3ª edição/2013
Arte & Nomadismo no Espaço Público 1 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Capa: Gonzalo Cuéllar Trem, epaço poético, Estação da Luz
Uma publicação do Programa Vocacional Projeto da Secretaria Municipal de Cultura em parceria com a Secretaria Municipal de Educação Ano 3 - número 3 São Paulo, Novembro de 2013 Tiragem - 3 mil Impressão Esta revista foi impressa no papel Off Set 90g nas fontes Akzidenz-Grotesk e Times New Roman Formato 25 cm x 33 cm 96 páginas Gráfica Serrano Programa Vocacional Av. São João, 473 - 6ºandar 01035-000 - São Paulo - SP Tel. 11 33970166 / 11 33970167 vocacional@prefeitura.sp.gov.br www.cultura.prefeitura.sp.gov.br formacaoartecultura.blogspot.com.br Os conteúdos e opiniões expressas nos links que levam a sites externos desta revista são de total responsabilidade de seus autores e administradores.
2 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
VOCARE
Revista do Programa Vocacional Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad
Secretaria Municipal de Cultura Secretário João Luiz Silva Ferreira - Juca Ferreira Secretário Adjunto Alfredo Manevy Chefe de Gabinete Rodrigo Savazoni
Departamento de Expansão Cultural
Protocolo Reinilda Maria Mamédio
Diretor Rodrigo Marx Matias Cardoso
Divisão de Formação
Assistência Técnica Branca Lopez Ruiz Maria Rosa Coentro Assistência Jurídica Silvia Gomes da Rocha di Blasi Divisão Administrativa Marcelo Rugério Bianchi
Diretor Amilcar Ferraz Farina Coordenador Administrativo Ilton Toshiaki Hanashiro Yogi Equipe Gilmar China Kane Bueno de Souza Leite Mercedes Cristina Rocha Sandoval Beatriz Salles Lima Isabella de Souza Rodrigues
Coordenação de Assessoria Técnica Guilherme Varella
Divisão de Formação Amilcar Ferraz Farina
Assessor Especial João Brant
Divisão de Produção Sulla Andreato
Secretário Antonio Cesar Russi Callegari
Assessores Aurélio Nascimento Airton Marangon Eduardo Sena Fabio Maleronka Ferron Karen Cunha Thais Ruiz
Divisão de Programação Rafael Nascimento da Cunha
Assessora Especial Marta de Betânia Juliano
Núcleo de Contratação de Natureza Artística Giovanna de Oliveira Gobbo
Assistente Técnico de Educação Daniela do Nascimento Rodrigues
Coordenador de Políticas Culturais Ricardo Musse Assistente Patricia de Sales Veiga Sanches Assessoria jurídica Thomas Américo de Almeida Rossi Assessoria de Comunicação Giovanna Longo
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Secretaria Municipal de Educação
Comissão Editorial Contabilidade Cláudio da Silva Martins Compras Fabio Eneas Magri
Yaskara Manzini André Monteiro Mayki Fabiani
Departamento Pessoal Luiz Peres
Projeto Gráfico Editora Mínimas Maria Lutterbach Odilon Queiroz
Informática Lorelei Gabriela Castro Lourenço
Curadoria de Imagens André Monteiro
Manutenção Cid Carlos de Souza
Revisão Suzanna Ferreira
Índice
Editorial
07
Yaskara Manzini, André Monteiro e Mayki Fabiani
Horizontes em processo
09
Juca Ferreira
A Vocação da Formação: Por uma Política Municipal de Formação e Iniciação Artística e Cultural
10
Mica Farina
Aldeias e Cidadania Cultural
11
Gil Marçal e Mica Farina
1. Reflexões – Declinações Hino à Dança Vocacional (ou de como se fazer um bicho de sete cabeças)
13
Peticia Carvalho de Moraes
O conceito presente nas obras dos vocacionados de música. Reflexões sobre os processos metodológicos e de pesquisa em música no Programa Vocacional
16
Vanderlei Lucentini (organizador), Andre Oliveira, Cintia Campolina, Cleber Spolle e Ronalde Monezzi
Travessias compartilhadas
20
Edson Calheiros
Diálogo, processo e descoberta
22
Berenice Farina
Referências do artista-orientador x(&) referências dos Vocacionados
24
Priscila Gontijo
Oriendançar - quando o corpo está presente
26
Isis Andreatta
A caminho da “intersubjetivação”: a pesquisa do Vocacional Música 2013 José Leonel Dias
28
2. Devaneios – Concretudes “Tempo da dança: quando antes for depois” projeto para uma composição coreográfica
4. Deslocamentos – Descolamentos 32
Miriam Dascal
Possíveis Relatos
36
40
42
Adriana Dham
Mapa Ensaio
44
Flávio Camargo
Helena e o cadáver
48
Ivan Delmanto
Vanderlei Lucentini
Trem, espaço poético: uma cartografia de corpos e paisagens Homo viator: aquele que se desloca no processo de criação artística
Leandro Hoehne e Herbert Henrique Jesus de Souza 56
59
O labirinto do ensaio
5. Equipe 2013
60
64
Rogério Dias (DJ Erry-g) e Milena Araújo
Sobre instauração de processos emancipatórios e outras configurações
66
Priscila Magalhães
A sensação de pertencer a um grupo e um sentido de objetivo comum Rosana Antunes
ENCARTE FRENTE: O mapeamento do Programa Vocacional na Cidade de São Paulo – edição 2013 Flavio Camargo
ENCARTE VERSO: As premissas pedagógicas: o material norteador
Adriana Amaral
Movimento
84
68
70
86 88
Murilo Gaulês
Melissa Panzutti
Processos criativos: diferentes escutas
81
Claudia Palma
Carolini Lucci
O lugar da arte é no Programa Vocacional?
78
Elenita Queiroz e Flavio Lima
Vocacional Livre Versão Beta
Claudia Polastre (introdução e organização), Aisha Lourenço, Carla Casado, Egelson Lira, Lourival Miranda e Ricardo Valverde
‘A intuição do instante’ no processo de criação em dança
76
Odino Fineo de Andrade Pizzingrilli
3. Construções – Dissecações As diferenças e as práticas criativas
Vocacional Música saindo do condomínio, caindo na vida O artista orientador em movimento
Gabriela Flores
Destrajeto poético
74
Marcus Simon
Manu Romeiro
Tipos de Perturbação
Música “Estranha”: musicalidades tradicionais do Brasil e do mundo
Amilcar Farina, Fabio Villardi, Isabelle Bernard, Ivan Delmanto, Luciano Gentile, Suzana Schmidt
92
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Amanda D贸ria
Editorial Yaskara Manzini André Monteiro Mayki Fabiani
Ao longo de cinco meses enfrentamos o desafio de pensar e dar forma a esta edição da revista Vocare. Em dois mil e um, ano de seu lançamento, o foco editorial priorizava a comemoração de uma década de vida do Programa Vocacional, contemplando a apresentação da sua proposta artístico-pedagógica: o material norteador, integrando o pensamento sobre a ação consolidada em dez anos de existência do Vocacional. Na segunda edição da revista, em dois mil e doze, optou-se por pinçar dois temas fulcrais do material norteador: Processos criativos emancipatórios e ação cultural. Nesta edição priorizamos os textos que aprofundam a reflexão da proposta com suas premissas político-artístico-pedagógicas, assim como as relações de forma e conteúdo dos textos. A partir da seleção deste material, considerando a emergência de paradoxos e contradições expostas nos textos em referência ao material norteador, propomos um percurso textual e imagético, e com um jogo de palavras antagônicas, apresentamos as seções desta edição. A primeira seção “Reflexões – Declinações” traz à tona artigos e ensaios que se debruçam sobre o material norteador por meio das linguagens artísticas que compõem o Vocacional mostrando ao leitor que não se trata de um “bicho de sete cabeças”.
“Devaneios – Concretudes”: trata, de forma ensaística e poética, das ações e percepções dos artistas orientadores conduzindo-nos a “destrajetos” e “diversos tipos de perturbação”. A terceira seção “Construções – Dissecações”: expõe incisões sobre os processos criativos de equipes e artistas orientadores ao longo de suas operações pedagógicas. Revelando uma radiografia das “diferenças e as práticas criativas” e “Deslocamentos – Descolamentos”: tratam de olhares sobre ações e percepções de certo nomadismo, seja na cidade de São Paulo, seja em campos de alteridade. Entendemos que a revista contempla apenas uma parte das reflexões e ações da equipe Vocacional. Desta maneira, links foram anexados e QR codes aparecem nas páginas para que o leitor possa “alargar seu itinerário” sobre nossas práticas político-artístico-pedagógicas para acessar registros, textos em processos, blogs e vídeos que extrapolam esta mídia promovendo outra “cartografia de corpos e paisagens”. Além disto, apresentamos um encarte contendo o mapeamento do Programa Vocacional na cidade de São Paulo, cujas coordenadas encontram-se no verso deste mapa: nosso material norteador.
Yaskara Donizeti Manzini. Coordenadora do Programa Vocacional Dança, região centro-oeste. Doutora em Artes Cênicas e Mestre em Arte, Cultura e Sociedade pela Universidade Estadual de Campinas. É coreógrafa da Escola de Samba X9 Paulistana André da Silva Monteiro. Coordenador do Programa Vocacional Artes Visuais, regiões norte e sul. Mestre em Processos e Procedimentos Artísticos pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Mayki Fabiani Olmedo. Coordenador do Programa Vocacional Música, região leste II, III e IV. Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É regente da Banda Sinfônica de Ribeirão Pires
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Apresentação
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Amanda Dória
Horizontes em processo Juca Ferreira
O desejo de instaurar um “novo tempo” para a política pública e cultural da cidade de São Paulo impulsiona a Secretaria Municipal de Cultura a fortalecer e consolidar os seus programas de formação e iniciação artística. Por meio do pensamento de articulação, compartilhamento, difusão e descentralização cultural, amplia-se a oportunidade de reflexão e produção de conhecimento nas diferentes linguagens artísticas em todas as regiões da cidade. Os programas artísticos-pedagógicos da Divisão de Formação Artística e Cultural da Secretaria Municipal de Cultura, o Vocacional, o Aldeias e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que lançam neste ano de 2013 suas publicações, apresentam números consistentes. O Programa Vocacional está presente hoje em 74 equipamentos públicos espalhados por toda a cidade, com 179 artistas contratados, atendendo mensalmente cerca de 3700 jovens e adultos. O Programa Aldeias consolida-se num processo de emancipação iniciado com o Projeto Vocacional Aldeias. Atualmente este projeto abrange 4 aldeias Guarani, com 10 artistas contratados, sendo 4 deles provenientes das comunidades indígenas atendidas. O PIÁ integra 18 equipamentos, com 72 artistas contratados, atendendo mensalmente cerca de 1700 crianças de 5 a 14 anos. Em 2013 foram investidos pela Secretaria Municipal de Cultura cerca de R$ 3 milhões nestes programas que recebem também investimentos da Secretaria Municipal de Educação numa parceria celebrada pelos seus resultados.
Para os próximos anos queremos promover a ampliação da área de Formação e Iniciação Artística e Cultural, num processo constante de valorização dos artistas, qualificação do atendimento à população e democratização do acesso aos programas. O fortalecimento dos programas de formação traz também a oportunidade de reflexão e irradiação da pedagogia artística de cada Programa que, para além de suas especificidades, baseia-se na descoberta dos processos criativos como veículos potentes de reflexão crítica, de aprendizado e de liberdade. Por meio da iniciação artística contínua e diversa, em que os processos criativos e as experiências artísticas configuram os meios e os fins, amplia-se o direito coletivo à participação, ao pertencimento e à apropriação dos bens culturais das comunidades e da cidade. Desta forma, é com imenso prazer que lançamos a 3ª edição da revista VOCARE e a 1ª edição da revista PIAPURU. Estas publicações vêm com o intenso sabor da experiência artística, com o propósito de aproximar um pouco mais o público do que é a complexidade do trabalho artístico, educativo e poético desenvolvido nos programas e reunindo esforços e disposição para compartilhar saberes, viabilizar e fomentar as diferentes manifestações artísticas coletivas dos mais diversos atores sociais. Com estes valores e diretrizes buscamos a construção de uma cidade democrática, expressiva e simbólica para o desenvolvimento dos cidadãos, desde a infância, como real possibilidade de desenvolvimento da autonomia e cidadania cultural.
Juca Ferreira. Secretário Municipal de Cultura
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A Vocação da Formação: Por uma Política Municipal de Formação e Iniciação Artística e Cultural Mica Farina
Inicio desta forma, como jogo-desafio: instrumentalizar-se na emancipação, emancipar-se na instrumentalização. Uma hipótese de conciliação utópica entre duas tensões, por meio da experiência artística e a partir de necessidades e vocações, corpóreas e anímicas, prosaicas e poéticas. Como iniciar-se artisticamente a cada dia nos infinitos ritos de passagem de uma vida? Como assegurar liberdade de ideias, sentimentos, pensamentos num espaço comum? Apologia de uma formação artística e cultural desejada. Uma formação de vocação e iniciação, do chamado individual e do instante poético. Nesta cidade continental, de longas distâncias em espaços estreitos e restritos, de um caos asfaltado, carecemos de dar formas mais significativas as nossas existências comprimidas num “sinal fechado”. Quem sabe se escutarmos uma outra canção, o canto de um pássaro imaginário ou um outro verso deste mesmo Paulinho - “uma pausa de mil compassos para ver as meninas”. O conceito de formação cultural, amplamente e longamente refletido na tradição do pensamento ocidental, na dimensão ético-estética da sua origem grega no conceito de paideia, ao conceito emancipatório de Bildung, desdobra-se em novos sentidos no contexto da sociedade líquida, fragmentada e especializada, aquela mesma da informação e do conhecimento. A transformação do significado do trabalho, a nova função do saber, a disfunção das instituições de formação e os processos de individualização são exemplos de paradigmas atuais desta nova complexidade. Esta condição torna tarefa constante a ressignificação das identidades e diferenças das culturas de formação. Combalidos por um histórico de colonizações, dominações, formatações e de uma dinâmica de padronização e condicionamento do pensamento, em sua errância, os processos formadores, educativos e culturais tiveram seu caráter libertador deturpados e evanescidos pelo fetiche e a ilusão da informação para a distração, conformando os modos de convivência modernos. A formação no longo curso da vida, preconizada neste século pela UNESCO, e dentro deste mesmo arcabouço, o conceito de formação biográfica que compreende, para além das suas formas institucionalizadas, a complexidade de experiências vividas cotidianamente e seus episódios de crise e transição, incita os governos ao desenvolvimento de políticas públicas de formação
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integradas e transversais. Nesta reformulação conceitual, a perlaboração individual, as condições objetivas de criação de significados e os diversos contextos de aprendizagem são valorizados problematizando o esquema de vida urbano composto pela linearidade das fases de preparação, atividade e repouso. Este esquema orientou o crescimento econômico de inúmeras cidades durante, pelo menos, dois séculos, dedicados a um ideal de sociedade do trabalho. Esta perspectiva rotulou e postulou a experiência cultural, o ócio e o lazer, no plano individual e coletivo, como supérfluos e inoportunos, reduzindo consideravelmente a experiência criativa individual e a simbiose das relações sociais. A cidadania cultural, no seu âmbito artístico e do devir poético, enraíza a existência pulsante do processo criativo, numa formação processual que busca romper com as dimensões temporais pré-determinadas por esta lógica estreita e massivamente repercutida. É na experiência artística também que se configura a essência da capacidade autopoiética pretendida pela formação biográfica, dando oportunidade ao indivíduo de atribuir um sentido à sua história de vida e à conduta de sua ação. O Estado, como ente político supremo, na sua Constituição e outras normas, busca, como no caso brasileiro, instrumentos de garantia e promoção dos direitos culturais à diversidade, fruição, criação e memória cultural, atualizados pela visão tripartite e plural da política cultural, na sua dimensão simbólica, cidadã e econômica. Uma política de formação e iniciação artística e cultural, em sua plenitude, deve então, assumir as exigências sociais e culturais contemporâneas, reconhecidas na promoção de diferentes modos de convívio, numa cidade inclusiva que contemple a vida de seus habitantes e visitantes. Desejamos com as iniciativas duradouras impressas e expressas nestas folhas, “no longo curso da vida”, e com a grandeza da experiência dos artistas: vocacionados, piás, indígenas, crianças, jovens, adultos e idosos, homens e mulheres, celebrar e fortalecer a formação de uma cidade de artes – uma artisticidade.
Mica Farina. Diretor da Divisão de Formação Artistica e Cultural
Aldeias e Cidadania Cultural Gil Marçal e Mica Farina
A experiência de ocupação e nomadismo do Programa Vocacional no território da cidade fez com que em 2008 uma iniciativa rara, de cunho artístico, gerasse a construção de um diálogo extremamente necessário para a cidade de São Paulo. Iniciava-se o processo de construção do Programa Aldeias que foi, ao longo de seus 5 anos, estreitando laços e consolidando uma abordagem sensível e responsável de intercâmbio cultural e artístico entre indígenas e juruás nas aldeias Guarani da cidade. Neste período, as singularidades e diferenças produzidas nos processos criativos oriundos desta relação entre culturas provocaram adaptações sucessivas na proposta, mantendo-se, entretanto, o caráter artístico e emancipatório do projeto original. Em 2013 inicia-se um novo momento para o programa que passa a integrar os esforços globais da Secretaria Municipal de Cultura no fortalecimento das ações para a cidadania cultural, ampliando a promoção dos direitos culturais constitucionais nas suas diferentes manifestações. Esta iniciativa foi celebrada e compactuada pela Secretaria Municipal de Cultura e a comunidade indígena no início deste ano em encontro realizado na Aldeia Tenonde Porã na região de Parelheiros. Como forma de introduzirmos as bases desta ação e certos da importância de continuidade desta política pública, reapresentamos os objetivos artístico-pedagógicos do Programa Aldeias em 2013:
“Tendo a Arte como possibilidade de mediação deste diálogo entre culturas, a equipe do Programa Aldeias busca construir parcerias e viabilizar modos de produção e criação estética na interface com a cultura tradicional Guarani, de acordo com os sentidos e modos próprios apontados pela comunidade. As propostas, que partem do reconhecimento e interação com as políticas culturais internas de cada aldeia, se voltam para o apoio às iniciativas de afirmação e continuidade da Cultura Guarani e de autonomia das comunidades nos processos culturais, assim como estratégias de registro e difusão dos saberes tradicionais. OBJETIVOS Apoiar à manutenção e revitalização dos contextos de transmissão de saberes tradicionais Guarani. Promover iniciativas voltadas à visibilidade e legitimação da Cultura Guarani, tendo os representantes indígenas como protagonistas destes processos. Estruturar atividades e encontros para difusão e troca entre culturas. Instauração de processos criativos híbridos, que envolvam a valorização, o registro e a reelaboração de saberes tradicionais” Referências Bibliográficas
Programa Aldeias: Apresentação da proposta de ação cultural. in: Edital da Divisão de Formação Artística e Cultura da Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo, 2012. Gil Marçal. Coordenador do Núcleo de Fomentos – Cidadania Mica Farina. Diretor da Divisão de Formação Artistica e Cultural
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Reflexões Declinações
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Amanda Dória
Hino à Dança Vocacional (ou de como se fazer um bicho de sete cabeças) Peticia Carvalho de Moraes
Geografia LESTE
Permita-me aqui coreo-grafar, coreo-refletir, coreo-digerir a que se propõe o projeto Dança Vocacional. Permita-me também um olhar ingênuo – olhar esse considerado perigoso e duvidoso, mas que como uma criança, se permite ser visionário e contemplativo – um olhar de quem acaba de se tornar Artista Orientadora. E finalmente permita-me ser contraditória, ao falar de um olhar contemporâneo da dança e me propor a dançar com palavras inspiradas por um mote tão tradicional: a música. “Não dá pé, (...)” Sim, a arte é um mar profundo. Ela vai mexer com seus medos, sua falta de domínio, ela vai exigir mais de você. Sim, a dança é um mar profundo. E no mar, para saltar, para conhecer a leveza, para respirar, é preciso conhecer o fundo, descer até o chão, explorar todos os níveis. Dar pé, tronco, cabeça. Lançar-se ao Dança Vocacional é desafiar suas certezas, é ser desestabilizado pela incerteza, afinal: “O que é Dança Vocacional?”. Não sei se falo aqui como Artista Orientador ou como Vocacionado. Talvez a resposta seja: “Não sei, vamos descobrir juntos?” ou “Vamos inventar juntos?”. “(...) Não tem pé nem cabeça, (...)” Conhecer o corpo é um dos grandes desafios do projeto, reconhecer suas partes e as articulações, perceber-se no mundo. O reconhecimento corporal é parte importante da formação da identidade, do reconhecer-se no espaço e do reconhecer-se presente. Para além da questão da linguagem, (...) tem a função de recuperar e implementar os sentidos de fundo, criando estímulos proprioceptivos em abundância, alimentando e organizando os processos mentais, informando a mente, através dos movimentos e das sensações, sobre a condição de vivacidade deste corpo e dão à consciência a confirmação constante da existência física da própria mente. Este é o sentimento de vida, a sensação de existir (NOGUEIRA; 2008:64)
Laban (1978), ao estudar o movimento humano, mostrou que as experiências corporais estão ligadas a formação do conhecimento, que o sujeito, como um todo, adquire o conhecimento através da experiência, que passa pelas sensações físicas, pela emoção e pelo pensamento. Compreender que o conhecimento ganha existência através das experiências que atravessam o corpo, faz
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com que a racionalidade não seja objetivada. E o ato de conhecer nem sempre se sobrepõe ao já sabido, um conhecimento pode ser ampliado, transformado e/ou negado, dois conhecimentos podem ser ligados ou separados, sem exigir desta experiência um julgamento de valor. Adquirir um conhecimento não é positivo nem negativo, é humano. “(...) Não tem ninguém que mereça, (...)” A palavra vocação vem do latim vocare e significa chamar, chamado. É importante desvencilhar-se do uso religioso recorrente da palavra e voltar-se a sua etimologia. Para isso vejamos outra etimologia: a palavra dom vem também do latim, donus, e significa presente, dádiva. Ambas são palavras muito utilizadas no meio religioso cristão, mas esta fala de coisa pronta, que se torna surpresa para a pessoa que recebe, pois aquele que recebe não participou do fazer, já aquela, fala de um convite, um convite que pressupõe uma ação. Não tem ninguém que mereça, pois não é por merecimento. A dança é de todos, não é de quem tem dinheiro, não é de quem nasceu para isso, não é só da magra alta, nem é só para mulheres. Quebrar preconceitos, estereótipos e senso comum é um dos grandes desafios do projeto. “(...) Não tem coração que esqueça, (...)” É importante ao artista, seja ele Orientador ou Vocacionado, assumir o impensável, o não previsível, o acaso. Assumir que a arte toca o sensível, e o que é sensível dói, nos faz gritar, incomoda. Mas é este sensível que nos garante a impossibilidade da indiferença. O Vocacionado vem por que gosta, e talvez até venha porque não gosta, mas não vem se aquilo não lhe faz diferença nenhuma. É preciso movimento, é preciso tocar o corpo, é preciso olhar o outro e para isso não há espaço para a indiferença. Uma grande parte da sensibilidade, a maior parte talvez, incluindo as sensações internas, permanece vinculada ao inconsciente. A ela pertencem as relações involuntárias do nosso organismo, bem como todas as formas de auto-regulagem. Outra parte, porém, também participando do sensório, chega ao nosso consciente. Ela chega de modo articulado, isto é, chega em formas organizadas. É a nossa percepção. Abrange o ser intelectual, pois a percepção é a elaboração mental das sensações. (OSTROWER; 2007:12)
É importante assumir o espaço da sensibilidade no trabalho artístico educativo, é importante perceber que o local toca minha sensibilidade, que o outro toca minha sensibilidade, que as propostas tocam minha sensibilidade. É importante saber também que é através do sensível, do subjetivo, das percepções, que crio, recrio e avalio minhas criações e proponho procedimentos. Sim, o Artista Orientador também é sensível. E não falo aqui do discurso educacional: “seja sensível ao aluno”, pois esse discurso só precisa ser afirmado onde se tentam quebrar as formas autoritárias de produção de conhecimento. Estou falando que Artista Orientador também chora também se surpreende, também cria também se desafia. “(...) Não tem jeito mesmo, não tem dor no peito, (...)” Identidade. Conflito. Criação. Talvez estas sejam as três palavras que resumiriam melhor os processos de orientação. A grande constelação de identidades: as identidades dos Vocacionados, a identidade do Artista Orientador, a identidade do local em que se atua, estão presentes no vivido. E assim surgem os conflitos. (E haja conflitos em processos emancipatórios!) Felizmente, estrelas, quando entram em conflito, se fundem, e como consequência acontecem explosõesi. É a identidade do coletivo, são as suas criações: No individuo confronta-se, por assim dizer, dois pólos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro de um quadro de determinada cultura. (OSTROWER; 2007:5)
É por criar/transformar que a identidade do homem é mutável. Conhecer o homem é conhecer o múltiplo, o subjetivo, o que
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é neste momento e pode não o ser mais. Essas transformações não fazem parte de um conceito de evolução humana, mas de um ciclo criativo especificamente humano. Ao transformar sua identidade, o homem gera uma mudança na sociedade, o que faz com que as suas experiências/vivências se modifiquem e modifique a si próprio, gerando novas “mutações” na sua identidade e na sociedade. “(...) Não tem nem TALVEZ defeito, (...)” A apreciação, seja ela crítica ou contemplativa, é uma ação necessária na era do consumo e da rapidez. Olhar, olhar um pouco mais, demorar-se no olhar, suspender a crítica, ouvir, falar, (re) ouvir, (des) apropriar. [...] (o saber da experiência) Não está, como conhecimento cientifico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). (BONDIA; 2002:27).
