Universo Mágico e Simbólico de Portugal (excerto)

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Título Universo Mágico e Simbólico de Portugal Autor Eduardo Amarante Director Editorial Eduardo Amarante Coordenação Editorial Dulce Leal Abalada Revisão Isabel Nunes Grafismo, Paginação e Arte final Div'Almeida Atelier Gráfico www.divalmeida.com/atelier Técnica da capa Div'Almeida Atelier Gráfico Impressão e Acabamento Espaço Gráfico, Lda. www.espacografico.pt Distribuição Projecto Apeiron, Lda. apeiron.edicoes@gmail.com 1ª edição – Janeiro 2012 ISBN 978-989-8447-19-7 Depósito Legal nº 338450/12 ©Apeiron Edições Reservados todos os direitos de reprodução, total ou parcial, por qualquer meio, seja mecânico, electrónico ou fotográfico sem a prévia autorização do editor. Projecto Apeiron, Lda. www.projectoapeiron.blogspot.com projecto.apeiron@gmail.com Portimão – Algarve


Eduardo Amarante

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Universo Mágico e Simbólico de Portugal

ÍNDICE

Preâmbulo à obra Prefácio Introdução

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Capítulo I Das origens do pensamento mítico ao novo espírito antropológico 1. O sagrado e o mito 1.1. O mito e o símbolo 1.2. O mito e o rito 1.3. Tempo sagrado e tempo profano 1.4. A arte e o sagrado

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Capítulo II O novo espírito antropológico 1. A antropologia religiosa 2. O mito cosmogónico 3. O antes e o depois: o caos e o cosmos 4. Guerra do cosmos contra o caos 5. Como é em cima é em baixo (imago mundi) 6. O mito da Atlântida e dos Atlantes

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Capítulo III A origem secreta do nome “Lusitânia” e os Lusitanos 1. O que narram as fontes históricas da Lusitânia 2. As origens sagradas dos Lusitanos 2.1. Iberos e Celtiberos 2.2. Celtas e Druidas no contexto ibérico 3. Os Lusitanos e as suas características etnogénicas 3.1. A romanização da Lusitânia 4. O ritual cosmogónico da guerra e a ética do guerreiro 4.1. Costumes bélicos e cavaleirescos 5. A tradição heróica e o sentido simbólico da realeza 5.1. Os Reis divinos e a sagração do rei. A realeza na Ibéria 5.2. Túbal-Caim, primeiro Rei da Ibéria 6. A lenda da corça

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Capítulo IV O sentido da religião nos cultos e nas tradições 1. O Centro do Mundo. Os promontórios e santuários sagrados

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75 2. A cultura megalítica 76 3. A noção de imortalidade da Alma entre o povo lusitano 78 3.1. A incineração e a inumação 80 3.2. As oferendas fúnebres 3.3. O culto dos antepassados e a função ritual da porta fúnebre 82 86 4. A verdade dos Mistérios e da Iniciação 88 4.1. A hermenêutica como método de interpretação simbólica 91 4.1.1. O símbolo da serpente 91 4.1.2. O “bode expiatório” 92 4.1.3. O significado da espiral 93 a) A simbólica da espiral e o jogo do ganso 4.1.4. A simbologia do caduceu como elo da ligação 94 homem/universo 94 4.1.5. O ceptro como selo de autoridade 94 4.1.6. A suástica como símbolo do universo em mutação 95 4.1.7. O símbolo universal da cruz 95 4.1.8. O círculo, símbolo da perfeição e do espírito 95 4.1.9. Os mistérios dionisíacos 96 4.1.10. O carácter simbólico da Lua 98 4.1.11. A função da ferradura e do crescente lunar 99 4.1.12. Sintra, a Serra da Lua 100 4.1.13. A corça, a vaca e os cornos lunares 100 4.1.14. A “Porca de Murça” 101 4.1.15. O simbolismo do falo no ritual agrário 101 4.1.16. A simbologia da água e o rio do esquecimento 103 4.2. A abolição dos Mistérios 5. O simbolismo mágico-religioso dos bétilos e das 104 pedras oraculares 107 5.1. Dos sinais insculpidos em pedras 108 5.2. Ao simbolismo genésico dos aerólitos Capítulo V A activação dos lugares mágicos de Portugal 1. A relação mágica e mítica do deus Lug ao Lugar: o mito do Dilúvio em terras peninsulares 2. A alma humana no lug(ar) sagrado Conclusão

