecimento de vida no universo segundo um esquema cronológico e evolutivo deste tipo: Hidrogénio-elementos biogénicos-moléculas interestelares-monomeros bioquímicos-biopolímeros (4,5*10*9 anos)-microfósseis-primatas e humanos (de 3 a 4 milhões de anos). Como os progressos actuais da bioquímica e da biologia molecular poderá ser que consigamos reconhecer em breve sinais indicando a existência de vida inteligente extraterrestre e deduzir que não estamos sós no universo. Suceda o que suceder, e ainda que o homem chegasse a desaparecer, o ciclo eterno da matéria e da vida continuará tal como foi escrito há muito tempo “ÉS PÓ E AO PÓ HÁS-DE VOLTAR”. A vida do ser humano tem algum sentido? Ou é apenas uma máscara sem sentido por detrás da qual se esconde o nada vazio? Pois bem, temos de viver de alguma maneira a nossa

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vida, mesmo que ela seja apenas o resultado de um acaso absurdo que nos lançou no mundo. Há alguma razão para não falar assim? Muitas pessoas opor-se-iam à ideia pelo simples facto de um dia se transformarem em pó, pois é possível levar uma vida com sentido atribuindo objectivos a si próprio independentemente de concordarmos ou não com eles, tentando fazer o melhor da sua vida. É evidente que esta argumentação é subjectiva, podendo dizer-se que homens como Adolf Hitler nela se inclui. Será então razoável estabelecerem-se critérios que transcendem o sujeito, e portanto, vão para além dele? Alguém se preocupa com a existência dos seres humanos? O ser humano faz parte dum mundo perceptível através dos sentidos e que para muitos dos contemporâneos resulta dum “big bang” sem sentido. Para nós, este mundo, este maravilhoso universo é uma incógnita e, de acordo com o nível dos nossos conhecimentos permanecerá para sempre como tal. O ser humano, cuja vida constitui uma parte do maravilhoso, se quiser conceder à sua vida algum significado não pode prescindir de uma interpretação do universo. Se estão excluídos os esclarecimentos objectivos e subjectivos ou outras construções intelectuais, poderá existir um sistema de interpretação cultural baseado no pensamento ao longo de milhares de anos que no contexto da cultura ocidental o cristianismo é um exemplo, ficando ao critério do ser humano a aceitação ou rejeição desta interpretação. Em geral o homem actual vive de acordo com a sua própria consciência, para muitos há uma crise existencial, o eterno está completamente fora do seu alcance, só podendo existir uma única religião, a religião do próprio eu. O sentido do universo, o sentido da vida, não encontrou na filosofia uma solução que resistisse à razão crítica dando algumas interpretações só possíveis através de uma decisão da fé. “Acreditar num Deus significa compreender a questão

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do sentido da vida. “Acreditar num Deus significa ver que as realidades do mundo não bastam. Acreditar num Deus significa que a vida tem um sentido. Deus é a totalidade do mundo (Deus é como tudo é)”. Evidentemente que isto é impensável e inexplicável por palavras, só é compreensível num acto místico.

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A EVOLUÇÃO (DIÁLOGO)

José – Bom dia António, aí sentadinho na esplanada, a gozar este belo dia de Outono, com um ar tão triste, olhos semicerrados, será que não estás bem? António – Olá José, é verdade, a minha saúde anda a preocupar-me e estava precisamente a pensar como passei tantos anos sem que ela me preocupasse e agora é quase exclusivamente a minha única preocupação. J – É verdade, António, a vida é isto mesmo, quando menos esperamos as coisas aparecem, mas há que ter fé e tudo se resolverá. A – Pois é! É preciso ter fé. Olha, quando vinha para aqui, estavam uns miúdos a jogar à bola ali no jardim e eu recordei-me da nossa juventude e o prazer que nos dava uns chutos na bola, na pileca, no jardim da casa dos nossos pais, junto a uma palmeira que lá existia. Como o tempo passa, já lá vão mais de cinquenta anos, o que o mundo evoluiu, como quase tudo é diferente hoje, só os putos continuam a dar chutos na bola como no nosso tempo. J – É verdade, parece que naquele tempo, quase sem automóveis, sem televisão, sem telemóveis, sem computadores, as pessoas andavam mais bem informadas do que agora; bem sei que o nosso conhecimento era aquele que o Salazar queria, e agora com tanta informação é possível que as pessoas andem um pouco mais baralhadas. A – Se fosse só isso! J – Estava agora a observar-te, as pessoas passam por aqui e cumprimentam-te e a mim não. A – Pois é amigo José, eu agora sou a face visível desta fraterna amizade, tu és a parte da minha consciência que me interroga sobre a nossa razão de ser, a parte invisível para os outros e nisso reside a nossa cumplicidade. Mas lembras-te? Houve tempos, quando éramos meninos, que era ao contrário.

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Todos os Domingos íamos à missa, fizemos a primeira comunhão, a comunhão solene, o crisma e cumpríamos todos os preceitos que a Igreja nos ordenava. Até me lembro que andávamos com pedras nos sapatos, a conselho do Sr. Padre, para que com o sofrimento do corpo obtivéssemos o perdão dos nossos pecados. Fomos educados, tanto em casa como no colégio, na fé e moral cristã. J – E tu eras muito cumpridor desses princípios, rezavas quando era para rezar, ias à missa todos os Domingos e dias santos e com a tua fé e comportamento eras sempre um exemplo a seguir. A – Fazia-o com sinceridade e sem hipocrisias, não pensava naquilo que me ensinavam ou impingiam, era o que se pode dizer um bom cristão, era cumpridor de tudo o que me ensinavam, era um bom aluno e um bom menino. Mas ainda na barriga das nossas mães começámos a crescer, começámos a ser gente. J – Desculpa interromper-te, mas veio-me à lembrança as brincadeiras que fazíamos no jardim da nossa velha vivenda, as touradas em que tu, por seres o mais velho, e portanto o que tinha mais força, fazias quase sempre de touro, e o medo que tínhamos em sermos colhidos. A – Esta mania das touradas, era porque os nossos Pais eram ribatejanos e, nas férias grandes, íamos para o Ribatejo para casa da nossa tia, irmã mais velha da nossa Mãe e, por altura das festas da nossa vila, em Agosto, o nosso Pai, um grande aficcionado dos touros, ia assistir às touradas e levavame sempre com ele. Naquele tempo, a festa brava era muito diferente do que é hoje. Havia cavaleiros, espadas e forcados, e os touros por serem corridos várias vezes conheciam tão bem o que era uma arena, que mal entravam em praça, saltavam a trincheira para fugirem ao castigo, e depois era ver toda a gente que estava lá a saltar para a arena e o touro dentro da trincheira, a situação estava invertida e o público delirava. J – E lembras-te também das corridas de carros que

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fazíamos no quintal à volta dos canteiros, com o carro de bebés, que nos serviu a todos, grandes correrias com o nosso cão atrás de nós e um casal de gansos a soprar-nos sempre que passávamos ao pé deles? A – Esse casal de gansos foi-nos dado pelo colega de colégio, onde o nosso Pai dava aulas, que morava na linha de Cascais, e quem os foi buscar fui eu, de comboio. Vinham dentro de uma alcova, o comboio vinha cheio e, por vezes, os patos punham o pescoço de fora e sopravam por baixo das saias das mulheres, e estas gritavam, foi um burburinho naquele comboio. J – Foi esse nosso professor, e muito amigo do nosso Pai, que nos incutiu o bichinho do Benfica. Lembras-te, as vezes que fomos assistir aos jogos, como sofríamos e até chorávamos quando o Benfica perdia, pois naqueles tempos o nosso Benfica era o maior, não é como agora, uma verdadeira desgraça, os jogadores não têm amor à camisola, são uns autênticos mercenários, só visam o dinheiro e ganham um dinheirão. Olha que ainda me lembro da equipa do Benfica, tínhamos nós aí uns doze anos; queres ouvir? O guarda-redes era o Costa Pereira, os defesas eram: Jacinto, Félix e Fernandes; os médios eram: Moreira e Chico Ferreira (capitão) e os avançados eram: Carona, Arsénio, Águas, Rogério e Rosário. Por volta dos anos 60, apareceu então a equipa maravilha do Benfica, com estrelas como José Augusto, Julinho, Simões, Torres e outros, entre outros o maior, o Eusébio que se comparava com o Pelé. Foram os tempos gloriosos em que o Benfica ganhou duas taças dos Campeões Europeus, foi à final várias vezes, e fez com que a Selecção Nacional, com base na equipa do Benfica, ficasse em terceiro lugar no campeonato do mundo disputado em Inglaterra. Bons tempos! A – Mas nós não pensávamos só em futebol, éramos cumpridores dos nossos deveres escolares. Eu era muito bom em matemática e físico-químicas, fui sempre o melhor da turma e tu eras muito bom em português, lembras-te? Nas

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restantes disciplinas éramos razoáveis. Os professores que leccionavam a maioria das disciplinas, eram fracos ou pouco interessados. No 5.º ano passei com distinção em matemática e com deficiência a história. Lembro-me de o nosso pai me perguntar porque é que eu não estudava história, e eu ter dito que não me interessava a vida dos outros, e que portanto só tinha estudado a pré-história e a revolução francesa. J – E lembras-te de um nosso amigo, guardador de cabras que se juntava a nós quando íamos brincar aos cowboys no pinhal mesmo junto à nossa casa? A – Se me lembro, foi com ele, que era um pouco mais velho que nós, que aprendemos muitas malandrices, foi ele que me deu o primeiro cigarro, e porque não dizê-lo que foi ele que incutiu o vício que durou até aos meus 63 anos. J – Até eu comecei a fumar, e acho que não apreciava o vício, mas fumando tornávamo-nos mais homens, porque naquele tempo quase todos os homens fumavam, não é como agora pois a percentagem de mulheres a fumar é superior aos homens; outros tempos, outra moral, outra maneira de estar na vida. A – Bem, José, temos que ir andando e eu sei que para onde for, tu me acompanhas sempre. J – Então até já, António.

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DEUS, A REALIDADE E A MORTE (REFLEXÕES)

A vida do ser humano tem algum sentido? Ou é apenas o estar vivo por trás do qual se esconde o nada vazio? Pois bem, temos de viver de alguma maneira a nossa vida, mesmo que ela seja apenas o resultado de um acaso absurdo que nos lançou no mundo. No fim, a morte destrói tudo, também as nossas lamentações sobre a nossa caducidade. Há alguma razão para não falar assim? É evidente que quem pensa assim, é possível levar uma vida cheia e ocupar os seus dias com coisas que têm sentido. O ser humano pode atribuir objectivos a si próprio, dando, assim, sentido à sua vida. Todo aquele que tentar fazer o melhor da sua vida tem um objectivo à sua frente e, assim, um sentido para a sua vida. É evidente que já falámos disto atrás e voltamos a falar aqui, porque o tema não se esgota. Todo o ser humano deseja ser feliz, e tem esse direito, se bem que seja muito difícil definir o que é, propriamente, a felicidade. Não podemos ser nós próprios a criar o sentido para nós, temos de o encontrar. O maior contexto no qual o ser humano vê a sua vida é o sentido da totalidade, da qual o mundo constitui uma parte, pelo que daí resulta o sentido da vida e da morte. A religião cristã no contexto da nossa cultura oferece uma interpretação da totalidade; ela convida os seres humanos da época científica à compreensão existencial da sua mensagem. De onde provêm os critérios de acordo com os quais o nosso cérebro constrói o mundo? Talvez seja mais razoável dizer que o mundo, tal como o percebemos com os nossos sentidos, é uma construção do nosso cérebro. Verificamos isso com os êxitos da ciência e da tecnologia. Se as construções

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estivessem em desacordo com o mundo real não teríamos nenhuma hipótese de sobrevivência. A nossa razão é o software que precisa do hardware que é o nosso cérebro para poder colocar as questões e também poder resolvê-las. Ao nível do quotidiano ou ao nível científico, a nossa razão fornece-nos resultados bastante satisfatórios. O pensamento só se depara com dificuldades quando passamos para o nível do fundamental e colocamos questões sobre os últimos princípios do nosso mundo, quando queremos tirar conclusões que vão para além da nossa experiência e que são relativas à totalidade, da qual o mundo da ciência constituiu apenas uma parte. As estruturas do nosso cérebro e do nosso pensamento são o produto da adaptação às condições de vida na terra. Da paramécia a Einstein, na perspectiva evolucionista, vai apenas um passo para a compreensão do mundo, pelo que o nosso cérebro é um produto dessa evolução. A amiba ou qualquer outro animal, desde o mais simples ao mais complexo, tem a sua percepção do mundo que lhes garante a sua sobrevivência. Assim, com rigor, não vivemos no mundo, mas só na imagem que os nossos cérebros projectam dele através do pensamento e da experiência adquirida no contexto da adaptação. No entanto, pelo menos, desde Einstein sabemos que o espaço é curvo e que o tempo tem, na realidade, características diferentes daquelas que nós imaginámos. A teoria da relatividade ensina que o tempo não é universal. Isto significa que mesmo que a razão do ser humano seja um resultado da evolução, o seu conteúdo transcende a evolução. Chamamos espírito ao conteúdo da razão, pelo que temos de distinguir entre a razão que foi criada pela evolução e a sua capacidade de participar na dimensão das verdades intemporais. Por exemplo, para o macaco a noção de ramo é uma forma de saber profundo, mas ele não tem qualquer ideia de quem é Eça de Queirós nem sabe o que é um computador. O seu mundo é limitado assim como o nosso mundo o é pelo que ele não possui o nível que possa penetrar em todos os

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graus de complexidade do universo, o mundo em que vivemos é uma muito pequena parte do mundo real. Há muito tempo que o domínio que excede o nosso saber é designado como o Além. Existe uma realidade para além da nossa razão; se bem que o pensamento evolui no sentido do Além, em última análise, ele permanece inacessível, temos também acesso à realidade da dimensão espiritual, no entanto, só nos é acessível um pequeno domínio. Por conseguinte, podemos falar em um Além material e um Além espiritual. É-nos difícil perceber questões que se referem à totalidade, sobretudo na questão de Deus é preciso contar com dificuldades. Isto mesmo revelam as provas de Deus que foram elaboradas com a mesma subtileza intelectual com que foi possível pô-las em dúvida. O nosso mundo é uma construção do nosso cérebro, assim como da nossa razão, o software do cérebro, produtos de adaptação da evolução. Resumindo, existe um Além material assim como um Além espiritual. O nosso conhecimento é como uma pequena ilha no mar do insondável e nele se inclui a definição de Deus, só a religião arrisca uma interpretação de Deus. A verdade absoluta está inacessível ao ser humano conhecendo este só as sombras, mas não a verdade das coisas. Sendo a totalidade o resultado das leis da natureza podemos compreendê-la como o universo investigável através de observatórios e de satélites. A dimensão da validade, independentemente do tempo, também pertence à totalidade, portanto esta é mais que o universo físico, sendo este apenas um espaço parcial. A totalidade só pode ser aquilo que compreende sujeito e objecto apresentando-se assim como “englobante”, sendo esta a designação que a filosofia, desde sempre, chamou Deus. Assim, como englobante, segundo a tradição, Deus constituiu o fundamento de todo o ser, do ser-sujeito e do ser-

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objecto. A partir deste conceito, foi elaborada uma definição formal, compreensível, e que corresponde à tradição cristã. Deus permanece um conceito-limite e um mistério para o nosso saber. Porém, é necessário chamar a atenção para o facto de este Deus ser o Deus da razão e da filosofia. Para dar “vida” a esta definição, é necessária a religião. Nesta perspectiva, a ideia de um Deus que exista como uma coisa enorme ao lado ou diante do universo é, naturalmente, um discurso infantil. Deus é, e em termos filosóficos, não é possível dizer mais sobre Ele. Einstein diz “o mais belo que podemos experimentar é o misterioso. Este é o sentimento fundamental que se encontra no berço da verdadeira arte e da verdadeira vivência. Quem não o conhece e quem já não é capaz de se admirar, de se espantar, está, por assim dizer, morto. O saber acerca da existência daquilo que é insondável para nós, acerca da manifestação da razão mais profunda e da beleza mais brilhante, que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais primitivas, este saber e este sentir constituem a verdadeira religiosidade”. Quem sou eu afinal? A REFLEXÃO SOBRE MIM PRÓPRIO ATIRA-ME PARA UMA INCERTEZA PROFUNDA. Penso de uma maneira errada? Sonho? Sou apenas um fantasma? Uma coisa é certa: tenho a certeza absoluta que existo. Apenas não sei como o devo pensar. Santo Agostinho dizia “a dúvida só é possível se eu existo”. Se quisesse provar a mim próprio ou a outro ser humano, que existo, não conseguia fazê-lo. Em última análise, eu permaneço sempre um mistério para mim próprio, que não posso desvendar. Eu existo sempre no “agora”. No entanto, este “agora” escapa ao meu pensamento, tal como à própria existência. Se eu quiser compreender o “agora”, tenho de o objectivar. E, assim, ele já perdeu o seu carácter e tornou-se passado. Por isso, é necessário distinguir o tempo existencial do tempo medido, no

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qual se encontra o mundo das coisas. Qual é o resultado destas reflexões? - O ser humano sabe que existe, com base na experiência imediata, embora não possa provar este facto através da lógica. - Cada ser humano permanece um mistério para si próprio; nunca se pode compreender completamente. - O mistério da existência está frente ao mistério de Deus. É entre estes dois pólos que se desenrola a vida quotidiana e o mundo das coisas. «POR VIR A PROPÓSITO, aqui faço eco de uma famosa observação de Einstein: “quero conhecer a forma de pensar de Deus, tudo o mais não passa de pormenor”. Por ser um visionário espero que Einstein aceitasse como ponto de partida o seguinte mapa da forma de pensar de Deus. Domínio virtual – o campo do espírito Domínio quântico – o campo da mente Realidade material – o campo da existência física O poder milagroso é sagrado e mítico, e passa pelas fases atrás descritas, se bem que a ciência lhe diminua a importância, em vez de o procurar explicar. O aparato religioso muitas vezes ofende o rigor dos cientistas. Lembro a história verídica de um doente que sofria de um cancro linfático em fase terminal. Isto ocorreu nos anos 50, quando a medicina vivia de uma onde de optimismo acerca de ser imediatamente encontrada a cura para o cancro; ficando os doentes mortos ou à beira da morte, pois era-lhes administrado gás mostarda, que igualmente foi a primeira cruel quimioterapia. Este homem pedia desesperadamente que lhe fosse ministrada a última palavra em tratamento conhecida por “crebiosene”. O seu médico, duvidando da eficácia da droga, por uma questão de piedade, conseguiu uma única dose do produto. Regressando de fim de semana constatou que o

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doente estava rejubilante. Todos os vestígios de cancro tinham desaparecido, os nódulos linfáticos tinham regressado ao normal e o homem sentia-se bem pelo que lhe deu alta, bem sabendo que uma única dose de “crebiosene” não poderia ter possibilidades de ter actuado numa questão de poucos dias. Após algum tempo, o doente leu num jornal que os testes tinham mostrado ser o “crebiosene” ineficaz. Em poucos dias o cancro regressou, o que o levou de novo ao hospital em estado terminal. O médico nada tinha para lhe ministrar, pelo que recorreu ao mais drástico dos paliativos. Disse ao homem que seria injectado com uma nova e melhorada versão de “crebiosene”, mas na verdade o que lhe estava a dar era uma solução salina. De novo o homem melhorou numa questão de dias, pelo que partiu sem quaisquer evidências de cancro no seu corpo. O desfecho não foi feliz, pois mais tarde descobriu que toda a esperança no “crebiosene” tinha sido abandonada, tendo o cancro linfático surgido pela terceira vez, matando-o de imediato. Todavia, a essência da história é o espírito ao actuar, vogar do nível virtual para os níveis quântico e material. Isto é o que existe de comum com os milagres. No entanto a fé na religião não deve ser descurada, de forma a abrir as linhas de comunicação para além do material, tal como o são a oração e a esperança. A mente não o pode fazer unicamente pelo pensamento. Se alguma vez existir uma ciência dos milagres, terá o seu início nas coisas intangíveis que estão enraizadas no espírito». Estes factos consubstanciam o título deste capítulo: Deus, a realidade e a morte. Quando uma rã observa com idílio um lago de água banhado de sol, ela não está a ver nada, pois ela só vê aquilo que se mexe, o imóvel é inacessível à sua vista. Ela vê o insecto esvoaçando mas não a flor onde está pousado.