“(...) Que você me fez desapareça, (...)” Uma das discussões de efervescência atual no Dança Vocacional é a possível retomada do ensino de técnicas de dança nos processos de orientação. Durante muito tempo os coordenadores e artistas mais experientes no projeto criticaram esse tipo de fazer, critica esta característica das marcas/cicatrizes resultante das feridas de um ensino tradicional de dança presente ainda na maioria dos corpos de quem se faz educador/Orientador no Brasil. Atualmente, tem se percebido que o ensino de técnicas ou reprodução de sequências coreográficas pode ser benéfico para a ampliação das possibilidades motoras e de repertório corporal,
mas que estes precisam ser acompanhados de outras propostas que incentivem a liberdade, a tomada de iniciativa, a criação, o jogo e a improvisação. O que importa é que o Vocacionado consiga acessar-se, criar uma identidade dançante. Que de certa forma, consiga fazer com que, o que o Artista Orientador fez (como diz a música), desapareça. Desaparecer não no sentido de negar, mas de se misturar com outras possibilidades: [...] a sua dança, ou seja, esse pensamento exporá as relações de troca corpo-ambiente específicas dessa instituição que, por sua vez, enquanto instituição, também expõe um pensamento que resulta das suas trocas como corpo-instituição com o ambiente. Isso vai possibilitar a apresentação de ações que organizam crenças e hábitos da dança. Essas ações promovem a ocorrência de transformações e mudanças de condutas enunciadas no corpo que dança. (SETENTA; 2008:56)
A autora comenta que este fazer coletivo faz com que o sujeito aprenda a funcionar coletivamente também em outros espaços, ele se torna político. “(...) Cresça e desapareça. (...)” E aí está a parte mais almejada e mais ousada do Programa Vocacional, não só o projeto que dança, mas o que toca, o que pinta, o que encena e tantos outros chamados, é a emancipação. A expectativa de ver os Vocacionados crescerem e desaparecerem. No mundo da dança, ou apenas no mundo. Não é um desaparecer pejorativo, é um desaparecer de se desvencilhar do mestre (ignorante), sem ignorar o que deixou pra trás, pra se tornar mestre e/ou sujeito emancipado. Para que o Artista Orientador possa dizer: “(...) eu não fiz nada disso e você fez um bicho de sete cabeças!”
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REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS E BIBLIOGRÁFICAS: AZEVEDO, Geraldo. Bicho de Sete Cabeças. In: AZEVEDO, Geraldo. Bicho de Sete Cabeças. Epic/CBS, 1979. LP/CD. LABAN, R. Domínio do movimento. 5ª Ed. São Paulo: Summus, 1978. BONDIA, J. Larossa. Nota sobre a experiência e o saber da experiência. Revista brasileira de Educação, Associação Nacional de Pós-graduação e pesquisa em educação, São Paulo, jan-abr, n. 019, p. 20-28. NOGUEIRA, J. Do movimento ao verbo: desenvolvimento cognitivo e ação corporal. São Paulo: Annablume, 2008. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 21ª. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. SETENTA, J. S. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008
i A fusão de duas estrelas é um acontecimento pouco frequente, mas quando acontece causa uma explosão que altera a coloração da estrela gerando uma “nova luminosa vermelha”. Este termo é bem sugestivo para o assunto em questão, pois ao se chocar diferentes identidades, o que surge é algo “novo”, diferente das identidades já existentes; alterase a “luminosidade aparente” daquela identidade.
Peticia Carvalho de Moraes. Artista Orientadora do Programa Vocacional Dança no CEU Azul da Cor do Mar, região leste. Professora da Escola Técnica de Dança do Estado de São Paulo, diretora e bailarina da Cia. Mover
O conceito presente nas obras dos vocacionados de música. Reflexões sobre os processos metodológicos e de pesquisa em música no Programa Vocacional Vanderlei Lucentini Andre Oliveira Cintia Campolina Cleber Spolle Ronalde Monezzi
GEOGRAFIA SUDOESTE
Numa das primeiras reuniões da equipe centro-oeste de música, em um momento de leitura do material norteador, deparamos com um trecho inserido na revista Vocare (2011:23) que dissertava sobre o objetivo do Programa Vocacional em instaurar processos criativos emancipatórios através de práticas artístico-pedagógicas. Para delimitarmos o nosso objeto de pesquisa, seccionamos os processos criativos emancipatórios em três segmentos e nos restringimos ao campo dos processos. Dessa forma, nos perguntamos: O que é processo em música? O que difere a nossa ideia de processo em relação às outras linguagens inseridas no Programa? Quais são as implicações do processo nas orientações junto aos vocacionados? Encontramos no movimento futurista italiano, no início do século XX, os primeiros subsídios para a mudança de interesses no artista moderno, isto é, o deslocamento do produto para o processo que acabaram, por extensão, implodindo os paradigmas das artes tradicionais direcionadas ao produto final. Nesse trajeto, que atacou as premissas do imaginário social desde o Renascimento, encontramos os cabarés dadaístas, os readymades de Duchamp, a ultra vanguarda russa cubofuturista, a herança Fluxus, até alcançarmos os artistas conceituais da contracultura. Mas afinal o que é conceito? A palavra conceito advém do latim conceptus do verbo concepire e significa coisa concebida ou formada na mente. O conceito é aquilo que se concebe no pensamento sobre algo ou alguém. O conceito nos remete a um símbolo mental que nos auxilia na definição, concepção, caracterização e na formulação das ideias. Para refletirmos sobre conceito em música, achamos necessário pensar sobre a arte conceitual. Segundo Freire (2006:8) a arte conceitual não opera com objetos e formas, mas com ideias e conceitos. O artista norte-americano Sol Lewitt publica na Revista Artforum, em 1967, Parágrafos sobre Arte Conceitual, onde defende que a ideia ou conceito é o mais importante na obra de arte e significa o planejamento das decisões tomadas antes, sendo a execução um assunto secundário. Os artistas conceituais apregoavam que o conceito (a ideia) está sempre envolto no processo, em muitos casos, seria muito mais preponderante que o resultado final da obras. Algumas de suas estratégias baseavam-se na precariedade dos materiais, a transitoriedade dos meios e a rejeição a confecção de objetos para serem vendidos em favor da criação de objetos não comercializáveis, criaram eventos efême-
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ros (happenings e performances) que visavam criticar e minar as estruturas capitalistas do mercado de arte. Em música é comum vermos a utilização do termo álbum conceitual para compilações de música num único álbum que geralmente se refere ao contexto histórico da banda: sua formação, seu tipo de composição, repertório e compreende normalmente um período tempo. Entretanto, entendemos que a valorização do conceito em música é de fácil entendimento e consiste em definir proposições musicais e transparecer ao ouvinte uma ideia definida com posições estéticas claras da opinião do músico. Essa opinião da qual abordamos pode ser de cunho social, antropológico, cultural e às vezes somente musical. Desta forma a maneira de conceber a música acaba reinventando a relação entre a obra e o compositor, embora não seja uma questão nova, esta forma acaba se sobrepondo às formas tradicionais de composição da obra musical e permite abrir um campo de possibilidades mais amplo de interpretação e recepção. Entendemos que essa forma está muito ligada a música experimental e a performatividade, que tem embutidos preceitos de indeterminação na geração de processos e de ação criativa. A obra do compositor John Cage é um bom exemplo disto. Influenciado pelo efeito da obra A Fonte (1917) de Marcel Duchamp, Cage utilizou a indeterminação em suas primeiras peças com a intenção de expor as restrições residuais ou invisíveis que continuavam a operar nos subterrâneos da arte de vanguarda. Com a obra 4’33”, Cage capta um frame da realidade sonora do cotidiano, utilizando-se das materialidades sonoras que rodeiam as pessoas e a sala de concerto. A exploração das sonoridades, além de objetos não musicais, ele propõe, como Satie e Varèse, a valorização do ruído e o acaso na concepção de suas obras. Um outro enfoque é dado pelo compositor grego Iannis Xenakis. Para Xenakis (1985:3-4), os compositores trabalham com novos modelos musicais híbridos a partir de uma perspectiva baseada no som, Xenakis sugere o termo “artista-conceptor.” Para ele, esse novo tipo de músico é necessário, pois o artista-conceptor proporia novas formas abstratas e livres, tendendo à complexidade, e, em seguida, direcionando essas teorias para vários níveis de organização sonora. Entretanto não é necessário nos circunscrevermos dentro do universo da música experimental, podemos encontrar trabalhos conceitualmente consistentes dentro da música popular e com
uma forma de composição musical conhecida por canção. Segundo a Sturges (2012) “O álbum conceitual foi originalmente definido como um LP, onde as músicas eram baseadas em uma ideia dramática. Apesar de ser um conceito subjetivo, para ela “há uma diferença entre um álbum baseado em um tema e um álbum definido por uma narrativa.”. As canções da banda The Velvet Underground no disco The Velvet Underground & Nico, fortemente influenciada pela estética pop de Andy Warhol, pode ser tomado com um dos primeiros exemplos de rock conceitual e também como a primeira banda a utilizar diversas mídias em suas apresentações. Os Beatles simbolizaram a emergência do rock como arte com o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band [1967], um disco produzido e concebido inteiramente dentro de um estúdio e que seria inimaginável, na época se executado fora dele. No Brasil, podemos citar alguns exemplos como os trabalhos desenvolvidos por Walter Franco e sua relação com a poesia experimental; Mutantes na fase da Tropicália; o álbum Araçá Azul de Caetano Veloso onde mistura sonoridades de vanguarda música de raiz, poesia e musica concreta.
Do Conceito ao Contexto Aproximando conceito na música ao Programa Vocacional, André Oliveira (AO Biblioteca Afonso Taunay) traz o exemplo do vocacionado Edison Pereira, 52 anos, que atualmente se encontra em “situação de rua”. Edison foi compositor e componente de bateria de diversas escolas de samba de São Vicente, atualmente participa do coral da ONG Arsenal da Esperança. O estilo musical predominante em seu trabalho é basicamente o samba. O ritmo musical que envolve a persona musical flerta com outros estilos e ritmos musicais como o forró de teclado, a música brega e o sertanejo universitário. Sua vivência na rua, como a sua profissão de coletor de materiais recicláveis, se faz presente em
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suas composições. Essa característica presente em sua obra assemelha-se ao procedimento conceitual que podemos encontrar em alguns artistas do século XX que trabalharam com a ideia de objets trouvés (objetos encontrados), dentre eles podemos citar Kurt Schwitters, Pablo Picasso e Arman, que construíam suas obras com materiais encontrados nas ruas ou em ferros-velhos. Edison traz a ideia de reciclagem estilística e sonora para as suas composições de uma maneira intuitiva, através de uma liberdade harmônica, melódica e rítmica. Esse modo de justaposição estilística tem sido um modo de composição muito frequente em trabalhos como nas obras neoclassicistas de Stravinsky, em colagens sonoras de Mauricio Kagel, Karlheinz Stockhausen e nos trabalhos fusion de diversos grupos e bandas de música popular como Jards Macalé e Sérgio Sampaio. Para André, esse modo de produção é muito difícil se encontrar nos trabalhos atuais, o establisment musical presente tanto no mainstream como na cena independente apresenta composições com um formato óbvio e previsível, sem risco, limpo e agradável para o público. O trabalho do vocacionado Edison, situado na margem da margem, seria um contraponto e um agente fomentador de reflexão sobre a construção musical, como uma política higienista que envolve a sociedade como um todo. Ronalde Monezzi [AO Biblioteca Adelpha Figueiredo] busca estimular nos vocacionados a experimentação de novos procedimentos artísticos, estimulando a criação de timbres e sons. A interação entre todos os participantes da turma é feita através de uma constante manutenção do foco e a consciência do que está sendo tocado. Essa ideia inserida em suas orientações traduz e contextualiza os conceitos agregados a um trabalho que está em processo de concepção, e é influenciado pelas características marcantes da obra do grupo Nenê Trio. Assim como no processo de trabalho realizado pelo Nenê Trio, que o AO Ronalde aplica no Vocacional Música, mostra aos seus vocacionados contextos
que deixam os músicos à vontade para explorar diversos e surpreendentes caminhos criativos. Com o grupo Black Dragons, o processo trabalhado gira em torno da percepção musical: variações rítmicas aplicadas ao rock, linhas melódicas independentes associadas à composição que está em processo de construção e as funções distintas de cada instrumento dentro da formulação de arranjos. Assim, os vocacionados despertam o interesse pela consciência do seu fazer musical, não se limitando especificamente a parte prática e instrumental. Cleber Spolle [AO Casa de Cultura do Butantã] em seu processo de orientação identificou as subjetividades e realidades de cada um dos vocacionados construindo nesse processo de comunicação um eixo convergente. Este processo é criado a partir da construção individual de cada um dos vocacionados e da sinergia resultante do processo coletivo. A construção do repertório feita em diálogo com os vocacionados é realizada através do engajamento e habilidades técnicas dos participantes. Nas orientações foram realizadas atividades de ensaios e ofertadas atividades que objetivassem o polimento dos talentos individuais e o desenvolvimento de técnicas baseadas nas dificuldades individuais encontradas. Por este motivo, o processo construído gerou resultados muito significativos e ricos em diversidade. As músicas foram eleitas pelo grupo com ênfase na apresentação de músicas autorais. Indo além das habilidades técnicas houve espaço para o lado expressivo dos vocacionados por meio da ampliação da capacidade perceptiva e da sensibilidade. Desta forma, a linha conceitual na orientação partiu da subjetividade de cada um e do afloramento da sensibilidade à percepção da intenção musical e dos significados presentes em cada música. Por meio da construção de uma interpretação coletiva, o resultado conceitual comum partiu das subjetividades individuais materializadas através da diversidade, das habilidades, das demandas e desejos individuais. Como exemplo, temos o caso de Georgina Candida da Silva, 83 anos, conhecida como “Candinha”, vocacionada cujas músicas contam a sua história de vida e como ela a contextualiza hoje. O que ela diz em suas canções possibilita a construção de cenários, representação de histórias e fortalece o canal de comunicação que sensibiliza o público, não só pela correta execução da técnica, mas, sobretudo, por compreender a música como meio de expressão de um sentimento, uma percepção, uma linguagem que humaniza as pessoas no universo da arte. Candinha morou em áreas rurais do interior de São Paulo e só ao redor dos quarenta anos veio a se mudar para a capital. Candinha relata que suas músicas são inspiradas na memória trazida pelo seu pai nas reuniões de família. Dos filhos, era a filha que mais se interessava pelas histórias. Muitas de suas músicas são inspiradas nas histórias do pai, e outras em momentos que ela mesma vivenciou. Porém, somente aos quarenta anos passou a escrevê-las em forma de canção. Mesmo não sabendo tocar nenhum instrumento escreveu as letras e criou as suas próprias melodias. O resultado desse processo culminou na gravação de CD com as suas músicas. Ela relata que não se lembra ao certo quando e como começou a criar suas músicas. No seu universo conceitual, suas composições abrangem a música regional, mais especificamente o xote, baião, música caipira (rancheira) e para a compositora, as músicas surgem de forma intuitiva:
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Eu não crio nada, as músicas vem assim [...] Juntando tudo que passei, fui fazendo as músicas [...] Eu não invento as músicas, eu deixo vir [...] E outra coisa, eu já tenho as notas todas na cabeça, porque eu não toco nada, eu componho, vou lá no estúdio, e eles ‘batem lá’ e pronto [...] não tem que modificar nada, as notas ficam em cima...A música é um ‘causo’ que eu estou contando [...]
Ao traçar um paralelo entre o artista conceitual e o artista pertencente ao Programa Vocacional, Cintia Campolina [AO Teatro Cacilda Becker] notou um interessante ponto em comum: ambos almejam a autonomia do artista. Dentro desta perspectiva ela expôs o exemplo de José Pereira de Souza, o Zé Peri, 63 anos. Peri é compositor, nascido na Bahia e criado em São Paulo. É facilmente perceptível o conceito de suas obras: a inquietação do nordestino na cidade grande. Desde que começou a compor, ele se dedica a musicar situações nas quais o imigrante é exposto e utiliza sua crítica ao modelo social imposto na Capital. Além disso, outra preocupação do artista, também notada nas orientações, é sobre a inserção de sua obra no mercado fonográfico. Quais caminhos Peri deve percorrer para gravar seu CD, um de seus sonhos? Quais metodologias desenvolver para que as orientações instiguem e alimentem cada vez mais suas composições? Como não interferir nelas para que mantenham o conceito do artista vivo? Para a obra conceitual de Peri bastam propostas de mostras que o projeto proporciona? Na obra conceitual o que interessa é a ideia mais do que o produto, a música que Peri compõe está em processo, então até que ponto a performance instrumental é relevante para um compositor de canções? Sem dúvida, Peri é autônomo em sua obra, entretanto, o Programa Vocacional está presente criando o espaço, as resoluções e a problematização das questões acima. Desta forma, vejamos um exemplo no qual a artista orientadora percebeu uma maneira de dar forma a obra do artista sem deturpá-la. Trata-se da construção nas orientações do Vocacional Música de uma apresentação da obra do artista sob o formato de mostra com conteúdo explorado de um cordel que Peri criou. A obra literária foi adaptada para a mostra, recheada de indagações que correspondem às fases da vida de qualquer pessoa. O cordel traz a história de um cidadão que é concebido, nasce, tem sua fase infantil e juvenil, envelhece e olha para seu passado como imigrante e agora, cheio de sabedoria e vivência, reflete suas inquietações no século XXI. Dentro das orientações, os outros vocacionados da turma se reconheceram na poesia e resolveram levar o projeto adiante, construindo uma apresentação que abarcou: o cordel declamado por eles e pelo próprio Peri, canções autorais, canções de autores conhecidos, obras instrumentais com duo de violões e apreciação no final de cada apresentação. Desta forma, os vocacionados e a orientadora obtiveram a identificação, apreciação e debate da obra do artista pelo público, que posteriormente será gravada em estúdio. Entendemos que a constatação e a reflexão do artista orientador sobre o conceito presente na obra dos vocacionados é essencial para provocar processos criativos em música e para a efetiva realização do programa vocacional. Portanto, nesta edição nossos trabalhos estão concentrados neste importante ponto presente no material norteador do programa.
Vanderlei Lucentini. Coordenador do Programa Vocacional Música, região centro-oeste. Mestrando em Estética da Arte pelo PGEHAUSP. Compositor e Performer
Referências Bibliográficas e Sites FREIRE, Cristina. Arte Conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. NYMAN, Michael. Experimental Music: Cage and beyond. New York: Schimmer Books, 1974. XENAKIS, Iannis. Arts/Science: Alloys. Hillsdale: Pendragon Press, 1985. VOCARE: Revista do Vocacional. Secretaria Municipal de Cultura, 2011. STURGES, Fiona. The return of concept album, http://www.independent.co.uk/arts-entertainment/music/features/ the-return-of-concept-album-1796064.html
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André Oliveira. Artista Orientador do Programa Vocacional Música na Biblioteca Raul Bopp, zona sul. Arte-educador e percussionista Cintia Campolina. Artista Orientadora do Programa Vocacional Música no Teatro Cacilda Becker, zona oeste. Bacharel em Música Popular, Mestre e Doutora em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. Atua como pianista e compositora de trilhas para teatro Cléber Espolle. Artista Orientador do Programa Vocacional Música na Casa de Cultura do Butantã, região oeste. Arte-educador, violonista e percussionista Ronalde Monezzi. Artista Orientador do Programa Vocacional Música na Biblioteca Adelfa Figueiredo, região central. Bacharel em Música Popular pela Universidade Estadual de Campinas, saxofonista e flautista
Travessias compartilhadas Edson Calheiros
Geografia NORTE
“E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu.” Gênesis
O que me chama a atenção na passagem acima é a conotação de “conhecer” dada ao ato sexual. Esta ideia vai ao encontro de algo que venho pensando nos últimos dias: conhecer é atravessar e ser atravessado. O ato sexual “clássico” entre seres humanos pressupõe que estes se toquem, se fundam e misturem seus fluídos (sêmen, saliva, suor). Neste processo alteram seu estado anterior em direção ao clímax. Do ato, saem transmutados, invariavelmente diferentes do modo como entraram. De um modo menos específico, o encontro entre pessoas, livre de atos sexuais – embora Freud amplie o campo da sexualidade para além do coito - tem o mesmo efeito. Quando experimentamos uma nova relação, nos abrimos para perceber o outro e para ser percebido por ele. Mas esta observação não se faz à distância, cada qual no seu feudo. As pessoas, pelo menos aquelas que se dispõem ao encontro, se interpelam o tempo todo nos seus modos de ser e agir, o que pode se dar de maneira mais branda ou intempestiva, mas o processo de convívio sempre será marcado pela intercorrência entre seres que partilham o mesmo espaço ou tempo, e que nesse contexto, se afetam mutuamente. Em alguma medida, temos a decisão de nos abrir mais ou menos a tais interferências externas, mas é impossível se isentar delas, porque mesmo que não as deixemos entrar, ainda existirá nossa pele, olhos, ouvidos, língua e nariz. Conhecer, deste modo, é tornar-se um com o outro, seja ele pessoa, ideia, objeto, ainda que seja momentânea e provisoriamente (na realidade quase sempre é assim). E quando nos abrimos ao encontro, somos atravessados pelo que o outro é e atravessamos o outro com o que somos, e dali já não saímos mais os mesmos. Assim é também com os processos de produção e fruição artística. Assim é com o ato de alimentar-se: o alimento se torna um com nosso corpo, e dessa união processa e produz uma série de coisas. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Vinicius de Moraes
O Programa Vocacional, a partir desta perspectiva, é um espaço fecundo ao encontro artístico, no nível em que ele se dê, sem prerrogativas, obrigatoriedades ou direções definidas e rígidas, mas tendo sempre em vista o encontro como necessidade do ser humano – que tem na cultura sua segunda natureza, aquela que se funde e se ergue justamente do convívio social – e a convicção que estes encontros são tão mais legítimos quanto mais se configuram dialogicamente entre seus participantes. Cabe aqui destacar três aspectos essenciais e complementares das atividades artísticas, que se sobrepõem e se alternam em maior e menor nitidez na consecução das ações criativas:
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1. A dimensão ritualística, que evoca justamente o encontro simbólico e de encantamento das ações artísticas, e que remonta às épocas ancestrais das danças tribais, pinturas rupestres e outros procedimentos que tinham justamente o intuito de recriar uma espécie de elo simbólico entre o homem e as divindades ou a natureza.