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Preâmbulo à obra _____

Quando nos inícios dos anos 90 veio a lume um pequeno livro Portugal e os seus Lugares Mágicos, mais tarde, em 2003, exaustivamente ampliado em 3 volumes(*), o autor Eduardo Amarante desbravava terreno ignoto, mas prenhe de manancial de conhecimento que, dando frutos, contribuiu para que o simbolismo fosse aceite como uma das muitas interpretações da historiografia portuguesa. Os leitores, pouco acostumados, no tempo, a estes temas, reagiam ora agradavelmente surpreendidos, ou com uma desconfiada estranheza. Na verdade, a forma arrojada como o autor analisava a tradição portuguesa, à luz do simbolismo universal, da filosofia e da nova antropologia, suscitava nas pessoas um vivo interesse, visto que pouco de falava dela no país e, muito em particular, da sua cultura popular. Poucos falaram, mas dos que o fizeram, destacam-se as obras magistrais de J. Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga, Abade de Baçal e António Quadros. Com o tempo, as mentalidades transformaram-se e, actualmente, o cenário é bem diferente daquele que se vivia nos anos 80 e 90, período em que o autor desenvolveu a sua actividade. O Universo Mágico e Simbólico de Portugal recupera e amplia ideias que nortearam as obras que a precederam. A magia e os símbolos, a ela associados, resultam de uma linguagem ancestral de conhecimento, que nos remete para um saber tão antigo quanto a humanidade: o despertar para o estudo da Natureza e do Homem. Dulce Leal Abalada Dir. Projecto Apeiron

(*) Lugares Mágicos e Megalitismo - A Geografia Sagrada da Terra e as Energias Cósmicas e Telúricas; Lugares Mágicos e Tradições - Magia, Cultos e Ritos associados ao Céu e à Terra e, por último, Roteiro Megalítico - Percurso Mágico em terras Portuguesas.

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Prefácio _____

O final da era de PIXIS aproxima-se como um gigantesco redemoinho que engole a superfície do mar, arrastando consigo tudo o que encontra no seu caminho. Grandes barcas construídas de lógica e materialismo e carregadas de certezas e convicções consideradas inabaláveis, acabam por ser puxadas por uma corrente que as arrasta para um túnel rotativo, esmagando-se trituradas pelas trevas. Muito do que se tem considerado “impossível” ou “pouco provável” tem caído de forma inesperada à nossa volta, nos últimos tempos. Muito mais ainda se vai modificar. Já não há certezas nem garantias e o homem pergunta-se que rumo há-de tomar. Como e com quê?! Será isto um pesadelo ou uma visão apocalíptica do que nos espera? Talvez nada disso, mas apenas um relembrar da necessidade de nos consciencializarmos da nossa pequenez e da pesagem das nossas prioridades. A civilização babilónica autodestruiu-se na tentativa ousada de construção de uma torre até ao céu. Desentenderam-se entre si e viram que não falavam a mesma língua. Podiam até usar as mesmas palavras, mas como o seu significado era outro, acabou tudo por ruir. Que chave de acesso ao entendimento ficou então ao homem para perceber as indicações que Iniciados haviam deixado de eras anteriores? No seu desespero restou-lhe a esperança de poder compreender uma linguagem única e igual para os homens, inacessível porém aos animais. A linguagem dos símbolos. Esta não necessita de vocabulário, nem gramática. Pode ser transmitida sem receio do tempo ou do espaço. A sua compreensão dependerá em primeiro lugar do querer ver e, só em segundo, do saber ver. Mas quem não souber elevar-se acima da sua condição animal não a compreenderá. Os grandes mestres da Humanidade, filósofos, arquitectos, artistas, poetas e líderes religiosos, souberam transmitir parte do seu saber pela linguagem dos símbolos. Deixaram uma longa estrada sem fronteiras, nem de espaço, nem de tempo, auxiliando gerações e reencontrarem-se após longas caminhadas cegas pelos desertos de lutas em vão. Se Portugal existisse apenas por razões de raciocínio lógico e de conveniência material, seria compreensível o seu desaparecimento, como o de tantas outras nações que hoje não passam de meros nomes de locais em mapas da antiguidade.