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Com os seres humanos, passa-se algo semelhante. Só reconhecemos aquilo que constitui para nós objecto do nosso pensamento ou da nossa percepção. Até a nós próprios só nos conhecemos na medida em que nos podemos objectivar. “Conhece-te a ti mesmo” – está escrito por cima da entrada do templo de Delfos. No entanto, uma parte do conhecimento nunca está terminada porque uma parte de mim permanece sempre incognoscível. Cada autoconhecimento pressupõe um “eu” que é conhecido e um “eu” que conhece. O “eu” que conhece garante que eu sou sempre mais do que aquilo que sei sobre mim próprio. Represento uma espécie de sistema aberto, sobre o qual não é possível um juízo definitivo. Se alguém quiser saber se as minhas opiniões são em si isentas de contradições, teria pela frente uma tarefa impossível de resolver. No entanto, as opiniões são apenas um aspecto relativamente secundário da individualidade humana. Existem outros aspectos que revelam a mesma infinidade de insondabilidade. Neste caso, tal como a rã, CONHECEMOS APENAS UMA PARTE DA REALIDADE. O ser humano é sempre mais do que a química, a psicologia, a medicina, a biologia ou a sociologia podem descobrir a seu respeito. Karl Jaspers escreve “O ser humano na sua totalidade nunca será objecto do conhecimento. Não existe nenhum sistema do ser humano...... O conhecimento acerca do ser humano processa-se todo em aspectos particulares, revela sempre uma realidade, mas não a realidade. O ser humano é sempre mais do que ele sabe e pode saber sobre si próprio e do que qualquer outro sabe sobre ele. A ciência não foi encontrada na rede dos seus conceitos. Observamos muitas formas de cooperação e de ajuda mútua entre os animais, desde o gaio, que avisa o mundo das aves, da passagem de alguém, da gaivota, que permanece fiel ao parceiro durante toda a vida, até aos trabalhos abnegados das formigas dedicando-se ao bem estar das outras mas, no entanto, no mundo dos animais também existem formas de

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comportamento menos altruístas. Por exemplo, o interesse próprio explica por que motivo o leão mata os jovens da sua espécie, pois para ele não se trata da preservação da espécie, mas sim da transmissão dos próprios genes que como comportamento biológico é chamado “gene altruísta”. Recorrendo ao conhecimento da ciência, é possível calcular o parentesco genético e a melhor estratégia de reprodução de animais que vivem em grupos sociais. O comportamento social ou altruísta é apenas um truque dos genes, o ser vivo não passa de uma multidão de moléculas para transmissão da informação genética. Segundo Dawkins nós somos máquinas de sobrevivência, robôs programados cegamente para a manutenção das moléculas egoístas, que se chamam genes. Por conseguinte, nenhum ser humano age verdadeiramente bem, porque o interesse da sobrevivência dos genes está para além do bem e do mal. Com efeito isto não é sempre assim, pois muitas pessoas estão dispostas a fazer tudo pelos filhos, muito pelos parentes, e absolutamente nada pelas outras pessoas. Por outro lado, a base da amizade é a pura procura da vantagem. A sobrevivência egoísta deve considerar-se como um sub-produto sem valor moral próprio, tudo por causa das vantagens próprias. Cada um tenta parecer mais moral do que é na realidade, cada um ilude e engana o outro, e por vezes pode ser vantajoso fingir alguma coisa perante si próprio; afinal, ninguém mente melhor do que aquele que mente a si próprio. A sociobiologia descreve, como exemplo, a relação entre homem e mulher como uma “guerra eterna dos sexos” porque a mulher tem sempre a certeza no que diz respeito aos seus filhos e um homem nunca sabe, com certeza, se uma criança lhe é imputada. A mulher sabe sempre que a sua criança possui os seus genes. Os genes não querem saber de sentido, nem de sofrimento, nem de felicidade – eles não querem saber absolutamente de nada, não se pode encontrar aqui qualquer sentido nem qualquer justiça.

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O universo que observamos tem precisamente as características com que se conta quando por trás dele não existe nenhum plano, nenhuma intenção, nenhum bem ou mal, além da cega e impiedosa indiferença. No caso de Dawkins considerar a sua teoria verídica, ele tornou-se vítima de si mesmo, porque ninguém engana melhor do que aquele que é capaz de se enganar a si mesmo. Deus e a alma humana constituem a matéria da qual a religião cristã é feita. Ao longo dos séculos, esta matéria assumiu muitas formas e foi tratada em várias formas filosóficas, culturais e sociais, como mais à frente veremos. O cristão pode dizer que ele e Deus não existem como uma coisa (esta é toda a reflexão sobre Deus e o ser humano). O ateísmo só tem por atacar onde e quando a razão se revela estúpida, fazendo de Deus uma supercoisa acima do mundo. Quando se faz de Deus uma espécie de relojoeiro que vigia o seu universal, para intervir em caso de necessidade, pode chegar-se facilmente à convicção de que o relógio também pode funcionar sem relojoeiro, pelo que o passo seguinte é a abolição de uma religião que se preocupa com aquilo que é inútil. Deus pode considerar-se como um maestro duma grande orquestra. Sem o maestro, só se pode esperar o caos no palco. Porém, ao contrário do palco, o maestro no ser humano é invisível para o observador. Estando as coisas naturais subordinadas às leis da casualidade, e se eu também estou, então, já não posso decidir se logo à noite vou passear ou vou ao teatro, pondo assim em causa a questão do livre arbítrio e da responsabilidade moral. Assim, o assassino podia justificar-se como uma herança genética ou um processo programado no seu cérebro, tal como o trovão se segue ao raio. Nesse caso, a culpa seria da organização do mundo ou da natureza que deixa os seres humanos se tornarem assassinos sem poderem fazer nada contra, tornando-os uns autómatos, pelo que ninguém pode queixar-se que se fez injustiça, porque num mundo que é dirigido apenas

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pelas leis da natureza, o conceito de justiça não tem qualquer sentido. Kant ensina que o ser humano, enquanto ser natural, está subordinado às leis da natureza, e como ser moral, é livre e responsável pelo que não exclui uma imputabilidade limitada. Para o filósofo existencialista Sartre, o ser humano está condenado à liberdade podendo ter a liberdade de dizer “sim” ou “não” à vida através do suicídio. Vemos aqui que o ser humano se pode assemelhar a Deus, não sendo apenas um elo duma cadeia causal, mas através de uma linguagem religiosa exprimir-se através do discurso sobre a semelhança do ser humano com Deus Criador. Contrariamente à ideia de Dawkins sobre o “egoísmo”, o ser humano também está pronto a ajudar altruisticamente os outros. Para Dawkins, a madre Teresa é alguém que calculou a sua recompensa celeste. No entanto, o que é um ser humano que não é religioso e que não espera nenhuma vida eterna, irromper numa casa em chamas, a fim de salvar uma criança desconhecida? O amor de Deus actua no agir de muitos seres humanos, mas nem todos os seres humanos altruístas são religiosos. Há muitíssimos seres humanos que renunciam à religião e que podem ser um exemplo brilhante para todos os outros. As pessoas religiosas não têm aqui qualquer privilégio, pois, no seu agir, nem sempre têm em conta o factor Deus de uma maneira correcta. O antagonismo entre “ciência e religião” foi a própria ciência que o eliminou, ao alterar a sua autoconcepção e a sua exigência de validade. Contudo a religião também mudou, pois hoje já não se fazem quaisquer afirmações sobre matérias que estejam fora do seu domínio, e este não abrange o mundo das coisas, mas atinge a profundidade do essencial e a vastidão do englobante. Deus não é o tapa buracos para as manchas brancas no mapa do saber, nem para os problemas não resolvidos da ciência que, um dia, talvez possam ser resolvidos. Deus é,

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antes do mais, o mistério do ser insondável, mistério cuja solução é, por princípio, impossível. Segundo Einstein, a ciência só pode ser feita por pessoas que estão completamente possuídas pelo desejo de verdade e compreensão. No entanto, esta base sentimental tem origem na esfera religiosa. Isto inclui também a confiança na possibilidade de que as regularidades que valem no mundo do existente sejam razoáveis, isto é, compreensíveis à razão. Não posso imaginar um investigador sem esta fé profunda. É possível exprimir o estado das coisas através de uma imagem: a ciência sem religião é paralítica, a religião sem ciência é cega. A verdade absoluta é inacessível ao ser humano. Apesar disso, o conhecimento científico é um aspecto do absoluto. No século XIX, nos estudos empíricos da filosofia da natureza “não existe nada miraculoso, tudo o que acontece aconteceu e acontecerá, acontece… de uma maneira que está apenas condicionada pela acção conjunta regular das matérias existentes desde sempre e das forças naturais que lhe estão associadas… e tudo isto aconteceu como expressão da mais rigorosa necessidade…… Aquilo que a física descreve é a natureza, tal como ela é em si mesma; a natureza… funciona objectivamente, tal como funciona uma máquina a cujo funcionamento nós, os sujeitos, na maior parte das vezes, só podemos assistir”. O mundo como uma grande máquina. Quem descodificar o seu projecto, tira-lhe tudo o que ela possui de miraculoso e pode utilizá-la para os seus fins. Esta ideia é absolutamente errada. As cartas voltaram a baralhar-se no conflito entre o ateísmo e a religião. Assim, a filosofia, a teologia e a ciência possuem perspectivas diferentes da realidade, mas, no fim, vão complementar-se numa imagem total. A física moderna aproxima-se mais da imagem, pois se eu me sentar numa cadeira, deduzo que ela é constituída no

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essencial por espaços vazios donde um conjunto de impulsos eléctricos esbarram contra mim, portanto a cadeira não possui uma superfície claramente delimitada. A cor da cadeira é apenas uma construção do meu cérebro; a cadeira gira à volta do Sol a uma velocidade de 30 quilómetros por segundo. Basta uma fracção de segundo de atraso para que a cadeira fique a milhas de distância. A física moderna fala do “dualismo onda/partícula” da matéria. Os princípios físicos da teoria quântica provocaram a derrocada de um dos fundamentos da física clássica: demonstrou que a nossa capacidade de saber tudo com exactidão sobre o nosso mundo é limitada por motivos elementares. A descoberta de Heisenberg está hoje associada ao seu nome como a “relação da incerteza”. Este princípio diz, por exemplo, que é impossível medir simultaneamente com exactidão o movimento e a posição. O universo começa a parecer-se mais com uma grande ideia do que com uma grande máquina, fugindo à nossa compreensão. Na física clássica, as propriedades e o comportamento das partes determinam o comportamento da totalidade. Na física quântica passa-se, por conseguinte, precisamente o contrário: é a totalidade que determina o comportamento das partes. Penso a partir da totalidade e não das partes. Se todos os grandes sistemas filosóficos fracassarem, como devemos compreender a nossa vida e a nossa realidade? O que resta, se tudo é efémero e nada é seguro? A resposta mais consequente é esta: Tudo é hipótese. As nossas concepções do mundo são hipóteses do nosso espírito, tal como as da natureza são hipóteses da nossa investigação. O mundo na sua totalidade transforma-se em ponto de interrogação. Quando se reflecte sobre a verdade, não resta senão tactear no nevoeiro; não é possível garantir a verdade de qualquer afirmação, nem sequer

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desta afirmação. Mas se eu me entendo a mim próprio e ao mundo apenas como uma hipótese de trabalho, onde fica a realidade? O conceito de hipótese só tem sentido se existe uma realidade que comprova a hipótese como correcta ou falsa. Se nada no mundo possui uma realidade fiável, pelo menos, a totalidade, da qual a minha vida e o meu mundo fazem parte, tem de ser real. A realidade só pode ser deduzida da totalidade. Portanto, a realidade é o pressuposto fundamental de uma visão do mundo. Expresso na linguagem da religião: a vida e o mundo só têm um ser razoável a partir de Deus. Na religião, o mundo também é transformado numa fórmula. Para as pessoas religiosas, a realidade é igualmente uma frase sem sentido que, no fundo, ninguém entende. A religião coloca imagens, símbolos e mitos, obtendo, assim, um instrumentário para compreender os nexos de um mundo que excede a razão e para o aplicar com sucesso na prática da vida. Porém, existe um ponto onde todos estamos ligados da mesma forma à origem primordial: NA CERTEZA DA MORTE. O humano é o único ser no nosso planeta que sabe da sua morte. A morte é o facto mais real da vida e é só a partir dele que todos os outros factos recebem o seu significado e o seu carácter específico. A mensagem das capelas das mortuárias da Baixa Baviera dizem “Éramos aquilo que tu és; tu serás aquilo que nós somos.” Quem poderia reconhecer o seu eu e a sua identidade nas partículas de matéria que resistem ao processo de decomposição? O ser humano não se reconhece nessas partículas. O cadáver já não é um ser humano, ele é uma coisa morta. A concepção Platónica da imortalidade da alma baseia-se na distinção entre corpo e alma. A alma e as coisas materiais do mundo sensorial são de natureza diferente. Portanto, a alma não pode ter o mesmo destino do corpo

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mortal. Dito na linguagem de Kant o eu penso é a condição da possibilidade do pensamento em geral. Kant não tira deste conhecimento a conclusão de que a alma tem de ser imortal, mas apenas, que pode ser imortal. A fé e a esperança ou até o saber que a morte não é a última palavra também tem surgido em alguns períodos da história da igreja, mas ela não é uma ideia genuinamente cristã. A religião cristã pensa a morte de uma maneira mais radical e fundamental que Platão e os seus discípulos. E a mensagem sobre a existência após a morte também é formulada de uma maneira mais radical e fundamental. O seu ponto de partida não é a qualidade da alma – seja o que for que isto signifique – mas a qualidade de Deus. A resposta à questão do que significa ser uma parte mortal não se encontra na qualidade da parte mas na qualidade da totalidade.

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O CRESCIMENTO E O ENTENDIMENTO (DIÁLOGO)

António – Olá José, como é bom conversar contigo! Por onde tens andado? José – Olha que tu és muito distraído, então não vês que ando contigo? Muitas das tuas reflexões residem na minha presença permanente, junto a ti, é só estar atento e ver quanto de mim está em ti. A – Tens razão, e mais, muito do que está escrito foste tu que escreveste. Por eu ser o lado mais visível de nós ambos, isso não quer dizer que estejas ausente, mas pelo contrário, a tua presença influencia a minha maneira de pensar, de agir, de actuar. J – Já assim era quando entrámos na universidade, na decisão que tivemos que tomar quanto ao curso a seguir. Tu estavas decidido a seguir engenharia, pela grande capacidade que tinhas em matemática e nas disciplinas como a física e a química, e eu mais inclinado para as disciplinas como o português, mas hoje entendo que foi tomada a decisão acertada, a tua parte mais desenvolvida era a das ciências positivas enquanto que, na parte intuitiva do teu cérebro, a sua presença, era mais de circunstância e não tanto de substância. A – Lembras-te como nos levantávamos cedo para estarmos nas aulas em Lisboa às 8 horas? Quantas vezes adormecíamos no comboio, até ressonávamos, para gáudio das pessoas que viajavam ao nosso lado. Muitas vezes acabávamos a nossa toillete no comboio, outras vezes quando havia tempo e dinheiro para comprar o jornal, lá íamos entretidos a fazer palavras cruzadas que tanto gostávamos, e ainda hoje gosto. Que saudades desses tempos, que apesar de difíceis, eram tão gratificantes. Como, para comprar um maço de cigarros, lá se ia a verba para o almoço, e sem perder o apetite e a boa disposição, lá íamos nós às sandes e ao bolo de arroz, que eram mais enfarta brutos, mas que no caso era só para matar o

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bichinho que nos roía o estômago. Sempre compreendemos que o nosso Pai nos dava o que podia, portanto assim teria que ser, e assim aprendemos a sermos felizes com aquilo que tínhamos, aprendemos que na vida não há só facilidades, e gerindo as precaridades, podemos ser felizes, e nos tornarmos gente sensível e compreensível. J – Foi conversando contigo, nas inúmeras viagens entre Cascais e o Cais do Sodré e vice-versa, que fomos alimentando os nossos cérebros, tentando aproximarmo-nos daquilo que parecia ser a verdade, mas que era tão questionável e cheio de incongruências e interrogações, que tu me pedias para ver mais longe, e que eu me esforçava para te dar as respostas que de todo em todo não te satisfaziam; tempos difíceis, pois acompanhávamos o nosso crescimento, tanto físico como intelectual, com a consolidação do nosso “eu”, com a necessidade de tentar compreender tudo o que nos foram ensinando até então, e se bem que ainda hoje me reste um pouco de tudo isso, contigo, não direi mais materialista, mas sim muito positivista, a negação a muitas coisas era tão evidente, tornando-se difícil contestá-las. A – Pois é, meu amigo, meu irmão, meu igual, ninguém deve ter certezas, mas convicções, e sendo assim, por que não pôr em causa aquilo que não acreditamos, e pôr em discussão, nem que seja com os nossos botões, as nossas interrogações, as nossas dúvidas, e porque não dizê-lo, as nossas próprias limitações. Nunca me interessei muito com os credos das igrejas, baseados em religiões, que tanto podem ser monoteístas como politeístas ou pagãs ou o que quer que seja, religiões que se guerrearam entre si, ao fim e ao cabo em nome, muitas vezes, do mesmo Deus, pelo que se pode perguntar se efectivamente era o mesmo Deus, entendido de maneira diferente, se seria outro Deus, pelo homem inventado só para defender aquilo que era do seu interesse, mas que a hipocrisia deixava encapuçado. J – Mas olha, meu querido amigo, deixa-me recordar-te