2. A dimensão subjetiva ou processo de encontro do indivíduo com suas motivações pessoais e questões existenciais, etapa fundamental no processo pleno de amadurecimento humano, que se constrói em diálogo e a partir das questões e condições materiais, sociais e culturais de seu tempo e na maneira como cada qual percebe e organiza em si os impactos desse mundo. 3. A dimensão cultural, onde a atividade artística se confronta com as sedimentações culturais e a partir dela – e nunca isoladamente num vácuo – se volta para as questões urgentes de seu tempo histórico e social, não de maneira discursiva, mas através de proposições estéticas que provoquem o imaginário para além daquilo tudo que porventura a cultura tenha “naturalizado”. Tendo em vista estes aspectos, o ato criativo é num só tempo uma pulsão inerente ao humano perante seu cotidiano e a vontade de reinventá-lo, como também um esforço de superar as dicotomias e a aparente separação que existe entre o eu e o outro, seja este um conhecido, um estranho, Deus ou a inocência perdida. Constitui-se, portanto, num ato de coragem na direção de alcançar algo necessário e que é, por outro lado, desconhecido. É, metaforicamente, abandonar um porto seguro na busca por desbravar um mar nunca antes navegado. Porém e ao contrário do exemplo histórico das grandes navegações europeias, esse desbravamento na perspectiva da orientação vocacional não pode ter o caráter de subjugar povos pretensiosamente denominados de “atrasados” e nem mesmo a falsa boa intenção de catequizar corpos expressivos sob um determinado ponto de vista. Trata-se de um ato que só se configura legítimo a partir da escuta e da troca despretensiosa entre artistas, vocacionados e outros agentes. Trata-se por fim, da evocação antropofágica de Oswald de Andrade, no sentido de que não nos fazemos artistas do nada, mas nos constituímos como tal na medida em que somos afetados pelo mundo que nos atravessa constantemente e sendo alimentados por tantos atravessamentos, devolvemos ações criativas e expressivas que afetam reciprocamente o mundo, a tradição histórica e cultural que nos permeia. E neste sentido criar é conhecer e deixar ser conhecido, atravessar e ser atravessado.
Referências Bibliográficas
FROMM, E. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia. 1958. MAY, R. A Coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982. OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação artística. Petrópolis: Vozes. 1987.
Edson Calheiros. Artista Orientador do Programa Vocacional Dança no CEU Anhanguera, região noroeste. Bacharel e Licenciado em Educação Física pela Universidade de São Paulo. É artista criador e intérprete no Coletivo Intermitente e na Plataforma Desvio
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Geografia LESTE
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Referências do artista-orientador X (&) Referências dos Vocacionados Priscila Gontijo
Geografia LESTE
“O que não pode florir no momento certo Acaba explodindo depois.” (Mia Couto)
O lugar do artista orientador como um Mestre Ignorante, o mediador de um processo que orienta a pluralidade das manifestações artísticas que surgem dentro de suas turmas e grupos e que nunca se coloca como um “colonizador”, não me parece um conceito digno de nenhuma suspeita, pois não há dúvidas de que esse lugar é antes de tudo avesso ao totalitarismo e a certo maniqueísmo muitas vezes ditado de forma invisível pela sociedade que nos cerca. Enquanto artista e pedagogo (a) precisamos saber que a questão da alteridade é antes de tudo, uma questão ética. Posto isso, talvez fosse importante agora, no estágio em que o Programa se encontra, um debate que verticalize a complexidade e alguns paradoxos sobre como esse processo se dá dentro da pesquisa cênica das turmas e grupos. Tomo de empréstimo algumas lições da literatura e da filosofia para que possamos identificar questões de cunho social que se revelam prioritárias na construção de uma ética pedagógica e artística mais atenta. Língua e cultura, não esqueçamos, são fatores indissociáveis que interferem decisivamente na formação das identidades. Portanto, a questão que se coloca é a seguinte: em que medida é legítimo o uso das referências do artista orientador para a construção cênica? Guardadas as devidas proporções, uso a metáfora do escritor moçambicano Mia Couto quando questiona o uso da língua portuguesa como língua literária em Moçambique. “Pode o colonizado fazer uso da língua do colonizador como ferramenta de busca de sua própria identidade?” Mia Couto diz ter recebido como lição do poeta Manoel de Barros, de quem é admirador confesso, que escrever é uma forma de aprender a ser árvore. Conhecimento que lhe rendeu um profundo receio de que a raiz lhe ancorasse e lhe impedisse de ser céu. “Ter demasiada raiz pode lhe impedir que lhe nasça a asa. E o escritor não vive sem esse ‘voo impossível rumo ao nada’. “Como conciliar, num mesmo corpo, asa e raiz, pluma e radícula? A resposta à questão foi encontrada nos compêndios da Biologia: Nos meus anos de formação como biólogo, a solução chegou-me por via do estudo das gramíneas. Estas plantas herbáceas inventaram o rizoma e resolveram a minha crise existencial. O rizoma é um caule quase móvel, que viaja no subsolo, visita outras raízes, mais vagabundo que a toupeira. A raiz individualiza. O rizoma irmaniza. A raiz é fundação. O rizoma é abraço. (COUTO apud Martins; 2006:7)
Convém citar que as metáforas da “raiz única” e da “raiz rizoma” foram reelaboradas por Glissand a partir da proposta dos filósofos Deleuze e Guattari.
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Ao ler as palavras do escritor moçambicano Mia Couto no prefácio do livro de Celina Martins “O entrelaçar das vozes mestiças”, percebemos que Moçambique se assemelha ao Brasil em vários aspectos que não somente do ponto de vista da língua e da colonização, mas principalmente no que diz respeito a sua pluralidade e as suas multiculturas. Como na cultura e mais especificamente na literatura de Moçambique, nós brasileiros também não possuimos uma única identidade. E pensar na questão da alteridade é uma base de nossa reflexão para entender melhor a nossa cultura. “Nós temos que aprender a dizer certas coisas no plural como por exemplo, eu sou Moçambiques.” (COUTO apud Martins; 2006:7)
A responsabilidade do artista orientador tende a beirar o paroxismo quanto mais ele adentra no silêncio profundo das investigações coletivas das turmas e grupos. No presente texto, proponho uma reflexão – que não deixa de possuir um tom de relevante provocação – das nossas práticas artístico-pedagógicas, levando em conta que muitas vezes, aquilo a que chamamos “escuta” e “recepção” pode se revelar como omissão e negligência. O rizoma se irmaniza. Ele não negligencia a sua condição de rizoma. Talvez seja importante observar que contradição não é o mesmo que oposição. O ser humano é complexo, contraditório, errático. Essas características – uma vez que fazem parte da condição humana – devem permear a pesquisa cênica e a elaboração de procedimentos, mesmo que essas escolhas sejam um risco a certa harmonia instaurada dentro das pesquisas. Ser Mestre Ignorante não pode ser uma oposição, e sim uma complementação enredada pelo paradoxo. E como todo paradoxo devemos nos debruçar sobre ele não para encontrar certezas mas novas perguntas, sem descambar nem para um lado, nem para o outro, e sim atravessar a correnteza como um funâmbulo. Como artista orientadora do Programa Vocacional, muitas vezes questiono tanto a minha possível licenciosidade em determinados instantes quanto a autoridade de que me valho em outros, procurando porém, não me declinar do conflito, afastando-o como se ele não existisse. Esse conflito é uma inevitabilidade que temos que aceitar não com passividade, mas com uma receptividade atenta. Ainda não resolvi e talvez nunca resolva essa equação delicada, mas ao assistir a outros processos no V Festival Vocacional 2012, na Galeria Olido, me pergunto se existiu por parte dos vocacionados a consciência de estratégias de ruptura com a tradição. Não me pareceu que a criação cênica proposta represen-
tava uma contestação de modelos do modus operandi da cultura de massa e da industrialização a que somos submetidos dentro da sociedade de consumo. Será que guardamos questões complexas só para as reuniões com a nossa equipe? Será que nos EX-pomos nos processos artísticos-emancipatórios como seres falíveis e precários? Será que dividimos as nossas reflexões artísticas com os vocacionados para uma criação cênica mais complexa? Será que compreendemos mesmo o material norteador dentro de sua complexidade? E por último, será que confundimos o nosso lugar de mediador com uma licenciosidade que nega completamente as nossas influências e referências como se isso fosse uma arbitrariedade? São perguntas que não tenho respostas, mas que me inquietam diariamente e que necessito compartilhar nesse ensaio para que – quem sabe? – identifiquemos melhor a potência criativa que existe entre o artista orientador e o vocacionado, entre o eu e o tu, já que o “eu” só existe quando percebemos a presença do “outro”. Pensando nisso, devemos atentar para o fato de que tanto nós, artistas orientadores, quanto os artistas vocacionados estamos, vivemos numa sociedade em que os valores foram totalmente invertidos e se não buscarmos juntos uma reflexão acerca de nosso coletivo, não estaremos cumprindo a tarefa política e social que um artista e pedagogo necessita para uma pesquisa mais humana. Se deixarmos totalmente de lado nossas referências culturais e artísticas para nos abrirmos somente para as referências dos artistas vocacionados será que não estaríamos nos omitindo da responsabilidade? Será que esse gesto é realmente um gesto de emancipação e de autonomia? Será que estamos cegos para o fato de que todos nós somos invadidos por uma mecanização do comportamento e uma cegueira generalizada? Se nos colocarmos apenas passivos diante dos acontecimentos, não nos arriscaremos a um embate mais desestabilizador dentro das turmas e grupos. Se a tomada de consciência não for um meio para a pesquisa cênica, como abrir um espaço para o artístico? É preciso criar estratégias mais elaboradas de conscientização por parte dos artistas tanto vocacionados quanto orientadores. E não é pela via mais simplista da negação – negação das referências de ambos os lados – que essa mudança se efetuará. A dialé-
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tica é a via pela qual devemos ancorar nossa sede de perguntas e a contradição – e não a negação – um norte para a elaboração de procedimentos e criações. Chegou a hora de nos tornarmos mais humanos e menos indiferentes aos discursos sociais arraigados que tomamos de empréstimo da mídia e que licenciosamente deixamos repetir por parte dos artistas vocacionados, muitas vezes sem nenhum censo crítico. Como fazê-lo? Parece-me que um caminho é justamente não negar as referências que nos enriqueceram, compartilhar nossas dúvidas, nos mostrar como somos: precários e falíveis. E não temer a desestabilização que esse entrelaçar de vozes anuncia, vislumbrando assim, essa “raiz rizoma”, esse homem em equilíbrio que mantém um contrapeso entre nós e o espaço vazio, entre o interior e o exterior, sem distorcer a liberdade em licenciosidade; permitir o discurso polifônico, sem nos resignarmos a nenhuma harmonia. A estagnação é avessa ao imaginário e à pulsão de vida que uma tomada de consciência implica; mas para essa aventura precisamos compartilhar nossos conhecimentos e isso nada tem a ver com autoritarismo. Lembremo-nos que o artista – seja vocacionado ou orientador – não vive sem esse ‘voo impossível rumo ao nada’.
Referências Bibliográficas: CHIZIANE, Paulina. Niketche, uma história de poligamia. Maputo: Editora Ndjira, 2007. MARTINS, Celina. O entrelaçar das vozes mestiças. Estoril, Portugal. Editora Principia, 2006 TODOROV, Tzvetan. Prefácio à edição francesa. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Priscila Gontijo. Artista Orientadora do Programa Vocacional Teatro no CEU Quinta do Sol, região leste. Licenciada em Letras Francês pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Dramaturgia no Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral Antunes Filho. É uma das fundadoras da Cia. Da Mentira
Oriendançar – quando o corpo está presente Isis Andreatta
Geografia CENTRO OESTE
“Ou seja, em que medida podemos nos construir um olho de Lászlo, subir com ele ao mirante da ilha, não só para conseguir acompanhá-lo “terapeuticamente”, mas também para poder usufruir desse panorama que supomos ser o seu (...)” Peter Pál Pelbart
O que preparo para o encontro de hoje? Preparo-me... Vou [venho] de peito aberto, tateando em mim uma espécie de “não saber” das coisas, localizando o meu corpo em um estado de instabilidade e com a sensação angustiosa e positiva de enfrentar o desconhecido com entusiasmo. Começar no Vocacional já é em si uma experiência de ser ignorante. Aquilo que apareceu em minhas mãos para nortear, me deixa totalmente desnorteada e, no entanto, move-me intensamente por isso; a solidão no equipamento faz com que eu escute minha própria respiração, ora ofegante ora profundamente dilatada e tranquila; o encontro com as inúmeras e diferentes expectativas (as minhas, as de cada vocacionado, as da administração do CEU, dos colegas de equipe, da coordenação) me proporcionam esse tal de “jogo de cintura” fundamental; a distância física e de realidade do equipamento fazem com que eu me aproxime cada vez mais dos meus interesses e desejos. Essas e tantas outras “novidades de cada dia” fazem do trabalho no Vocacional uma urgência necessária que exige prontidão e envolvimento. O propósito desse escrito é mapear a instância do efêmero na atividade artístico-pedagógica, discutir sobre o estar presente, reconhecer a atemporalidade como um dispositivo potencializador dos processos com os vocacionados e passar a contaminar a prática com o conhecimento gerado pela intuição, aquele “não oral”, da experiência, do invisível, de um modo que eu apelidei de “oriendançar”. Para dar luz à discussão farei uso de algumas contribuições do filósofo Peter Pál Pelbart coletadas do ensaio “A nau do Tempo-rei” (1993) em que ele apresenta uma discussão a respeito do tempo no contexto da loucura e que pode vir a contribuir muito com o pensamento e atuação do Programa Vocacional.
Quando você está presente? Existe um “problema” de público. É preciso divulgar o Programa no entorno do CEU Uirapuru, pensar estratégias e abrir portas para que alguns suspeitos interessados em dança se aventurem junto comigo: - Vamos fazer uma aula aberta na ETECi ? Você faz uma prática com eles, demonstra como funciona o Vocacional Dança, conversa com os adolescentes e depois divulga o horário das suas aulas? - Isso, como se fosse uma aula-show, pra que todos saiam de lá empolgados com a dança e você trave um diálogo direto com os alunos de lá. - Sim, vamos.
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Fui. Chegando lá o (mal)entendido foi realizar a atividade com todos os alunos simultaneamente, ou seja, um encontro com cerca de 280 adolescentes. Faço meu (re)planejamento às pressas já consciente que se trata de estruturar “bóias” caso precise tomar um ar durante o mergulho em apneia que estava me propondo a fazer. Ofereceram-me uma caixa de som, um microfone, uma quadra de futsal, 50 minutos e uma pequena multidão. Estar presente foi uma questão de sobrevivência. Não somente em situações limites como a descrita anteriormente, percebo que a qualidade de abertura ao tempo presente é uma poderosa ferramenta para a construção de um ambiente de criação entre vocacionado e orientador. É preciso estar junto, com o corpo, atento o suficiente para cada possibilidade de conexão e entregue o suficiente para permitir-se experimentar de verdade. “(…) É um ponto que corresponde ao jorrar do tempo. Deveríamos poder estar ali onde começa o tempo, e com ele a possibilidade de alguma forma, de alguma decisão, deixar jorrar o tempo para que possa surgir o bom momento de se fazer alguma coisa.” (PELBART; 1993:35)
Não se trata de uma entrega ingênua ao imediato, do risco por si só ou de um “se vira nos 30”ii . O interessante no trabalho de orientação é quando existe empenho na construção de um ambiente cuja atmosfera é a da investigação, onde as tentativas alimentam a troca com os vocacionados e mantém o encontro pulsante. Esse espaço que existe entre o planejado e o vivido é justamente o espaço do possível, do invisível, por onde jorra o
tempo, a oportunidade de emancipação, o lugar de onde se descobre, de onde geram perguntas, a fissura, o escape, o ar puro que atravessa pulmões sufocados de certezas... é quando o corpo diz. “Fazer uma pergunta sobre o que realmente não se sabe é antes de tudo uma curiosidade aguçada por um aqui/agora.” (material norteador) Chamaria essa provocação do nosso Material Norteador de uma “prontidão ignorante” e que precisa estar presente na prática do artista-orientador. O desafio é oferecer-se ao espaço-tempo do imprevisível com um compromisso ético e, consequentemente, estético; tal como oferecer à intuição o mesmo status de validade que se (pré) determina pertencer exclusivamente em relações meramente conteúdista entre o mestre e o aprendiz. O desafio é propiciar as condições para um tempo não controlável, não programável, que possa trazer o acontecimento que nossas tecnologias insistem em neutralizar. Pois importa, tanto no caso do pensamento como da criação, mas também no da
loucura, guardadas as diferenças, de poder acolher o que não estamos preparados para acolher, porque este novo não pôde ser previsto nem programado, pois é da ordem do tempo em sua vinda, e não em sua antecipação. (PELBART; 1993:36)
Para cair de cabeça no desconhecido é preciso desconhecer-se um pouco. Para “acolher o que não estamos preparados para acolher” não basta apenas teoria, formação, técnicas, muito menos uma lista de procedimentos. Para instigar a (re)descoberta do corpo (e do mundo) através da dança é preciso dançar junto. Orientar dançando é reconhecer o seu corpo como ignorante, um corpo que descobre fazendo, que não se satisfaz com a distância e a observação, que se inquieta pelo movimento e através dele, um corpo que se joga – um corpo que oriendança! Estimular um ambiente de inquietações com os vocacionados é, antes de tudo, assumir-se como um corpo ignorante, um “desconhecedor” de suas intensidades, estados, impulsos, conexões e, ao mesmo tempo, um interessado na descoberta desse universo invisível e paradoxal do corpo, recheado de incertezas e impurezas que contradizem um sistema corporal mecanicista e imperante e sugerem a nós experimentar uma lentidão que não seja impotência, uma diferença de ritmos que não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho.
Referências Bibliográficas PELBART, Peter Pál - A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura - Rio de Janeiro: Imago Ed., 1993. FARINA, A. DELMANTO, I et alii – Material Norteador do Vocacional. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura/Departamento de Expansão Cultural, 2010.
Escola Técnica Estadual Uirapuru.
i
Expressão popular que tem origem no programa do Faustão da Rede Globo onde pessoas competem sua capacidade de realizar diversas habilidades durante apenas trinta segundos. ii
Isis Andreatta. Artista Orientadora do Programa Vocacional Dança no CEU Uirapuru, região oeste. Diretora e bailarina do Grupo Vão. Mestranda em Artes da Cena na Universidade Estadual de Campinas
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A caminho da “intersubjetivação”: A Pesquisa do Vocacional Música 2013 José Leonel Dias
Geografia são Paulo
Em sua edição 2013 o projeto Música procura aliar as premissas do Programa Vocacional e as experiências dos anos anteriores às demandas do momento, atualizando as práticas artístico-pedagógicas através da incorporação dos materiais e métodos desenvolvidos tanto a partir dos registros e análises já concluídos como também das demandas sumariamente imediatas. A possibilidade desse procedimento se deve a alguns fatores que contemplam a viabilização do diálogo entre os participantes do projeto. Pode-se destacar que no momento tornam-se fundamentais: uma visão atenta e sensível das demandas dos vocacionados, uma conceituação dos materiais trabalhados e a valoração da criação através da prática de referência coletiva, tudo culminando num processo que podemos chamar de intersubjetivação. Nota-se que para a efetivação das trocas e a possibilidade de interlocução entre as instâncias se torna necessário uma sistematização quanto ao registro dos processos, que ao mesmo tempo em que expõe a diversidade de formas e conteúdos cria um canal direto e imediato de divulgação, análise e apreciação. Outorga-se assim aos “Ensaios de Pesquisa-Ação” uma função fundamental dentro da ação artístico-pedagógica. O que na edição de 2012 poderia ser traduzido tanto como uma expressão individual ou particular agora passa a abranger uma atuação por meio da construção coletiva, primordial no trabalho, agregando a prática junto aos vocacionados com a elaboração do próprio material pedagógico. O aspecto da coletivização passa a transcender os grupos e turmas de vocacionados em seus equipamentos e regiões de origem, pelo projeto como um todo, expandindo-se pela cidade. Nesse processo os ensaios de cada artista-orientador ou coordenador são expostos como “rascunhos” e discutidos pelas equipes ao mesmo tempo em que são elaborados, o que inclui o intercâmbio, a apreciação e a avaliação dos procedimentos, combinando a proposição individual e seu desenrolar com o processo coletivo, potencializando todas as ações.
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Nesse percurso abre-se a possibilidade da incorporação de diversos meios de expressão na apresentação dos ensaios, bem como uma flexibilização referente a cronogramas e obrigações pontuais. Essa situação possibilita um alinhamento dos registros condizente com o andamento dos processos, considerando e valorizando as condições de trabalho e suas particularidades, contemplando e justificando o mapeamento como ponto de partida da ação contínua das turmas e grupos, culminando não exclusivamente com um resultado pragmático, mas principalmente com a opção de utilização de um material pedagógico sugerido na própria ação. A eleição de um vocabulário plural, oriundo das propostas e práticas, contribui para a conceituação dos processos e fornece subsídios para a discussão embasada na realidade das ações. Para a efetivação dessa constante troca de informações e apreciação coletiva o projeto conta com instrumentais de comunicação que facilitam a identificação dos ensaios e possibilitam uma visão abrangente por todas as equipes, com suas particularidades e possibilidades, de uma forma prática e eficiente. Por se tratar de uma possibilidade de ação coletiva concreta, considera-se que no momento os materiais pedagógicos emergem das próprias ações, passando por processos de experimentação e recriação justamente através dos intercâmbios envolvendo o projeto como um todo. Podemos então afirmar que o Vocacional Música, considerando a realidade a partir do que foi acima apresentado, caminha no sentido de contemplar a intersujetivação em sua ação artístico pedagógica.
José Leonel Dias. Coordenador do Projeto Vocacional Música, Violoncelista, Regente e Doutor em Música pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
Bia VOCARE 2013 29 Salles
Revista do Programa Vocacional
AndrĂŠ Hoff
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Devaneios
Concretudes 31 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional Amanda D贸ria
“Tempo da dança: quando antes for depois” projeto para uma composição coreográfica Miriam Dascal GEOGRAFIA SUL
TEMPO 1 tempo medido? tempo vivido? tempo passado? tempo futuro? o tempo, é agora ? tempo fugidio, escapatório MOVIMENTO FUGAZ QUE DANÇA NO TEMPO
TEMPO 2 o passado não existe mais o futuro não veio a existir o movimento interno o movimento externo dentro e fora O TEMPO PRESENTE
TEMPO 3 Que tempo é este? Tempo do relógio? Dos movimentos da lua e do sol? Das passagens, das travessias, dos ciclos
TEMPO 6 tempo simultâneo, concomitante, sincrônico, O tempo está dentro de nós? Somos tempo!?! CRONOS - LOGIA DA DANÇA
TEMPO 7 os corpos não podem ocupar dois lugares ao mesmo tempo e a nossa sombra ? a dança se desloca, tudo ao mesmo tempo infinitas possibilidades, onda e particular, tempo artificial DANÇA VIRTUAL
TEMPO 8 finitude do Tempo, A DANÇA DA VIDA E DA MORTE.