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Mas Portugal possui uma luz própria, revelada pela sua tradição esotérica, que não deixa dúvidas do muito que ainda se espera dos CIDADÃOS DA LUZ. Não é por acaso que a sua LUZ-CITÂNIA sobreviveu como chama escondida nos corações dos seus habitantes, quando sua nação se viu anexada pelo Império Romano, renascendo séculos depois como Portugal Templário. Também não é sem razões profundas que cavaleiros e navegadores lusos plantaram a linguagem dos símbolos por todo o planeta terrestre, oferecendo-nos pistas preciosas para nos guiar de forma limpa, pura, a fim de enfrentarmos a passagem para a época de Aquário que ansiosamente nos espera. Entender o significado dos símbolos, interpretá-los de forma correcta e oferecer acesso aos conhecimentos e às convicções assim obtidos, é tarefa prioritária de todos os que desejam manter viva a chama interior da sua ancestral identidade e transmiti-la às gerações vindouras. Rainer Daehnhardt

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Introdução _____

Se no final do milénio passado já havia sinais fortes de crescente interesse pela Tradição, Magia e Lugares Mágicos, hoje esse interesse exponenciouse. E sobre esse aspecto podemos perguntar-nos o motivo de tal aceitação. Digamos que a História roda e o “conhecimento”, que até aí era tabu, passou a ser acessível a todos sem excepção. A novidade é aliada do “conhecimento”. Paralelamente a esta situação havia uma História oficial que pouco dizia às pessoas. E isto muito por culpa do seu estatismo ao analisar os fenómenos históricos sob uma forma linear e vazia de conteúdo religioso, espiritual. Essa história baliza-se em preceitos materialistas dos séculos XIX e XX, em determinadas formas de interpretar o mundo. Os historiadores que a defendiam, enredados que estavam nessa filosofia materialista e linear, tinham muitas dificuldades em romper com estes velhos dogmas e aceitar as novas ideias, também elas válidas, que começavam a fervilhar e a ter eco entre as gentes. Com o seu impulso, a História passou a ser vista, não como um processo linear, mas curvo (em forma de espiral), à semelhança do universo, e imbuída de elementos religiosos e espirituais. Porém, alguns estudiosos da História ainda resistentes teimavam em assentar os seus postulados numa visão linear, horizontal – mimetando os seus antecessores –, que os impedia, assim, de analisar os acontecimentos históricos em profundidade, na vertical, indo ao encontro das “primeiras” causas. Continuase a estudar muito, a escrever muito e a ensinar muito, mas com uma grande carga de preconceitos. Aliás, a fenomenologia histórica não é exequível sem a componente psíquica e, diria mesmo, sem a componente espiritual. No dobrar do milénio, um novo impulso é dado pela História. Novos desafios e novas oportunidades são postos ao homem. O conhecimento é hoje acessível a todos e cada qual dispõe dele como bem quer. O verdadeiro esoterismo, que então era votado ao esquecimento, passa a ser motivo das conversas mais variadas, caindo o seu ensinamento numa perigosa banalização, deturpado e manipulado por interesses comerciais. O racionalismo exacerbado, sem rosto e sem espírito, é um travão que barra o caminho ao verdadeiro ensinamento. Não basta saber, é preciso viver, experienciar, para conhecer. É necessário utilizar a Razão, mas sempre que isso não impeça a intuição de falar, de expressar-se e, sobretudo, de viver com o coração e pôr mãos à obra. Este é o lugar mágico por excelência. O Universo Mágico como “co-habita” com o homem no mundo e é a expressão de uma reminiscência de um lugar, mágico por excelência, que se plasmou num determinado tempo e fez-se presente e, imbuído de uma