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as nossas reuniões de estudo, ora no café no Largo do Calvário, em Alcântara, ora no café perto do IST, quando era preciso, estudávamos de verdade, e se não, lá íamos a uma bilharada ou uma discussão sobre religião, ou sobre futebol, mas raramente sobre política, porque a nossa formação nesta matéria era quase nenhuma, e depois, também havia o receio de estar por perto algum pide, mas que me recorde nunca fomos incomodados. A – O 1.º ano no Técnico foi muito complicado; o sistema de ensino era completamente diferente do Colégio onde andámos; o ter que ir diariamente para Lisboa, o conviver com outros colegas, o constituir o nosso grupo de amizade e trabalho, pois era assim que funcionava a convivência na Universidade, tudo isso aliado à nossa imaturidade para fazer face a novas situações, o querermos ser homens muito rapidamente, o envolvimento com uma vizinha nossa, mulher casada, mais velha, já com uma filha, e as cartas anónimas que escreviam aos nossos pais, dando conta do que estava sucedendo, tudo isso teve como consequências o ter chumbado o 1.º ano e ter então resolvido ir cumprir o serviço militar, pelo que requeri a sua entrada, já que como estudante universitário estaria dispensado de o cumprir até ao final do curso. J – Foi o melhor que fizeste, pois já tu tinhas cumprido o serviço militar, quando rebentou a guerra de Angola e assim só cumpriste um ano e meio de tropa, e evitaste ser recrutado para a guerra. A – É verdade, há males que vêm por bem, vamos lá nós prever o dia de amanhã. Entretanto, enquanto cumpria o serviço militar, a recruta feita em Queluz, e como Aspirante a Oficial miliciano em Torres Novas, acabei por fazer a cadeira do Técnico a que tinha chumbado. Acabei a tropa em Fevereiro, e tive a oportunidade, já que não estava matriculado nesse ano, de ir para o Colégio onde o meu Pai era professor, dar aulas de matemática, foi um sucesso a maneira como me

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consegui impor, o respeito que me tinham, e o agradável que era ouvir chamarem-me Setôr, eu que pouco mais de 21 anos tinha. J – Mas mesmo assim não te livraste de seres chamado para ires fazer a guerra de Angola. A – Isso sucedeu, uns anos depois, já eu tinha concluído o curso de engenharia, estava casado, já era pai, e trabalhava na Refinaria do Porto. Como eu tinha feito a tropa na Artilharia, pois quando a fiz era estudante, aconselharam-me a ir ao IST pedir uma Pública-forma da carta de curso, em como já tinha concluído o curso; assim o fiz e entreguei-a no Ministério do Exército, tendo, então, sido reclassificado na arma de Engenharia como Tenente miliciano, e safando-me assim da guerra no Ultramar. A vida tem destas coisas, há males que vêm por bem. J – Eu lembro-me que te aconselhaste comigo, quando acabou o ano lectivo, se deverias continuar a dar aulas, já que a experiência foi grandemente gratificante, ou se deverias voltar ao Técnico, e acabar o teu curso de engenharia. Andámos uns dias meditando um com o outro, e por fim decidimos que deverias continuar os teus estudos, lembras-te? A – Se me lembro, José, mas o que eu queria mesmo era estudar para vir a ser engenheiro. O ser professor, já bastava o que ia em minha casa, com o nosso Pai, que aliás era um excelente professor de português e francês, que passava a vida a dar aulas, mas com cinco filhos a seu cargo, chegava ao fim do mês sem um tostão. Ainda me lembro do meu primeiro vencimento, acabado o curso e feito os estágios obrigatórios, foi em Agosto de 1966, e nesse mesmo mês ter ido ao colégio levantar o último ordenado do meu Pai, ele morreria poucos dias depois, e o meu ordenado ser superior em mais de 50% ao ordenado do meu Pai. É triste mas é verdade, o dinheiro não dá felicidade mas se a pessoa quiser, ajuda muito. J – Conforme acordámos, tu disseste ao nosso Pai que

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querias continuar a estudar, até acabar o curso, que iríamos dar explicações aos alunos do liceu, o que fizemos, e que o Pai daria o que pudesse, mas se eu chumbasse algum ano, desistiria de estudar, e ia procurar emprego. A – Assim foi, felizmente não mais chumbei, fartei-me de dar explicações, e com o pouco dinheiro que trouxe da tropa e com algum que economizei a dar aulas, com alguns sacrifícios, com uma vida um pouco desregrada, pois na altura dos exames, tendo necessidade de me preparar, passava noites sem dormir, a estudar, e ainda me lembro, já não sei qual era a prova, estive três dias e três noites seguidas no marranço, e o exame que deveria ser de manhã foi adiado para a tarde, e eu então desisti, tal era o cansaço, e fui mais tarde à segunda chamada. J – Foram tempo que recordo com saudade, que na nossa pequena tertúlia de café, discutíamos sobre o mistério da vida, a existência de Deus, o enigma da morte, que púnhamos em causa muitos conceitos e preconceitos da sociedade onde estávamos inseridos, da hipocrisia das pessoas, parecendo aquilo que não eram, abusando ou usando dos mais fracos ou mais temerosos, o querermos endireitar o mundo e sabermos o quão pequeninos éramos, a frustração que sentíamos perante as injustiças que se praticavam em nome, quantas vezes, de valores que se perfilavam para se conseguir o fim que mais interessava àqueles que sem quaisquer escrúpulos, olhando os seus umbigos, se consideravam os senhores do mundo. A – Tu, José, ainda hoje convives com muitos princípios que defendias quando éramos jovens e, é por essa razão, que quantas vezes eu te procuro para ouvir o teu conselho sobre matérias que sendo controversas, devemos meditar sobre elas. Sabes o quanto me angustia não ter tido o privilégio de ser tocado pela fé. Mais felizes são aqueles que podem procurar no seu Deus, a razão, muitas vezes, dos seus infortúnios, a desculpa para os seus pecados, a justificação para aquilo que fazem e não deviam fazer. O dar graças a Deus, por isto ou

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aquilo, o dizerem que foram criados à sua imagem e semelhança, como se Deus tivesse alguma imagem e com os seres humanos alguma semelhança, o livre arbítrio que reclamam para si, mas ao mesmo tempo se justificarem com Deus sobre tudo o que lhes sucede. Enfim, tanto teríamos para dizer sobre esta matéria, mas fica para outro dia, pois já se vai fazendo tarde. Até logo, José. A – Até logo, António, já vou ter contigo, só vou ficar aqui um pouco mais, meditando a existência de Deus o procurar saber da sua existência, se Deus tem existência ou é apenas um Ser, o que quer dizer, sendo em “Ser” em oposição ao “nada”. Se foi Ele que criou o mundo e todo este mistério que nós conhecemos através dos nossos sentidos. O planeta que habitamos, que pertence ao sistema e que faz parte da nossa galáxia, é tão pequeno comparado com a infinidade do Universo, do qual só conhecemos uma pequena parte.

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A ESTRUTURA DINÂMICA DA REALIDADE O DINAMICISMO DE ZUBIRI

Como se iniciou e como se configurou a realidade do universo? Já bem dentro do século XX não existia ainda uma ao mesmo tempo canónica e fiável. Só no tocante a uma parte mínima do cosmos – a biosfera terrestre – surgiu na segunda metade do século XIX uma doutrina cada vez mais amplamente admitida pelos homens da ciência e, desde Spencer, também pelos filósofos: o evolucionismo de Charles Darwin. Porém, só com a “Origem das espécies” e o genial conceito que a integra, o da “selecção natural”, começará a entender-se cientificamente a génese das formas vivas da matéria. Neste quadro, e a partir da formulação da teoria dos “quanta (Planck) e da teoria da relatividade (Einstein), a cosmologia do século XIX foi rapidamente substituída por outra. A primeira foi a descoberta da realidade do electrão e, um pouco mais tarde o conceito de “partícula elementar”. Isto levou a pensar que os átomos da química então vigente seriam corpúsculos compostos por um centro electropositivo e uma atmosfera electronegativa, formada por electrões em movimento circular (Rutherford). Descobertas posteriores (o protão, o neutrão, etc.) obrigaram a criar o conceito de “partícula elementar”, que abrange todas as partículas subatómicas supostamente irredutíveis e outras menores e, mais tarde, quando se conheceu a realidade complexa de algumas delas, se começou a distinguir entre “partículas verdadeiramente elementares”, por agora não divisíveis em outras e “partículas convencionalmente chamadas elementares”, mesmo sabendo que possuem estrutura complexa (entre elas o protão e o neutrão). Por outro lado temos a descoberta da radioactividade; a teoria da relatividade confirmou a possibilidade da conversão da energia térmica e electromagnética em partículas ele-

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mentares mais ou menos estáveis. A relação de todos estes factos com a descoberta do astrónomo Hubble que as galáxias se afastam velozmente umas das outras e que por conseguinte o universo visível está em expansão desde a sua origem. · O universo que vemos é o resultado provisório da magna explosão – o big bang – que aí há uns 14000 milhões de anos sofreu um pequeno núcleo de carácter enigmático, do qual só podemos dizer que a sua realidade era anterior ao tempo e ao espaço e não era nem matéria nem energia, no sentido que estas palavras têm para nós, pelo que poderemos concluir que a matéria cósmica se formou a partir de “algo” anterior a ela, ao espaço, ao tempo e a todas as formas de energia estudadas pela física. · O que é então matéria? E uma vez que as partículas elementares são os entes constitutivos do modo de ser real do que chamamos matéria, o que é uma partícula elementar, em que é que consiste a sua indubitável realidade? Só poderemos dizer isto: é algo que, por um lado, procede de um antecedente não material e que por outro “é” podendo ser duas coisas que, aparentemente se excluem uma à outra – massa material, energia electromagnética – já que actualmente não parece possível, cientificamente, encontrar uma solução satisfatória. · Meditando sobre o conceito e a realidade da partícula elementar, a mente do cientista sente, com desconforto intelectual, a falta de conceitos científicos e filosóficos capazes de darem razão suficiente do novo modo de o real se apresentar. Assim acontece no século XX uma inovação radical e exigência intelectual com a teoria dos quanta e da relatividade, levando o pensador Zubiri a afirmar que o cosmos “não está em dinamismo” mas sim que “é dinamismo”.

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· Voltando à questão base do big bang e através de uma série de etapas, rapidamente o universo chegou a ser para a ciência o que é na actualidade: um imenso e ilimitado conjunto de galáxias, entre elas a nossa, a Via Láctea, e dentro dela o sistema solar com o pequeno planeta no qual nós os seres humanos habitamos. · No que se refere à evolução do nosso planeta, sabemos, que há 4000 milhões de anos apareceu à superfície da Terra o modo de ser a que chamamos VIDA, de que foram expressão inicial uns conjuntos de moléculas mais simples do que as actuais células. A partir de então, uma evolução biológica e cósmica deu lugar ao povoamento do nosso planeta com seres vivos, uns vegetais e outros animais que com a selecção natural de Darwin vai dando aparecimento a novas espécies, processo em cuja estrutura cooperam três momentos causais intimamente ligados entre si: o acaso, a necessidade e a teleonomia. Pois bem, acaso, acontecimento imprevisível é o que a nossa inteligência ao facto de tais e tais moléculas se terem reunido há 4000 milhões de anos ou ao facto de que se produzam tais mudanças de “habitat” no decurso ulterior da biosfera. Uma vez produzido e desenvolvido esse acaso, é a necessidade que impera. Considerando que o movimento do universo não está regido por uma causa final como pretendeu a teleologia antiga, apareceu a teleonomia a atribuir-lhe um sentido mais ou menos razoável. · A cosmologia zubiriana: · Visto que para Zubiri, o cosmos é em si mesmo dinamismo estruturado e evolutivo, vamos apresentar, sem as desenvolver, as cinco formas e níveis evolutivos do dinamismo cósmico: · 1. O dinamismo da variação.

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· 2. O dinamismo · 3. O dinamismo · 4. O dinamismo · 5. O dinamismo

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da da da da

alteração. mesmidade. autopertença. convivência.


O “SER” (REFLEXÕES)

A questão de saber o que significa “o ser” é uma das questões mais importantes sob o ponto de vista filosófico, ele é sempre algo que é ou não é. Sempre que temos oportunidade de reflectir, pode invadir-nos a questão: porque existe o ser e não o não ser? O que significa a palavra é? Porém, para podermos colocar questões sobre alguma coisa, temos de já a conhecer ou possuir parcialmente. O ser humano pode colocar questões relativas ao ser porque participa nele, estando somente limitado pelo tempo e pela morte. Expresso nas palavras de Paul Tillich, ser humano significa colocar questões relativas ao próprio ser e viver sob a impressão da resposta que é dada a esta questão. O ser é algo com que nos relacionamos em cada momento e que o compreendemos em cada acção, sem ter de o definir. No entanto, o ser só pode ser interpretado e compreendido do ponto de vista da existência vivida no tempo. Na experiência do medo de que o ser escape, revela-se o nada, surge a ameaça do vazio absoluto. O ser e o nada são experiências fundamentais da existência humana no tempo. O teólogo Paul Tillich escreve: O ser de Deus não pode ser compreendido como a existência de um existente ao lado ou acima de outros existentes. Se Deus fosse um existente, estaria submetido às categorias da finidade, sobretudo ao espaço e ao tempo. Por esta razão, em rigor, também não se pode dizer: “Deus existe”, porque, assim, Deus seria transformado numa coisa ao lado de outras coisas. Ele é aquilo que torna as coisas possíveis, isto é, o ser das coisas. Por conseguinte, tanto a afirmação da existência de Deus como a sua negação são ateísmo. Deus é o próprio ser, não um existente. Sendo assim, como não existe nenhum objecto sem sujeito, nem nenhum sujeito sem objecto, Deus assume-se como aquilo que engloba o “englobante”. O englobante permanece incompreensível para a minha consciência, pelo que o mundo dos objectos e sujeitos é a capa com a qual

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o divino se encobre. Deus permanece o Deus oculto. Não é possível conhecê-lo como objecto no nosso mundo, mas existe um conhecimento acerca de Ele. À luz do pensamento cristão, o ser e o englobante são idênticos, eles estão unidos no último uno, do qual e no qual tudo existe. A alma também encontra a paz no uno que engloba tudo, portanto, também a morte do ser humano pelo que a existência depois da morte tem aqui o seu lugar lógico. No entanto o pensamento cristão rejeita a ideia da imortalidade da alma. Primeiro, esta ideia não é bíblica, segundo, o dualismo entre corpo e alma não é defensável e, terceiro, as provas apresentadas não são suficientes. Isto porque, primeiro, a Bíblia fala da ressurreição do ser humano como um todo, segundo, a continuação da vida de uma alma sem cérebro e sem percepção sensorial é impensável e, terceiro, as provas foram refutadas com suficiente frequência ao longo da história da filosofia. O que ensina, então, a religião cristã? Visto a partir da perspectiva quotidiana do mundo, a morte é um fim absoluto. Qualquer razão fracassa ao ser confrontada com ela. Na morte abre-se um abismo para a existência humana. Aquilo que resta é a biomassa que alguns também designam por lixo biológico. Para Ernst Block para que serve o esforço da nossa existência se perecemos completamente, vamos para a cova e, no fim, tal esforço não serve para nada? Para Adorno, a ideia do nada absoluto põe igualmente em questão o pensamento da filosofia: Se a morte fosse o absoluto que a filosofia invocou em vão, tudo seria nada, e qualquer ideia seria pensada no vazio e ninguém poderia pensar a verdade, porque o facto de a verdade durar constitui um momento da própria verdade, incluindo o seu núcleo temporal; sem durabilidade, não existiria qualquer verdade, a morte absoluta engoliria o seu último vestígio. Assim, se não resta nada, a ideia da verdade também desaparece no absurdo; a vida do ser humano paira de modo misterioso, sobre o abismo do absurdo. É necessário abandonar

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a esperança de encontrar algum sentido na morte, A MORTE É TÃO ABSURDA COMO A VIDA. A angústia da morte é a angústia perante o nada. No entanto, o cristão confia na força transformadora do ser. O cristão tem esperança de que a força do ser seja maior do que a força do nada. Ele tem esperança de que a força que o sustenta no ser em cada momento da vida, não o abandone no momento da morte. A fé é a suposição teórica de algo que é duvidoso do ponto de vista do conhecimento, mas é a resposta existencial afirmativa a algo que transcende toda a experiência objectiva. A fé não é uma opinião, mas sim um estado. A fé é o estado do ser arrebatado pelo poder do próprio ser, que transcende tudo e no qual tudo participa. Quem é arrebatado por este poder pode aceitar-se a si próprio porque sabe que é aceite. Dado que o cristão procura uma relação pessoal com Deus, tem esperança de que Ele seja fiel para além da morte. A vida eterna não deve ser entendida como uma vida sem limitação temporal. A vida eterna é antes um conceito simbólico para um modo de ser que, dentro do “englobante”, participa no “englobante”. A morte complementa a vida, tal como o último som completa uma canção. A vida conquista na morte a sua unidade, torna-se uma totalidade e remete para a totalidade a que chamamos Deus. Só é possível interpretar correctamente o que foi dito recorrendo à teologia. A filosofia procura explicar as estruturas do mundo e da existência humana. A teologia dá-lhes sentido e objectivo, iluminando a origem da qual surge todo o ser, através de imagens e símbolos religiosos. É frequente acusar o discurso religioso de se apoiar em desejos humanos; naturalmente, seria bonito que a morte não tivesse a última palavra; mas os desejos e conceitos são formas de ilusões produzidas pelo ser humano; não se pode confiar neles; talvez sejamos apenas corpos estranhos carregados de ilusões num universo banal.

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Por isso, a religião não pode fugir à responsabilidade intelectual da fé na eternidade. A Bíblia associa a interpretação da morte à ressurreição de Jesus de Nazaré. A “boa nova” da ressurreição da pessoa de Jesus Cristo não significa que Cristo ressuscitou, mas antes que o ser humano Jesus, na sua totalidade, na unidade do seu corpo, espírito e alma, ressuscitou dos mortos pela acção de Deus. E esta acção de Deus é o suporte da esperança que os cristãos possuem de que a morte não tem a última palavra. Como se deve entender isto?