A DANÇA DO ETERNO RETORNO
Referências Bibliográficas
TEMPO 4
HEIDEGGER, Martin. O conceito de tempo / a questão da ética. Cadernos de tradução, número 2. São Paulo: Departamento de Filosofia da USP, 1997.
noite - dia, luz - escuridão sombras - penumbra emoção
PUENTE, Fernando Rey. O tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
TEMPO DA CRIAÇÃO
TEMPO 5 o bailarino se desloca no tempo no seu tempo? No contratempo? e quem está fora do tempo? DANÇA DO PASSO. COMPASSO. DESCOMPASSO
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Miriam Dascal. Coordenadora do Programa Vocacional Dança, região sul. Bailarina, Performer, Escritora e Eutonista. Mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas
2013 Miriam Dascal 33 VOCARE
Revista do Programa Vocacional
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Gonzalo Cuéllar. Trem, espaço poético, Estação da Luz
Geografia LESTE
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VOCARE 2013cultural Revista dodaPrograma Bia38Salles. Centro Penha Vocacional
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Tipos de Perturbação Gabriela Flores
Geografia CENTRO OESTE
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Gabriela Flores. Atriz e Coordenadora do Programa Vocacional Teatro, região centro-oeste. É integrante da Companhia da Mentira E Cia Arnesto nos Convidou
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http://www.youtube.com/watch?v=mmoJKVkE2-Q
Destrajeto poético (inspirado livremente no poema “Galáxias” de Haroldo de Campos) Adriana Dham
Geografia NORTE
e começa aqui e aí estou e meço aqui este começo aí fui e recomeço aí sou eu e arremesso eu mesmo e aqui me meço ninguémeu quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da ou outra viagem delírio processo poético tornar o invisível visível e tornar o visível invisível já conheço esta história recomeço aqui minha jornada criar destruir recriar novamente eu estremeço chegar devagar pergunto como chegar eu já conheço o caminho parece tudo deserto chego mais perto o olhar em torno de tudo e um muro coloridomarcas que ficam na memória no coraçãomemória estórias viagem delírio poéticoprocesso e me encontro aí remeço o corpo a alma aí arremesso coração criação liberdade sou o que sou não importa Viver é ser o Outro durante a viagem encontros novos reencontros com o outro movimentar-se e dentro dos balões coloridos um sentimento e na imaginação um poema coletivo “o que desconheço” e outro “para nossa alegria” um recomeço uma viagem nova um pacto um compromisso de criarmos juntos sempre a partir do corpo a partir do silêncio a partir do coração a partir do outro partir para outros mares nunca antes navegado imaginar outras possibilidades e é só o começo e eu não sei para onde esta viagem vai me levar mas a aventura tem que continuar apesar dos medos do medo de não saber onde se vai chegar e num outro momento me reencontro com outras artistas do meu coração afeição coragem carinho sempre e um trabalho lindo “quero ser o que desejo ser” revisitando o processo e investigando outras possibilidades poéticas e na aventura do presente mais uma surpresa outro coletivo se forma iniciados já passaram algumas vezes pela mesma aventura desde outros tempos e um desejo confuso de criar algo juntos mas o quê como só o tempo vai dizer eu acredito um galo sozinho eu vejo não tece eu sinto uma manhã eu crio ele precisará sempre de outros galos eu destruo e recrio novamente eu estremeço desejos meus desejos de cada um eu emancipo lembrança artista que fui lembrança artista que sou mas preciso voltar sempre deixar vida viva conquistar elos com o meu lugar uma corrente não esquecer de quem fui de quem sou é preciso continuar derrubar muros invisíveis e deixar que o outro chegue e aconchegue e sinta-se dono deste lugar poeticamentepoliticamente mas amorosamente sem hipocrisia vinda de cima transformar este lugar cheio de embaraços embaços de gente que não tá nem aí com o outro no final vontade de desistir de novo dar voltas o caminho é o mesmo caminho mas diferente voltar para o começo aí estou e recomeço este começo e arremesso eu mesmo e aqui me meço ninguémeu parece que foi ontem criar vínculos artísticos com outros irmãos artistas possibilidade de rever-se como artista sempre com certezas e muitas vezes com incertezas revisitar-me como artista e pessoa que sou sempre no outro com o outro sempre e começa aqui e aí estou e meço aqui uma traje-
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tória pesquisa no Tendal da Lapa com a equipe uma escada uma estrada setas apontando para um caminho que estou aprendendo a redescobrir e então recomeço a viagem Primeira parada panorâmica 360 graus O espaço vazio um caminho já estive aqui olho ao redor a trajetória é a mesma buscar o acontecimento vivo a partir do corpo a partir de um poema a partir do coração SER O QUE É SER? É TERRÍVEL, SER? DÓI? É BOM? É TRISTE? buscar estar presente e a viagem continua um cordão marca a trajetória da fala uma teia de palavras e de dúvidas não romper o fio Infância o fio Lembrança abrir e revirar as gavetas da memória deixar o encontroviagem me levar perdendo-se sem se perder sem ser esquecer Segunda Parada encontro com os iniciantes cada pessoa é um universo arriscar-se caoticamente as perguntas caminham no meu trajeto com os artistas iniciantes vocacionados O QUE VOCÊ PENSA QUANDO VÊ UMA PESSOA? O QUE O OUTRO PENSA QUANDO VÊ VOCÊ? VOCÊ O VÊ DA MESMA MANEIRA QUE ELE SE VÊ? um labirinto esquelético de sensações o que está por trás daquilo que vejo escavar profundamente revelar camadas revelar o que me é desconhecido o que é estranhoconhecido o que é conhecidoestranho olhar-se sem pressa o olhar caminha o que vejo o que não vejo o olhar em movimento em silêncio de dentro de fora experimentar ver pela primeira vez o que você vê todo dia sem ver Terceira Parada encontro com os iniciados Um coletivo com o desejo de investigar Nelson Rodrigues escavando o texto uma tragédia descobrindo o texto um experimento numa roda o círculo da vida e da morte os atores recebem os personagens de Perdoa-me por me Traíres Quarta Parada encontro com as veteranas Um coletivo questionando o próprio processo criativo será que o teatro dramático da conta das questões do roteiro criado coletivamente CRISE olhar a crise ARTISTICAMENTE olhar o conflito descobrir outras possibilidades processo de amadurecimento é preciso fazer escolhas desapegar-se e aventurar-se como na vida e começa aqui e aí estou e recomeço aí esta viagem é marcada por paradas encontros únicos “EXPERIMENTAR VER PELA PRIMEIRA VEZ O QUE VOCÊ VÊ TODO DIA, SEM VER” já dizia o poeta ás vezes a viagem é perigosa é preciso estar alerta para não se enganar então decido que o melhor é rever com os outros como está sendo a viagem se ela é solitária se ela é fruto apenas da minha imaginação se ela está presente em todos um jogo escrever uma carta ao outro como foi esta viagem pra mim o que mais me marcou e colocá-la numa mala e voltar a caminhar uma trajetória marcada por pegadascriativaspegadas passo a passo montamos o quebra-cabeça resgatando a Memória destes momentos o que eu carrego das coisas de mim das lembranças dos outros do mundo estou indo estou voltando eu quero ir eu quero não ir agora é preciso esvaziar a mala e olhar com carinho todas as coisas criadas
que estão dentro dela são preciosas todo mundo concorda será que é possível juntá-las misturá-las e a partir daí criar uma materialidade cênica enquanto viajo nestas linhas olho para outro coletivo que precisa amadurecer a caminhada está traçada mas o trabalho criativo está frágil porque alguns passageiros não podem mais continuar a viagem é preciso encorajar os que ficam e os que ficam são corajosos Pé na Estrada Pé na Jaca as meninas já partem sozinhas para outras viagens para outros lugaresviagens outras ações acontecem na equipe que fortalecem os trabalhos de cada AO nos seus coletivos no CEU dramaturgias PAZ visita AO visita Teatro visita Dança as fronteiras precisam ser derrubadas simbolicamente concretamente uma Ação Muros Invisíveis derrubarpoeticamenteoqueestádoladodedentroedoladodefora ida ao teatro nas “Rodas do Coração” viajar com o “Capitão Tornado” nesta aventura que é o teatro resgatar a Memória de cada um Memória sobre a experiência de deriva na Fábrica de Cimentos de Perus e perceber que as experimentações cênicas foram surpreendentes para todos Memória do que está acabado do que está perdido na Memória e nós aqui no CEU Vila Atlântica – Pirituba/Jaraguá temos alguma Fábrica que nos remeta a estas Memórias? e nos livros descobrir que o passado do bairro está desaparecido por entre as novas avenidas, novas ruas, novas fábricas, novas vielas, novas casas enterrado soterrado terra por cima Memória por baixo o que fazer com tudo isto organizar na mala e seguir em frente e num determinado tempo e momento um desejo realizado na MOSTRA as quatro paradas se juntam para se tornar UM o velho e o novo o veterano e o iniciado com o OUTRO sempre nunca só nesta viagem delíriopoético da aventura do teatro uma celebrAÇÃO perdendo-se sem se perder.
Adriana Dham. Artista Orientadora do Programa Vocacional Teatro no CEU Vila Atlântica, região noroeste. Integrante do núcleo artístico Arte Ciência no Palco
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Mapa ensaio Flรกvio Camargo
Geografia LESTE
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Flรกvio Camargo. Artista plรกstico e designer - Artista Orientador no programa Vocacional Artes Visuais
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http://vocacionalartesvisuais.blogspot.com.br/
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Robson Alfieri. Espetรกculo Cia Bastarda, Parque do Carmo
Helena e o Cadáver Ivan Delmanto
Geografia são Paulo
O amor só é tempo.
I Eu me chamo Ivan Delmanto Franklin de Matos. É importante atentar para a ordem do sobrenome, primeiro vem o Delmanto, já que Helena sempre esquecia-se do meu sobrenome, embaralhando a ordem e colocando o Franklin na frente. Aos meus dez anos de idade, apaixonei-me ensandecida e repentinamente por essa colega da escola Projeto, bem mais baixa do que eu, mas que estudava na minha classe. O tempo inteiro em que eu estava longe de Helena, sentia necessidade de vê-la, pois, procurando sem cessar representar-me a sua imagem, acabava por não conseguir, lembrando apenas do seu sorriso, e sem saber exatamente a que correspondia o meu amor. Depois, ela ainda não me dissera que me amava, mesmo que eu, do meu lado, repetisse esse mantra insistentemente, pelo menos duas vezes ao dia. Muito pelo contrário, com frequência afirmara ter amigos alemães que preferia a mim, que eu era um bom companheiro com quem jogava de bom grado, embora distraído demais, desatento às brincadeiras; enfim, dera-me várias vezes sinais aparentes de frieza que poderiam ter abalado a minha crença de que eu era, para ela, um ser diferente dos outros, se essa crença se originasse de um amor que Helena tivesse por mim e não, como ocorria do amor que eu lhe tinha. Na época em que amava Helena, eu ainda acreditava que o amor existia realmente fora de nós, como um pêssego transparente que sua boca pequena mastigasse nos horários calmos protegidos pelas sombras das árvores.
II Num daqueles dias de sol, em que não se realizaram as minhas esperanças, não tive coragem de ocultar minha decepção a Helena. “Eu tinha exatamente muitas coisas para te perguntar e contar” – disse. “Achava que este dia contaria muito na nossa amizade. E você logo que chegou já vai embora! Por favor, venha amanhã bem cedo, para que enfim eu possa te falar os segredos.” Sua fisionomia resplandeceu e foi pulando de alegria que ela me respondeu: “Amanhã? Espere sentado, meu amiguinho, porque não virei! Tenho um belo de um lanche marcado no Jack and the Box. Depois de amanhã, também não; vou à casa de uma amiga para assistir da janela ao desfile do 7 de setembro no Campo de Marte; será magnífico, e no outro dia vou ao Playcenter e depois estamos perto do Natal e das férias de fim de ano. Talvez me levem para o Sul. Será chique! Embora vá me faltar uma árvore de Natal; em todo caso, se ficar em São Paulo, não voltarei aqui, pois vou ajudar mamãe a preparar nossa viagem à Paris, para o ano que vem. Meu papai é bravo e forte e está me chamando. E trate de dobrar direito a manga dessa sua camisa, seja mais
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elegante!” Voltei com minha mãe pelas ruas que ainda estavam ornamentadas de sol, como na noite de uma festa que terminou. Mal me arrastava nas pernas. Eu me repetia, sufocando os soluços, as palavras com que Helena explodira em minha cara a sua alegria de não voltar, por muito tempo, ao parque em que nos encontrávamos para brincar, na Cerro Corá. Quando chegou a hora do correio, disse numa tarde, como em todas as outras: “Vou receber uma carta de Helena, ela enfim dirá que nunca deixou de me amar, e me explicará o motivo misterioso pelo qual foi forçada a ocultar esse amor até hoje.” Todas as noites eu me comprazia em imaginar essa carta; recitava para mim mesmo cada frase dela, ora em verso, ora em prosa, como se tais frases contivesse, como num casulo, todo o meu destino.
III Ao invés de receber a carta de Helena, fui apresentado, naqueles dias do verão de 1990, ao seu mais novo amigo, recém-chegado da França, viagem que tinha empreendido com os pais diplomatas. Edgard - era esse o nome do garoto – era completamente diferente de mim: loiro, de olhos azuis, bonito, bastante rico e dizia “ter feito sexo muitas vezes”, o que aos dez anos me assustava, já que tinha medo que ele realizasse esta misteriosa atividade com Helena, ferindo-a, ou trapaceando para vencer ou simplesmente não tratando-a como ela me parecia ser na realidade, como uma bailarina daqueles bolos grandes de aniversário, com uma das pernas com um osso oco por dentro – ela havia tido esse problema no ano anterior, o que a obrigara a andar de muletas e me dera a chance estrelada de carregar suas duas mochilas – mas capaz de dançar abrigada do vento, de modo mais doce do que a própria cobertura de suspiros. Eu não sabia o significado do sexo que Edgar fizera muitas vezes, mas suspeitava que Helena, independente do sentido, não gostaria de exercitar palavras desse tipo comigo, aliás, se comparado a Edgard, ela falava pouco comigo. Edgard, além de tudo, não usava óculos, e mesmo sendo paralítico – usava uma cadeira de rodas motorizada - acertava sempre nas brincadeiras e me vencia nas corridas e nas lutas. Não jogava futebol como eu, mas isso não importava, já que Helena nem mesmo sabia que nas partidas de futebol não se anotam “pontos”, mas sim “gols”. Helena passava horas a fio conversando com o Edgard, ao vivo ou por telefone, e desde o momento em que ele apareceu a minha pequena amada deixou-me muito clara a sua escolha: dizia que conhecia o Edgard há mais tempo e que por isso os dois já “tinham mais intimidade”. Eu não compreendia que espécie de intimidade era aquela, mas percebia, nos espasmos doídos que percorriam o meu coração sempre nu, que eu nunca seria a escolha de Helena. Tal percepção tornou-se tátil quando construíram uma casa na árvore na praça da Cerro Corá. Em determinado dia, como que por um relâmpago, chegamos ao
Rosana Antunes. Xilogravura. VOCARE 2013Cora RevistaCoralina do Programa Vocacional 49 de Casa Cultura
centro do parque e havia uma pequena casa de madeira construída no alto de uma das árvores. Enquanto eu procurava os meus óculos na bolsa – só os utilizava, na frente de Helena, em caso de última necessidade – Edgard foi ajudado pelo motorista de seu pai e, de alguma forma, rapidamente se postou no alto da árvore e logo já era o soberano da casa de madeira. Enquanto eu girava em círculos na grama, tentando perceber aquele objeto intrigante no alto da árvore, Edgar e o motorista ajudaram-na e Helena subiu rapidamente no topo, entre os galhos e folhas verdes, e os dois recolheram a escada de cordas que era o único acesso à entrada da casinha. Quando tentei subir, sem sucesso e sem escada, o pequeno casal, lá de cima, começou a gargalhar, longamente. Passei aquela tarde e o começo da noite sentado na grama, olhando-os brincar felizes no alto da árvore, sem poder fugir das feras e cobras que pareciam habitar o meu peito, rastejando no chão.
IV A tempestade que se desencadeava em meu coração era tão violenta que voltei para casa transtornado, mortificado, sentindo que só poderia recobrar fôlego arrepiando caminho, voltando sob qualquer pretexto para junto de Helena. Mas ela diria consigo: “Ele ainda! Decididamente, posso me permitir qualquer coisa, ele voltará todas as vezes, tanto mais dócil quanto mais infeliz sair daqui.” Depois, era irresistivelmente arrastado para ela pelo pensamento, e essas orientações alternativas, o desvario da bússola interior, persistiram quando entrei em casa, traduzindo-se nos rascunhos tortos das centenas de cartas contraditórias que escrevi a Helena.
V Nunca cheguei a enviar-lhe qualquer carta. Tempos depois, quando voltei ao parque em um dia de chuva e frio de julho, quase um ano depois do casamento de Helena e Edgar na casa da árvore, os dois estenderam-me a escada de corda e eu pude subir, finalmente, ao palácio matrimonial em que Helena havia definitivamente me trocado por outro. Edgar fez questão de me apresentar os cômodos da pequena casa, na verdade dois, e me disse que no primeiro, o menor, eu não poderia entrar, por ser o quarto em que “o casal trepava”. Mas Helena me puxou para o cômodo dos fundos, mais amplo, e foi ali que eu conheci a sua exposição. Havia no chão um vestido vermelho, estendido com os braços abertos em cruz. Ao redor do vestido, formando uma espécie delirante de membros, mãos, pés e cabeça, estavam posicionados pedaços de animais mortos: uma cabeça de cachorro, um pássaro negro morto, um gato com a barriga aberta, sem as vísceras, além de vários rótulos de produtos diversos, bem como garrafas e toda espécie de lixo. Fiquei atônito e aturdido com o mau cheiro que vinha dos cadáveres apodrecidos e do lixo, um cheiro doce. Helena me explicou calmamente que aquilo era uma exposição dos seus trabalhos de arte e que aqueles objetos mortos formavam uma pessoa: “Quem é esta pessoa que está morta, então?”- consegui gaguejar, intimidado por Edgar, que ajeitava a barra do vestido vermelho milimetricamente. “Sou eu”, respondeu-me Helena, com simplicidade alarmante.
50 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
VI Hoje, tanto tempo depois, procuro entender o significado daquela mórbida exposição de arte. Nunca mais vi Helena depois daquele dia. Ou melhor, a vejo todos os dias, nos rostos dos amores que a sucederam, sem apagá-la. O crítico de arte Arthur Danto argumenta, em Após o fim da arte, que a arte contemporânea, ao contrário dos modernistas, nada tem contra a arte do passado, nenhum sentimento de que o passado seja algo de que é preciso se libertar e mesmo nenhuma percepção de que tudo seja completamente diferente, como em geral a arte moderna. Seria parte do que define a arte contemporânea que a arte do passado esteja disponível para qualquer uso que os artistas queiram lhe dar: “O que não lhes está disponível é o espírito em que a arte foi realizada”.i Isso porque a percepção básica do espírito contemporâneo teria sido formada “no princípio de um museu em que toda a arte tem seu devido lugar, onde não há critério a priori sobre que aparência esta arte deve ter, e onde não há nenhuma narrativa à qual o conteúdo do museu tenha de se ajustar completamente. Os artistas de hoje não veem os museus como repletos de arte morta, , mas como opções artísticas vivas”.ii O “espírito” mencionado acima por Danto, é formado pelos sedimentos históricos que limitam a liberdade de escolha do artista e restringem a livre utilização do material. Levar em conta que não há mais o “espírito em que a arte foi realizada” é assumir que tal espírito está morto, sem desistir de utilizá-lo, mas tomando-o como material arruinado e como cadáver. Ao mesmo tempo, ao se utilizar insistentemente do lixo, dos cadáveres e das mercadorias descartadas, sem qualquer tratamento “artístico”, Helena nos expunha em sua casa na árvore também o cadáver de um material de outra espécie, estritamente relacionado às artes visuais contemporâneas e à performance: que as obras de arte podem ser imaginadas, ou de fato produzidas, fazendo com que se pareçam exatamente com meras coisas reais, que não têm nenhuma pretensão à condição de arte, justamente porque essa condição impossibilita a definição de obras de arte com base em certas propriedades visuais que elas possam teriii.
A utilização de objetos não trabalhados para ser “arte”, surge assim também como cadáver e ganha, ao mesmo tempo, sentido artístico e não-artístico. Os animais mortos não fazem parte, certamente, do conceito de Danto que, quando menciona o “cadáver” o faz de maneira metafórica. Provavelmente os animais foram mortos por Edgar, manipulado pelos desejos imperiosos de Helena. No entanto, o horror daquele vestido cadavérico até hoje me faz pensar no papel da arte, nos seus limites, fronteiras, hábitos e regras. Talvez haja nesta livre utilização dos materiais como cadáveres, ou seja, como corpos estranhos a ser ressuscitados, um horizonte para a arte hoje, em que todas as fronteiras parecem ter sido tensionadas, restando-nos o limite entre a vida e a morte dos próprios materiais que formam a expressão artística, na busca de um mundo em que a ruína e a dissolução é a regra. Além disso, quando me lembro dos materiais mortos, penso que havia algo no ser morto de Helena que me conclamava a sonhar insistentemente em trazê-la de volta à vida. Talvez essa tenha
sido a primeira e melhor definição de amor que encontrei e vivi, uma espécie de materialização do mito de Orfeu e Eurídice, que procuro percorrer sem olhar para trás.
DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: EDUSP, 2010, p. 7.
i
Idem, ibd.
ii
Idem, p. 19.
iii
VII Quando desci da casa da árvore após aquela exposição, ainda não sabia que, pelo resto da vida, tanto em minhas atividades artísticas quanto no amor, seguiria esbarrando em Helena, angustiado, diante de sua face bela ou violenta, ante a possibilidade sempre iminente de dobrar ou quebrar a espinha, hábito que a infância desconhece, retida demais por suas fantasias e livre ainda do peso da memória.