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profunda carga simbólica, aguarda retornar à consciência do homem. Esses lugares mágicos, num todo, formam o Universo e estão espalhados por todo o mundo; não são lugares físicos na verdadeira acepção do termo, uma vez que revelam, antes de mais, estados de consciência. Quando nos aproximamos, com alguma devoção, de um desses lugares, sentimos algo que provoca um tremor em nosso ser, uma espécie de energia invisível aos olhos que perpassa o nosso corpo; algo atravessa o físico e toca o nosso interior, provocando inevitavelmente uma influência positiva na consciência, um bom sentimento que acalma e nos faz receptivos. Esta “energia” ajuda-nos a abrir a nossa consciência, a despertar a nossa alma e a escutar a “voz divina” que “fala” nesse lugar. Dirigir-se frequentemente a determinados lugares que tenham uma carga sagrada, ou, pelo menos, de vez em quando, e banhar-se um pouco naquele ambiente é algo que alimenta a nossa alma. Naturalmente, uma consciência sujeita a este estado tem necessariamente de sofrer alguma alteração, uma transmutação tanto mais forte quanto o impacto sofrido pela compreensão do que lhe foi “revelado”. Algo a tocou e a despertou para um estado superior de “compreensão”, de uma experiência vivida. Estádios destes são muito similares àqueles que nos são relatados pelos grandes místicos da humanidade como, por exemplo, S. João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. A aquisição de tais experiências, vividas nesse momento de “revelação”, é o fruto de profundos estados de êxtase que, necessariamente, se deverão reflectir nas acções. Se a nossa consciência despertou para algo que é bom para todos, por ser elevado, esse conhecimento deverá ser “transmitido” aos demais, como rezam os velhos ensinamentos da sabedoria. A tomada de consciência implica o não egoísmo e, acima de tudo, implica um sentimento de unidade fraternal para com todos os outros seres. O homem torna-se cidadão do mundo e a sua casa é o próprio mundo. No entanto, esta dádiva que o homem faz de si não deverá ser feita por vulgares palavras e prédicas, mas por atitudes conformes a uma profunda serenidade, fé e humildade que perpassa em todos os actos do seu quotidiano. É esse o seu maior testemunho e é também esse o exemplo que os demais homens vão tomar para si. Essa é a força da magia luminosa que opera “milagres” em todo aquele que se aproxima reverente e humildemente desses lugares sagrados, a fim de beber da fonte da vida, de um universo mágico que despertou e rompeu os véus que toldavam e aprisionavam a compreensão que o homem detinha do Todo. Este torna-se num ser consciente de si e do seu lugar no Mundo e no Cosmos. Essa é a Magia: a da transmutação. Assim, o Universo Mágico e Simbólico de Portugal tem como intuito tornar acessível o conhecimento deste fenómeno, que é comum a vários países do mundo e fundamental na sedimentação de várias religiões e tradições que,