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A RELIGIÃO E O “EU” (REFLEXÕES)

Na capacidade de explicação de uma religião não têm necessariamente de ser apresentados argumentos filosóficos ou científicos. A sua verdade deve abranger o domínio sobre o qual não podemos saber nada. A sua resposta não é uma espécie de cosmovisão, mas uma resposta em símbolos. Tal como na física quântica, onde, através de números e de fórmulas, tornamos “compreensíveis” processos incompreensíveis, assim também na religião, recorrendo a imagens e símbolos, interpretamos dimensões do nosso mundo que ultrapassam a nossa capacidade de conhecimento. No símbolo de Adão e Eva, o ser humano pelo facto de se ter desenvolvido, na sua evolução, abandonou o estado de inocência, quando o seu cérebro se desenvolveu para além do nível do animal. Mas com isso, começou também o drama da existência humana: medo, dúvidas, culpa e o conhecimento da caducidade. Na idade moderna, a religião está confrontada com a tarefa de tornar os seus símbolos acessíveis aos contemporâneos modernos, orientados para a ciência. Na sociedade moderna, estamos confrontados com um número crescente de pessoas que vivem ao lado da religião; as questões que resultam da finitude do ser humano são excluídas conscientemente. Visto que a morte é a maior catástrofe, ela é recalcada. O filósofo Nagel representa este pensamento moderno: De que me serve reconhecer que a importância da minha vida excede aquilo que conhecemos ao longo de alguns anos? Para nada. Portanto, isso não me interessa. A nossa vida não tem importância, e nós fazemos bem em enfrentar, a partir de agora, a nossa vida absurda com ironia. Pôncio Pilatos mandou crucificar Jesus por o considerar um agitador político. Os discípulos de Jesus que o acompanharam até Jerusalém abandonaram-no antes ou no momento da sua prisão. Depois da crucificação, o cadáver foi

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tirado da cruz e sepultado num túmulo, mas não se sabe bem quem realizou o funeral. Duas mulheres descobriram que o túmulo estava vazio. O Cristo ressuscitado dos mortos apareceu ao discípulo Pedro, mais tarde, apareceu aos outros discípulos e, além disso, a 500 irmãos. Antes de Jesus ter morrido, percorreu a Palestina durante anos e fez-se notar como Mestre espiritual e como alguém que realizava curas. Jesus aplicou outros critérios ao mundo. O seu padrão era o amor, Ele demonstrou o seu poder transformador. Para Ele o amor era todo o fundamento de todo o ser, por isso falou de Deus como um pai que ama. A existência num mundo duvidoso foi superada. Por isso as pessoas chamaram-lhe Messias, o Cristo, o enviado de Deus. Por esta razão, tanto maior foi a catástrofe para eles, quando Ele foi executado juntamente com grandes criminosos. Para se acreditar na ressurreição de Jesus tem que se querer que o amor a Deus e aos seres humanos possa mudar completamente o cerne de uma vida humana. Porém, a mensagem do acontecimento pascal contém a experiência de que a vida é um esforço. O “princípio de Adão” significa ser humano como parte da evolução natural, portanto, mortalidade. O “princípio Cristo” significa a superação da morte através da ressurreição dos mortos como acto divino, portanto, eternidade. Trata-se da aplicação da primeira lei termodinâmica da física à existência individual do ser humano: nada e ninguém se perde. O túmulo estava ocupado ou vazio? Ele ressuscitou de facto? Se se aceitar esta maneira de colocar a questão, então, o problema agrava-se devido ao facto desconcertante de os relatos da ressurreição fornecidos pelos Evangelhos não serem idênticos. Basta ler os Evangelhos segundo São Mateus, São Marcos e São João. Tudo isto se complica ainda mais devido ao facto de, na Antiguidade, terem existido nada mais nada menos do que uma dúzia de divindades da natureza, heróis, filósofos e im-

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peradores, que sofreram, morreram e ressuscitaram ao terceiro dia, antes de Jesus (por exemplo, Isíris, Herálclito, Pitágoras, Alexandre o Grande, etc.). Não há testemunhas oculares da ressurreição. Aquilo que é relatado são sempre apenas as consequências, mas alguma coisa teria acontecido para que o simbolismo da ressurreição tivesse sido associado a Jesus. Esta experiência pascal constitui o conteúdo central da mensagem cristã. A questão se o túmulo estava vazio ou não, é insignificante para tal. No fundo, um túmulo vazio diz apenas: o cadáver não está aqui. É necessário acrescentar expressamente aquilo que não é evidente: ele ressuscitou. Para se compreender melhor o acontecimento da Páscoa, temos de relacionar com a física que é a ciência fundamental de todos os fenómenos no espaço e no tempo. Se entendermos a ressurreição como um fenómeno concreto dentro do espaço e do tempo, a opinião habitual que se trata de um milagre, que só pode ser visto com os olhos da fé é hoje, para muita gente, insatisfatória, pois faz lembrar as placas ao longo do lago Loch Ness: Basta acreditares firmemente nisso e verás mesmo o Nessie. Em termos da ciência da natureza, a religião tem de provar alguma coisa na linguagem destes conceitos. Na antiguidade, a física de Aristóteles teve a tarefa de salientar a verdade da fé em Deus. Na idade moderna, a ciência e a religião seguiram cada uma o seu caminho. No entanto, para que seja possível formular leis a partir das observações científicas, é necessário simplificar e criar modelos que constituam uma abstracção da complexidade da realidade, são aproximações à verdade do fenómeno, sem chegar muitas vezes a compreendê-lo completamente, mas essa verdade constitui o objectivo de muitas investigações científicas. Esta verdade, independente do cientista e que este tem de encontrar, constitui o objectivo de todas as investigações científicas. Porém, o físico não é o criador do mundo, mas sim aquele que descobre a verdade física que lhe é imanente. Esta verdade tem uma propriedade particular: está acima do espaço-tempo concreto, é

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intemporal. A lei da gravidade, por exemplo, vale sempre, e sob uma forma adaptada, em qualquer lugar do universo. A fórmula desta lei entrou na categoria de uma verdade intemporal. A componente religiosa das nossas reflexões apresenta-se da seguinte forma: por motivos relacionados com a teoria do conhecimento, temos de entender o universo como um objecto que está perante nós quando reflectimos sobre ele, mas que também nos contém como uma quantidade parcial na sua grande, embora limitada, dimensão. Porém, o universo não é a totalidade, porque a totalidade é aquilo que engloba sujeito e objecto, portanto, também o universo, e da qual os objectos representam apenas uma manifestação. Chamamos Deus a este “englobante”. Por outras palavras: as operações lógicas que nós, como uma parte da totalidade, não podemos realizar, “a partir de baixo”, por motivos relacionados com a teoria do conhecimento finitística, podem ser realizadas pela totalidade ou por Deus “a partir de cima”, porque Deus não está sujeito a qualquer limitação. O que acontece quando um ser humano morre? A sua fórmula do eu completa-se. A sua vida é preservada nesta fórmula. Porém, esta situação ideal só é possível se a fórmula do eu for vista a partir da totalidade, portanto, a partir de Deus. No fim, diz a mensagem da religião cristã, o amor de Deus secará todas as lágrimas e oferecerá ao ser humano uma existência em identidade com o divino, no qual todos serão um só. Esta será tão insondável como tudo no mundo: o nosso nascimento, a nossa vida, a nossa razão, o nosso amor, a nossa morte. Voltemos à fórmula do eu e à resposta à questão se existe para o ser humano uma vida depois da morte. Caso se entenda por isso uma existência biológica num tempo diferente – a palavra “depois” sugere esta ideia – a resposta tem que ser negativa. Mas caso se entenda por isso que a

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realidade da vida concreta de um ser humano é preservada na dimensão da intemporalidade, sob a forma de uma verdade que é possível formalizar e formular, na sua fórmula do eu, nesse caso, a resposta a esta questão pode ser afirmativa, no entanto só pode ser “lida” a partir da transcendência. Este resultado corresponde à mensagem da religião cristã (expressa nos símbolos) e que tentámos descrever numa reflexão filosófica. Para os cristãos, Deus lê a fórmula do eu e eleva-a à eternidade. O cristão tem a esperança de que o amor de Deus elimine os défices adquiridos durante a vida. Em 1997, é conhecido o primeiro mamífero clonado, a ovelha Dolly, parecendo estar aberto o caminho para a reprodução de duplos incluindo os seres humanos, que já morreram, pelo que a realidade parece contradizer a religião. Sendo assim, o que nos impede de entender o espírito, a alma e a autoconsciência do ser humano como uma obra da evolução? Se entendermos esta obra na qual o insondável se apresenta na dimensão do espaço e do tempo, então a afirmação de que o espírito, a alma e a razão são produtos da evolução, não representa qualquer problema para o cristão. Porém, se essa evolução for entendida em termos materialistas, o acesso ao domínio das verdades perenes rebenta o quadro evolucionário. O filósofo Kant considera que a autoconsciência e as operações espirituais do ser humano são dependentes da estrutura e organização do cérebro deste. Isto contradiz a ideia da independência do espírito. O qual, vindo do Além, utiliza o cérebro como uma ave que se instala num ninho para chocar qualquer coisa. Mas, se segundo Kant, é dependente do cérebro, sendo talvez um produto seu, nesse caso, depois da morte, não pode continuar a existir sem ele. Hoje em dia, a investigação do cérebro constitui um ramo da biologia moderna, o qual altera a autocompreensão do ser humano. A humanidade tem de se preparar para compre-

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ender a autocompreensão, visto que, depois de Copérnico ter abandonado o centro do universo, e de ter sido inserida no processo da natureza, graças a Darwin, os neurobiológicos atacam o seu último bastião. A alma do ser humano é um processo bioquímico e nada mais. Temos de abandonar a ideia de sermos alguém? Somos apenas resultado da química que se processa na nossa cabeça? A percepção de ser alguém é apenas um truque biológico da programação da evolução do nosso cérebro e, portanto, somos um ninguém? Estas questões poderão pôr em causa tudo em que nos apoiámos durante milhares de anos. A neurobiologia é uma agressão à essência do ser humano? Quando, então, determinados neurónios “disparam” no cérebro, surge aquilo que chamamos o eu, portanto a consciência de ser alguém. Produzimos, assim, decisões da vontade, sentimentos, ideias e a consciência do presente, portanto a capacidade de resumir num “agora” acontecimentos ocorridos no espaço de segundos. Porém, onde ficaria a responsabilidade dos meus actos? O criminoso em tribunal poderia argumentar: “Estou inocente, os meus neurónios produziram a vontade de matar”. Como se transformam processos físicos e químicos no cérebro, em conteúdos da minha consciência, nos quais eu me reconheço? Como se pode transformar algo impessoal em algo pessoal? Como se transformam processos físicos objectivos numa experiência subjectiva? Tudo isto se relaciona com a questão: O espírito é apenas um produto do cérebro ou possui uma qualidade adicional? Num simpósio realizado em 1854, um fisiológico declarou “como a urina é uma secreção dos rins, assim também as ideias não são mais do que secreções do cérebro”. A ideia de um acontecimento espiritual não passar de um processo físico é defendida hoje por muitos investigadores americanos dos processos cerebrais. Esta ideia de-

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signa-se por teoria da identidade. O espírito não possui aqui qualquer realidade própria, sendo apenas o reflexo de um processo neural. Sendo assim, aquilo que é primário são os processos químicos e físicos nos neurónios; eles decidem o que faço, o que penso, quem sou. A minha vida psíquica e espiritual é apenas secundária. É difícil defender a afirmação de que seria possível reduzir o espírito humano e o eu à química e física, tal como pretende a teoria da identidade. O ser humano tem certezas sem prova, a ciência tem provas sem certezas. O prémio Nobel Eccles defende precisamente a tese oposta. Para ele, o espírito é uma substância independente do cérebro e proveniente directamente de Deus. Expresso em termos teológicos: cada alma é uma criação divina. Para Eccles, o cérebro é a condição necessária, mas não suficiente, da consciência. Para ele a relação entre espírito e o cérebro poderia ser imaginada à semelhança da relação entre o pianista e o piano. Embora o pianista precise do piano para tocar, pode subsistir sem ele. Em sentido figurado, é possível comparar esta situação com a imortalidade da alma. Esta versão do problema do cérebro é designada como dualismo. A objecção essencial contra o dualismo foi sempre a de saber como é que o espírito entendido como imaterial actuaria sobre a matéria do cérebro. Se o espírito quiser actuar sobre a matéria do cérebro a partir do exterior, tem de desrespeitar a lei da preservação da energia num sistema físico, sendo incompatível com as leis da ciência da natureza, visto que a energia do universo tem de permanecer sempre constante. Através de cálculos exaustivos, foram elaborados modelos de teoria quântica que pretendem explicar como é possível compreender a influência do espírito, entendido como algo imaterial, sobre a matéria do cérebro, sem perturbação do estado energético deste. Esta posição é marginal no quadro da neurobiologia, o que não põe em causa o facto de poder ser verdadeira.

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Resumindo: O espírito, a consciência e o eu do ser humano podem ser descritos como função do cérebro. O espírito, a consciência e o eu devem-se às propriedades materiais do cérebro, mas constituem um nível superior emergente em relação à natureza física do cérebro que as suporta. Por princípio, a actividade do cérebro pode ser descrita com exactidão e conservada numa fórmula. Que para tal seja necessário exceder a capacidade humana do conhecimento e o seu limite finista revela apenas que a alma do ser humano transcende o seu pensamento. Deste modo, a unidade do corpo, espírito e alma pode ser preservada na fórmula do eu de um ser humano. Dado que o espírito, a alma e a fórmula do eu excedem o horizonte humano, a morte significa uma passagem de um nível incompreensível do ser para um outro nível igualmente incompreensível. Não é necessário insistir na velha ideia de um espíritoalma, directamente proveniente da mão de Deus, para tornar compreensível a mensagem da religião cristã sobre a ressurreição dos mortos. De qualquer modo, a verdade de Deus está para além de toda a capacidade humana do conhecimento. A física de hoje não é materialista, chegando ao ponto de afirmar: o espiritual é fundamental para mim; vou mesmo ao ponto de afirmar que não existe matéria, mas apenas espírito.

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COSMOS, DINAMISMO

Para Zubiri, a realidade do cosmos consiste radicalmente em ser “dinamismo”, como para o homem – a sua vida – é a realidade radical, o termo no qual, em última análise, se encontram enraizadas todas as suas certezas, dúvidas, crenças e decisões. Afinal em que consiste a realidade do universo? Prevalecem hoje duas linhas de resposta: o monismo materialista e o dualismo antropológico, um e outro diversificados em diferentes modos de entendê-los e exprimi-los. O teórico do monismo materialista pensa que na realidade do universo, incluindo nela o homem, independentemente do universo ter sido ou não criado por um Deus espiritual e omnipotente, não há nada essencialmente diferente à sua condição material; em suma, nada que seja “alma” ou “espírito”, só há matéria resultante dessa criação. É óbvio que tal afirmação tem carácter de convicção e de modo algum carácter de evidência. Conseguem fazê-lo as teses do dualismo antromomórfico? De modo algum, ante a forma tópica de empregar os termos “alma” e “espírito” essencialmente constitutivos da realidade dual do homem, contrapostos a “corpo” e “matéria” e complementar dele. Para nomear a subestrutura psíquica da realidade dual do homem, Zubiri prefere o termo metafisicamente neutro de “psique”. Por outro lado, como se pode entender como o ser humano individual pode perdurar desde a morte biológica até à ressurreição da carne? Já noutra ordem de coisas, se o pensador cristão se sente obrigado a acreditar com o “Génesis”, que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança, terá necessariamente de admitir que Deus infunde misteriosa e sobrenaturalmente numa alma espiritual recém criada no genoma de cada um dos mutantes australopitecinos nos quais o “Homo Habilis” teve a sua origem, e depois na célula resul-

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tante da fusão de um óvulo e de um espermatozóide humano. CONCLUSÃO – nem o monismo materialista, nem o dualismo antropológico, outorgam à inteligência actual uma base científica e filosófica satisfatória para entender, de modo razoável, a iniludível realidade de criatura cósmica que o ser humano possui. Talvez não seja inoportuna a comparação entre os dois modos de conceber e definir a realidade de Deus. Antes de ter surgido a necessidade de entender teologicamente essa realidade, São João escreveu “Deus é amor”. Mais tarde, talvez sem se aperceberem da questão metafísica dessa definição do quarto evangelista, os teólogos começaram a dizer que Deus é o Ser Supremo e a defini-lo escolarmente como ser espiritual infinitamente bom, sábio e poderoso. O contraste entre estas duas formulações pode ser mais evidente. Zubiri escreve que o psiquismo é um produto do Todo, afirmação que levanta objecções. De qualquer modo, seja qual for a solução que se dê a estas objecções, será sempre verdade que esse Todo é que produz o psiquismo humano. Quem levanta essas objecções são os teólogos tradicionais para os quais uma cosmologia, ainda que explicitamente intramundana, não é cristãmente legítima sem uma referência também explícita ao Criador desse Todo. No texto de “Estrutura dinâmica de la realidad”, de Zubiri, o termo “inter-relacionalidade” pode ser reduzido às seguintes teses: 1.ª – A inter-relacionalidade no Todo do universo afecta tanto um cristal de sal comum como um ser vivo, como afecta as discerníveis nas dos corpos que compõem esse Todo: um astro, uma galáxia ou a chamada “matéria escura”. 2.ª – A relação mútua dos entes do universo faz com que este seja cosmos, em consequência, só um homem vive ao mesmo tempo num cosmos e num mundo. Enquanto realidade, toda a realidade é em si mesma inter-relacionada com todas as outras.

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3.ª – O conjunto “em inter-relacionalidade” de todas as coisas reais é o que constitui a unidade do universo – natura naturans – produtor de realidades “naturatas”. 4.ª – O dinamismo tem a sua formalidade essencial na inter-relacionalidade ao mesmo tempo interna e externa a que elas, as substantividades cósmicas, estão essencialmente sujeitas. 5.ª – A actividade das substantividades cósmicas é “dar de si”, existir comunicando é “estar dirigido para” sendo esta a expressão primária dessa essencial e universal inter-relacionalidade do real-cósmico. 6.ª – O que fica dito indica com toda a clareza que a inter-relacionalidade tem modos e graus, em todos os casos, porém, simples ou complexa, ela é accional e activa por si mesma, não dependendo de algo externo a si mesma.

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ATÉ AO CASAMENTO (DIÁLOGO)

António – Olá, José, ainda bem que te encontro, preciso de falar contigo. José – Mas António, não precisas de me encontrar para falares comigo, pois eu ando sempre contigo. A – Tens razão, é uma maneira de dizer. Como sabes, quando acabei o curso, consegui uma bolsa de estudo dada pelo Ministério do Ultramar, nome que se dava na altura ao Ministério que tinha a responsabilidade do Ultramar. Estagiei na refinaria de petróleo da Petrangol e na fábrica de cervejas Cuca, e comparando ambos os estágios, pensei cá com os meus botões, que não gostaria nada de trabalhar numa refinaria, pois é uma fábrica muito barulhenta, poluente, de muita responsabilidade pela natureza de produtos, todos eles combustíveis, com muito pessoal distribuído pelos departamentos de produção, manutenção, engenharia, gestão de materiais e de stocks, utilidades, laboratórios, etc.. Mal sabia eu que ia passar toda a minha vida profissional em fábricas de petróleos. J – Esses estágios foram feitos em Angola, mais precisamente em Luanda, e foi a primeira vez que andámos de avião. Lembro-me de ver a tua preocupação com a ida para tão longe, deixando os nossos pais, a tua namorada, e os nossos amigos. A – É verdade, fui muito preocupado, mas era uma possibilidade de conseguir um estagio remunerado, não sobrecarregando mais o nosso Pai com despesas. Pagaram-nos as viagens, para cá viemos de barco em primeira classe, a estadia e todas as despesas, e ainda deu para trazer algum. Lembraste, José, conversámos muito, sobretudo sobre o nosso futuro, se devíamos começar a trabalhar por lá, ou regressar a Portugal. J – Se me lembro, mas acabou por ser gratificante pois recebias quase diariamente uma carta da tua namorada, e a teu

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pedido te aconselhei a regressarmos, o que sucedeu quase nas vésperas dos anos da tua namorada e passados cerca de quatro meses, o nosso Pai morria no hospital com um cancro no pulmão. Foi em Agosto, foi o primeiro mês de trabalho na Sacor, uma refinaria de petróleos que tu tanto desejavas não trabalhar, e foi o mês em que o nosso Pai morreu. Às vezes parece que é a mão de Deus que nos guia. A – Era bom que assim fosse, mas em certas alturas da nossa vida parece que Ele ou está a dormir ou se esqueceu de nós. É verdade que tive uma vida familiar feliz, uma vida profissional repleta de sucessos, mas tudo isso resultado de uma maneira responsável de encarar a vida, suportando os momentos difíceis, regozijando-me com os momentos alegres, sobretudo assumindo sempre o estar presente com bastante realismo. J – Pois é verdade que a vida é feita desses momentos, mas a vida não é feita daquilo que queremos, parece haver uma mão invisível que nos guia. Quantas lágrimas temos agora vertido, e eu receio que me faças alguma pergunta que eu não saiba responder. A – Está descansado, meu querido irmão, minha consciência presente. Eu não tenho que pensar se merecia uma velhice melhor, se é que chego a saber o que é “velhice”. Não atribuo o meu padecimento actual a nenhuma entidade divina, mas sim ao destino, ao produto que somos da natureza e como tal nascemos para morrer, pelo que há que encarar a nossa sorte com resignação. Mas vamos recordar coisas mais alegres. J – Estávamos a recordar o nosso regresso a Portugal. Chegámos em Abril e em Agosto estávamos empregados, em Dezembro casavas, Deus assim o quis. A – Qual Deus qual carapuça, também não digo que tudo foi fruto do acaso, ou do que quer que seja, mas o emprego, na melhor Companhia, na altura, foi devido ao empenhamento do meu pai e do meu padrinho, e o casamento foi decisão minha e da minha mulher. É a vida.