51 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Ivan Delmanto. Coordenador do Programa Vocacional Interlinguagens. Dramaturgo e Diretor da II Trupe de Choque, Doutorando na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo
52 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Gonzalo Cuéllar. RevistaEstação do Programa 53 VOCARE Trem, espaço2013 poético, da Vocacional Luz
Gonzalo Cuéllar. Trem, espaço poético, Estação da Luz
54 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Construções
Dissecações 55 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Amanda Dória
As diferenças e as práticas criativas Claudia Polastre (org.) Aisha Lourenço Carla Casado Egelson Lira Lourival Miranda Ricardo Valverde
Geografia NORTE
No mapeamento geográfico da zona norte, equipamentos públicos refletem o mapeamento sonoro: colecionadores de sentidos trabalham, exaustivamente, para fazer som, para escutar o silêncio. O som interno de cada um, o despertar da consciência com a percepção sonora por meio das sequências harmônicas é a pesquisa realizada por Ricardo Valverde; o som da memória e das identidades resgatadas é diagnosticado por Miranda de Amaralina. Aishá discute a partir do som da mídia, da crítica e da música orgânica na Biblioteca Pedro Nava; o som das escalas, assobios, ritmos e a interlinguagem desafia Egelson, o artista do CCJ. A mídia musical americana está na vida íntima das meninas do Jaçanã, glamour, padrão de vida e estética da beleza. Mostrar a criação relida, reinventada no fazer musical contempla a orientação de Carla Casado. Em todos os equipamentos percebemos o fazer poético do som da língua portuguesa: o som das terças menores. Tentamos a afinação dos 440 hertz que há mais de três séculos norteia o ouvido humano para o padrão do equilíbrio temperado do som... hertz, decibéis... A física, a biologia e a neurociência explicam, justificam o som produzido: a música evoca e estimula “uma série de reações fisiológicas que fazem ligação direta entre o cérebro emocional e o cérebro executivo”. Os Aos colecionam sons, fazem despertar os sentidos. Começamos nosso mapeamento sonoro escrito pela AO Aisha. Para trabalhar com música e musicalidade faz-se entender as peculiaridades de cada vocacionado, é a escrita e o pronunciamento da AO que com seu trabalhado com o Centro de Apoio Psicológico (CAPs) explica “primeiro eles me apresentam seus interesses musicais. Depois, faço uma atividade em que eles tenham que me responder de acordo com suas percepções o que cada uma das 10 musicas apresentadas lhe remetem em relação a cor, lugar e sensação. Muitas respostas me surpreendem, pois, apesar de algumas dificuldades de concentração devido aos remédios fortes adquiridos nos seus tratamentos percebi que essas atividades serviram para deixá-los à vontade e confiantes, principalmente das reflexões sobre as respostas. Pois a ideia era conectar as similaridades e celebrar as diferenças dando valor a cada resposta e não distinguindo entre respostas certas e erradas. Além de aguçar suas percepções sinestésicas, a imaginação e ativar suas memórias, tive um retorno positivo de umas das médicas que cuidam deles. Este “tipo” de abordagem de ativar a percepção, a memória, a sinestesia e a imaginação é coerente com a abordagem da musica orgânica, que venho pesquisando. Percebo que esta é uma linha interessante e essencial para educadores musicais, ela acessa vários aspectos íntimos do ser humano, desarmando-o e direcionado-o para um amadurecimento das percepções, muitas
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vezes uma integra o participante ao ritual da música, a alteração da consciência,a expressão e a interação das individualidades.E para um passo inicial onde não temos muitos instrumentos podemos criar música através dos sons e dos movimentos corporais. Com este processo, percebo a necessidade ímpar do despertar para a música interna que faz parte da aprendizagem (Lurdi Blauth). No Material Norteador, e de certa forma instintivamente, nos deparamos com a importância de se criar/desenvolver materialidades artísticas, concordo. Mas acho importante frisar de que “a crença de que toda educação genuína que surge através da experiência não significa que todas as experiências são genuinamente ou igualmente educativas... A cultura é entendida como um processo dinâmico, pois está em constante transformação, no entanto meu intuito é aproximar os vocacionados das realizações e das experiências multiculturais, oportunizando a construção de uma visão de uma análise crítica diante das produções e reproduções consideradas eruditas, populares, ou de cultura de massa.” Nesse sentido Carla Casado, no CEU Jaçanã, vai ao encontro e procura, ao iniciar um processo com um novo grupo, perceber o que cada um tem como expectativas, suas necessidades e vontades tornam-se um desafio a cada encontro.Ela comenta: “Ao me deparar com o texto” de Leda Osório Mársico percebi a relação com a prática. A autora nos coloca que pelos gestos a criança concretiza suas percepções, traduzindo os sons e o ritmo corporalmente o que aguça sua audição, bem como ajuda para sua evolução geral.Por fim, destaca que a criança precisa ter a oportunidade de viver plenamente a música para expressar suas sensações e sentimentos. No Programa Vocacional encontramos adolescentes e adultos que não tiveram a oportunidade de vivenciar a música como expressão. Também encontramos adultos que trazem o corpo marcado, tenso, rígido pelas obrigações cotidianas e desconhecido nas suas inúmeras possibilidades. Por fim, encontramos também adolescentes e adultos que nunca experimentaram se movimentar para se descobrir, para sentir os sons e exercitar o fazer musical ligado aos sentidos e a comunicação de sua emoção. Percebe-se que essa falta se traduz no bloqueio em criar, na dificuldade de perceber o ritmo do próprio andar. É na perspectiva de aguçar os sentidos que ao falar de pulso, propus em roda a procura do próprio pulso e a tentativa de demonstrar o seu pulso batendo o pé. Depois batemos os pés se revezando dentro de um pulso e num jogo em roda lançamos uma “flecha” batendo as mãos na frente do corpo e direcionando a um participante da roda e assim o desafio vai aumentando, como lançar a “flecha” no “contratempo” entre as batidas dos pés. E a partir desse pulso, inventamos sons com
outras partes do corpo, inventamos sons com a voz e conversamos sobre o que é fazer música. Além de explorar sons, nos permitimos a criar melodias para uma letra de uma música desconhecida e depois ouvimos a música que agora passa a ser conhecida, além de ajudar na percepção de outros caminhos possíveis de melodia. Concordamos com o desafio de compor músicas coletivamente a partir de uma atividade de questões a serem respondidas por todos, a partir dos sorrisos dos participantes no momento de fazer e de cantar, foi demonstrado na prática que é possível compor sua própria canção, que se expressa pelo corpo que toca, que pensa, que canta, que se torna presente em suas ações e escolhas”. No CCJ o AO Egelson Lira nos mostra uma prática realizada sob a inspiração dos paradigmas das linguagens artísticas, como
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o AO declama: “Inter-musicalidades, expressão diversidade em comunhão, inter-linguajar sonoros, inter-metaforalizantes. Inter-vocalizamos nossos sentidos, inter-ingenuamente nos doamos ao extinto, nos vemos dentro e fora dele, mas nunca ausentes. Inter-musicalmente, diminuo o andamento, troco a harmonia e mudo o pulso, ‘allegro ma non troppo’ revejo conceitos rítmicos, metáforas estão sempre presentes na linguagem musical.” Inter quase sempre quer dizer “entre”. Egelson nos mostra que “no entrosamento musical, o processo metafórico funciona em três níveis cumulativos. Quando escutamos “notas” como se fossem “melodias”, soando como formas expressivas; quando escutamos formas expressivas assumirem novas relações, como se tivessem “vida própria” e quando essas novas formas parecem
fundir-se com nossas experiências prévias. Susane Langer, no livro de Swanwick, diz que a música”informa a vida do sentimento”. No processo de criação junto aos vocacionados, a pesquisa se baseia nas metáforas sonoras, onde se procura por sons inusitados, sons cotidianos que ouvimos nas ruas, também nos silêncios que não nos deixamos ouvir, quando pedimos silêncio, pausa para que entre uma improvisação. Um dos vocacionados diz: tá tudo desafinado! (penso comigo “é que no peito dos vocacionados também bate um coração”), uma canção que fica na memória onde tudo se recria. Sobre forma e conteúdo (música utilizada de Heitor Villa Lobos - trenzinho do caipira, texto poético de Ferreira Gullar): alguns violões entram fazendo a harmonia, conduzindo o andamento, as flautas doces tocam uma pequena escala natural, a percussão marca o ritmo para entrada das vozes, há um repetição de todo o texto musical, para finalizar um improviso de violão, terminando todos juntos. “De alguma maneira, essa pesquisa metaforiza a linguagem musical, assume muitas formas, reúne, aproxima, traz cidadania.” Essa cidadania é lembrada e trabalhada nas orientações de Miranda de Amaralina que a partir da entrevista com a arte-educadora Rosângela de Macedo Santos, crescida na zona norte e integrante do grupo Cachuera, diz que o seu aprendizado foi por meio da prática. E Miranda, AO que integra grupos de cultura popular e que desde cedo também, como Rosangela, aprendeu pela prática, desenvolveu uma ação junto aos vocacionados ligada às festas de São João. Diz o AO “ao trabalhar com os vocacionados os ritmos ligados a estas festas, como o xote, o baião e o rastapé procuro, também, discutir o contexto em que tais formas de expressão musical se desenvolveram, assim como a sua relação profunda com a festas de São João.Foi aí que começamos a conversar sobre o significado da festa para cada um, as experiências de vida com esta manifestação e principalmente, como deveríamos construir a nossa mostra. O AO ouviu as vozes e anseios dos vocacionados: “como por exemplo o Wagner, vocacionado que adora a música popular brasileira, - seu instrumento é violão e gosta de cantar samba-, se interessou em participar este ano do projeto porque quer aprender a tocar os instrumentos de percussão. Rosi Cheque, participante há anos do programa vocacional declarou: “Estou adorando participar deste grupo de música. Descobri que posso cantar e tocar percussão, eu não sabia que era capaz de fazer as duas coisas. É uma descoberta...” E outros também manifestaram a alegria em estarem no projeto resgatando pela memória musical suas histórias. Daise Lu participa das orientações porque é um espaço do encontro entre os amigos e canta. Miranda explica que sua intenção é “buscar não só orientar os aspectos ligados diretamente ao fazer musical, mas também trabalhar com eles os laços identitários, fundamentais dentro da cultura popular e sempre presentes nestas formas de celebração.” Laços identitários pelo som é o que Ricardo Valverde pesquisou com seus vocacionados na busca de reconhecer o som interno de cada um. Segundo o AO “cada indivíduo é único e possui suas próprias competências e habilidades específicas, sendo assim, se cada indivíduo é diferente, a música dele também vai ser diferente do outro. “Não existem duas pessoas com o mesmo mapa sonoro, assim como não existem duas pessoas com a mesma situação genética”... No livro de Silvia Goes, Ricardo comenta que a autora defende que cada indivíduo tem o seu próprio som
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interno e relata: “minha função não é formar músicos , mas sim tratar da música das pessoas para que elas consigam ficar felizes e satisfeitas com a sua expressão sonora e, mais ainda, para que aprendam a utilizar o canal do som em seu próprio beneficio : uma descoberta que traz equilíbrio, pois dela se consegue ver o que está ealmente acontecendo dentro de cada um”. Valverde acredita que para se chegar a descoberta do som interno a melhor ferramenta é a percepção musical, portanto nas suas orientações ele trabalha muito a audição. “Um exercício que utilizo no inicio é o de fazer com que os vocacionados fiquem em silêncio por dois minutos e percebam todos os sons que estão no ambiente, perto ou longe. Este simples exercício pode ser feito para qualquer pessoa independente da idade e técnica musical. Então os primeiros trabalhos são o de fazer o indivíduo começar a perceber o seu som interno: “o crescimento de cada um depende única e exclusivamente de trabalho pessoal, que pode ser estimulado ou até mesmo orientado”. O próximo passo é fazer com que o aluno comece a ter sua própria musicalidade, o fazer tocar único, ou seja, começar expressar o que está dentro dele através da música. Para ilustrar este trabalho vou exemplificar com um exercício: faço uma roda com os vocacionados. Começo a tocar uma sequência harmônica no violão: Am - Dm- G7- C7M e peço que cada pessoa improvise com o próprio canto. Esse exercício faz com que a pessoa trabalhe primeiro a percepção harmônica dos acordes e na sequência com que ela produz a melodias através da sua voz, se manifestando expressivamente para que todos sempre possam descobrir e reinventar a nossa própria música”. Por fim, coordenando essa equipe percebo que os ensaios descritos traduzem as práticas cotidianas dos AOs no projeto, e continuo a afirmar: os artistas orientadores são fazedores de sons com a intenção mais pura e honesta de despertar o som em quem os procura. Esses músicos colecionam arranjos, colecionam versões e colecionam sentidos...
Claudia Polastre (introdução e organização). Coordenadora do Programa Vocacional Música, equipe norte. Doutora em História da Cultura pela Universidade de São Paulo Aisha Lourenço. Artista Orientadora do Programa Vocacional Música na Biblioteca Pedro Nava, zona norte. Percussionista e arte-educadora Carla Casado. Artista Orientadora do Programa Vocacional Música no CEU Jaçanã, zona norte. Cantora, compositora e licenciada em música Egelson Lira. Artista Orientador do Centro Cultural da Juventude, zona norte. Flautista, oficineiro e arte-educador Lourival Miranda. Artista Orientador do Programa Vocacional Música na Biblioteca Álvares de Azevedo, zona norte. Percussionista e arteeducador Ricardo Valverde. Artista Orientador da Casa de Cultura Salvador Ligabue, zona norte. Percussionista e Bacharel em Música pela FAC-FITO
‘A intuição do instante’ no processo de criação em dança Carolini Lucci
Geografia LESTE
“Queria transformar o vento. Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto. Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho... Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz...” Manoel de Barros
“Numa evolução verdadeiramente criadora, existe apenas uma lei geral, segundo a qual um acidente está na raiz de qualquer tentativa de evolução.”i – Este pensamento, desenvolvido e aprofundado por Gaston Bachelard (1884-1962)ii no livro “A Intuição do Instante”iii, traz à tona possíveis reflexões sobre o tempo, sua duração e percepção. A partir deste impulso filosófico podemos lançar um olhar sobre o modo como os processos de criação em dança têm sido experimentados no Programa Vocacional. A ideia de ‘acidente’ está diretamente ligada a acontecimentos que surpreendem, desestabilizam e furtam o sentimento de duração do tempo. Segundo a filosofia de Roupenel (1872-1946) iv , a verdadeira realidade do tempo é o instante; a duração é apenas uma construção, desprovida de realidade absoluta. Sabemos que a própria linguagem da dança carrega em si esta qualidade temporal efêmera, a qual a duração é feita de instantes sem duração. Neste sentido, podemos nos perguntar: o que nos move a despertar processos de criação no Vocacional Dança? Seria o mesmo impulso que alguém leva a se construir no instante? O que desperta em nós o movimento de ‘ousar ser’? Viver o acidente como princípio, talvez seja a constatação de que não controlamos grande parte das coisas. Perceber que existem ‘ventos desconhecidos’ para além de nós mesmos e quando somos atravessados por eles estamos em estado de acidente, de devir. Aprender como cair assim como se faz na arte marcial do aikidô, é, ao em vez de evitar a queda, pesquisar as possibilidades de novos eixos no corpo, de modo a dobrar-se o suficiente e com gratidão entregar-se ao solo. Cair tem sido em meu corpo a experiência de despertar para as construções que se renovam a cada instante. Quando o corpo se entrega ao acidente, à queda, algumas vezes ele pode se quebrar e aí esta uma notável chance de recriar-se nas pequenas desconstruções de si mesmo. No final do ano de 2012, vivi a primeira experiência de quebrar meu corpo; ela começou pelo meu pé direito e estranhamente depois disto vim parar aqui no Vocacional. Quebrar é romper, transgredir, virar, tornear, afrouxar, desfazer, dissipar, quebrar o vento, dobrar-se, curvar-se, diminuir de intensidade, interromper-se, desfazer-se. Neste sentido, é possível identificar que a duração e a continuidade dos processos artísticos pedagógicos no Vocacional Dança estão diretamente ligadas a
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uma espécie de ‘doutrina do acidente como princípio norteador’. Talvez faça sentido perguntar-se em todos os encontros, sempre como se fosse pela primeira vez, se o ponto de início de uma construção é o mesmo que marca o começo da desconstrução. A cada encontro, coordenadores, artistas orientadores e vocacionados são convidados à experiência da criação movida pelas quebras e pelo estado de acidente. É preciso a cada encontro, se atualizar no instante presente de modo a abrir os sentidos ao inesperado dos atos e das falas. Talvez, a continuação dos processos criativos possa ganhar sentido no tempo a partir da conexão profunda com a experiência do instante, na qual os corpos diariamente quebram-se em direção ao inesperado, ao desconhecido, ao vir a ser.
Referência Bibliográfica BACHELARD, Gastón. A intuição do instante. 2ª. Ed. Tradução Antonio de Padua Danesi. Campinas, São Paulo: Verus Editora, 2010.
i
“A Intuição do Instante”, p.26, trad. Antonio de Padua Danesi.
Filósofo e epistemólogo francês foi professor de física, química e filosofia, antes de assumir, na Sorbonne, a direção do Institut d`Histoire des Sciences et des Techiniques.
ii
A Intuição do Instante/ Gaston Bachelard; tradução Antonio de Padua Danesi. -2ª ed. Campinas, SP: Verus Editora, 2010. iii
Historiador francês notabilizou-se por seu estudo de história social na França, principalmente por sua Histoire de la compagne française, a qual já está presente uma abordagem regional e estrutural que o aproxima da École des Annales.
iv
Carolini Lucci. Artista Orientadora do Vocacional Dança no CEU Tiquatira, região leste. Bailarina, Graduada em Comunicação e Artes do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
O lugar da arte é no Programa Vocacional? Melissa Panzutti
Geografia NORTE
Quando Carminda Mendes Andréi questiona o lugar da arte nas escolas e diferencia, a partir dos conceitos de Teixeira Coelhoii, a cultura como um lugar que harmoniza os espaços de convívio e a arte como um lugar que gera questionamentos e provoca transgressão, detém uma questão que converge diretamente no nosso fazer cotidiano. Encontramos a cada momento a oportunidade de discutirmos cidadania nos modos como se organizam as relações institucionais, ou durante os encontros com os vocacionados fomentamos a arte? Os processos criativos realmente se deparam com a criação de novas subjetivações ou mediamos um lugar de convívio social? Talvez façamos as duas coisas e desejamos fazer arte. Ao amenizar o buraco difundido pela educação e agregar aos nossos processos criativos os trabalhos de cidadania, convivência e harmonização dos meios de produção e exposição de “processos simpáticos” que acolhem o querer de cada cidadão à procura do programa no sentido de inseri-los na própria comunidade, reforçamos a maneira como a sociedade do espetáculo nos impõe. Se arte no sentido “deleusiano” para Teixeira Coelho representa um lugar de transgressão, de embate e de guerrilha, como esta arte está sendo exercitada nas manifestações artísticas produzidas in loco com os artistas vocacionados? Para diagnosticar o que de verdade estamos fazendo, dispara-se na equipe de ação noroeste a questão: qual seria a radicalidade do agora? Muito mais do que responder essa pergunta, a intenção é evidenciar as pistas que nos cercam em torno de uma comodidade, seja ela na forma de condução, seja ela nas materialidades experienciadas. Essa reflexão evidencia o que precisa ser transformado nos processos para começar a se vivenciar arte. Há necessidade de dar anteparo metodológico e processual para que as materialidades emerjam no sentido de sublinhar as reais questões dos artistas vocacionados. Precisa-se também abarcar o campo de ação da arte não mais no lugar da acomodação cultural - de reprodução de formas hegemônicas de atuação - mas no lugar da transgressão poética. Desta reflexão surge a ação fábrica - o exercício cênico de risco, uma experiência estética que procurava questionar e desmistificar alguns conceitos teatrais já pré-estabelecidos: a linearidade de uma dramaturgia; a necessidade de ter algo definido a ser dito; a possibilidade do amparo cênico em vários suportes estéticos; o caráter julgatório sobre o bom ator e o deslocamento do olhar para a singular experiência compartilhada; ainda, salientar outras possibilidades além da hierarquia do texto ou do ator, mas, a relevância do espaço, as relações e a poética dos corpos em deriva; E, por fim, experienciar a relação espectador/obra de uma forma diferente, como uma vivência.
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Assim, os artistas orientadores da equipe criaram, num exercício de enunciados, a dramaturgia do encontro “Ocupação da Fabrica de cimento Portland Perus”. Cada orientador estabelece pelo seu grupo uma sequencia de ação que possa ser cumprida, com o maior rigor possível nas trajetórias desde a saída de seu equipamento até o ponto de encontro. Como um programa performativo, cada qual com sua trajetória, simultaneamente, cumpriam-se enunciados. Uma sequência de enunciados é disparada da fricção do que necessita mudar, do que está acomodado ou o que precisa ser conscientizado, essas promovem a potência criativa de cada indivíduo e seu coletivo. No ponto de encontro um mesmo enunciado é disparado. “A obra única.” Os seis grupos heterogêneos à deriva criam materialidades cênicas a partir da mistura de suas derivas, as que antecederam o ponto de encontro e as de dentro da fábrica, e ainda, a escolha de um espaço físico onde essa cena iria acontecer. O enunciado: A Obra é única. Tem começo, tem um fim. Mas o meio será preenchido pelo “aqui agora” desses corpos. A potência poética dessa ocupação reconfigura um novo espaço relacional do programa. A transgressão, o posicionamento político e estético. A ação experienciada pode ofertar o questionamento sobre as formas hegemônicas de espetáculo. Precisamos relembrar que os processos têm um fluxo heterogêneo e são diferenciados, sua convergência está na amplitude de atuação, no embate físico e processual com a instituição. Evidencio aqui a guerrilha diária em função do enrijecimento próprio na estrutura das organizações públicas, cujo tempo do modelo de administração burocrática muitas vezes difere daquele das necessidades para a articulação desses processos criativos. Se
por um lado essa dessincronia gera um grau de frustação para o andamento das ações, por outro, é esta mesma dessincronia que traz a possibilidade de realmente traçarmos estratégias de guerrilha onde todo e qualquer fator de desamparo é transformado em objeto de ação politica, manifestação artística.
Reflexões sobre o exercício de enunciar Num processo ainda em elaboração circunscrevo uma hipótese do que atravessa os processos criativos no âmbito da coordenação de equipe e o trabalho dos artistas orientadores. Parto da premissa que ambas as funções provocam e interferem no processo criativo com a perspectiva de potencializar a singularidade e heterogenia dos envolvidos nessa criação. Detenho–me no enunciado, pois ele permite olhar para o âmbito da criação sob o enfoque do encenador que percebe o papel dos jogadores/ atores; do espectador/ participante e do território que se cria para a materialidade cênica emergir. Crio aqui um paralelo do encenador/ enunciador. Como um criador de programas ou mesmo, um encenador que cria uma moldura por onde o espectador irá se relacionar com a obra. Sendo assim, atrevo-me a refletir sobre os enunciados que em sua forma comtempla: a heterogenia dos envolvidos na sua realização que vise a co autoria dos indivíduos presentes num espaço de encontro, que apresenta-se como um território fértil dessa emergência autoral e ainda; os enunciados que são sistemas abertos de operação subjetiva e desta forma possam ser reenunciados ou ainda reprogramados de acordo com o atravessamento de cada indivíduo ou coletivo.