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gradualmente, se assimilaram ao modus vivendi das gentes sob a forma de “mitos” e “lendas”. É importante reter a ideia de que o mundo presente, mais do que o passado recente, é a casa de todos os homens e, por isso, importa saber o que se passa dentro dela. A obra permite ao leitor “entrar” em contacto com um mundo que, a cada dia que passa, parece mais distante do Homem. É bem possível que muitos de nós vejam esse mundo como mítico, lendário, até mesmo fantasioso, mas é incontestável que ele está aí, presente nos nossos actos, nas nossas tradições, nas nossas crenças religiosas, na nossa forma de ser... Por conseguinte, decidimos começar esta obra pelo princípio, isto é, analisar a estrutura do mito, após o que nos debruçaremos sobre os antepassados míticos e históricos dos então lusitanos. Por isso, a estrutura da obra assemelhar-se-á a um colar de pérolas em que o fio condutor serão os lusitanos e cada pérola será um momento desde um passado remoto até um tempo que não existe. Cada momento com as suas vivências é digno da maior atenção, para que se obtenha um colar o mais perfeito e harmonioso possível.

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CAPÍTULO I _____

DAS ORIGENS DO PENSAMENTO MÍTICO AO NOVO ESPÍRITO ANTROPOLÓGICO Até há bem pouco tempo entendia-se por “pensamento mítico” o modo de pensar – que se reflectia em práticas mágico-religiosas – das sociedades arcaicas situadas nos últimos degraus da civilização. Pensava-se, então, que o mito não passava de uma fábula sem qualquer conteúdo real. O mito seria o modo pelo qual mentes infantis e supersticiosas procuravam explicar os fenómenos naturais que presenciavam a cada passo (como seja o relâmpago, o trovão, etc.) sem poderem descortinar as suas causas e, por isso, temiamnos. Por outras palavras, o mito não seria mais do que o modo de expressão do homem primitivo que via em tudo aquilo que não compreendia fenómenos produzidos por forças sobrenaturais que ele, temeroso, venerava e cultuava, fazendo libações e sacrifícios a fim de que esses poderes deificados lhe manifestassem o seu agrado através de dádivas (chuva, fertilidade, etc.) ou, pelo menos, o não castigassem por meio de todo o tipo de calamidades. As chamadas “mitologias” exprimiriam esta maneira de pensar do homem de mentalidade primitiva, se bem que de uma forma mais elaborada. Assim, por exemplo, as mitologias grega, ou suméria, etc., não passariam de uma espécie de “contos de fadas”, de inocentes mentiras em que acreditaram piedosamente milhões de pessoas durante milhares de anos. O interesse da sua divulgação actual reduzir-se-ia à esfera meramente cultural, com comentários bem explícitos sobre o grau de superstição dessas gentes, para que não restasse a menor sombra de dúvida no espírito daquele que se iniciasse no estudo das antigas culturas. Curioso conceito de “cultura” é este que se fundamenta em pressupostos e em dogmas. Para que serve saber, perguntamos, se a cultura que nos é fornecida, em vez de estimular a reflexão é um meio de imposição de crenças tão efémeras como o nosso próprio século. A vaidade humana, que impede reconhecer que errámos, tem sido o maior obstáculo ao verdadeiro progresso da Humanidade. Começa a ser evidente o absurdo que é pensar que homens como Sócrates, Platão, Pachacutec, etc., estivessem imbuídos de mentalidade primitiva. Por outro lado, e paralelamente a isto, os avanços da Hermenêutica e da própria Antropologia forçaram a uma revisão do conceito de mito, e os aturados estudos efectuados nas últimas décadas em torno do pensamento mítico no seio das sociedades primitivas por especialistas como Mircea