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J – Agora só precisamos que Deus nos ajude. A – Que assim seja, mas Ele deve estar preocupado com outras coisas. O casamento foi no dia dos meus anos, a data foi por decisão mútua, mas foi bom para mim pois assim nunca a esqueço. J – Lembro-me que foste passar a lua de mel ao Porto, que não tiveste boda, o teu pai e a avó da tua mulher tinham morrido há muito pouco tempo. A – E nem por isso deixámos de ser felizes; é verdade que, como todos os casais, tivemos momentos difíceis, mas isso faz parte da vida, tanto mais que somos dois temperamentos e dois carácteres completamente diferentes, eu, por natureza, tento resolver os problemas pelo lado da razão e ela pelo lado da emoção. Eu tenho tendência a esquecer o que de mau me acontece, enquanto ela, apesar de ser uma pessoa muito mais extrovertida do que eu, dificilmente esquece aquilo que de mau lhe acontece. J – Tu sempre foste uma pessoa muito calada, muitas vezes foste mal compreendido, e sem razão, mas a verdade é para se dizer, se bem que cada um é mau julgador em causa própria, e eu faço parte de ti. A – É verdade, José, cada um é como é, nem sempre os nossos olhos vêem o mundo tal e qual ele é, quanto mais os olhos de duas pessoas tão diferentes, mas tu bem sabes que eu sempre quis ser feliz fazendo os que me são mais queridos felizes, mas muitas vezes isso era e é mal compreendido. J – Voltemos ao teu casamento e ao nascimento do primeiro filho, por sinal uma menina, passavam precisamente nove meses do teu casamento e precisamente um ano depois, veio, agora, sim, um rapaz. A – Entretanto, fomos para o Porto, melhor, fomos viver para Matosinhos, pois, como estava determinado aquando da minha admissão na Sacor, o meu destino era esse, e só passados dois anos é que fomos morar para o Porto. Passavam dois anos após o nascimento do rapaz, quando veio uma

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menina. A nossa estadia no Norte foi até 1973. colaborei no arranque da refinaria de Matosinhos da Sacor; vivemos dias muito felizes ajudando os nossos filhos a serem gente, e com ou sem a graça de Deus, temos connosco três almas de eleição, cada um diferente do outros, mas é assim, nem nós mesmos somos sempre iguais a nós próprios.

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A TEOLOGIA DA HOMINIZAÇÃO DE KARL RAHNER

Xavier Zubiri, filósofo e teólogo, para escrever “Estrutura dinâmica de la realidad” e “La génesis humana” prescindiu metodicamente da teologia. Por seu turno, Karl Rahner, teólogo e filósofo, propôs-se elaborar uma concepção da antropogénese de acordo com o que a ciência diz hoje e com o que o texto do “Génesis” e o magistério da Igreja afirmam quanto à criação e à realidade do homem. No cumprimento das suas tarefas, o teólogo e o cientista católicos têm, sem dúvida, a autonomia pessoal e a consequente independência intelectual que os seus temas e os seus métodos de trabalho exigem; têm, pois, os direitos inerentes ao exercício correcto da sua profissão. Mas têm também graves deveres. O do teólogo: apurar o rigor dos seus raciocínios para discutir ou matizar nalgum ponto concreto a doutrina do magistério eclesiástico e compreender sem reservas de ofício o valor das afirmações da ciência, quando realmente o possuam. O do cientista: não esquecer que, por mais racionais que pareçam ser, as suas certezas não correspondem à dimensão última da realidade a que directamente se referem, quer dizer, PARA A INTELIGÊNCIA HUMANA O CERTO, O RACIONALMENTE CERTO, SERÁ SEMPRE PENÚLTIMO, E O ÚLTIMO, O QUE SE REFERE AO MAIS PROFUNDO DA REALIDADE DAS COISAS, SERÁ SEMPRE INCERTO, AINDA QUE O QUE SE DIGA COM ESSA PRETENSÃO POSSA SER RAZOÁVEL E CRÍVEL. Cumpridas responsavelmente estas duas ordens de deveres intelectuais e éticos, poderá existir um conflito insuperável entre as conclusões do teólogo e as teses do cientista? Rahner responde: no domínio dos princípios, não, porque no conhecimento perfeito do real não há nem pode haver duas verdades contrapostas, e porque, na referência a uma verdade só têm que coincidir a revelação, se for bem

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entendida, e o saber racional, se for procurado correctamente; no entanto, no domínio dos factos, o teólogo e o cientista, inclusive com boa vontade, podem nem sempre coincidir. Foi este por exemplo o caso da polémica sobre o evolucionismo biológico de Darwin. Tanto no seio da Igreja Católica como no das Igrejas protestantes produziram-se vivas rejeições e uma polémica azeda contra ele. No entanto, com o decorrer dos tempos foram aumentando em número e em força os argumentos de facto para demonstrar a razoabilidade científica e filosófica do evolucionismo, e a atitude dos teólogos tornou-se mais razoável. Levanta-se uma pergunta: Desde que se admita o mais essencial da antropologia cristã – que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, que para o homem há depois da morte uma vida perdurável, poder-se-á ir um pouco mais além. O homem ser corpóreo-material, está em conexão casual com o universo: o homem foi feito da terra, assim ensina a Bíblia. A própria doutrina da fé impõe a necessidade de uma antropologia baseada no conhecimento científico da natureza e conciliável com a revelação. O cristão e o teólogo de hoje devem reflectir mais intensamente sobre essa “conaturalidade” da fé, pois ainda não chegaram à compreensão do alcance metafísico e teológico que encerra a afirmação de que “o homem foi formado da terra”. A alma humana não é um ente independente em si, que pode existir ou ser concebido como desvinculado da matéria, é um nome que designa um momento da diferenciação interna de um único ente. Do mesmo modo, uma verdadeira antropologia não pode ser pura “somatologia”. Donde sabe o autor do “Génesis” o que narra? A teologia católica do século XX afirmou que o que na realidade exprime a narração do “Génesis”, para lá da letra, é uma história que aconteceu em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, ficando assim aberta a possibilidade de interpretar as narrações Bíblicas como “etiologia histórica”. Espírito e matéria na realidade do homem? Se se admite

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que na realidade do homem há matéria (corpo) e algo que não é matéria (espírito) este terá um significado distinto quando se refere a Deus. A “espiritualidade” de Deus é qualitativamente distinta da “espiritualidade” de qualquer ente criado. Sendo distinta da matéria, esta supõe a materialidade, mas não a cria; aquela, ao contrário, é a causa primeira do espírito e da matéria do mundo. O homem é, por um lado, uno, inderivável e original e por outro, um momento na história do mundo proveniente do universo. Espírito e matéria são realidades distintas, mas não díspares. Desde o momento em que o espírito e matéria são objecto de um mesmo e único conhecimento, não podem ser absolutamente díspares entre si. Muitos teólogos dedicaram-se com afinco a sublinhar a diferença entre o espiritual e o material do homem. A materialidade aperfeiçoada deve ser um momento na perfeição do próprio espírito. O espírito humano procura-se e encontra-se a si mesmo SÓ através do aperfeiçoamento na matéria, e SÓ por esta via pode ser bem entendida teológica e metafisicamente a “encarnação do Verbo”. É preciso admitir a criação imediata e divina de uma alma espiritual, tanto nos mutantes animais nos quais se produziu a transformação do hominídeo não humano em hominídeo humano, como na concepção biológica de todos os homens posteriores ao aparecimento da nossa espécie na biosfera. O teólogo cristão deverá ter em conta, ao mesmo tempo, que a relação entre a alma espiritual e a matéria evolutiva é de unidade e não meramente de dualidade. A alma e o corpo não são dois entes criados que se unem funcionalmente entre si.

A criação da alma Segundo a doutrina eclesiástica oficial, cada alma espiritual particular é criada imediatamente por Deus. E dado que

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é inadmissível religiosa e filosoficamente a preexistência da alma, deve afirmar-se que a criação imediata das almas está essencialmente vinculada ao devir biológico do homem, embora – sublinha Rahner – o magistério eclesiástico se não tenha pronunciado sobre o instante preciso de tal criação no decurso do desenvolvimento do embrião, embora no caso da alma humana possa e deva dizer-se que a sua criação imediata por Deus possui um carácter ao mesmo tempo milagroso (superior à ordem natural do universo) e categorial (portanto excluindo toda a acção causal distinta da divina). Segundo Rahner, na criação da alma humana, intervém também uma causa intramundana, a auto-superação evolutiva da matéria; por conseguinte não deve haver receio em afirmar que os progenitores são a causa do homem todo, também da sua alma. Afirmar que Deus cria imediatamente a alma do homem, não é negar que os pais geram um homem, mas tornar precisa a realidade deste acontecimento, fazer ver que essa geração manifesta um tipo de causalidade na qual o ente operativo supera os seus próprios limites em virtude da causalidade divina.

A Bíblia e a ciência Rahner reitera o seu juízo: não se pode esperar a composição de um quadro no qual o testemunho bíblico e o testemunho científico acerca da vida dos primeiros homens se ajustem um ao outro. Mas tão pouco se pode falar de uma contradição irrevogável entre eles. Em todo o caso, o homem que hoje conhecemos, o homem da metafísica e do pensar lógico, o homem das três dimensões – a animal, a espiritual e a sobrenatural – existia já quando começou a viver como tal. O que agora aparece objectivado na história era então possibilidade real e tarefa incipiente. E se é difícil para nós imaginar que essas três dimensões da condição humana existiam, uni-

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tariamente reunidas, num homem recém-aparecido na biosfera, não se deve esquecer que o nosso presente nos coloca o mesmo problema. Entender responsavelmente o facto da hominização exige, com efeito, considerar o homem segundo a inabarcável amplidão e inesgotável riqueza da sua essência, da sua história e do seu destino.

Cosmos Seria aqui despropositada a pretensão de apresentar as visões do universo ao longo da história. Antes do século XX, face ao problema que coloca a origem do cosmos, só havia que decidir entre duas crenças: a que o universo foi criado do nada por acção divina ou a de que existiu sempre. No século XX, surgiu o empenho de dar uma resposta científica ao problema da origem do universo com as “Considerações Cosmológicas para a teoria geral da relatividade” de Einstein (1971) e a do astrónomo Hubble (1929) segundo a qual as galáxias se afastam umas das outras com velocidade crescente, dando origem à tese puramente teórica da expansão do universo e à hipótese cosmogénica de uma explosão originária (o big bang) como ponto de partida do processo evolutivo do universo que passou por cinco etapas consecutivas: A Quântica (magma que rebentava) A Hadrónica (descida da temperatura, produção de protões, neutrões e mesões) A Leptónica (formação de electrões e positrões) A Radiante (formação de fotões) A Galáctica (formação de galáxias, situação presente) Antes da radiação originária, o que houve? Um nada absoluto? E qual será o fim do universo? A aniquilação ou transfiguração? Sei lá, quem viver vê-lo-á.

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DE QUE É FEITO O UNIVERSO?

Todos os homens cultos respondem: de matéria e de energia. No entanto, com a descoberta da radioactividade, parte da matéria de um corpo radioactivo converte-se por si mesma em energia radiante, pelo que parte do átomo radioactivo deixa de ser matéria e transforma-se em energia. A experimentação nos aceleradores de partículas permite transformar a energia em partícula elementar, isto é, numa minúscula porção de matéria. Uma pergunta se impõe: o que é, em última instância, a matéria, em que consiste a realidade de uma partícula elementar? Uma resposta adequada é essencial para a compreensão da física e cosmologias actuais (as que Planck e Einstein iniciaram nos começos do século XX). Não havendo uma resposta satisfatória, segundo Zubiri “a realidade do cosmos é, em si mesma, dinamismo. É falso dizer que o mundo está em dinamismo. O mundo não está em dinamismo, é dinamismo, sendo este algo frontalmente constitutivo do mundo e que consiste em dar de si. Este dar de si o que já se é, é justamente o dinamismo”. Dar de si é sempre dar de si propriedades novas ou substantividades novas e a que chamarei de potencialidades; em última análise, matéria é aquela substantividade cujas notas são as chamadas qualidades sensíveis (percepção sensorial como a mesa que tenho aqui em frente ou por interposição de recursos técnicos, como o contador Geiger, tornando perceptíveis as partículas elementares e outras que a técnica ainda não conseguiu tornar evidentes. Em última análise, a realidade do cosmos é dar de si, é dinamismo, criando inclusive, propriedades novas ou substantividades novas. A ideia da matéria que serve de base ao materialismo antropológico não nos serve nos finais do século XX e

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princípios do século XXI; O Todo do universo, a unidade em inter-relacionalidade que todas as estruturas do cosmos constituem, deve ser entendido como “natura naturans”. Desde o próprio instante do big bang há que referir ao dinamismo que o Todo é as diferentes formas nas quais se realiza e com as quais se nos mostra. Darwin, em “A origem das espécies”, referia-se ao aparecimento do novo nos processos da morfogénese biológica, mas nos princípios do século XX tinham surgido no mundo científico os termos evolução e evolucionismo que se não levassem consigo um adjectivo diferenciador, referiam-se exclusivamente à origem das espécies na biosfera terrestre. Porém, mal se descobriu a expansão do universo e se iniciou a investigação das suas consequências, o conceito de evolução estendeu-se rapidamente à configuração sucessiva do cosmos a partir do big bang, sendo de início puramente biológico e só relacionado com o período mais recente da existência do nosso planeta, se tornou decididamente cosmológico e cosmogónico. Desde a formação das primeiras partículas elementares, e por meio dos átomos, das moléculas e dos seres vivos, a história natural do universo tornou-se para o mundo culto um processo evolutivo caminhando para as estruturas cósmicas cada vez mais complexas, num dinamismo ascendente desde o protão e o neutrão até às galáxias, e dentro de um dos sistemas solares da nossa galáxia, a Via Láctea, até ao aparecimento e ulterior história do homem sobre a superfície da Terra. Com a molécula, a realidade cósmica adquire estabilidade individual e específica. Com o agrupamento sistemático de certas moléculas apareceu no cosmos (só na Terra?) o modo de ser a que chamamos VIDA. E sobre a superfície terrestre desde há pouco mais de três milhões de anos, da vida surgiu a espécie humana, o ente cósmico que chamamos HOMEM. Em qualquer caso, na estrutura do processo cósmico da evolução, seja anterior ou posterior ao aparecimento da vida, combinam-se o acaso e a necessidade.

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OS VALORES. OS VALORES HUMANOS (REFLEXÕES)

Os seres humanos são cada vez mais egoístas, perdendose os valores da solidariedade e da moral, então cada um tem que se arranjar como puder. A decadência de valores e as mentalidades cada vez mais individualistas e a ameaça de futura decadência de toda a economia fazem vigorar a divisa salve-se quem puder. Do que precisamos é de uma cultura moral razoável e segura, estando cada cidadão disposto a assumir as suas responsabilidades. As estruturas tradicionais estão em colapso; uma em cada duas crianças cresce numa família onde não nasceu. É necessário criar uma nova fundamentação moral. A decadência de valores tem de ser contrariada com um novo entusiasmo por valores morais. Como se isto fosse assim tão simples. Chama-se ética à disciplina que deve fornecer a fundamentação das normas. Portanto, quem quiser restabelecer os seus valores, tem de se submeter ao esforço de uma reflexão ética. Em primeiro lugar, os valores morais têm de possuir uma validade universal. Para que isso seja possível, deve também ser possível fundamentá-los racionalmente. Para que não seja possível relativizá-los com quaisquer argumentos, os valores morais têm de possuir uma validade intemporal. O melhor seria se fosse possível demonstrar que estes valores, no que diz respeito à sua validade, são comparáveis às leis da natureza que existem e são sempre válidas, independentemente do ser humano. Assim sendo, podemos afirmar que os valores morais: deveriam ser passíveis de uma fundamentação racional; possuir uma validade universal e intemporal e serem identificáveis nas suas características principais. Na natureza, a sexualidade constitui um aspecto impor-

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tante do acasalamento e não tem como único fim a procriação, como o mundo cristão defendeu durante séculos, pelo que o baixo ventre era considerado zona de pecado, impedindo, assim, o desenvolvimento de uma cultura sexual que valorizasse o prazer. Por conseguinte, se não queremos assumir uma opinião logicamente indefensável, temos de concluir daqui que as ciências da natureza têm que desempenhar um papel crítico na fundamentação das normas, mas não podem de modo algum fornecer a própria fundamentação. Se for o ser humano que cria ele próprio os valores, deverá utilizar o provérbio: não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti. Em resumo: as tentativas de fundamentar os valores e as normas para o comportamento moral, sendo estes construídos, desejados ou inventados pelo ser humano, devem ser classificadas como deficitárias. Sobretudo, não são capazes de indicar ao indivíduo nenhuma razão plausível concludente em todas as situações possíveis para que o princípio do interesse próprio não deva ser tão considerado como as normas ou mesmo superior a elas. Se os valores existem independentemente do ser humano, partimos do princípio que os valores morais estão prédeterminados objectivamente, e que o ser humano tem de os encontrar, mas como os seres humanos não conhecem todas as verdades da natureza, também não conhecem todos os valores. Para além disso, apenas resta ainda esclarecer qual a posição que um valor ocupa na hierarquia de valores? Tenho de sabêlo, para poder decidir-me por uma boa acção ou por uma acção má. Agora, só falta, no fundo, a resposta a esta última questão: Como sei por que valor tenho de me decidir na hierarquia de valores para estar na posse de uma ética utilizável. Se os sentimentos participam na decisão, então estão abertas as portas para a arbitrariedade, porque nem todos os

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seres humanos têm os mesmos sentimentos. Alguns nem sequer são capazes de sentimentos empáticos. Portanto, a questão permanece: continua a faltar-nos um processo que possa esclarecer ao ser humano quais dos valores objectivamente existentes são superiores e quais os inferiores. Quem acredita em Deus, segue os dez mandamentos e o mandamento: ama o teu próximo como a ti mesmo. Estes comportamentos surgem espontaneamente, quando se serve a Deus e quando se encontra Deus no próximo. Jesus disse: “Em verdade vos digo: cada vez que o fizeste a um desses irmãos mais pequeninos, a mim o fizeste.” Deus não é só um Deus que julga, mas é também misericordioso. Este facto liberta o ser humano do medo de estar sempre fora da lei perante um poder absoluto. Quando a sociedade afasta Deus, ela deve fundamentar a moral, e se o não é capaz de fazer, então, a culpa é sua. O cristão tem outras concepções. Ele permanece fiel ao seu Deus e procura agir em consonância com isso, mesmo que o resto do mundo se ria dele. O amor pode ser entendido como uma espécie de “combustível psicológico”, mas também é possível entendê-lo como uma força que mantém o cosmos. Por esta razão, os cristãos dizem que Deus é o próprio amor. O cristão ajusta em certa medida a sua bússola a este amor de Deus. A famosa afirmação de Dostoievski diz: Se não existe Deus, tudo é permitido. A fundamentação religiosa da moral é ideal para sociedades nas quais a fé em Deus constitui parte evidente da sua cultura, sendo o reconhecimento de uma dimensão religiosa incompreensível para os seres que não a utilizam. O cristão coloca a sua esperança neste amor para o momento em que a morte se aproximar dele e disser “VAMOS”. Os críticos da religião cristã citam textos do Antigo Testamento que esboçam a imagem de um Deus vingativo. Sem dúvida nem tudo é sagrado na Sagrada Escritura. Tam-

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bém se cometeram crimes ao longo de dois mil anos, em nome da fé cristã. Sendo isto uma verdade, a teologia faz uma distinção entre a Igreja terrena e a Igreja Celeste. No seio da Igreja terrena foram cometidos atentados condenáveis contra os direitos humanos. A Igreja Celeste pretende ser uma comunhão entre os seres humanos e Deus. Será que isto é mesmo assim? Eu duvido, até porque não entendo muito bem o que é a Igreja Celeste.