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Sobre a heterogenia, relembro que nesses encontros existem formações distintas de cada um dos indivíduos, os processos criativos são distintos e muitas vezes as inquietações são díspares. Essa diversidade necessita e permite um aprofundamento e a especificidade em cada caso, que impede acharmos um denominador comum, pois este evidenciaria apenas a superficialidade dos processos. Sobre co autoria, vale esclarecer que não seria apenas criar a partir do enunciado, mas, re configurá-lo nas condições de seu trabalho artístico e potencializar a criação de novos ou derivações desse enunciado, ofertando um aprofundamento das investigações artísticas. Sobre o território fértil, destaco a importância de se olhar mais aguçadamente para o que emerge de potência desse território. Se no âmbito da biologia cada espécie precisa de um espaço adequado, um meio relacional que gere a necessidade de adaptação para sua evolução e condição de existência, seria necessário olhar para as escolhas dadas ou criadas no espaço de convívio com um arqueológico. Assim, esse olhar minucioso sobre as interfaces desse espaço relacional, que potencializa o que está escamoteado, ora merece eclodir um atentado, ora necessita de um acolhimento. Sobre o sistema, visto como uma operação dos meios e modos de produção da criação recorto aquilo que se evidencia como um campo relacional onde o modo da fruição artística é um sistema de operação singular, e que este opera de uma maneira peculiar do seu espaço tempo. E esta seria o amago da sua materialidade subjetiva: o sistema aberto se propõe a não fechar o circuito de criação dessa singularidade, mas dialogar como a partir desse sistema outras materialidades podem emergir. Há espaço para
escolhas, existe continuidade ou deformação do seu modo de produção mesmo que atravessado por um enunciado. Estabelecem-se alguns critérios que elucidaram a qualidade dos enunciados. Permite-se evidenciar com eles um território de risco e releitura, Isto é, se a cada enunciado aparecem pistas de sua potência enquanto sistema aberto, emergência autoral e o surgimento de derivações de criação. A partir do enunciado posto, quais perguntas faço-me enquanto a prática do enunciado é explicitada? Ele está possibilitando uma escolha ou fecha o sistema-operação meio e modo de produção? Este potencializou o que precisava emergir ou ele direcionou para o caminho supostamente certo? Esse enunciado provocou algo novo, desconhecido ou ele já previa uma ação/resposta? Ele
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legitima a autoria de criação, deflagra as falhas e erros? Ele cerca o objeto prioridade do agora emergente? Deflagro o que não interessa. Das evidências, surgem a construção de novas propostas e procedimentos, se a ação-resposta contempla a heterogeneidade das pesquisas e o aprofundamento do exercício investigativo, e, ainda, a relevância dele ser colocado. Por fim, o paralelo encenador/ enunciador e esta série de inquietações que nortearam o convívio de reunião artístico-pedagógica pode contornar a diferença entre procedimento e enunciado. O procedimento investiga algo circunscrevendo um único objetivo. O enunciado cria mais de um procedimento, pulveriza os objetivos e permite um corpo em estado de experiência. Uma moldura a ser preenchida pelo co autor dessa obra, o espectador atuante.
André, Carminda Mendes. Escola é lugar para artes?. In: CONGRESSO DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 5., 2008, Belo Horizonte. Anais eletrônicos... Porto Alegre: ABRACE, 2008. Disponível em: <http://www.portalabrace.org/vcongresso/textos/ pedagogia/Carminda%20Mendes%2 0Andre%20-%20ESCOLA%20 e%20LUGAR%20PARA%20ARTES.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2011. i
COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, 2001 – (col. Primeiros passos) ii
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Melissa Migueles Panzutti. Coordenadora do Programa Vocacional Teatro, região norte. Licenciada em Artes Cênicas pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e Ècole Philippe Gaulier, Paris, França. Fundadora da Cia. Vôos de pesquisa em dança e teatro
Processos Criativos: Diferentes Escutas Rogério Dias (DJ Erry-g) e Milena Araújo
GEOGRAFIA SUL
A Equipe Sul do Programa Vocacional Música vem caminhando para um entendimento comum que resulte em um único ensaio de pesquisa do grupo. Assim sendo, discussões têm ocorrido no sentido de alinhar e estabelecer pontos comuns diante das propostas de cada integrante. Em virtude de uma diversidade enorme na equipe no que se refere à experiência e pensamento artísticos, propostas e metodologias de trabalho, reflexão sobre práticas pedagógicas, etc., temos enfrentado com ímpeto o problema de traçar uma diretriz para o primeiro ensaio do grupo. As experiências e o trabalho realizado nesse primeiro bimestre resultaram numa contribuição de cada Artista Orientador e do Coordenador de Equipe a respeito da situação encontrada em cada equipamento e o desenvolvimento de um ponto comum: o Processo Criativo. A seguir, discorreremos sobre diversos pontos de partida para a prática e a reflexão do mesmo.
Processos Criativos a partir da Materialidade Artística: Intelectual, criativa e autoral Como criar, como pensar nos processos criativos a partir da visão de um coordenador de equipe? Percebo que é muito mais fácil quando se é AO. Por ter vivido as duas experiências, sendo AO e tornando-me Coordenador, percebo que o AO tem todos os in-
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gredientes em suas mãos para uma boa receita. Muitas vezes, ela não se concretiza por diversos fatores, seja por motivos próprios, por uma opção pessoal, por se colocar em uma zona de conforto, ou até mesmo pela realidade local. Mas mesmo assim seus ingredientes estão ali: os vocacionados e seus anseios, desejos, garra, silêncios entre outras características que ecoam e permeiam as orientações. A partir desta reflexão, vamos percebendo as pedras rústicas que são encontradas, e nada melhor que uma boa lapidação para torná-las grandes diamantes. Assim, pretendo “desabrochar” minha materialidade artística. Acompanhando uma orientação de Fernando Diniz, no extremo sul de São Paulo. Ele buscou aproximar a música das realidades vividas por seus vocacionados em suas comunidades, trazendo para a orientação três canções que se relacionam com o trânsito caótico vivenciado diariamente na estrada do M’Boi Mirim: A Ponte (Lenine e GOG); Da Ponte Pra Cá (Racionais MCs) e Triunfo (Emicida). Gostaria de destacar que todo este oceano é de como o rapper Mano Brown (Racionais MCs) tornou-se uma referência cultural fundamental para percebermos o que existe de fato do lado de lá da ponte, ou melhor, do lado de cá da ponte, pois é aí que me enquadro. Por isso, venho usando as pontes para cruzar os pensamentos, as experiências distantes de meu cotidiano, viver a cultura distinta de outros povos, e porque não quebrar as pontes dos preconceitos, conservadorismos e das injustiças que herdamos a cada geração.
Propus logo no começo do projeto uma troca artístico-pedagógica, na qual cada um da equipe traria quinzenalmente uma experiência de sua área. Inicialmente o ponto principal é olhar para nós mesmos como indivíduos e artistas, a fim de trazer algo que está naquela “caixinha pessoal”, que cada um de nós vem colecionando: anseios, desejos pessoais e sonhos trilhados pelas veias artísticas. Sentimentos e práticas como estas devem ser socializados, pois com estas trocas nos colocamos de alguma forma, no lugar dos vocacionados. Procuro quebrar a regra de que uma equipe necessite de uma hierarquia para ditar as regras. Busco assim aplicar o princípio do mestre-ignorante, contido no Material Norteador do programa: não existe arte sem que saiamos de uma posição do “copo cheio”.
Processos Criativos a partir de Um Olhar Pedagógico Quando analisamos diversas pedagogias ativas como Dalcroze e Willems, vemos que parte do processo de desenvolvimento musical passa pela vivência rítmica e pela sensibilização sonora antes de estudar um instrumento (AVILA; 2010). Dentro do processo de aprendizagem musical, Willems defende como forma ideal: OUVIR → SENTIR → VIVENCIAR → INTERNALIZAR. Tratando-se de turmas de Iniciação no CEU Navegantes e partindo dessa premissa, propus seguir esses parâmetros. Sendo assim, sugeri ouvir “Ponta de Areia” de Milton Nascimento, em três versões: por Elis Regina; pelo grupo Boca Livre e por Esperanza Spalding. O objetivo foi sentir as diferenças entre as versões como a instrumentação, o andamento, a existência de improviso e o uso de arranjo vocal. Utilizamos as diferentes releituras dessas canções para algumas reflexões. Em seguida, vivenciamos corporalmente em grupo algumas músicas, aproveitando o espelho existente na sala. Durante a execução da música cada um por vez deveria criar seus movimentos, estes seriam imitados por seus três companheiros. Em determinado momento, trocam-se os papeis de imitador e criador. Houve um momento de aproveitamento rítmico pleno, no qual se buscava a criatividade para realizar movimentos ainda não propostos, com ritmos relacionados à música que ouviam. Na etapa de internalizar o som muitos afirmaram que ficou mais fácil quando eles pararam de se preocupar com o que os outros iriam pensar e começaram a prestar mais atenção na música e no que sentiam enquanto a ouviam. Muitos pontos foram trabalhados nessa orientação: a escuta, a expressividade corporal, conceito de cópia e a criação, improvisação, pulsação, ritmo, andamento, estímulo à desinibição perante um público, o olhar sobre si e o outro, uso do espaço. Contudo, o principal ingrediente salpicado nessa experiência coletiva foi a instauração do universo criativo e a liberdade para a inventividade, aspectos fundamentais para o desenvolvimento artístico.
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Referências Bibliográficas e Sites AVILA, Marli Baptista. Métodos Ativos: Dalcroze/Willems. Anhembi Morumbi. São Paulo, 2010. Coleção Músicas – Descobrindo a Música. Porto Alegre: Sulina, 2006. DIAS, Rogério. Diferentes escutas. Disponível em diferentesescutas. blogspot.com.br RODRIGUES, Iramar. A rítmica de Émile Jaques-Dalcroze. Instituto Genebra. s.d. SALAZAR, Leonardo Santos. Música LTDA: O negócio da música para empreendedores. Recife: O Autor, 2009. SCHAFER, Murray. Afinação do mundo. Unesp: São Paulo, 2001. SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante. Unesp: São Paulo, 2003. SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Rio de Janeiro: Editora Moderna, 2003. Vocare - Revista do Programa Vocacional. 2ª Edição, 2012.
Rogério Dias. Coordenador do Programa Vocacional Música, equipe sul. É DJ, Produtor Cultural e Arte-educador. Milena Araújo. Ex Artista Vocacionada, atualmente é Artista Orientadora do Programa Vocacional Música no CEU Navegantes, zona sul. Licenciada em música é integrante da Cia. Ópera Vlu, Coral da Cidade de São Paulo e regente-assistente do Coral Mirim da Cidade de São Paulo
Geografia LESTE
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Laura Sobenes. Ação compartilhada – Artes Visuais. Centro cultural Tiradentes
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GEOGRAFIA SUL
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Gonzalo Cuéllar. Trem, espaço poético, Estação da Luz VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
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GEOGRAFIA SUL
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Rosana Antunes. Madeiras recolhidas para xilogravura. Casa de Cultura Cora Coralina
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André Hoff. Vitrine – Galeria Olido
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Deslocamentos
Descolamentos
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Amanda D贸ria
Música “Estranha”: musicalidades tradicionais do Brasil e do mundo Marcus Simon
Geografia LESTE
As minhas orientações no CEU Formosa, pelo Projeto Vocacional Música, estão direcionadas principalmente à prática de repertório, a partir de músicas sugeridas conjuntamente. Trabalho também com a apreciação musical por meio da escuta de CDs e por exibição de vídeos que levo nas orientações. Discutimos e analisamos coletivamente diversos aspectos musicais e estéticos, como forma musical, fórmula de compasso, instrumentação, estilo, performance, entre outros. Além da escuta e da apreciação musical, desenvolvo dinâmicas de grupo com exercícios rítmicos, que desenvolvem a improvisação e a memória, por meio de instrumentos de percussão e de timbres corporais. Os vocacionados tocam violão, baixo, guitarra, bateria, teclado e percussão, e alguns se arriscam no canto. Possuem diferentes idades, níveis e referências musicais. O encontro de gerações distintas possibilita uma ampliação do repertório de todos numa troca de saberes. Como atividade de apreciação musical, proponho um mapeamento das origens étnicas de cada vocacionado, que gera uma pesquisa e discussão sobre a música dos povos de seus ancestrais. São exibidos alguns vídeos com músicas tradicionais indígenas, do folclore brasileiro, dos povos ligados à origem familiar dos vocacionados e de outros povos do mundo, como dos Pigmeus africanos, dos músicos do gamelão de Bali, e dos monges tibetanos, por exemplo. A proposta é provocar a estranheza e a curiosidade dos vocacionados por músicas tradicionais do Brasil e do mundo, as quais ele não está habituado a ouvir, além de proporcionar uma experiência musical auditiva, visual e estética, por meio do repertório e de informações sobre a cultura e a musicalidade de diversos povos. Tais contatos possibilitam a ampliação do repertório musical dos vocacionados, estabelecendo relações com o repertório já conhecido. Desenvolve também a capacidade de discernir e identificar timbres de instrumentos étnicos e convencionais, e de perceber aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos de cada música ouvida, que caracterizam a musicalidade das diferentes culturas. Considero fundamental demonstrar aos vocacionados a importância da música tradicional, e as diversas funções e contextos em que ela acontece nas sociedades do mundo, seja na arte, no trabalho, no entretenimento ou nas práticas transcendentais. Em um trabalho de conclusão de curso de Licenciatura em Música pesquisei a importância da etnomusicologia na educação e as diferentes expressões musicais tradicionais dos povos do mundo, propondo uma série de atividades práticas relacionadas ao tema, com referências bibliográficas, de áudio e de vídeo. A bibliografia em língua portuguesa sobre a utilização de música étnica na educação musical é escassa, segundo o músico e edu-
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cador musical Gabriel Levy. Um bom exemplo é o livro “Outras Terras, Outros Sons”, de Magda Pucci e Berenice Almeida, que aborda a música das três principais etnias formadoras da cultura brasileira: indígena, portuguesa e africana. Apresenta textos de reflexão para o professor, com informações sobre cada etnia e suas particularidades musicais; sugestões de atividades para cada etapa do processo de aprendizado; partituras com comentários e um CD de apoio com gravações de canções indígenas, portuguesas e africanas. Encontra-se uma grande diversidade cultural e étnica entre os vocacionados, e no que se refere ao gosto musical, que se formata por influências familiares, pela escola, pelos amigos, pela mídia, e pela internet. Compartilhando com as ideias de Mônica Zewe Uriarte, no artigo “Duas vivências com música étnica”, que aborda conceitos como multiculturalismo e etnomusicologia na educação, o professor deve “procurar uma relação de respeito aos diferentes gostos, oportunizando que todos se manifestem quanto às suas preferências musicais, abrindo espaço para a ampliação do repertório de todos”. (URIARTE; 2008). É importante que o Artista Orientador conheça e partilhe com os vocacionados as diversas expressões musicais do mundo, para possibilitar uma aproximação com o novo. Assim poderá desenvolver com eles a noção de alteridade e uma consciência mais aberta e global, menos preconceituosa, que respeite as diferentes culturas e fundamente a prática musical, levando em consideração os contextos históricos, sociais e culturais. O interesse pela música tradicional do Brasil e do mundo pode ser o primeiro passo para se descobrir, entender e valorizar os costumes e tradições de um povo. A partir desse conhecimento, o fazer musical poderá acontecer de forma mais consciente e coerente.
Referências Bibliográficas: PUCCI, Magda Dourado. ALMEIDA, M. Berenice. Outras Terras, Outros Sons. São Paulo: Callis, 2003. 167 p. SIMON, Marcus Henrique. Oficina de Música Estranha - Musicalidades tradicionais do mundo: provocações para uma escuta sem preconceitos. Monografia. São Paulo: Faculdade Paulista de Artes, 2012. 51 p. URIARTE, Mônica Zewe. Duas vivências com música étnica. Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, 2008. Disponível em: h t t p : / / w w w. a b e m e d u c a c a o m u s i c a l . o rg . b r / M a s t e r s / a n a i s 2 0 0 8 / 1 0 4 % 2 0 M%C3%B4nica%20Zewe%20Uriarte.pdf QR code: http://www.youtube.com/ watch?v=RrDuymoMSa0
Marcus Simon. Artista Orientador do Programa Vocacional Música no CEU Formosa, zona leste. Licenciado em Música pela Faculdade Paulista de Artes, Baterista e Percussionista
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Vocacional Música saindo do condomínio, caindo na vida Vanderlei Lucentini
Geografia CENTRO OESTE
Art is a dialogue with other art. Joan Jonas
No ano de 2013 entramos pelo mapeamento dos desejos, atravessamos formas e conteúdos e desembarcamos nas leituras, releituras, cópias, clones, simulacros e intertextualidades. A música é uma linguagem artística que tem vivido uma intensa relação com as grandes indústrias fonográficas e do entretenimento e cujas influências refletem-se no comportamento, nas atitudes e nas ideologias do contemporâneo. Partindo de um ponto de contato entre um projeto público e uma avalanche de estímulos promovidos pela mídia, devemos vislumbrar caminhos diferentes para o nosso futuro do pretérito. Dentro do Vocacional Música, ainda que em seu material norteador estimule a prática processual e conceitual, ao invés do produto final. A realidade que se apresenta no constructo artístico tem sido, na maioria das vezes antagônicas, e uma questão que está sempre presente é como realizar o diálogo com essa realidade através dos instrumentais disponíveis da nossa linguagem? Quais são esses antagonismos? A grande maioria dos materiais trazidos pelos artistas-vocacionados em nossas orientações é baseado na canção popular de todos os gêneros e estilos que vem através do rádio, disco, TV, celulares e internet. Além disso, temos dentro desse universo, o bombardeio dos American Idol, Ídolos, Voices, Astros, Programa Raul Gil e outros similares. Algumas questões aparecem e, somente o elemento sonoro/musical no sentido tradicional não tem tido condições para dar as respostas e ampliar os horizontes dos vocacionados. Saindo do campo musical e buscando subsídios em outros campos analíticos, nos direcionamos ao campo do estudo da performance. Patrice Pavis diz: “somente a atuação ao vivo é apropriada como objeto de análise, que a performance registrada ou fotografada, somente um registro adicional ao evento original que aconteceu ao vivo.i Ao contrário do que ocorre nas artes cênicas de palco, a música popular e mais recentemente a música erudita, considera a gravação como uma forma básica que as pessoas têm para obter o conhecimento de uma obra (música). Dessa maneira, por questões históricas, concentuais, históricas e econômicas a gravação musical é considerada como performance, sendo a maneira como o artista faz com que os ouvintes tenham acesso e desfrute desta. Saindo do universo dos estúdios, prática que o Vocacional Música trabalhou nessa trajetória de cinco anos com a gravação de um CD lançado e um DVD ainda no prelo, rumamos a algo constante na nossa realidade e o desejo da maioria dos vocacionados, isto é, o palco.
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Surge um novo desafio ao nos encaminharmos para o universo dos shows, onde a presença física e a personaii performática do músico, a maioria dos casos cantores/cantoras, é amplificada. Philip Auslander pontua três camadas que compõe a construção do performer musical: a própria pessoa (o performer como ser humano), a persona (que corresponde à imagem e ponto focal) e o intérprete (que corresponde ao papel que a persona se movimenta e se insere na música). No caso de uma atuação musical, geralmente todas essas três camadas devem ser acionadas simultaneamente em uma situação performática musical qualquer. O esquema proposto por Auslander é direcionado principalmente para a performance de música popular, que se amplifica na ação do cantor/cantora quando executa uma canção. Nesse caso, percebemos um link direto entre a performance da persona e o discurso da canção. Esse é um dos pontos que teremos muito que trabalhar nas próximas edições do Programa, através de uma compreensão e atenção maior para as questões interpretativas de cada música. Mesmo tendo o foco performático extremamente focado na persona do cantor, os instrumentistas desempenham um papel fundamental na construção de outra narrativa na performance musical. Susan Fast, em seu livro Houses of the Holy: Led Zeppelin and the Power of Rock Music, pontua que o guitarrista Jimmy Page se apresenta como um gênio musicalmente inspirado, enquanto que o baixista e tecladista John Paul Jones retrata a persona de um músico com uma sólida formação técnica-musical dando uma grande carga de legitimidade na construção do som da banda. A persona desses dois músicos da banda faz um contraponto à narrativa do texto cantado pelo vocalista Robert Plant. Esses
instrumentistas equilibram os vetores de forças com a persona estelar do cantor, enfocando a competência musical como instrumentistas nas performances da banda. Esse é outro ponto que teremos muito que trabalhar nas próximas edições do Programa, pois o simples fato de tocar um instrumento exige uma compreensão do todo que está envolvido. A partir desse quadro complexo construído nesses cinco anos do Vocacional Música, tem tornado a ação além dos limites e pré-requisitos para um AO de música, que respondem majoritariamente à formação musical e instrumental dos vocacionados. Tem sido exigido dos músicos em concertos e shows, uma atitude além do musical. A música guarda uma tradição de uma somatória de meios junto com o sonoro. O diferencial deste Programa, que propõe a busca de alternativas artísticas e pedagógicas deverá, em meu ponto de vista, buscar de forma incessante a inter-relação entre as linguagens, tirando-as da zona de conforto dos condomínios, fazendo com que elas caiam na realidade, mesmo que cruel. O tempo é agora.
Patrice Pavis, A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança-teatro, cinema i
A palavra latina persona que significa “máscara”. De acordo com Patrice Pavis “persona traduz a palavra grega que significa papel, ou personagem dramático” e “no teatro grego, a persona é a máscara e o ator se diferencia claramente de seu personagem, pois é apenas o seu executante e não a sua encarnação” ii
Renato Cohen* em Performance como Linguagem, utiliza a palavra persona para designar o modo como um performer se coloca durante a ação performática. O autor parte da premissa de que o “performer vai representar partes de si mesmo e de sua visão de mundo” e, portanto, “na performance geralmente se trabalha com persona e não personagem”. A persona, por sua vez, diz respeito a algo universal, arquetípico, enquanto que a personagem é mais referencial. Assim, compreendemos que o trabalho do performer será o de levantar sua persona, enquanto que o do ator será o de levantar a sua personagem. No teatro da antigüidade, a persona (máscara) é um elemento físico que separa o “eu” do ator da personagem que representa. Para Cohen, persona tem uma função dupla, pois ao mesmo tempo em que separa o artista de uma construção elaborada ficticiamente - a personagem - o coloca numa situação de representação de algo que é elaborado em base com seu próprio contexto pessoal.
Referências Bibliográficas COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989. AUSLANDER, Philip. Performance Analysis and Popular Music: A Manifesto. Contemporary Theatre Review Vol.14, Issue 1, February 2004. Oxfordshire: Routledge, 2004. FAST, Susan. Houses of the Holy: Led Zeppelin and the Power of Rock Music. New York: Oxford University Press, 2001.