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Eliade, Malinowski ou Gilbert Durand, a par da valorização do pensamento simbólico-analógico produziram, necessariamente, os seus efeitos positivos. Creio que se está a processar uma autêntica revolução de mentalidades, cujos resultados se verão num futuro não muito distante. Era necessário e inevitável que isto viesse a suceder. A nossa época perdeu as suas raízes. Sentimo-nos desenraizados e esse sentimento engendra angústia e loucura. Vive-se perigosamente num ambiente de instabilidade em que tudo foi posto em causa: os sonhos, as ideias, as crenças e os costumes. Não se pode viver assim durante muito tempo. Por isso se fala tanto em evasão, em liberdade, em crise. Pressentimos que algo vai mudar e, embora a maioria – como desde sempre todas as maiorias –, prefira não pensar e vá vivendo com o que tem e como pode “à espera de melhores dias”, há os que acreditam num “Fim do Mundo” próximo e outros, mais optimistas, numa próxima “Idade de Ouro”. Surge de novo o interesse por velhas superstições e as outrora “ciências malditas”, como a Astrologia, têm cada vez mais adeptos e já são estudadas em algumas universidades. Aparece, renascido das cinzas, o mito a impregnar o ambiente social. Na verdade, como demonstra M. Eliade, o mito nunca deixou de existir, de impregnar o homem, nem mesmo nos tempos modernos; simplesmente caiu na esfera do profano no seio de uma sociedade dessacralizada. Agora renasce, purificado pelo fogo, como um apelo atávico do Homem em busca das suas raízes. Uma época de crise é uma época de mudança, como indica a própria etimologia da palavra. Cremos que muita coisa irá mudar, mas tudo será para nosso bem, visto existir um arquétipo evolutivo, ou seja, um plano cósmico que se vislumbra melhor precisamente nas charneiras da História. Nas raízes da História está a chave que abre as portas do futuro. Por isso vamos dar ouvidos ao apelo que nos vem do mais fundo dos tempos e mergulhar, livres de tabus e preconceitos, no ambiente acolhedor do mito. 1. O sagrado e o mito O mito contém na sua raiz etimológica a própria ideia de “mistério”. Com efeito, a presença do mito é uma constante nas sociedades de corte iniciático. Para Luc Benoist1 “o desenvolvimento de uma verdade doutrinal em mito não é uma fábula, visto que o vocábulo fábula provém de uma outra raiz que significa palavra (fabula), enquanto o vocábulo mito provém de uma outra raiz que significa mudo e silencioso (mutus). Ora esta ideia de silêncio prende-se às coisas que, pela sua própria natureza, são inexprimíveis a não ser por símbolos. Mito e mistério emanam pois da mesma ideologia esotérica, cujo carácter provém da sua primordialidade e da sua necessi1

Luc Benoist, Signes, symbols et mythes, Paris, 1975.

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dade”. O mito é, por conseguinte, o relato de uma história verdadeira, sagrada, que se situa fora dos limites espacio-temporais. Daí o seu carácter subjectivo que actua nos domínios do inconsciente e que, portanto, é reversível. Na opinião de C. G. Jung o “inconsciente colectivo” precede a psique individual. Quer isto dizer que o mito é o móbil determinante do comportamento do homem. Viver um mito significa ter acesso à esfera do inconsciente que é um verdadeiro percurso iniciático. “Viver os mitos – escreve M. Eliade – implica uma experiência verdadeiramente ‘religiosa’, visto que se distingue da experiência vulgar da vida quotodiana”2. E, para o homem religioso o essencial precede sempre a existência. O mito designa uma “história verdadeira”, porque sagrada, quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no começo do tempo . “O homem é aquilo que é hoje porque uma série de acontecimentos ocorreram ab origine. Os mitos contam-lhe esses acontecimentos e, ao fazê-lo, explicam-lhe como e por que razão ele foi constituído desse modo. Para o homem religioso, a existência real, autêntica, começa no momento em que recebe a comunicação dessa história primordial e assume as suas consequências. Há sempre história divina, pois as personagens são os Seres Sobrenaturais e os Antepassados míticos.” 3 Para B. Malinowski “o mito é um elemento essencial da civilização humana; longe de ser uma vã fabulação, é, pelo contrário, uma realidade viva, à qual constantemente se recorre, não é uma teoria abstracta nem uma ostentação de imagens, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática.”4 Vemos, assim, que está definitivamente ultrapassada a ideia de que os mitos não passavam de meras fabulações, poéticas por vezes, mas desprovidas de conteúdo real. Ora, é precisamente o contrário que sucede. Interpretar à letra um mito, objectivamente, equivale a destruir a possibilidade de o entender. É verdade que hoje predomina o “racional”, porém, convém recordar que o acesso ao mito, em si eminentemente subjectivo, nunca se fará com esse instrumento. Por detrás do seu aspecto “fantasioso” o mito contém uma verdade oculta, uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. Dizia o Imperador Juliano que “aquilo que nos mitos se apresenta inverosímil é precisamente o que nos abre o caminho para a verdade. Na realidade, quanto mais paradoxal e extraordinário for o enigma, tanto mais parece avisar-nos que não devemos confiar na simples palavra, mas esforçarmo-nos em torno da verdade oculta.”5 2