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OS VÁRIOS ESTÁDIOS DE DEUS

Deus consegue o feito espantoso de, em simultâneo, ser adorado e ser invisível. Assim começa o livro Deepak Chopra “CONHECER DEUS” e aqui transcrevemos algumas passagens, pois para nós o conhecimento de Deus foi sendo diferente ao longo dos anos, o que nos leva a acreditar que o homem tendo necessidade de criar um Deus, este foi passando por vários estádios, como por vários estádios de desenvolvimento foi passando a mente humana. Embora muitas versões sejam contraditórias entre si, é legítimo toda a gente ter uma versão de Deus que surge como verdadeira. Em todas as religiões, Deus é descrito como infinito e sem limites, o que nos causa um enorme problema. Um Deus infinito está simultaneamente em toda a parte e em parte alguma. Transcende a natureza, pelo que tu não O podes encontrar. Tal como deixámos dito no início, Deus não deixa impressões digitais no mundo material. Deus, de qualquer que seja a religião, é somente um fragmento de Deus. Esta afirmação é verdadeira, pois um ser que não tem limites tem imagem, não desempenha papel algum, não se situa dentro ou fora do cosmos, apesar de as religiões nos oferecerem muitas imagens – pai, mãe, quem dá as leis, juiz, governante do Universo. Existem sete versões de Deus, que podem ser associadas a crenças organizadas. Cada uma é um fragmento, mas tão completa como se destina a gerar um mundo único: Estádio primeiro – Deus o protector. Estádio segundo – Deus o todo-poderoso. Estádio terceiro – Deus da paz. Estádio quarto – Deus o redentor. Estádio quinto – Deus o criador. Estádio sexto – Deus miraculoso.

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Estádio sétimo – Deus do ser puro – “Eu sou”. É absolutamente natural que cada estádio vá de encontro a uma particular necessidade dos homens. Portanto, podes afirmar que continuamos a criar Deus à nossa imagem por uma razão que ultrapassa a vaidade; queremos que Ele esteja connosco, queremos gozar da Sua intimidade. Ainda que vejas Deus como um juiz todo-poderoso que castiga ou como uma fonte benigna de paz interior, Ele não é só isso. Para um ateu, todas as formas de divindade são simplesmente uma falsa projecção. Nós atribuímos a Deus qualidades humanas, tais como a misericórdia e o amor, as quais são levadas ao altar, para então a elas orarmos. Logo, toda a imagem de Deus, incluindo as mais abstractas, é completamente oca (por abstracto quero significar o Deus do Islão ou do Judaísmo ortodoxo, os quais não é permitido serem retratados com uma face humana). Em termos ateus, a religião é a última ilusão, visto estarmos a adorar-nos a nós próprios por interposta pessoa. Voltando novamente aos estádios, veremos como a resposta de Deus se altera consoante as situações humanas: Deus protege aqueles que se consideram a si próprios em perigo. Deus é Todo-Poderoso para aqueles que querem alcançar o poder. Deus traz a paz para aqueles que descobriram o seu próprio mundo interior. Deus redime aqueles que estão conscientes de terem cometido um pecado. Deus é criador quando cogitamos de onde veio o mundo. Deus está por detrás dos milagres quando as leis da natureza são subitamente revogadas sem aviso. Deus é a própria existência – “Eu Sou” – para aqueles que sentem o êxtase e um sentimento de ser puro. Na nossa procura de um único e só único Deus, per-

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seguimos o impossível. A questão não é saber quantos deuses existem, mas a forma como as nossas necessidades podem ser completamente preenchidas. Quando alguém pergunta “Existirá realmente um Deus?” A resposta mais apropriada é “Quem pergunta?” O cérebro é um dos instrumentos da mente, e um instrumento bem convincente. Na verdade, tudo o que conhecemos acerca do cérebro é que ele gera as nossas percepções, os nossos pensamentos e a nossa actividade motora. No plano material, o cérebro é a única forma que dispomos para registar a realidade, e o espírito deve ser filtrado através da biologia. Ao seleccionarmos uma divindade baseamo-nos na nossa interpretação da realidade, interpretação essa que está alicerçada na biologia. Os antigos védicos diziam bastante cruelmente “O mundo é o que formos”. Fazendo coincidir cada um dos estádios com a sua resposta, temos: Resposta do combate ou fuga. Resposta reactiva. Resposta do sereno entendimento. Resposta intuitiva. Resposta criativa. Resposta visionária. Resposta sagrada. Ao olharmos estas respostas temos um esboço preciso dos estádios do crescimento humano. O mistério mais profundo centra-se na nossa capacidade de nos elevarmos de um instinto animal à santidade. Será isto possível a todos, ou este potencial existe unicamente para a mais ínfima parte da humanidade? Só o saberemos ao examinarmos o significado de cada um dos estádios e a forma como cada um sobe a escada que conduzirá ao crescimento interior. Como atrás se disse, se aceitarmos que o mundo é o que formos, é lógico aceitar que Deus é o que formos.

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O PRIMEIRO ESTÁDIO DE DEUS

Há já muitos anos que os neurologistas classificaram o cérebro em novo e antigo. O antigo cérebro é o reflexo de um Deus que parece não possuir muito do que podemos chamar às mais altas funções. É primordial e largamente implacável. Conhece os seus inimigos; as suas origens não estão na escola do perdão e do esquecimento. Se descrevermos os seus atributos, que muitos fazem recuar até ao Antigo Testamento, estamos na presença do Deus do primeiro estádio. O homem primitivo sentiu inarráveis ameaças do meio natural. O cérebro antigo é teimoso, tal como o antigo Deus. A resposta favorita do cérebro antigo é sair da sua própria defesa, razão pela qual a resposta de combate ou fuga é a sua arma mais importante, enquanto que a lógica do cérebro novo se baseia na reflexão, na observação e na capacidade de ver para além da mera sobrevivência. No livro do Génesis, o primeiro homem e a primeira mulher foram os últimos maus filhos. O pecado que cometeram foi desobedecer ao mandamento de Deus, não foi ter comido da árvore do conhecimento. Deus é o único pai que nunca foi filho, e é isto que o torna pouco simpático, pela sua cólera contra Adão e Eva e ser irracional na sua dureza. Quando se pergunta “Quem sou eu?”, os primeiros autores das Escrituras sabiam que eram seres mortais sujeitos à fome e à doença. Estas condições tinham uma razão de ser: o relacionamento familiar com Deus baseava-se no pecado, na desobediência e na ignorância. Porque teria Deus querido impor tal desenvolvimento natural aos seus filhos – porque não quis que eles adquirissem o conhecimento? Ele actuou como o pior dos pais tiranos, usando o medo e o terror para manter a Sua prole num estado infantil. No estádio primeiro, bem e mal surgem com nitidez. O

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bem provém de nos sentirmos em segurança: o mal tem a sua origem na presença do perigo. O velho cérebro tem uma primordial necessidade de segurança, razão pela qual muitas mulheres vítimas de abusos defendem os maridos e voltam para eles. Bem e mal confundem-se sem remédio. O Deus do primeiro estádio é bastante ambíguo; o limite é fixado pelas circunstâncias físicas. A autoridade divina pode ser bastante cruel mesmo para o povo eleito, mas os que se encontram fora da lei (significa todos os que professem uma religião diferente) merecem ser castigados. Antigo Testamento é um mundo de heróis como Sansão e David; as suas vitórias são a prova de que Deus está com eles. Qual a razão por que Deus teve de fazer um mundo tão assustador? Teria sido somente uma tentação de nos tiranizar? A resposta não está em Deus, mas sim na interpretação que fazemos Dele. Para sair do estádio primeiro, tens de chegar a uma nova interpretação de todas as questões até aqui levantadas – quem é Deus? Que espécie de mundo Ele criou? Quem sou eu? Como me poderei adaptar? No estádio segundo o problema básico da sobrevivência já foi ultrapassado.

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O SEGUNDO ESTÁDIO DE DEUS

Se o primeiro estádio trata da sobrevivência, o segundo estádio refere-se ao poder. A espécie de Deus implícita no desejo do poder é perigosa, mas é mais civilizada que o Deus do primeiro estádio. Descrevendo este novo Deus, podemos dizer que Ele é: Soberano. Omnipotente. Justo. Responde às orações. Imparcial. Racional. Organizado segundo regras. Comparado com o primeiro estádio, esta versão é muito mais social. A máxima dominante da resposta reactiva é “Mais para mim”. Levada ao extremo conduz à corrupção. Mas em termos biológicos, o impulso para obter mais é essencial. Não conseguimos descortinar quaisquer deuses altruístas no mundo mitológico. O Primeiro Mandamento dado a Moisés rezava: “Não terás outro Deus além de mim”. O Deus judaico é um vencedor surpreendente que emerge de uma pequena e dominada nação, em que dez das suas doze tribos foram varridas da face da terra por adversários poderosos, ainda que os hebreus subjugados fossem capazes de ver para além da situação em que se encontravam. Eles idealizavam um Deus estável e inabalável que seria intocável por qualquer alteração do poder terreno – o primeiro Deus poderoso a sobreviver aos adversários. No Génesis, Deus, depois de ter criado ao sexto dia o primeiro homem e a primeira mulher, disse: Crescei multiplicaivos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movam na terra. O tema do segundo estádio pode ser resumido a “vencer

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é um passo para a santidade”. Um Deus guerreiro estava ao lado de David quando este, contra todas as probabilidades, combatia os filisteus – de facto no Antigo Testamento as vitórias para serem alcançadas importam milagres ou a bênção de Deus. Por outro lado, Jesus opunha-se ferreamente à guerra e, de uma forma geral, ao trabalho. Jesus tem uma visão completamente diferente sobre o dinheiro do que todos ao Seu redor. Ele queria que os lobos humanos convivessem com as ovelhas. Pelo temor e obediência, aceitam as desgraças normais como sejam uma doença, a bancarrota, a perda de um ente querido, e interpretamo-las como enviadas por Deus. Se nos voltarmos para o Antigo Testamento, não existe dúvida de que o próprio Deus é manipulador. Após ter destruído o mundo através de um dilúvio, o Seu pacto com Noé proibiu-O de utilizar a força totalitária. Daí para a frente age com mais subtileza – premeia os que actuam conforme a lei, abstém-se de se mostrar irado, envia uma corrente sem fim de profetas destinados a atacarem o pecado, mediante pregações que estimulam a culpa. Neste estádio, o desafio da vida é alcançar o máximo. Mas ter cada vez mais não traz a felicidade a ninguém, desde que o que se conseguiu tenha sido à custa de outrem. A maior força é a realização, e o maior obstáculo é a culpa, a vitimização. Apesar das suas recompensas externas, o segundo estádio está associado ao nascimento da culpa, traz consigo o conforto de leis claramente definidas, mas armadilha o caminho ao atribuir um valor demasiado a regras e fronteiras, em detrimento do crescimento interior. Baseia-se igualmente no poder, e este é notoriamente egoísta. O Deus do segundo estádio é cioso do poder que tem sobre nós, porque isso lhe agrada. É viciado em controlar. E como qualquer paixão humana implica que Deus nunca se dê por satisfeito, não importando o controlo que exerce.

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O TERCEIRO ESTÁDIO DE DEUS

O terceiro estádio representa o Deus da paz cuja resposta é o sereno entendimento, e que pode assim ser descrito: Independente. Manso. Consolador. Não exigente. Conciliador. Silencioso. Meditativo. Terceiro estádio transcende o Deus obstinado e exigente até aqui dominante, tal como o novo cérebro transcende o antigo. A mente, na sua essência, volta-se para o interior afim de ela própria conhecer. Em todas as tradições religiosas esta é a base da contemplação e da meditação. Deus do terceiro estádio é um Deus de paz, pois indicanos a maneira de sair da luta, deixou de ser perigoso por ter criado um mundo de solidão interior e de reflexão. Neste estádio, a nova faceta é a centralidade. Se sentires a calma no seu íntimo, pelo menos para ti pessoalmente, a questão da violência foi resolvida. Antigo Testamento afirma claramente que o caminho para a paz é através da confiança em Deus como um poder exterior. Ele é sempre o centro das atenções. Não há dúvida de que as pessoas oferecem resistência à ideia que toda a noção de Deus seja um fenómeno íntimo. A grande maioria dos crentes do mundo está firmemente comprometida com os estádios do primeiro e segundo, acreditando num Deus “lá em cima”, ou que, sem dúvida, existe fora das pessoas. O problema torna-se mais complicado pelo facto de ao descermos ao nosso íntimo não encontrarmos qualquer re-

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velação: é simplesmente um começo. A mente tranquila não nos mostra repentinos lampejos do conhecimento de Deus. Deus não tem uma presença emocional ou intelectual. A nuvem do desconhecido é só o que nos resta. A única solução é a perseverança. O valor do terceiro estádio reside mais na promessa que na satisfação, dado ser uma estrada deserta. O bem é medido pela capacidade de se estar centrado sobre si próprio, o que proporciona calma e claridade. O mal é medido pela perturbação provocada a essa claridade; traz consigo confusão, caos e incapacidade para perceber a verdade. O facto de estares mais vocacionado para uma vida interior não te torna obrigatoriamente religioso, mas a religião de quem se sente virado para dentro de si é o terceiro estádio.

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O QUARTO ESTÁDIO DE DEUS

O cérebro tanto sabe estar activo como sabe estar em repouso. Qual a razão por que não é esse o seu objectivo? Para onde poderá ir a mente uma vez ter encontrado a paz no seu interior? Os mais altos estádios da espiritualidade parecem misteriosos quando apresentados desta forma, pois não existe parte alguma onde ir para além do silêncio. Temos de aprender até onde pode ir o silêncio, o que é a sabedoria. No quarto estádio assiste-se ao nascimento de um Deus sábio. Desta forma a solidão do mundo interior começa a não ser tão dura. Os atributos de Deus o Redentor são todos positivos: Compreende. Tolera. Perdoa. Não julga. Inclui. Aceita. Neste estádio Deus tem preconceitos sobre a mulher. Intuição e inconsciência têm sido vistos como atributos femininos por oposição aos masculinos poder e razão. A mesma separação é operada do ponto de vista biológico quando se fala no domínio do lado direito do cérebro em relação ao esquerdo. O facto do lado direito do cérebro coordenar a música, a arte, a imaginação, a percepção espacial e talvez a intuição não significa que Deus habite, embora a sugestão seja forte. Alguns antropologistas têm especulado que, exactamente como o lado direito do cérebro tem capacidade de ultrapassar o esquerdo e receber ensinamentos não verbais e não racionais, também os antigos humanos podiam ultrapassar as exigências da racionalidade e apercebem-se da existência de deuses, anjos, etc. e outros seres cuja existência material é muito questionada pelo lado esquerdo do cérebro.

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Penso que os dois hemisférios cerebrais são ambos a fonte das atenções, pois “dominante” não significa dominar. Todos nós podemos intuir e raciocinar ao mesmo tempo. Todos os médicos já assistiram doentes que sabem antecipadamente se sofrem ou não de cancro, ou que uma intervenção cirúrgica correu bem. Tu nunca confiarás na tua intuição a menos que te identifiques com ela. É aqui que surge a autoestima. Quem alcançou o quarto estádio, os encantos da guerra, da competição, da bolsa de valores, da fama e da riqueza, desapareceram. Neste estádio, o mundo interior demonstra que a calma e tranquilidade se transformam em algo de muito mais útil. Começa-se a compreender como opera a realidade, e a natureza humana começa a revelar os seus segredos. Começa-se a averiguar a razão por que as coisas acontecem da forma que acontecem. A auto-aceitação torna-se caminho para Deus. No caso de Sócrates até a própria sentença que o condenou à morte o deixou insensível. Ninguém conseguia entender porque não receava a morte e então ele explicou-lhes que a morte era acontecimento inevitável. Era como o homem que subiu calmamente cada degrau até à beira de um precipício, sabendo perfeitamente para onde se dirigia. Agora que tinha chegado ao ponto de queda, por que razão o último passo causaria medo? O que quer que seja que esteja envolvido na autoaceitação tem de ser encontrado, ou para dizer isto de outra maneira mais simples, todo o processo de seres verdadeiro contigo mesmo traz como sua máxima recompensa um nível superior de consciência.

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O QUINTO ESTÁDIO DE DEUS

Surge quando a intuição à nossa volta se torna tão poderosa, que explode. Os acontecimentos deixam de acontecer “lá fora”, antes são conduzidos pelas próprias intenções de cada um. O estádio quinto une um indivíduo a Deus numa parceria de co-criação. Quando te sentires preparado para a aliança, o Deus que encontrarás terá os seguintes atributos: Potencial criativo ilimitado. Controlo sobre o tempo e o espaço. Abundante. Aberto. Generoso. Disposto a deixar-se conhecer. Inspirado. As pessoas no quinto estádio são normalmente introspectivas e discretas, mas todas sabem quanto importantes são as suas intenções. As coisas acontecem porque elas assim o querem, não importando que os resultados sejam bons ou maus, independentemente de proporcionarem ou não qualquer benefício óbvio. A pesquisa sobre o cérebro faz pouca luz sobre qual o mecanismo que aqui se encontra envolvido. É possível supor que o córtex cerebral origine em primeiro lugar o sereno conhecimento, quando as pessoas se encontram num processo de criatividade. Se confias inteiramente no processo interior, então és, com um mínimo de esforço, um co-criador da realidade. Se tiveres um lampejo de génio, ele permanecerá dentro da tua cabeça até se concretizar. Logo, a questão mais importante é como se materializa. Existem vias eficientes e outras não. A forma mais eficiente é-nos apresentada pela própria mente. Todos os acontecimentos ocorrem primeiro no campo

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da mente e só depois exibem as suas manifestações exteriores. Nesta medida, a maior parte da vida espiritual são pensamentos plenos de desejos. Este estágio não é um céu mágico, tem contrariedades que são simplesmente temporárias. O ego esqueceu-se que está envolvido num processo de aprendizagem. Ser um co-criador implica passar por uma fase de aprendizagem. A sociedade em que vivemos não atribui uma credibilidade ao que temos vindo a expor. O teu sucesso depende do teu estado de consciencialização. Os gurus e os mestres não abundam. O quinto estádio, na realidade, não é mensurável pelo que podes concretizar. Quem alcança a intimidade próxima de Deus pode optar por realizar muito pouco. Mas não importando o que foi alcançado, existe sempre a constante sensação de se ser abençoado, pelo que se torna no objecto de todo o desejo, não a sua manifestação exterior.