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Vanderlei Lucentini. Coordenador do Programa Vocacional Música, região centro-oeste. Compositor, Performer e Mestrando em Estética da Arte pelo PGEHA-USP
O Artista Orientador em movimento Elenita Queiroz Flavio Lima
Geografia NORTE
“O artista é um produto do meio e a arte só pode florescer quando as forças produtivas tiverem atingido certo nível de desenvolvimento.”i Ser Artista Orientador em dança dentro do Programa Vocacional é um processo no qual as possibilidades são mutáveis a todo instante, o construir e desconstruir fazem parte de cada encontro. Saber observar suas reverberações torna o AO um espectador ativo de si mesmo levando corpos ao encontro do antes inimaginável. Dentro do processo criativo o que mais instiga é a procura de ideias que aparecem e desaparecem. Como artistas, estamos acostumados ao fluxo desconcertante e à inconstância do ato criador que visa em seu cerne, a permanência do vivo, do humano em sua plenitude, do individuo em toda a sua potência. Nas palavras de Jorge de Albuquerque Vieira “O ato de criar é uma crise denotativa de um alto nível de complexidade viva. Criar, para nós, é viver, e os cientistas e artistas são aqueles que mais intensamente estão sujeitos a esse impulso vital”ii. Impulso este que tomamos a liberdade de chamar de inquietude; esse sentimento que nos envolve por inteiro, que nos move e nos mantém no não lugar, na incerteza, na dúvida. Nesse tortuoso e intrigante processo, a inquietude própria do artista é nossa maior parceira. Em nosso íntimo, algo está sempre à espreita aguardando o alarde para o rompimento de uma estabilidade tateante, efêmera, quase incômoda. Tão aguardado e ao mesmo tempo tão temido, este alarde surge como um rompimento do padrão anterior e dá vazão ao conflito. Esta dinâmica faz com que nos sintamos instigados à procura do movimento vivo. Uma dança que é feita de forma artesanal, ponto a ponto, lenta e cuidadosamente, como num grande bordado onde o prazer está no momento mesmo da construção, degustando cada ato com paciência e perseverança. Um processo que nos conduz a lugares que foram vislumbrados no início do caminho, mas que podem nos levar a tantos outros ainda desconhecidos. Assim como para o artista criador, o trabalho do Artista Orientador do Vocacional Dança está intimamente ligado à compreensão sensível das dinâmicas ao seu redor. Compreensão que passa principalmente pela escuta e olhar atentos aos contrastes próprios da sua realidade e da realidade de seus locais de atuação. Uma
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das funções do AO é criar procedimentos para compreender e dar vazão a expressão artística das pessoas que se envolvem no Vocacional, e perceber suas necessidades e experiências como cidadãos nesta cidade, que flui de forma complexa e desorde-nada. Todo esse processo que realizamos dia a dia dentro do Vocacional nos leva a refletir sobre a dança e sua importância primordial na sociedade como comunicação expressiva. A dança é uma forma de conhecimento e nós artistas orientadores sabemos como ninguém o quanto ela tem o poder de mover; mover desejos, mover paixões e mover almas,nos conduzindo por lugares nem sempre conhecidos, mas que indubitavelmente nos levam a conhecer, compreender e surpreender. Como diz Jorge Vieira: “Conhecer, logo transformar-se, é crescer em complexidade.” Mas, como seguir no sentido da complexização uma vez mergulhados num sistema de organização social, econômico e cultural que mais pretende a simplificação e a redução do indivíduo em seu mínimo potencial de ação possível? ... Agir e continuar em movimento. “Dance, dance. De outra forma estamos perdidos.” iii
MANIFESTO 1946, http://www.latinoamerica-musica.net/historia/ manifestos/2-po.html. i
VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte. CE Fortaleza. Expressão Gráfica, 2006. ii
WENDERS, W. Pina. Documentário. Alemanha. 2012. (Traduzido livremente do original: “Dance, dance. Otherwise we are lost” - Pina Bausch). iii
Elenita Queiroz. Artista Orientadora do Programa Vocacional Dança no CEU Pera Marmelo, região noroeste. Bacharel e Licenciada em Dança pela Universidade Estadual de Campinas Flavio Lima. Artista Orientador do Programa Vocacional Dança no CEU Paz, região norte. Bailarino, coreógrafo e fisioterapeuta
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Gonzalo Cuéllar. Trem, espaço poético, Estação da Luz
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Trem, espaço poético: Uma cartografia de corpos e paisagens Claudia Palma
Geografia LESTE
Em 2010, houve a desapropriação da comunidade que morava no entorno do CEU Tiquatira de uma forma bastante agressiva por parte da Cavalaria da Policia Militar. A sensação era de não precisar pedir licença para entrar, a invasão era dada pela cavalaria, impotência pelo ou diante ao poder... Demolição. Algumas pessoas sem saber para onde ir, outras se amontoavam em outras casas esperando a próxima ordem. Devastadora pode ser a própria ação corporal como quebrar, bater, jogar, demolir, estraçalhar entre outros... DE-VAS-TA-AÇÃO! Essa desapropriação resultou em varias sensações no corpo da equipe, que eu coordenava, ao longo do ano, seja na comunidade, seja afetando o próprio andamento do CEU. A artista orientadora que ali fazia seus encontros, Isabela Santana, convidou toda equipe para finalizar o ano em uma ação neste espaço - que já se encontrava completamente vazio. Para a Equipe que acompanhou intensamente este processo no CEU durante o decorrer do ano, foi uma verdadeira comoção, a sensação da perda do espaço do chão, da parede, teto, pertences, entre outros... Um ar de vazio muito grande! Este vazio obviamente refletia no corpo do CEU, que se encontrava em total evasão. Nesta mesma ação outra artista orientadora, Isabel Monteiro, comentou que passava toda semana naquele lugar de trem e que a paisagem era em constante movimento, o que mexeu muito com ela também. Neste comentário, surge o meu desejo de entender, por meio dessas mudanças de paisagens, o que acontece com o nosso Corpo, como ele reage diante desses vazios e preenchimentos desses espaços. No ano seguinte optei por estar praticamente com a mesma equipei , o que fortaleceu muito os desejos da mesma. Estarmos juntos novamente significaria grandes desafios, pensando na continuidade e em detectar quais os objetivos seriam comuns para o ano seguinte. O que impulsionaria a equipe? A partir dos depoimentos do ano anterior percebemos então que existiam vários desejos em comum: um deles era entender, por meio do percurso do trem, as relações entre espaço, tempo, corpo e paisagem: cartografia. Entender o corpo num território em fluxo contínuo, em transformação, com seus esvaziamentos e preenchimentos dos espaços, emergindo uma questão: O quanto isso nos afeta? Para tanto fui pesquisar Suely Rolnik, Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo, para tentar compreender as transformações da paisagem, espaços móveis. Para os geógrafos, a cartografia - diferentemente do mapa, representação de um todo estático - é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de transformação da paisagem.
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“O cartógrafo é um verdadeiro antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorando. Está sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas:descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. Aliás, “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima - céus da transcendência -, nem embaixo - brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem. O que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo de sensibilidade, que ele se propõe fazer prevalecer, na medida do possível, em seu trabalho. O que ele quer é se colocar, sempre que possível, na adjacência das mutações das cartografias, posição que lhe permite acolher o caráter finito e ilimitado do processo de produção da realidade que é o desejo. Para que isso seja possível, ele se utiliza de um “composto híbrido”, feito do seu olho, é claro, mas também, e simultaneamente, de seu corpo vibrátil, pois o que quer é aprender o movimento que surge da tensão fecunda entre fluxo e representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização de territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representações e, por sua vez, representações estacando o fluxo, canalizando as intensidades, dando-lhes sentido. É que o cartógrafo sabe que não tem jeito: esse desafio permanente é o próprio motor de criação de sentido. ”. Suely Rolnik
Desta forma propus uma analogia entre as relações do processo Artístico (Material Norteador) em dança com a linha do trem, ocupação dos espaços (Nômades), plataformas, fluxos, paradas, descidas, entradas, saídas... Caminhos que cruzam, descruzam e que se entrelaçam...! Corpo Híbrido de linguagens e pensamentos. - Programa Vocacional! Mais questões surgiam: O que acontece quando misturamos nossos corpos num mesmo espaço? O que a paisagem modifica no meu corpo e vice e versa? Como meu corpo se modifica a partir do trajeto? Para onde ir? Por onde seguir? Qual caminho escolho? Foram questões que nortearam a Equipe durante 2011 e 2012. Um dos desejos da equipe, também era dar visibilidade ao programa, colocar-se a vista, tornar-se presente. Ser percebido pela cidade era uma meta.
Esta ação só foi possível pela parceria estabelecida com a CPTM que tão bem entendeu nossos anseios, mostrar processo em trânsito, transformação constante. A primeira ação foi realizada em 16 de julho de 2011 sentido: Centro Estação Brás – periferia Calmon Viana, que era a partida dos artistas orientadores para seus equipamentos em direção a periferia. A outra estratégia, seria a volta, sentido: periferia Estação Calmon Viana – centro Estação Brás, em 27 de novembro. A importância dos olhares era fundamental para cada pesquisador artista, entender o corpo em perspectivas diferentes, ou seja - a partir das transformações das paisagens, e principalmente as mudanças propostas nesse espaço de tempo entre julho e novembro. O que modificou? Essas ações (Mostra de Processos Artísticos) foram realizadas pelos vocacionados nas plataformas de cada estação de trem referente a um equipamento do Programa (deste trajeto, Zona Leste 1) e várias intervenções nos vagões dos trens, orientados pelos artistas orientadores de dança, teatro e música. Um dos procedimentos foi em um dos vagões quando colocamos um rolo de papel Kraft no qual cada passageiro teria a possibilidade de se expressar caso desejasse. Ali foram impressas palavras de ordem absolutamente poéticas, onde o que importava era mais uma vez a sensação do pulsar do trem, quais são as sensações em relação ao que vejo? A transformação se dava por dentro e por fora, seja em quem participava ou simplesmente documentava. A apreciação tão desejada por todos nós do programa se dava ao mesmo tempo da ação. A reverberação dessa ação nos impulsionou para mais um ano de grandes desafios. O trem passou a ser um pedido dos vocacionados e artistas orientadores. Em 2012 mais ousada, a equipe convidou equipes de outras regiões: sul, norte e centro-oeste, com o desejo de integrar o olhar para os Processos Artísticos e a diversidade da dança na cidade de São Paulo, Ocupar espaços transitórios... Assim, em setembro do mesmo ano, estabelecemos um ponto de encontro que foi a Estação da Luz, um marco na cidade de São Paulo. Vários vocacionados vieram de suas regiões e nos encontramos numa grande celebração da DANÇA. “TREM ESPAÇO POÉTICO” aconteceu como uma ação para criar novos desafios, tentar sanar algumas angustias, fortalecer a equipe e propor novos caminhos.
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“TREM ESPAÇO POÉTICO”: Um lugar de trânsito, uma ação que começou a movimentar a equipe de uma forma diferente, com um propósito de agregar, criar novos diálogos, parcerias, novos espaços, novos trajetos, habitar espaços nômades, em constante deslocamento, principalmente deixar os processos criativos num fluxo contínuo. O desejo é ampliar esta ação cada vez mais, fortalecendo os encontros e o Programa Vocacional. Em 2013 novos rumos, nova equipe, novos anseios, mas ainda com o desejo de preencher cada espaço possível, sermos visíveis, OLHAR PARA A CIDADE COMO UM GRANDE CORPO, móvel e flexível, percorrer os trilhos com suas retas, curvas, caminhos... Que a bagagem conquistada a partir da ação do Trem, perdure.... Em, no e pelo movimento. Pela dança. Referências Bibliográficas ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989. CEU Quinta do Sol: A.O - Ivo Alcântara - CEU Tiquatira: A.O. Guilherme Almeida - CEU Vila Curuçá: A.O Enoque Santos - CEU Parque Veredas: A.O. Carolina Minozzi - CEU Três Pontes: A.O Kleber De Paula - Casa de Cultura Itaim Paulista: A.O Tatiana Melitello. i
QR code 1: http://www.youtube.com/watch?v=pTiq71HSaQY&feature=youtu.be QR code 2: http://www.youtube.com/watch?v=4T2AwDpwHnE&feature=youtu.be
Claudia Palma. Coordenadora do Vocacional Dança, equipe Leste 1. Diretora e coreógrafa da In Saio Cia. De Arte. Docente no curso de pós graduação na Universidade Gama Filho e Faculdades Metropolitanas Unidas
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Gonzalo Cuéllar. Trem, espaço poético, Estação da Luz
Homo viator: aquele que se desloca no processo de criação artística Odino Fineo De Andrade Pizzingrilli
Geografia são Paulo
Oh larguesas do meu itinerários... (Mario de Andrade, Anhangabaú, Paulicéia Desvairada, 1922)
Neste artigo pretendo apresentar algumas de minhas impressões, inquietações e sensações de viagem: anotadas, sentidas, percebidas e provocadas durante meus constantes deslocamentos, enquanto coordenador regional de artes visuais do Programa Vocacional — do extremo sul ao extremo norte — da cidade de São Paulo. Deslocamentos esses que me levaram a pesquisar a integração desse procedimento ao processo de criação artística, bem como a investigação das diversas possibilidades de deslocamentos, e o que está envolvido nessa vivência física e sensorial.
A professora Dra. Fabiana de Moraes, em seu texto “Das noções de deslocamento e deslocação e sua relações com a arte”, nos provoca a romper com a inércia e com a acomodação no ir e vir na cidade, pelo deslocamento do corpo: Essa nova poética baseia-se num deslocamento físico, do próprio corpo do artista em processo – o caso de Pollock - como aquele que produz resíduos, que deixa rastros, traços de passagem. O processo é o foco de concentração do artista, assim que os gestos de liberdade que deslocam a relação da arte com o projeto, o pré-concebido, colocando-a em relação direta com o “inesperado”, com o inconsciente já liberado pelas práticas surrealistas, por um corpo que, ao poucos e cada vez mais, torna-se lugar da arte. (MORAES; 2012:10)
Caderno de Viagem: Manhã de inverno, o sol adentra a janela da sala... Ensaio as primeiras palavras deste artigo. Recolho anotações, desenhos, fragmentos de papéis com nomes, com datas. Itinerários para chegar aos espaços: mapas do Metrô, da CPTM... Enquanto o sol adentra a janela da sala. (PIZZINGRILLI; 2012:32)
Deslocar o corpo pela cidade é simplesmente andar, sem sentido ou direção específica para determinada ação peculiar, mas qualquer que seja o andar, esse ato dialoga constantemente com o mobiliário urbano: caixa do correio, orelhão, banca de jornal, tapumes de obras, paredes que se oferecem como suporte, pisos, cestos de lixo e outros... Tudo vai se sobrepondo à visão, ao mesmo tempo em que a pesquisa, como busca espontânea, começa a desenvolver-se durante o ato de percorrer os espaços e antes mesmo de conhecer os acontecimentos passados no lugar, pressupõe-se uma imaterialidade individual e coletiva, experienciadas durante o percurso, sendo este o primeiro passo para uma apropriação e ação poética. Compõe-se assim, um “roteiro do olhar”, como camadas que se agregam em argamassa, cujo aglutinante é a água, e essa sendo liga flexível, propicia movimentos leves feito um rio, que durante seu curso movimenta vários elementos agregados às margens, levando o fluxo de água de forma tênue ou inquieta e arrebatadora, como um tsunami que arrasta tudo para uma nova formação no espaço, numa dinâmica mais abrangente e simbólica para novas proposições sensoriais. Comparo a água/aglutinante, que propaga esses movimentos, ao homo viator (do latim: homem caminhante) que, com seu corpo em dinâmica e tônus, provoca o outro (o mobiliário urbano e os transeuntes na cidade) a um movimento maior ou menor e, é aí que, a massa física rompe o estado de inércia ou de acomodação.
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Caderno de Viagem, anotação I: Território Leste da Cidade, Deparei-me com dois malabaristas e foi inevitável a observação: o corpo no esforço e as formas do positivo e negativo que iam se recriando como ondas, as correspondências entre as linhas, manchas, transparências... O ir e vir, neste território, o borbulhar de relações que se descobrem e se destacam, durante a movimentação dos malabares: o artista orientador e o vocacionado, que juntos carregavam uma escada grande, a escada que daria acesso ao espaço de intervenção. (PIZZINGRILLI; 2012:10)
Vou me apropriar do termo “decomposição” - como deslocamento de algo para se criar novas estruturas - tanto o mobiliário urbano quanto o corpo se decompõem: da cor pela ação do tempo, da massa física e suas estruturas, das texturas, que corroídas pelo tempo se deformam, da forma e, por fim, do próprio corpo como forma de criar novas possibilidades para, estas “deslocações”, acontecerem de maneira consciente, tornando possível a reflexão do processo individual e coletivo. Portanto, a reorganização de cada um dos elementos citados, na criação de novas estruturas, dialoga com intensidade, verdade e, de maneira sensível, propõe novos discursos e outras visualidades. Dessa forma, o artista em devaneios se organiza em “deslocações” para novas estruturas físicas e relacionais, que podem ser de estranhamento ou de afinidade, propondo assim, ao homo viator, novas percepções. Que podemos chamar de “experimentar o experimental” – como dizia Helio Oiticica. Então, afirmo que o ato de andar pela cidade é exercer, na prática, a liberdade: nada de restrições ou limites.
Noéli Ramme comenta: “Exercício experimental da liberdade” significa aqui dar ao público a oportunidade de experimentar a criação. Experimentar o experimental, a liberdade, diz Helio Oiticica, é viver em estado de invenção. O público vai experimentar a criação em primeira mão e não através da ficção que é a obra enquanto objeto para um sujeito. (RAMME; 2010:477)
Caderno de Viagem, anotação II: Manhã calma, mas nada anda! O trânsito, o transporte coletivo, o pensamento... Neste início de dia, tudo parece paralisado: as ideias e as ações cotidianas também. Estou indo sem material, pois não tive expediente para me preparar. O tema é “janela”, possível para pensar em gato, vaso, flor, namoradeira, fechada, aberta, trem, casa, carro, ônibus, alma, olhos, buracos, olhar discreto, olhar indiscreto... Estou indo... Ao final, observo: da ladeira vem descendo “um tipo daqueles para ser impresso”, fazendo poses e caretas, querendo ser pintado no muro. Logo, dois meninos (oito anos) chegam, de última hora, perguntando de tudo: “o que é isso?”, “para que?”, “nós podemos fazer?”. Respondemos: Sim! E o espaço foi dado aos meninos. Saio dessa ação com a premissa: O ato de compartilhar as imagens e coletivizar as ideias é o de propor uma emancipação de sensações, sentidos e sentimentos. É aglutinar em uma única matéria: imagens em composição de emoções. Desse modo, o pensamento se traduz nas ações individuais, que vão se aglutinando em um senso coletivo e fomentando a matéria: muro, tinta, o corpo em formas, linhas, cores e espaço. (PIZZINGRILLI; 2012:21)
Nos deslocamentos, também, se encontram as vivências físicas: aquilo que o corpo sente e como se relaciona com o espaço ao se deparar, por exemplo, com corpos, dezenas deles andando incessantemente por uma via em várias direções que, na perspectiva de não bater, desviam, sugerindo reflexões que alteram nosso andar e a nossa postura, criando assim novas formas no espaço. Inserido, inevitavelmente nessa efervescência, o homo viator experimenta a intensidade e a multiplicidade de trocas e confrontos de ideias, de opiniões, maneiras de ver, de imaginar e de sentir a
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sensibilidade que carrega no corpo. Provocando, desse modo, o pensamento e as memórias estimuladas por essas expressões, que dialogam com a pluralidade existente nesse espaço e, ao mesmo tempo, com o processo do percurso criador, os reconhecendo como “evoluções” inovadoras, reconhecidas e consideradas como inusitadas. Ao longo do trabalho, a observação foi cuidadosa, o que me possibilita concluir, neste momento, que os deslocamentos se integram ao processo criativo pelas informações que são capturadas ao caminhar. Agregados, esses registros poéticos partem da ação individual para o compartilhamento coletivo, permitindo a criação de um roteiro do olhar, não como algo compartimentado, mas sim como “larguezas” para um “observatório da memória”: lugar de acolhimento das informações que permanecem para apreciação, reflexão e uso posterior em possíveis provocações e em ações das multimudanças na paisagem urbana. Nesse percurso, o roteiro do olhar não traça cronologias ou “evoluções” temáticas, trata da percepção de certas sobrevivências cambiantes do “observatório”, identificando não a origem dessas aparições, mas o diálogo entre os registros poéticos e a liberdade do processo criativo como rede de criação; que não está imune ao câmbio, mas penetrável e provocadora a novas ações. Referências Bibliográficas e sites MORAES, Fabiana de. Das noções de deslocamento e deslocação e suas relações com a arte. Disponível em: http://www.polemica.uerj. br/pol18/cimagem/p18_fabiana.htm PIZZINGRILLI, Odino Fineo De Andrade. Caderno de Viagem: Homo viator, aquele que se desloca no processo de criação artística. (2012-2013) RAMME, Noéli. Arte como exercício experimental da liberdade. In CD do Congresso Internacional: Deslocamentos da Arte. Belo Horizonte: IFAC, 2010.
Odino F. A. Pizzingrilli. Coordenador do Projeto Vocacional Artes Visuais. Artista Plástico graduado pela Universidade de Belas Artes de São Paulo. Especialista em Gravura pela Fondazione Il Bisonte per ló Studio Dell’Arte Grafica, Firenze-Italia
Vocacional Livre Versão Beta Leandro Hoehne e Herbert Henrique Jesus de Souza
Geografia LESTE
Código Fonte: Com o avanço das tecnologias essas estão se tornando cada vez mais presentes em nosso cotidiano. Tal conjectura tem impactado concretamente sobre a sociedade contemporânea, as relações humanas, as culturas, a forma de se fazer política, etc. Por meio das redes sociais, grupos se proliferaram no Oriente Médio derrubando ditaduras. Esse grito do Oriente por uma descentralização do poder ecoa por todo o mundo surgindo coletividades que buscam uma forma de política cada vez mais coletiva, uma política compartilhada. Recentemente o Brasil está sendo palco de grandes manifestações. Os “memesi ”, o Harlem Shakeii , entre outras manifestações expressivas atravessam os territórios das soberanias nacionais compondo uma cultura mundial. Nesses casos não há o poder centralizador de uma autoria, e se há não interessa, pois existe a possibilidade de apropriação e reinvenção da forma, criando uma polifonia de autorias. As tecnologias trazem consigo novas possibilidades de coletividades, modos de organização e de produção. Como estas novas formas de organizações coletivas, sem um protagonismo explícito, interferem diretamente na produção de subjetividade e, consequentemente, na relação AO e artistas vocacionados na tentativa de instauração de processos criativos emancipatórios? Como pensar práticas que dêem conta dessas outras coletividades? Fico pensando se ao invés do protagonismo individual, que parece soçobrar diante das novas formas de organização coletiva, não estaríamos adentrando a seara daquilo que Michel Foucault chamou de cuidado de si, no qual cada um assumiria a responsabilidade ética de seus atos não necessitando que estes fossem ‘’governados’’, “ditados” por um líder. Tal prática exigiria um ‘autogoverno’. A linguagem de programação, própria da ciência da computação, nos oferece outra possibilidade para pensar dimensões do real. Cada vez mais próxima do cotidiano das pessoas, a tecnologia guarda mistérios sob seu uso prático e corriqueiro, tendo seus processos e estruturas velados e controlados pelas grandes corporações da indústria tecnológica na medida em que a inovação, a funcionalidade e a eficiência são os principais valores agregados de um mercado bilionário. Na contramão dessa lógica de mercado, o software livre se propõe gratuito e com os processos e estruturas de programação abertos para serem reprogramados coletivamente, sem domínio de uso e direitos de criação e distribuição. Existem comunidades mundiais de cooperação para resolução de problemas e para criação de sistemas, programas, complementos, etc. Se por um lado existe um domínio particular dos modos e meios de produção, existe no software livre, como um sistema aberto, a possibilidade dessa produção ser coletiva e descentralizada. Como exemplo, o sistema operacional Windows é um sistema de propriedade particular da empresa multinacional Microsoft.
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Sua programação é fechada e seu modo de produção funciona de modo centralizador. A Microsoft é a detentora das soluções dos problemas/erros que aparecem no programa. Sendo assim, ela é a detentora dos códigos. Qualquer erro que ocorra no sistema deve ser reportado para a central da Microsoft para que essa o corrija. O Sistema operacional Linux possui uma lógica inversa a da Microsoft. Como um sistema operacional aberto, qualquer programador detém seus códigos e estruturas, torna-o autônomo para reprogramar o sistema de acordo com suas necessidades, sejam elas necessidades funcionais ou de experimentação/ criação de novos recursos. O que nos revela, estimula e inspira este movimento da cibercultura (enquanto contracultura?) em analogia aos processos artísticos pedagógicos do Programa Vocacional? É possível estabelecer um Encontro como “programação aberta”? Se sim, como? Quais são as possibilidades em pensar um espaço de criação cujos processos coletivos partam de sua raiz de programação-encontro, na co-produção de sua estrutura, entre os diferentes atores do sistema? E ainda, este sistema estaria aberto para se reprogramar a cada nova proposta, interferência, acidente? Como se dá essa reprogramação, de forma horizontal, coletiva? A programação aberta é uma possibilidade de insurgência poética e, portanto, um processo criativo emancipatório? Lançando olhares para o programa vocacional, tendo seu objetivo fomentar processos artísticos emancipatórios, acreditamos que o modo de produção da programação livre é a que mais se aproxima desse pensamento. É necessário para isso pensar as relações constituídas entre as partes do programa. Necessário abrir os códigos/gramáticas e estruturas do programa para a programação coletiva, estabelecendo assim a relação entre suas partes não como a reportagem de erros/problemas para instâncias superiores, mas a abertura para que todas as instâncias possam pensar o sistema. O material norteador como um norte para as orientações poderia nos possibilitar a abertura para a criação de versões diferentes de acordo com as necessidades de cada coletividade.