Mircea Eliade, Aspectos do Mito. Ibidem. 4 B. Malinowski, Myth in Primitive Psychology, Londres, 1926. 5 Juliano Imp., Contr. Héracl. 217c. 3

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A importância dos mitos na história da humanidade, e não apenas nas sociedades arcaicas é de tal ordem que, enquanto houver história haverá mitos, independentemente de se ter ou não consciência deles. Daí que não seja exagero afirmar ser impossível compreender a História, qualquer que ela seja, sem os motores ocultos que a impulsionam, isto é, os mitos. Mircea Eliade salienta que “os mitos são a forma mais geral e eficaz de perpetuar a consciência de um outro mundo, de um além, seja ela o mundo divino ou o mundo dos Antepassados”6. E Van der Leeuw não hesita em afirmar que é suficiente “conhecer o mito para compreender a vida.”7 1.1. O mito e o símbolo Se o mito é uma Ideia Primordial, a função do símbolo é de a tornar inteligível, de lhe servir de “linguagem”. Dizia Santo Isidoro que o símbolo é um signo que dá acesso a um conhecimento, ou seja, é signo do invisível, do espiritual. E, neste contexto, Mircea Eliade escreve que “o símbolo revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra ‘manifestação’ poderia revelar.”8 Na sua etimologia – em grego sumbolon – a palavra símbolo anuncia a ideia de continente e pode ser figurada por uma barca, receptáculo do sagrado. O símbolo, na sua função mediadora, é o veículo de algo que, pelo seu carácter atemporal deve ser preservado e intuído. Para M. M. Davy “a função do símbolo é de despertar o homem e de conduzi-lo ao seu princípio original, quer dizer, ao plano do sagrado no qual tudo é ordem, medida, proporção. Assim, o símbolo permite ao homem atingir um nível inacessível à razão. Ele oferece um ensinamento duplo, o de recordar o sentido de uma realidade e de indicar uma via para chegar até ela”9. Acrescentamos que para Platão conhecer significa recordar, isto é, conhecer e compreender o verdadeiro, o belo e o bom é, sobretudo, recordar-se, ter reminiscências vivas de uma existência puramente espiritual, no outro mundo.10 O acesso à compreensão de um símbolo varia consoante o nível de consciência daquele que o contempla. O símbolo em si é invariável, mas a leitura que dele se pode extraír é tão diversa quão diversos são os observadores. É por isso que os símbolos universais são uma constante em todas as épocas e lugares geográficos, porque transmitem realidades eternas alheias aos 6

Mircea Eliade, o.c. Van der Leeuw, L’Homme Primitif et la Religion, Paris, 1940. Mircea Eliade, Tratado de História das Religiões, Lisboa, 1977. 9 M.M Davy, Initiation a la Symbolique Romane, Paris, 1977. 10 Perante aqueles que negavam a ressurreição dos mortos, Teófilo de Antioquia apelava para os indícios (tekhméria) que Deus colocara ao alcance deles nos grandes ritmos cósmicos: as estações, os dias e as noites. Escrevia: “Não há ressurreição para as sementes e para os frutos?” 7 8

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