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O SEXTO ESTÁDIO DE DEUS

Deus o Criador permite o livre acesso à totalidade do cosmos. Neste estádio os milagres são agora aceitáveis. O Deus deste estágio tem os seguintes atributos: Transformador. Místico. Iluminado. Para além de todas as causas. Existente. Cura. Mágico. Alquimista. As palavras podem simplesmente veicular uma sugestão do Ser de que estamos a falar, um Deus dos milagres, profundamente místico. O mais místico dos evangelhos é o de João. Consideremos a sua descrição da criação. No princípio já existia o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. A inteligência divina estava contida neste verbo e quando chegou o tempo do universo nascer, o próprio verbo transformou-se em energia e matéria. Quando em 1917, a Virgem Maria apareceu perto de Fátima, uma multidão de cerca de setenta mil pessoas juntou-se para observar a aparição que tinha sido prometida a três crianças da região. Os que estavam mais próximos das crianças relataram que o sol girou no céu e mergulhou na terra numa radiação de arco íris, mas os que se encontravam mais distantes só viram uma luminosidade intensa, e a uma distância ainda maior nada foi observado. Quando a maravilha acaba, o observador abandona a esfera de influência daquele que fez o milagre. O campo de influência deixa de estar activo, pelo que toda a gente recupera o seu estado normal de consciência. O mundo milagroso

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desaparece, dando lugar a um sentimento vago sobre o que na realidade aconteceu. Ao nível da vida comum, os acontecimentos permanecem desconcertantes, uma vez que está disseminado o cepticismo sobre as sagradas aparições, os cirurgiões psíquicos ou os curandeiros da floresta. Quem sou eu? Já nos acompanha há muito. Começamos com o corpo físico, no primeiro estádio, para planos menos físicos até chegarmos onde tudo é consciência. Jesus falou por parábolas, mas pode ser tomado à letra, quando diz para os discípulos “Vós sois a luz do mundo”. Da mesma forma qualquer milagre pode estar ao nosso alcance, sendo para isso necessário que comecemos a alterar a nossa concepção sobre a forma de operar das nossas mentes. A santidade é o que torna o milagre miraculoso; é necessário algo mais do que simples desafios das leis da natureza. Os ilusionistas também o fazem quando de olhos vendados lançam facas ou quando serram uma mulher ao meio. Desde que não conheças o segredo a ilusão é um milagre. A maravilha de realizar milagres pode ser causa de bastante felicidade; ter Deus dentro de si deve ser a maior das alegrias. Ainda que não seja. A coisa mais ínfima importa uma distância a percorrer. Surpreendentemente, nessa fracção de distância um mundo foi criado. É bonito se não for pura filosofia.

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O SÉTIMO ESTÁDIO DE DEUS

Existe um Deus que só pode ser sentido indo para além da experiência. O Deus do sétimo estádio é holístico – Ele está presente em tudo. Para O conhecer, a tua mente tem de estar preparada. O Deus deste estádio é tão inatingível que pode ser definido pela ausência de atributos, no entanto consideramo-Lo como: Não nascido. Não morto. Imutável. Inamovível. Não se manifesta. Imensurável. Invisível. Intangível. Infinito. A única qualidade que podemos atribuir a este Deus é o ser puro. Não importa quanto o vazio é grande mas dele nasce o universo. Para que o sétimo estádio seja real, tem de existir uma resposta equivalente a nível cerebral. Os investigadores do cérebro conseguiram captar ataques de epilepsia nos seus aparelhos, outro caso em que os pacientes relatam sensações não terrenas e perda de identidade. Tudo quanto nos rodeia é produto daquilo que nós somos. No sétimo estádio tu já não projectas Deus; projectas sim tudo, ou seja, é o mesmo que estares no filme, fora do filme ou ser o próprio filme. Já não criamos Deus à nossa imagem. Quem alcança este estágio está tão descomprometido que se lhe perguntares “quem és tu?” a única resposta que obterás é “Eu sou”. Esta é a verdadeira resposta que Jeová deu

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a Moisés no livro de Êxodos: Eu sou aquele que sou. Se conseguires fazer com que a tua mente céptica acredite neste estádio (o que não é fácil), a questão que então se coloca é: “e depois?”. O PROCESSO ASSEMELHA-SE À MORTE. O sétimo estádio conduz-te à origem; esta origem és tu mesmo “Eu sou” renunciando à dor e ao prazer. O fim da ilusão é o fim da experiência. O que receberás em troca? Só a nua e crua realidade. O nosso tempo foi passado a projectar visões da realidade, incluindo versões de Deus, que são inadequadas. Na sua origem o cosmos é simultaneamente real e irreal. A única forma que temos de saber alguma coisa é através dos disparos dos neurónios no meu cérebro. Então, o observador e aquilo que ele procura observar fundem-se, que é a forma como termina a perseguição, a deusa vida permanece mais fresca e preenche as necessidades de a cada momento se renovar a si própria. Muitas religiões, sendo o cristianismo o principal exemplo, declaram que Deus se encontra sentado no céu, unicamente sendo acessível através da fé, da oração, após a morte ou pela intervenção dos santos, ainda que este dualismo caia por terra ao não considerarmos existir distinção entre corpo, mente e espírito. Dualidade significa separação, e num estado de separação, muitas ilusões ocorrem. O que quer que seja que eu possa imaginar é o produto da experiência da minha vida adquirida até ao presente, e essa é o mais pequeno fragmento daquilo que podemos saber. Serve para lembrar que o mundo material é somente um produto do meu conhecimento, tal como o céu. Portanto, tenho todo o direito de tentar conhecer a mente de Deus. Uma viagem que começa em mistério e termina em silêncio comigo mesmo.

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E AGORA VAMOS AO TRABALHO (DIÁLOGO)

António – Estava agora a olhar para ti e a notar que quanto mais velhos estamos, mais nos identificamos um com o outro. José – Pois é mesmo assim, ainda no outro dia dizias “nem nós mesmos somos iguais a nós próprios”. Quando somos novos estamos numa fase de aprendizagem, a confusão por vezes é muita, estamos receptivos a tudo o que nos rodeia, os nossos juízos de valores não estão muitas vezes devidamente consolidados, e o que hoje nos parece errado no passado era uma certeza. A vida por vezes é como um rio, que corre para o mar, na nascente a sua água é doce e na foz é salgada, e ele não deixa de se chamar rio, e até nome tem, e só perde essa propriedade quando a imensidão do mar o absorve, perdendo, então, todas as características que o identificavam, e até o próprio nome, e mais, até os peixes que o habitavam passaram a ser diferentes. A – Assim é um pouco a vida. Quando passamos uma vida inteira a conversarmos connosco mesmos, vamo-nos tornando mais iguais a nós próprios, as dúvidas que tínhamos sobre os mistérios que nos rodeiam, a maior parte delas permanece imóvel e morre connosco, nós só somos, ao longo da vida, diferentes nas pequenas coisas que a nossa sensibilidade vai apreendendo com o tempo, passamos a ser mais sábios, mas a essência do nosso ser, essa, para a maioria, é imutável. J – Se bem me lembro, começámos a trabalhar em 1966, mais precisamente em Agosto, e foi na então designada Sacor, hoje Petrogal, que estivemos alguns meses, poucos, em Lisboa, no Beco dos Apóstolos, a ler assuntos sobre petróleos, até me lembro que fizeste um resumo a que deste o nome de “Publicações V. H.”. Depois, fomos para Cabo Ruivo para a

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então refinaria, onde ainda existe um memorial no agora Parque das Nações, era a torre de uma unidade de tratamento, T. C. C., muitas vezes subimos essa torre que tinha quase cem metros de altura. Trabalhámos durante pouco mais de seis meses em turnos, talvez mais de um ano, pois quando fomos para o Porto, já existia uma menina e um rapaz, e isto foi em fins de 68 ou princípios de 69. A – Lembro-me perfeitamente dessa viagem, tínhamos um Ford a que chamávamos “ora porra” pois a frente do carro era muito bonita mas quando olhávamos para a parte traseira era muito feia. Que bons tempos, estávamos a trabalhar na primeira Empresa do País, tivemos que deixar Cascais e ir viver para Matosinhos. Naquela época um engenheiro era um senhor. Quando fomos admitidos na Sacor, corria aquela piada que um funcionário da Sacor, era Dom por parte da mãe e Dom por parte do pai, portanto tínhamos que ser bidom. Ainda vivemos em Matosinhos cerca de dois anos, tinha muito trabalho, fizemos o arranque da refinaria e da fábrica de óleos; cheguei a estar 48 horas defronte do painel de controlo; quando regressava a casa, mal podia abrir os olhos, mas tinha saúde, era feliz, não me lembro de alguma vez me ter queixado de cansaço. J – Quando estavas em Matosinhos foi quando nasceu o nosso terceiro filho, por sinal uma menina; isto era assim: Quando chegava a altura de ter a criança, a minha mulher vinha para Lisboa para casa dos pais, e combinava comigo e com o médico, o dia e a hora do nascimento. Era posta a soro, e na altura acordada a criança nascia. Eu chegava um pouco antes do nascimento, mas nunca quis assistir. Todos os nossos filhos nasceram no Hospital Particular de Lisboa, era um hospital caro, e portanto o médico dizia ao pessoal: “Esta senhora deixa as malas à porta, fica cá o fim de semana e 2.ª feira vai-se embora” e felizmente as coisas corriam bem e era assim que sucedia. A – Embora te apresentes como o outro lado de mim

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mesmo, quantas vezes assumes o papel de recordares o passado como de mim se tratasse, e naturalmente, naquelas alturas como a que acabaste de recordar, eras mais tu que lá estavas que eu. Já quase passaram quarenta anos, será que mudámos muito? No essencial acho que não! Estamos velhos, as minhas dúvidas permanecem, qual o sentido da nossa vida, é só fazermos o possível para não morrermos? Ainda continuo a interrogar-te; sei que ao fim de sessenta e cinco anos, já tudo sabemos um do outro, será que ainda fazem sentido as inquietações que hoje sinto, esperando a resposta que já conheço, e vai verificar que tudo é como eu pensava, que este tudo é o nada com que vivo ou convivo, até chegar a hora do aDeus? J – Então António, não sejas tão pessimista, pensa que o agora não existe, já é passado; o agora é o estarmos vivos, nós só temos passado e futuro e é acreditando neste, que ainda nos pode dar muitos momentos de felicidade, que nós devemos lutar! A – Tens razão, José, deixa o rio correr, ele sabe que vai morrer no mar e para lá corre, isto é como a nossa vida, um dia chegaremos ao nosso mar. Ainda te lembras das nossas conversas, quando em 1973 resolvemos ir trabalhar para Angola? A refinaria estava a funcionar, tínhamos a viver em Luanda o nosso melhor amigo, havia a oportunidade de assumir uma posição de topo na refinaria da Petrangol, onde aliás estagiei quando acabei o curso, a minha mulher estava a dar-se mal com o clima do Porto, as expectativas em relação a um futuro promissor eram muitas, a guerra em África estava num estado que não seria obstáculo ir para lá viver. África era uma oportunidade, fizemos as malas, embrulhámos a trouxa, metemos tudo no barco, tomámos o avião e lá nos encontrámos todos em Luanda. J – Ainda sinto aquele calor tórrido, quando desembarcámos em Luanda; foi uma sensação estranha aquela de estarmos tão longe das nossas famílias, a interrogação sobre o

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nosso futuro, a educação dos nossos filhos, a sensação de estarmos completamente sozinhos, entregues a nós próprios. A – É bom recordarmos tudo isso, pois a nossa grande dúvida era a incerteza quanto ao futuro, como seríamos recebidos no ambiente profissional, se a educação dos nossos filhos seria a melhor, porque em relação à terra em si, nós já lá tínhamos estado, e conhecíamos relativamente bem o ambiente social, o quão agradável era poder desfrutar da companhia dos nossos amigos, e o apoio que eles nos deram nos primeiros tempos. J – Os primeiros dias que lá passámos, dormimos na casa deles num género de camarata improvisada, pois apesar de já termos uma vivenda alugada pela Petrangol, tivemos que esperar pela chegada das nossas coisas. Se recordar é viver, é gratificante recordar os momentos difíceis mas felizes, e como o ser-se novo é uma dádiva, que a juventude quantas vezes não aproveita, e que nós soubemos aproveitar, com um espírito de aventura, mas ao mesmo tempo de missão, ponderando os prós e contras, e como ela acabou, sem que nós alguma vez tivéssemos imaginado. A – Hoje, com a idade que temos, temos muito mais passado que futuro, mas se quisermos viver não devemos só recordar o passado, por muito gratificante que tenha sido, pois isso nada acrescenta ao passado já vivido, e se nós somos agora grande parte do nosso passado, a ele devemos acrescentar um projecto de futuro, projecto esse que possivelmente não passa do curto prazo, e com certeza baseado naquilo que fomos, sendo por isso importante recordar os nossos momentos bons e os menos bons. Lembra-te, José, do arranque da refinaria do Porto, os momentos alegres e difíceis que passámos, pois o mesmo destino estava traçado na refinaria de Luanda, com a chamada 7.ª fase de expansão, e o meu trabalho foi o de coordenar as diversas fases de trabalho até ao arranque da “nova refinaria”. Com a experiência que tinha não me foi difícil, e tudo correu como estava previsto e planeado. Acabado

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este trabalho, fui nomeado sub-director da refinaria e as minhas expectativas quanto ao futuro eram grandes. Passados poucos meses, como eu tinha previsto, a Administração da Companhia dispensou os trabalhos de um italiano que exercia as funções de director, e nomeou-me a mim director, tinha eu 36 anos. J – É verdade, ser director aos 36 anos é uma dádiva, mas as nossas esperanças de um futuro de paz e harmonia durou pouco tempo. Nós tínhamos chegado a África em Janeiro de 1973 e em Abril de 1974 tinha rebentado a revolução em Portugal, e com ela veio toda a incerteza quanto ao futuro. A – Lembro-me como era agradável, ao fim do dia ou depois do jantar, irmos a uma esplanada na avenida marginal ou na restinga beber um café ou uma cerveja, encontrarmo-nos com um ou outro amigo que por ventura aparecesse, e gozarmos da brisa nocturna tão agradável, depois de um dia muito quente, aquele calor tropical muito húmido. Só estivemos em África dois anos e meio mas foi o suficiente para, agora, sentirmos a nostalgia daqueles tempos. Depois do vinte cinco de Abril, a refinaria ainda continuou a trabalhar quase que normalmente, e só em 1975 é que começaram os problemas, quando o MPLA a FNLA e a UNITA se instalaram em Luanda e se começaram a bombardear uns aos outros. J – Lembro-me de ter caído um rocket num reservatório de fuel e ter provocado um incêndio, tivemos que parar a refinaria de emergência, mas mesmo assim, mesmo debaixo de fogo, voltámos a arrancar a fábrica, e como era perigoso circular nas estradas próximas da refinaria, o pessoal era abastecido por helicóptero, pela Coplad, o equivalente na Metrópole ao Copcon. A – Da nossa vivenda, durante a noite, víamos as balas tracejantes cruzarem o céu, pois a nossa casa, se bem que estivesse localizada no melhor bairro da cidade, tinha de um lado um aquartelamento da FNLA e do outro lado um do MPLA.

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J – Lembro que uma noite, eram para aí umas nove horas, íamos a sair de casa, para nos recolhermos em casa dos nossos amigos, que entretanto tinham alugado um pequeno apartamento, mesmo no centro, havia sobre a nossa casa um tiroteio enorme, e escondido no nosso jardim, ouvimos uma voz dizendo “Oh camaradas tomem cuidado, vão agachados até ao carro, e arranquem, mas não acendam os faróis.” A – Outra vez, quando vinha da refinaria para casa, eram aí umas seis da tarde, fui mandado parar por uma patrulha do MPLA, quase tudo miúdos de 12 aos 16 anos, armados com metralhadoras, que queriam à força que eu mostrasse o cartão do partido, e eu como não tinha nenhum cartão, com a metralhadora apontada à minha cabeça, mandoume abrir o capot do carro que era um vx carocha, e como não visse nenhum motor, ficou danado e mandou-me abrir a parte de trás do carro, e sempre com a arma apontada à minha cabeça, chamou os outros camaradas para virem ver o motor que eu tinha roubado e levava no porta bagagens. O que me valeu é que apareceu um mais velho, que me mandou seguir rapidamente, antes que apanhasse um tiro, pois a rapaziada tinha-se metido nos copos e estavam todos bêbados. J – A partir daí, verificámos não haver mais condições de segurança para permanecermos em África, pelo que agarrámos nos miúdos e viemos trazê-los para a metrópole, tendo ficado em casa dos meus sogros, em Lisboa, inscritos num colégio particular, em Campo de Ourique, para acabarem o ano lectivo pois estávamos em Abril. Nós regressámos a Luanda com o intuito de despacharmos a pouca tralha que tínhamos e verificarmos como as coisas iam evoluir. A – Mas afinal as coisas foram piorando e acabei por pedir a minha demissão da Companhia; o nosso Director Geral pediu para nos reunirmos numa rotunda que dava acesso à fábrica, para avaliarmos a situação e decidirmos se devíamos ou não seguir para a fábrica. A situação era de fogo cerrado, com inúmeros cadáveres ao longo da estrada, mas mesmo

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assim ele decidiu dar-me a ordem para eu me meter no carro e seguir. Perante a situação, respondi-lhe para ir ele, e eu segui-lo-ia. Respondeu-me que eu era o director da refinaria, e que portanto deveria dar o exemplo, pelo que lhe respondi que a partir desse momento estava demissionário, não tinha que lhe obedecer, e portanto desse ele o exemplo. É evidente que todos regressaram à cidade, eu pedi uma audiência ao administrador e logo ali formalizei o meu pedido de demissão. A partir desse momento, tratei de arrumar as poucas coisas que mereciam a pena trazer, arranjei um estratagema para meter a minha mulher num avião que vinha para Lisboa via Zaire, e fiquei lá eu e a nossa cadela, um pastor alemão, por quem me fartei de chorar quando a tive de dar, antes de me vir também embora. Estávamos em Agosto de 1975, e foi assim que o nosso sonho africano, tornado um pesadelo, acordou em Lisboa para recomeçar novamente do nada.