Contexto de discussão na equipe: A temática “programação aberta” surgiu na equipe Leste 3iii a partir da reflexão sobre os processos artístico-pedagógicos vivenciados a partir de práticas experimentadas nos encontros dos artistas-orientadores Leandro Hoehne e Herbert Henrique em suas turmas, no CEU Jambeiro e CEU Água Azul, respectivamente. Quando expuseram para a equipe as suas práticas e as materialidades criadas pelos vocacionados, percebeu-se um elo entre ambas, a ecoar enquanto questão também nas práticas dos outros artistas orientadores, experimentadas de formas distintas nas turmas, porém com questionamentos comuns. Sendo assim, iniciou-se uma busca de aprofundamento de questões específicas sobre o universo da programação aberta/ software livre a ser compartilhada de forma horizontal com a equipe, fazendo uso das plataformas Reunião de Pesquisa-Ação e Hipertexto no GoogleDocs. Nesse meio de caminho a discussão e produção de textualidades saem da dupla de artistas-orientadores para alcançar outros níveis de produção coletiva entre os demais AOs e também vocacionados. A temática deixou as plataformas de discussão teórica para explorar outras práxis, como escrita ensaística simultânea no GoogleDocs e compartilhamento de materialidades entre turmas para que fossem reprogramadas (a partir de proposta criativa apresentada pelo artista vocacionado Carlos Hideo do CEU Jambeiro a ser trabalhada pela turma do CEU Lajeado orientada pelo AO João). Assim o processo de escrita e reescrita deste texto passa a ser aberto em sua estrutura e será assim que pretende-se, enquanto proposta, para a revista Vocare. A partir de sua abertura outras questões aparecem, com possibilidades de inserção de comentários, hiperlinks, referências teóricas, inserções audiovisuais. Surgem novas ideias e novas plataformas para criação, discussão e compartilhamento, como o código QR (espécie de código de barras digital), a cultura Wiki e as plataformas de Realidade Aumentada.
Formato proposto para a revista: É importante que o formato do texto para a revista seja pensado de acordo com a temática e dos processos vivenciados a partir dela até então. Portanto será preciso pensar outras interfaces para que o diálogo com o leitor não se dê em caráter excluso às informações contidas no texto, mas que o leitor possa também ser o programador dessas ideias, sendo este texto (ou hipertexto) também aberto. Foram pensadas algumas possibilidades, como lançar uma versão beta do texto na revista e redirecionar o leitor para um documento no GoogleDocs, textualidade inspirada no poema Um Lance
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de Dados, de Stéphane Malarmé. Iniciamos uma pesquisa acerca da Realidade Aumentada, permitindo que a leitura via smartphones faça que uma imagem impressa se torne tridimensional no aparelho, ou vire um vídeo (tal qual experimentado em alguns consoles de game como o Nintendo 3DS). O texto e seu formato não estarão fechados com a publicação na revista, que permanece aberta no Google Docs, com o link disponibilizado em QR Code no início do ensaio, não encerrando a forma de apresentação do texto (publicação) e possibilidades de abertura da discussão em sua radicalidade. Para tanto, é preciso experimentar diferentes plataformas de programação livre de forma coletiva - entre equipe, equipes, artistas vocacionados, leitores. A própria escrita ensaística possui sua estética aberta, passível de ser reescrita, recodificada. Convocamos o leitor, portanto, para que ele seja um co-autor deste ensaio, um colaborador desta escrita, com a possibilidade de desdobrar este material em outros formatos de distribuição. O Vocacional Livre versão beta pode ser visto como uma distribuição possível do kerneli Material Norteador, que está aberto para ser reprogramado a partir de cada contexto/equipe vocacional. Em sua concepção originária, o meme é um conceito criado pelo biólogo Richard Dawkins, em sua teoria memética no livro O Gene Egoísta. O meme é uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro ou entre locais onde a informação é armazenada como livros ou internet. Na acepção aqui empregada no texto, o meme é uma ideia que é propagada através da internet em formato de imagem, vídeo ou texto. Essa informação pode “evoluir” de acordo com as rearticulações de um co-autor. i
O Harlem Shake, na acepção empregada no texto, é um meme em formato de vídeo amplamente multiplicado como viral pela internet. ii
é referência à equipe de teatro formada pelos artistas orientadores dos CEUs Água Azul, Azul da Cor do Mar, Inácio Monteiro, Lajeado, Jambeiro e Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, coordenados por Luiz Cláudio Cândido iii
Kernel é uma palavra inglesa que significa “núcleo”. Em Informática, o núcleo é a parte principal do sistema operativo do computador. A função do núcleo do sistema é conectar o software ao hardware, estabelecendo uma comunicação eficaz entre os recursos do sistema. iv
QR code - http://goo.gl/5nDQw2 Leandro Hoehne. Artista Orientador do Programa Vocacional Teatro no CEU Jambeiro, região leste. Formado em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP. Integra há 10 anos o coletivo de teatro e circo Grupo do Balaio. É articulador dos movimentos culturais Rede Livre Leste e Fórum de Cultura da Zona Leste Herbert Henrique Jesus de Souza. Artista Orientador do Programa Vocacional Teatro no CEU Água Azul, região leste. Artista Performer da Descompan(h)ia Demolições Artísticas iLtda
O Labirinto do Ensaio Murilo Gaulês
Geografia NORTE
Sou livre. As ideias simplesmente vêm e me carregam para qualquer lugar. Amo a sensação que chamo de “espaço entre”. É quando você deixa sua casa, seus hábitos, uma situação de segurança, mas ainda não chegou a um novo lugar, onde vai construir novos hábitos. O “espaço entre” é a viagem, quando você está completamente aberto ao destino, às novas ideias. Esse é um dos mais criativos espaços para os artistas estarem. Marina Abramovic
Ensaio: Experimentação prévia destinada a verificar se algo serve ou não para determinado fim. Exame, prova, análise, experiência, verificação, tentativa. E é nesta tentativa que o trabalho do Vocacional vai, em cada um de seus equipamentos, galgando degraus e propiciando suas descobertas. Num ir e vir constante de ações e reflexões que se atravessam e se modificam num ato coletivo de construir aquilo que ainda não se conhece. Estamos gerando vida e como tal, essa vida segue seu rumo de forma autônoma e independente. Não importa as opções selecionadas, mas para que haja vida é fundamental a conquista desse lugar/não lugar da efemeridade, do imprevisível. É preciso trafegar por uma estrada com infinitos cruzamentos que levarão a diversos pontos, mas que poderão fazer com que cumpramos nosso objetivo e saiamos dessa jornada com ares de satisfação ou frustração. O ensaio é um tráfego pelo labirinto, onde é importantíssima a aquisição e uso de um fio de Ariadne para nortear os acertos e erros, conquistas e frustrações do processo. Esse labirinto visto de cima, é uma contemplação do artista do todo da obra. Um vislumbramento do caminho trilhado e das possibilidades escolhidas e abandonadas. Um caminho escuro no qual não fazemos a mínima ideia de onde estamos pisando ou no que podemos esbarrar. É um espaço de mistérios e prazeres que nos moldam e delimitam, criando e rompendo barreiras criativas. Larrosa cita que o ensaio pode ser visto como: “... o modo experimental do pensamento, o modo experimental de uma escrita que ainda pretende ser uma escrita pensante, pensativa, que ainda se dá como uma escrita que dá o que pensar; e o modo experimental, por último, da vida, de uma forma de vida que não renuncia uma constante reflexão sobre si mesma, a uma permanente metamorfose (LARROSA; 2010:32).
O ato de ensaiar é uma prática inerente de nossos processos, que provoca mudança, desconforto, dúvida, reflexão, movimento. O iniciado no labirinto vocacional é convidado a passar por inúmeros testes coletivos e individuais que ressignificam a sua própria existência e seu olhar universal. Somos todos convidados a mobilizar nossa sensibilidade, realocar nossos conceitos e racionalizar sobre o todo em um tempo presente, com memória do passado e perspectiva de futuro.
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Temos por natureza uma sede de aprender o tempo todo e por isso estamos constantemente correndo no escuro desse lugar desconhecido, munidos de preciosas ferramentas que podem ou não facilitar a caminhada. Na mão uma lanterna, o desejo, que nos guia e nos aponta os caminhos que claramente iremos seguir. A intensidade da chama que nela se acende nos dirá o quão longe conseguiremos enxergar nesse caminho e o quão fundo adentraremos essa estrada numa travessia sem fim, que nos levará cada vez mais além. Às vezes esta chama enfraquece, ou então, por um descuido no caminho, um vento a apaga, e voltamos a ficar no escuro, e é nesse momento que decidimos parar de caminhar e sentar a espera de algo que nos tire de onde não posso mais enxergar. Daí a necessidade da espontaneidade, outra ferramenta que nos ajudará a reacender ou a fortalecer a chama do desejo. Essa chama pode ser alimentada de várias formas. Assim como uma lamparina que pode ser acesa com fósforos, acendedores, faíscas de fogo ao friccionar duas pedras, ou até trocando as pilhas, se a lamparina for elétrica; o desejo também possui vários caminhos para ser despertado. Mas então vem a questão da individualidade, e como nem todas as lanternas são iguais, a lamparina do desejo também tem a sua peculiaridade em cada indivíduo. Por isso é preciso entender o instrumento do desejo de cada indivíduo para saber qual a melhor maneira de reacendê-lo. Enquanto tentamos reanimar a luz do desejo dessa nossa vontade que nos mobiliza a caminhar pelo labirinto não importando o desafio, àqueles que parecem tê-la deixado assoprar por algum vento hostil que cruzou a travessia, também temos que manter a nossa chama acesa para não acabarmos caindo na mesma escuridão e nos perdermos também. É um reanimar coletivo constante. Trazer pra si os nós de cada fio no labirinto. Encontrar os nós, os laços em comum. Trabalhar com NÓS. Uma lanterna num lugar escuro deve ser algo muito valioso. E será que por ser algo de tão nobre valor, você deixaria qualquer um tocá-la ou manuseá-la independente da sua intenção? Em quem confiar o meu desejo? Pois este é o nosso segundo e talvez mais importante passo nessa jornada: a criação do vínculo. Construir um laço de verdade e confiança que nos una nessa jornada e que nos permita tocar o outro sem que estes se assustem ou receiem ficar no escuro por compartilhá-la conosco. A investigação ensaística é um ato coletivo que necessita da afetividade para se manter nessa instância. Com um vínculo bem estabelecido temos a oportunidade de realizar experiências em nossas ferramentas de caminhada para trazer à luz todos nós, envolvidos na travessia. Conseguimos assim uma liberdade maior para explorar os caminhos que o ensaio nos oferece.
VOCARE 2013Improviso Revista doArt Programa Vocacional 89 Sobenes. Laura ArtĂstico. Coreografia: E a nossa cultura chora
Cada viajante carrega consigo uma mala com todas as suas experiências e vão coletando novas pedras preciosas para este invólucro durante a travessia. Essa experiência alimenta durante a jornada e sacia a sede de todos os envolvidos em cada parada, em cada almoço poético, em cada lanchinho reflexivo. “A palavra experiência, derivada do latim experiri, traz consigo o sentido de provar, tentar. O radical é periri, que se encontra também em periculum, perigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia. O que nos sugere a noção de se colocar em risco, de se embrenhar em zonas desconhecidas, cruzar regiões perigosas, e que nos possibilita pensar a experiência poética como perdição na linguagem, como invenção de possibilidades de fazer soar o desconhecido, o não dito, como percurso de produção de conhecimentos e de subjetividades. O que não tem nada de irracional e muito menos de confusão, mas que se afasta da razão instrumental e instaura o prazer de um procedimento que se contrapõe ao modo meramente operante de ver, sentir e pensar a vida”. (DESGRANGES; 2012:16)
A experiência alimenta o ato do ensaio e retorna à origem gerando uma nova experiência, isso em um ciclo infinito de retornos criativos. Munidos de todo material básico, ainda é necessário entender que outros itens carregamos para continuar a nossa viagem, pois como todo bom viajante, sempre trazemos conosco materiais que achamos particularmente necessários para seguir o rumo. Já parou para perceber que cada um de nós, ao viajar, preenche suas malas as mais diversas coisas “indispensáveis”. Outros poderão abrir a sua mochila e dizer: “Mas pra que isso? Desnecessário levar isso pra viajar”. Mas para você estes itens são fundamentais. Segundo Rubem Alves: “Ferramentas“ são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia a dia. “Brinquedos“ são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma. No momento em que escrevo estou ouvindo o coral da 9ª sinfonia. Não é ferramenta. Não serve para nada. Mas enche a minha alma de felicidade. Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo educação. [...] Ferramentas me permitem voar pelos caminhos do mundo. Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre, vendo as asas crescer... (ALVES; 2004:2)
Basta olhar para todos estes materiais, todos os itens que transportamos em nossa bagagem, nossos brinquedos e ferramentas, para descobrir qual a causa que nos faz, muitas vezes, sentir essa jornada como algo tão difícil e doloroso. Pode ser que estejamos carregando peso demais na bolsa, que precisemos consertar alguns itens imprescindíveis, enfim, voltamos novamente a toda aquela gama de possibilidades.
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Daí vem outro elemento da jornada: O desapego. Desapego: Soltar, entregar, deixar ir, deixar partir, fluir. Viver no presente sem o peso do passado, sem expectativas para o futuro. Saber de nossa finitude, que somos passageiros, sem posses, sem medo, sem culpas. O desapego fomenta a efemeridade do processo, gera o novo, propõe desafio, provoca o risco e gera tentativa. Renuncia aquilo que não nos cabe mais e nos coloca sempre no aqui-e-agora. Facilita a viagem. Essa é a grande tarefa do iniciado/vocacionado. Encontrar o que nos impede de prosseguir viagem sabendo que todos somos capazes de atravessar o caminho. É fazer uma sondagem da bagagem e do espaço, a fim de procurar aquilo que nos impede de dar o próximo passo. Elaborar e pesquisar. Ir a fundo nessa mala e ver o que nos sobra e o que nos falta. Toda viagem pode ser planejada e isso evita que uma série de inconvenientes aconteça durante sua trajetória, embora não garanta nada quanto a sua realização. Este é o universo do nosso ensaio. Deliciosamente perdido, em busca, presente, constante e emergencial. Olhos abertos e malas nas mãos porque a viagem já está acontecendo.
Referências bibliográficas ABRAMOVIC, Marina. Não há Paraíso. Revista Select. São Paulo, número 11, pp. 25-28, julho/2013. ALVES, Rubens. Gaiolas ou Asas. A arte do voo ou a busca da alegria de aprender. Porto: Edições Asa, 2004. DESGRANGES, Flávio – A Inversão da Olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Editora Hucitec, 2012. KOUDELA, Ingrid Dormien - Texto e Jogo. São Paulo: Perspectiva, 1999. LARROSA, Jorge – A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiarse no pensamento, na escrita e na vida. Minas Gerais, UFMG, 2010. PICHON-RIVIÈRE, Enrique - Processo Grupal. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Murilo Gaulês. Artista Orientador do Programa Vocacional Teatro no CEU Paz, região norte. Licenciado em Artes Cênicas e Especialista em Psicopedagogia e Arteterapia pela Faculdade Paulista de Artes. Diretor da Cia. Anônimos de Teatro
VOCAREâ&#x20AC;&#x201C;2013 do Programa Vocacional 91 Nojima Dau CEURevista Uirapuru
Programa Vocacional
Equipe 2013 92 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Amanda D贸ria
Divisão de Formação 2013 Diretor Amilcar Ferraz Farina Coordenador Administrativo Ilton Toshiaki Hanashiro Yogi Equipe Gilmar China Kane Bueno de Souza Leite Mercedes Cristina Rocha Sandoval Beatriz Salles Lima Isabella de Souza Rodrigues
Programa Vocacional Coordenadores de Projeto Ivan Delmanto Franklin de Matos José da Silva Romero José Leonel Gonçalves Dias Odino Fineo de Andrade Pizzingrilli Wilson Julião da Silva Júnior Coordenadores Artístico-Pedagógicos Alan Albert Scherk Ana Cristina Curvello de Araujo Petersen André da Silva Monteiro Claudia Aparecida Polastre Claudia Palma da Fonseca Douglas Clemente de Souza Eliana Claudina Monteiro Gabriela Flores Nunes Ipojucan Pereira da Silva Irlainy Regina Madazio Luciano Gentile Luís Fernando Cerveira Reys Luiz Claudio Cândido Mara Heleno Fernandes Marcelo Francisco do Nascimento Mayki Fabiani Olmedo Melissa Migueles Panzutti Miriam Dascal Nathalia Catharina Alves Oliveira Paulo Sérgio Fabiano de Oliveira Pedro Felício de Oliveira Roberto Tadashi Kono Robson Alfieri Rogério Dias da Silva Tatiana Lemes Guimarães Vanderlei Baeza Lucentini Yaskara Donizeti Manzini Artistas Orientadores Adriana Amaral dos Santos Adriana Augusta Thomaz
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Aishá Lourenço Francisco Alda Maria Soares Abreu Alves Alejandro Javier López Jericó Alexandre Andreas Achcar Tripiciano Alexandre Costa Bleinat Alexandre Ferreira Dal Farra Martins Alexandre Ribeiro de Olveira Allyson Mendes do Amaral Amanda de Oliveira Dória Ana Paula dos Santos Carlos André Blumenschein André Luiz Madureira Ferreira Filho André Monteiro (Pato) André Ricardo de Oliveira Andrea Cristina Costa Pivatto Andrea Tedesco Canales Rocha Angélica Reny Guimarães Rovida Antonia Josilandia Lopes Matos Antonio Cássio Castelan Antonio de Mattos Cabral Berenice Farina da Rosa Carla Casado Silva Carolina Nóbrega Silva Carolini Lucci Cibele Francisca Bissoli Cintia Campolina de Onofre Claudinei Gomes Fernandes Cleber Wilhans Spolle Cristina D’Ávila Mello Kehdy Daniel Dias Danilo Caputo Dorta Edilson Castanheira de Souza Ednéia Aparecida de Amarins Edson Calheiros Gomes Eduardo Luiz Fraga Egelson José da Silva Elenita Borges de Queiroz Bernardi Enoque dos Santos Sobrinho Fabiana Maria Silva Fabiano Rodrigo Lodi da Silva Fabio Manzione Ribeiro Fábio Resende Fabiola Camargo Figueiredo Silva Fernanda Carla Machado de Oliveira Fernando Silva Alves Filipe Brancalião Alves de Moraes Flavio Bezerra de Lima Flavio da Costa Camargo Francisca da Penha Santos Francisco Wagner Bezerra Rodrigues Frank Roberto Aguillar Gabriela Villaboim de Carvalho Hess Gisele Penafieri Guilherme Coelho de Araújo Goés Herbert Henrique Jesus de Souza
Hercules Zacharias Lima de Morais Ieltxu Martinez Ortueta Irani da Cruz Cippiciani Isabela Fernandes Santana Isis Andreatta Barros Ivo Thadeu Batista de Alcântara Jadras Nascimento Marciano Jefferson Paulo Moreira João Batista Ferreira Júnior João Paulo Caetano Alves José Carlos de Araújo Judson Forlan Gonzaga Cabral Juliana Casaut Melhado Juliana Rocha de Oliveira Julimari Pamplona da Silva Junior Cleiton Gonçalves Kleber Luiz de Paula Kleber Rodrigo Lourenço da Silva Laís Marques Silva Larissa Verbisck Alcântara Bonfim Leandro de Souza Leandro Garcia e Garcia Hoehne Peres Polato Lenilson Pereira Rodrigues Ligia Rodrigues Botelho Lina Paola Gómez Arias Lourival Miranda Luciana Abel Arcuri Luciana Bortoletto Luciano Almeida Prates Lucila Luciano Poppi Luis Fernando Diniz Leite Luiz Paulo Pimentel de Souza Manuela Bueno Romeiro Marcelo de Andrade Melo Marcio de Castro Marcus Henrique Simon Margareth Maiello Mendes Maria Emilia Faganello Maria Lúcia Tomé Branco Maria Regina dos Santos Maria Rita Amaral da Silva Maria Silvia Altieri Maria Stela Tobar Mariucci Maria Tatiana do Monte Oliveira Assis Mariana Duarte Silveira Mariana Vaz de Camargo Marina Corazza Padovani Mauricio Augusto Perussi de Souza Mauricio Diogo da Silva Michelle Farias de Lima Milena Paula de Araújo Monica Rodrigues Morgana Silva de Sousa Murilo Moraes Gaulês Naloana de Lima Costa Natacha Dias Nathalia Biavaschi Glitz
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Osmar Tadeu Faria Osvaldo Pinheiro da Silva Paula Maria Garulo y Klein Pedro dos Santos Pedro Eduardo da Silva Péricles Martins Silva Peticia Carvalho de Moraes Priscila Luz Gontijo Soares Priscila Maria Magalhães Rafael Tadeu Miranda Raimunda Maria Moura da Silva Raoni Felippe Garcia Raquel Anastásia Simoni Renato Fagundes Vasconcelos Ricardo Cardim de Cerqueira Ricardo de Almeida Valverde Rita Tatiana Gualberto de Almeida Rodolfo Augusto Daniel Vaz Valente Rodrigo Batista de Oliveira Rodrigo Campos de Oliveira Ronalde Monezzi Filho Rosana Antunes Rubia Crislaine Maura Braga Rudson Marcelo Duarte Sebastião Bazotti Talita Caselato Thais Antunes da Silva Thaís Caroline Póvoa Balaton Thais Ponzoni dos Santos Thiago Arruda Leite Tiago Cavalheiro Mantovani Gati Valéria Ramos Lauand Valter Nunes de Sant’anna Vânia de Oliveira Vanise Susane Carneiro Veronica Pereira Pinto Vicente Latorre Filho Viviane Costa Dias Wellerson Minuz Camargos
Pontos de Atuação Biblioteca Adelfa Figueiredo Biblioteca Affonso Taunay Biblioteca Afonso Schimdt Biblioteca Alceu Amoroso Lima Biblioteca Álvares de Azevedo Biblioteca Belmonte Biblioteca Cassiano Ricardo Biblioteca Cora Coralina Biblioteca Monteiro Lobato Biblioteca Nuto Sant’Anna Biblioteca Paulo Duarte Biblioteca Pedro Nava Casa de Cultura Butantã
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95 VOCARE 2013 Revista do Programa Vocacional
Programa Aldeias Coordenadores Gianni Maria Filippo Puzzo Ivandro Martins da Silva Roberto Verissimo Lima Artistas Orientadores Alcides Ribeiro Anabel Andrés Budga Deroby Nhambiquara Jean-Jacques Armand Vidal Leonardo Oliveira Moreira Martha Luiza Macedo Costa Bernardo Roger Muniz
3° edição/2013 CULTURA
EDUCAÇÃO
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