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OS MILAGRES E A VERDADE (REFLEXÕES)

A totalidade sendo mais que o universo ou mais que todos os universos possíveis, ela ultrapassa a nossa capacidade de compreensão, sendo mais que o subjectivo e o objectivo, englobando-os. É o uno em oposição ao múltiplo. Isto passa-se não só no pensamento como na realidade, pelo que na tradição ocidental cristã se designa por Deus. Isto torna-se numa definição difícil de entender, e quanto mais longa for a vida de um ser humano, mais longa será a lista das suas questões sem resposta. Será que a tarefa de um ser humano é transformar o futuro ainda não existente no passado já não existente? E qual é a natureza do presente? Será que ele não existe? Afinal, fazemos a experiência de que qualquer agora é sempre já passado. Mesmo que pensemos o agora com uma rapidez suficiente, este já se transformou em passado morto. Será que tudo é efémero? Será que a morte tem sempre a última palavra? Haverá algo que resista à morte? A consciência da destruição de qualquer significado pela morte não destrói todo e qualquer significado já no presente? O que restará quando o sol explodir e o universo implodir? O que restará do meu significado quando eu for transformado em terra? Não é possível compreender nem decompor o núcleo da nossa vida. Porém, o nosso caminho acaba sempre no silêncio, o qual já se encontrava na profundidade da nossa existência durante a nossa vida. Para melhor podermos entender podemos recorrer à religião que deu conteúdo à nossa cultura. A religião significa uma ligação à totalidade; significa escutar, no silêncio da profundidade da nossa vida, a voz do insondável, uma voz que toca o coração, mas que, no entanto, não é possível entender muito claramente. Os resultados da ciência e da filosofia levam a que a

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realidade a que temos acesso só pode ser, necessariamente, uma parte da totalidade, pelo que o pensamento e a investigação dos seres humanos são sempre limitados pelos limites da sua razão, que viajam consigo até à sua finitude. O sagrado é o mistério do qual o nosso mundo provém em cada segundo. Não é só o início do mundo que é um modo ordinário do mistério, mas também cada momento. A ideia cristã da criação a partir do nada é um acto de liberdade divina. No entanto, um físico desenvolve a ideia: A física quântica diz que a criação não acontece apenas no início, mas pelo contrário, toda a evolução do mundo consiste em actos de criação contínua. Por esta razão, um físico quântico encara o acto da criação e destruição ininterruptos… Os electrões, por exemplo, não surgem do nada, mas sim de alguma coisa. Esta “alguma coisa” não exprime, contudo, algo material. A potencialidade, portanto, o possível, transforma-se, então, em realidade. “Não existe qualquer motivo forçoso em termos teóricos, quer científicos, quer filosóficos, para rejeitar os elementos míticos (míticos distingue-se de místicos, pois nesta perspectiva, o acesso à totalidade do ser deve compreender-se a partir da construção científico-tecnológica do mundo, enquanto a construção mítica do mundo trabalha com imagens e narrativa de milagres. O mito transmite estas experiências com o sagrado, portanto, com o mistério do mundo, numa linguagem metafórica),” pois não existe qualquer motivo forçoso quer em teóricos, quer científico, quer filosófico, para rejeitar os elementos míticos fundamentais da fé cristã, dado que a ciência e a filosofia representam apenas uma dada interpretação da realidade, transmitida historicamente, que não pode reivindicar ser a única possível. Para se entender literalmente os resultados bíblicos dos milagres, não precisa defender-se uma concepção irracional da realidade, pois tal como na ciência também aqui se aplica, como admissível e desejável, a diversidade de teorias ou de

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interpretações. A teologia tem de saber distinguir quais os milagres que são descrição de factos e aqueles que podem transmitir outro conteúdo. “A Bíblia vive de imagens e só pode preservar a sua fé quem compreender a linguagem destas imagens. O túmulo vazio também é uma imagem para uma verdade da fé… Só é possível entender a Ascensão como uma capacidade de elevação acima do medo humano, da caducidade e da destruição. Quem vê outra coisa, não ensina fé, mas superstição”. Quem acredita em Deus, não tem medo do caos. A fé torna o ser humano inatacável, porque nem a morte pode separá-lo do amor de Deus. Este é o tema principal do Evangelho de Jesus Cristo que apesar de ter muitos símbolos, os principais da religião cristã são a cruz e a ressurreição: Deus tornou-se ser humano. Jesus Cristo, como filho de Deus, morreu na cruz e, três dias depois, ressuscitou dos mortos. Estas são as afirmações fundamentais da fé cristã. A morte de Jesus na cruz é a mais infame que existiu no mundo romano. A vida neste mundo pode ser tão absurda que o filho de Deus grita: Meu Deus, porque me abandonaste? Deus não reage com vingança à crueldade do ser humano, mas com um amor que perdoa. Jesus diz: Perdoa-lhes, Senhor, porque eles não sabem o que fazem. O símbolo da ressurreição é a resposta ao absurdo da situação humana. Quem inclui o factor Deus no seu cálculo de vida, obtém um resultado positivo. A verdade existirá mesmo? Isto significa duas coisas: eu sei que ela existe e eu não sei se existe. Estas duas afirmações não podem ser válidas ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Portanto, a contradição tem de ser inerente à própria questão. O filosofo Kierkegaard insistiu em afirmar que a verdade é sempre uma verdade pessoal. Cada ser humano encontra a sua verdade absolutamente pessoal. E para que me serviria se descobrisse uma verdade objectiva, na qual, então,

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não viveria, mas que apenas exibiria para os outros? A palavra de Jesus vem ao encontro desta concepção moderna da verdade: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Graças à relação pessoal com Deus, consegue-se deixar para trás o mar das questões e ancorar num porto. Deus existe? Hoje em dia esta questão está arrumada. O lugar das questões metafísicas foi absorvido pelas questões do quotidiano. Se Deus é visto como um “Ser superior” ou uma super-coisa, é-Lhe, então, o conceito de criador, pois Ele criou todas as coisas. Se eu substituir a palavra “coisa” pela palavra “objecto”, aproximo-me mais da problemática, porque o correspondente ao objecto é o sujeito. Os objectos só existem para nós se existe um sujeito em face deles que os percepciona. Se houver um ruído ele só existe se alguém se apercebe dele. Kant fez desta questão o objecto da sua crítica da razão pura. A conclusão mais importante que Kant tira daqui é a seguinte: A realidade não se mostra ao ser humano tal como ela é em si mesma, mas apenas como lhe aparece graças ao tipo específico da sua capacidade de conhecimento. Aquilo que está na base da aparência, a coisa em si, é totalmente diferente da sua aparência. Se transformarmos Deus num objecto, portanto numa coisa, já afirmámos com isso que a Sua existência também é causada por um sujeito, sendo deste modo o sentido do conceito de Deus, invertido. Demonstra-se, assim, que a questão se Deus existe ou não atrai aquele que interroga para uma pista errada, ou como diz o teólogo Tillich: Um Deus que existe, não existe. No entanto, no passado, este modelo de um Deus criador que existe como um “super-objecto” foi bem sucedido no anúncio cristão, sendo considerado como modelo teísta, sendo o trono do Olimpo ocupado por um Deus que reina sobre todo o universo. Pode partir-se do princípio que a maioria das pessoas que se designam como ateus, na realidade, são apenas antiteístas. A questão de Deus pode ser colocada em qualquer situação. Quando o ser humano envelhece, o apelo a Deus

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torna-se mais forte. A fugacidade e a inutilidade da vida não só se tornam mais nítidas, como também se mostra que a busca da felicidade e satisfação levou a que o centro da pessoa tenha sido procurado fora dela. Isto pode comparar-se com uma viagem de comboio, onde as belas paisagens passam rapidamente, e o que fica, no fim da viagem, é o reconhecermos que ficámos vazios, ficando só a recordação. O que me resta, quando procuro o centro em mim? A experiência mais importante é que eu existo e que as coisas que existem estão sempre relacionadas comigo. Eu próprio sou a única “coisa” que posso perceber a partir do interior. Se bem que não consiga descrever por palavras, quando penso na minha existência, sei o que significa existir, posso duvidar de tudo no mundo, mas não de que existo. Também no domínio da ciência nos deparamos com limites. Se a vida existiu por acaso, esta probabilidade é comparável a ter surgido um automóvel de um monte de sucata que passa por nós varrida pelo vento. De acordo com o que podemos entender, a vida surgiu desta improbabilidade, e a nossa capacidade de conhecimento não nos permite dizer mais nada. Na filosofia deparamo-nos constantemente com limites, e a muitas perguntas a maior parte das respostas são paradoxais em si, mas não é verdade dizer que tudo é relativo e que o ser humano não tem qualquer acesso à verdade, porque a tese segundo a qual “não existe qualquer verdade”, pretende ser ela própria uma verdade, acabando, assim, na autocontradição. Se o “sim” e o “não” se excluíssem mutuamente, em última análise, poderiam significar o mesmo, e cada absurdo seria admissível. Seja como for, o ser humano encontra-se numa situação-limite, quando pensa sobre o pensamento, tornando-se uma janela para um domínio do absoluto. No entanto, não podemos esquecer este absoluto, ele é experimentado como a noite do nosso conhecimento, como a costa do insondável, na qual

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encalha o pequeno barco do nosso conhecimento. Deus, como mistério, é o elemento de ligação que une estas afirmações. Por fim, o mistério de Deus revela-se como ser que eu sou, que não compreendo, mas que receberia com gratidão.

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SERÁ POSSÍVEL UMA DEFINIÇÃO PARA DEUS? (REFLEXÕES)

Existe um caminho para definir Deus a partir de Deus? Quem quiser conhecer Deus, fracassará, porque Deus não cabe no pensamento. Mas definir Deus significa algo diferente. Se eu tiver uma jarra, designo-a de acordo com aquilo que ela transmite (cor, dureza, cheiro, etc.) e não com aquilo que ela preserva para si. Visto assim, e partindo da impressão sensorial imediata, posso fazer muitas afirmações sobre a jarra, mas não é possível dizer nada sobre as suas verdadeiras propriedades, as quais existem, independentemente do facto de eu fazer da jarra o objecto da minha observação (q. d. ela permanece para mim como objecto não reconhecível), quer dizer que a coisa em si marca um limite para além do qual se encontra insondável. Então podemos dizer que um sinónimo de Deus é o insondável (o insondável ou o mistério do mundo). O que se passa com o meu conhecimento definitivo sobre a jarra? E o que se passa com aquilo que se encontra além destes limites? Será este um domínio do ser que está separado de Deus? Isto levar-nos-ia à conclusão absoluta de que existem partes da realidade que estão fora de Deus, mas fora de Deus não existe nada, Deus é uma outra palavra para o ser, quer dizer, Deus é o ser e fora do ser não há nada. Se existisse algo que não fosse Deus, teria de ser tão absoluto como Deus, mas absoluto só pode ser um. Para resolver este problema, partindo da definição provisória de Deus como o insondável (ou o mistério do mundo) temos que continuar a perguntar – O que é a realidade como totalidade? A totalidade da realidade não pode ser sujeito nem objecto, porque é só na relação de conhecimento humano que ela se divide nestes dois pólos. A realidade tem de ser maior

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do que aquilo que aparece como sujeito e/ou objecto; não há sujeito sem objecto nem objecto sem sujeito, pelo que a realidade tem de ser compreendida como algo que os engloba e todas as coisas, tudo aquilo que existe no mundo são representações do “englobante”, sem que este possa ser abarcado nelas. O teísmo sublinha a distinção entre Deus e o mundo. Deus está acima do mundo, preservando-o a partir do exterior. Ele é o criador do mundo, sem entrar nele. A Sua relação com o mundo é semelhante à do artista com a obra de arte. No entanto, o modelo pananteísta parte do princípio que o artista está presente na obra de arte, ultrapassando-a, simultaneamente. A distância aparentemente insuperável entre Deus e o mundo é superada, o profano torna-as sagrado e vice-versa. Quanto maior for a capacidade da ciência para aplicar por si mesma os fenómenos do mundo, tanto mais débil se torna o modelo teísta. Também é necessário fixar a ideia da criação a um determinado modelo da criação do mundo, como acontece hoje em dia, em alguns casos, ao invocar-se a história da criação da Bíblia e a teoria científica do big bang. É mais razoável entender a história da criação como um texto litúrgico, cujo único objectivo é louvar a Deus. A teoria do big bang é apenas uma das muitas teorias das ciências da natureza e já se trabalha no sentido de que o mundo existiu desde sempre. O pananteísmo e o modelo da emanação estão relacionados, tendo ambos de resolver o problema da miséria, do sofrimento como manifestações de Deus no mundo, pelo que Deus já não é o Deus bom, sendo também origem das coisas negativas no mundo. O Deus bom também é Deus mau? Para resolver esta questão é necessária a interpretação de Deus trino, com Pai, Filho e Espírito Santo. No Antigo Testamento, por exemplo, Ele pode ser tanto o Senhor da guerra, como pode dizer a uma alma humana: eu amo-te.

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Todas as manifestações do mundo, uma hipótese de fundo talvez não reflectida sobre o sentido da vida e sobre o valor das coisas que são desejáveis. Cada ser humano vive a partir de uma determinada cosmovisão. Esta nunca é um resultado de reflexões racionais. A interpretação cristã das propriedades do absoluto parte da questão se Deus se interessa sequer pelo ser humano. A resposta cristã a esta pergunta é a Trindade de Deus. No caso do conceito de Deus, Deus só é Deus para a criação e em relação a esta. Deus não é Deus para Si próprio. No Antigo Testamento, Deus revela-se sempre como Deus daqueles aos quais se dá a conhecer. Ele nunca diz: Eu sou o meu Deus, mas sempre: Eu sou o vosso Deus. Sem nós e fora da nossa relação com Ele, Deus não seria Deus. Deus é o Pai de todo o ser (quem considera o símbolo de Pai como demasiado patriarcal, pode, evidentemente, designar Deus como Mãe) do qual recebemos as nossas vidas em todas as suas dimensões. Ele é Filho na pessoa de Jesus Cristo. Deus também é Espírito Santo, não significando isto como aquele fantasma que é invocado pelo professor: Quem sujou o quadro? Talvez o Espírito Santo? O Espírito Santo deve compreender-se como o estado do espírito humano quando ele encontra o sagrado.

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REGRESSO À METRÓPOLE (DIÁLOGOS)

José – Então, António, já viste que ainda nem levantámos voo e tu já estás a dormir. António – É o relaxe de me ver a salvo, de ter a minha família em segurança, e saber que daqui a pouco mais de seis horas, estarei também a salvo. Vou fazer um esforço, José, para me manter acordado e assim dizer adeus a Angola, que apesar de tudo, nos marcou com momentos de muito bem estar, nos deixou a nostalgia daquelas tardes e noites tropicais, um bem estar difícil de explicar, e mais difícil ainda, se virmos que lá estivemos tão pouco tempo, mas que é real. A mística da fé, talvez se possa explicar através da vivência continuada destes estados de espírito, desta letargia que nos conduz a um estado de consciência, do qual não queremos regressar à realidade. Na verdade, a realidade não é assim, e leva-nos a ver a outra face da mesma moeda, e obriga-nos a optar por uma delas. J – A realidade angolana obrigou-nos a arrumar os trapos, a guardar os tarecos, a deixar por lá a maioria dos bens materiais, a fugir para os braços dos que nos são mais queridos, que são afinal os nossos, trazendo connosco as recordações boas e más que são, afinal de contas, aquelas que nos ajudam a sermos como somos. Vou dizer-te uma coisa com a qual não estarás possivelmente de acordo, pois nestes momentos de felicidade, pretendemos recriar Deus, pena é que sejam tão curtos. A – Não estou completamente em desacordo, mas de todo esse discurso, falta saber o que é Deus, se é que Este tem definição. Se Deus é tudo o que de bom nos sucede, então, poderei vir a estar de acordo, mas se Deus também é o tudo que de mal nos sucede, então poderei perguntar, se é assim, será que Deus tem uma definição, ou será que nós queremos que ele seja? Esta passagem por África marcou-nos indis-

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cutivelmente, razão pela qual agora nos leva a recordar aquilo que há tão pouco tempo era presente e agora não passa de um passado, que pretendemos abandonar o mais rapidamente possível, mas este abandono é só e só será físico, pois a verdadeira memória faz dele o presente, e desta não mais nos livraremos, servindo como exemplo o presente caso, pois ainda em solo africano, com o Boeing a roncar fazendo-se à pista, para levantar voo, o nosso espírito passeia-se pelas ruas de Luanda, agora uma cidade triste e amargurada descartada do nosso presente futuro. Adeus África! J – Já estamos a chegar a Lisboa, adormecemos, o que nos tornou a viagem mais rápida, o tempo é uma quarta coordenada importante nas nossas vidas, que de tal forma nos influencia, que mesmo parados num determinado lugar, nos está constantemente a alterar o nosso posicionamento, pois lembremo-nos que a Terra gira e nós giramos com ela, e neste permanente posicionamento, como o sai daí, o tempo vai passando e nós vamos registando, quer estejamos presentes como ausentes, o que pelo mundo se vai passando e o que se passa mais próximo de nós. Em Portugal, depois do 25 de Abril de 74, muita coisa se passou, o País que deixámos há cerca de dois anos e meio já não era o mesmo, o tempo traz e leva as coisas, quer estejamos presentes ou ausentes, como foi o caso. O desejo de retornarmos para junto dos nossos supera tudo o resto, as saudades que tínhamos dos nossos meninos fez-nos ver o nosso País tão bonito, o que na realidade não era verdade, como fomos tomando consciência conforme o tempo ia passando. Encontrámos um Portugal sem saber o que queria.

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Este livro inacabado, quem sabe por virtude de Deus, que quis que meu pai morresse a 11 de Maio de 2003, vítima da agressividade do Linfoma não-Hodgking, perpetuará para sempre e, principalmente, para seu neto Tomás, que nunca conheceu e que tanto o desejou...



Índice

Prefácio

11

“O QUE É O HOMEM?”

13

A CONCEPÇÃO (DIÁLOGO)

16

A REALIDADE DA VIDA (REFLEXÕES)

19

A EVOLUÇÃO (DIÁLOGO)

22

DEUS, A REALIDADE E A MORTE (REFLEXÕES)

26

O CRESCIMENTO E O ENTENDIMENTO (DIÁLOGO)

40

A ESTRUTURA DINÂMICA DA REALIDADE O DINAMICISMO DE ZUBIRI

46

O “SER” (REFLEXÕES)

50

A RELIGIÃO E O “EU” (REFLEXÕES)

54

COSMOS, DINAMISMO

62

ATÉ AO CASAMENTO (DIÁLOGO)

65

A TEOLOGIA DA HOMINIZAÇÃO DE KARL RAHNER

69

A criação da alma A Bíblia e a ciência Cosmos

71 72 73

DE QUE É FEITO O UNIVERSO?

74

OS VALORES. OS VALORES HUMANOS (REFLEXÕES)

76

OS VÁRIOS ESTÁDIOS DE DEUS

80

O PRIMEIRO ESTÁDIO DE DEUS

83

O SEGUNDO ESTÁDIO DE DEUS

85

O TERCEIRO ESTÁDIO DE DEUS

87

O QUARTO ESTÁDIO DE DEUS

89

O QUINTO ESTÁDIO DE DEUS

91

O SEXTO ESTÁDIO DE DEUS

93

O SÉTIMO ESTÁDIO DE DEUS

95

E AGORA VAMOS AO TRABALHO (DIÁLOGO)

97

OS MILAGRES E A VERDADE (REFLEXÕES)

104

SERÁ POSSÍVEL UMA DEFINIÇÃO PARA DEUS? (REFLEXÕES)

110

REGRESSO À METRÓPOLE (DIÁLOGOS)

113




ISBN 972-8670-60-5 2 0 0 6


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