VOCARE
4ª Edição / 2014
ISSN 2358-8608
Revista do Programa Vocacional
Pesquisa-ação em arte nos territórios da cidade
Prefeitura de São Paulo Fernando Haddad
Secretaria Municipal de Cultura
Secretário João Luiz Silva Ferreira - Juca Ferreira Secretário Adjunto Alfredo Manevy Chefe de Gabinete Guilherme Varella Coordenação de Assessoria Técnica João Brant
Revista do Programa Vocacional Uma publicação da Divisão de Formação Artística e Cultural
Projeto da Secretaria Municipal de Cultura em parceira com a Secretaria Municipal de Educação Ano 4 - número 4 São Paulo, novembro de 2014
Impressão Windgraf Gráfica e Editora Esta revista foi impressa no papel Off Set 90g nas fontes Akzidenz-Grotesk e Adobe Garamond Formato 25 cm x 33 cm 72 páginas Tiragem: 3 mil Periodicidade: Anual
Programa Vocacional Av. São João, 473 - 6ºandar 01035-000 - São Paulo - SP Tel. 11 33970166 / 11 33970167 programavocacional.smcsp@gmail.com www.cultura.prefeitura.sp.gov.br
As publicações da Divisão de Formação Artística e Cultural são um canal democrático e plural de ideias e pensamentos de agentes culturais. As opiniões e conteúdos expressos nesta revista e nos links que levam a sites externos são de total responsabilidade de seus autores e administradores.
Assessores Aurélio Nascimento Airton Marangon Gabriel Portela Laura Belles de Moraes Luciana Piazzon Barbosa de Lima Paulo Roberto Tadeu Menechelli Filho Thais Ruiz Assessoria Jurídica Thomas Américo De Almeida Ross Assessoria de Comunicação Giovanna Longo
VOCARE Revista do Programa Vocacional
Departamento Pessoal Luiz Peres Informática Lorelei Gabriela Castro Lourenço Manutenção Cid Carlos de Souza Protocolo Egydio Bottura Junior
Divisão de Formação Artística e Cultural Diretor de Formação Mica Farina
Coordenador Administrativo Ilton Toshiaki Hanashiro Yogi
Departamento de Expansão Cultural
Coordenação de Ação Cultural Priscila Tamis Flávia Giacomini Costa
Assistência Técnica Rodrigo Marx Matias Cardoso
Equipe Mercedes Cristina Rocha Sandoval Gilmar China Kane Bueno de Souza Leite Isabella de Souza Rodrigues
Diretor Geral Eduardo Augusto Sena
Assistência Jurídica Silvia Gomes da Rocha di Blasi Erika Maren Motta Divisão Administrativa Marcelo Rugério Bianchi Divisão de Formação Artística e Cultural Mica Farina Divisão de Produção Sulla Andreato Divisão de Programação Rafael Nascimento da Cunha Núcleo de Contratação de Natureza Artística Giovanna de Oliveira Gobbo
Secretaria Municipal de Educação Secretário Antonio Cesar Russi Callegari
Assessoria Especial / Sala CEU Marta de Betânia Juliano Assistente Técnico de Educação Daniela do Nascimento Rodrigues
Equipe Editorial
Comissão Editorial Andréa Tavares, Cintia Campolina, Flávio Camargo, Ilma Guideroli, Mariana Galender, Sérgio Segal, Suzana Schmidt e Talita Caselato.
Contabilidade Walter da Rocha Lima
Design gráfico Editora Mínimas
Compras Fabio Enéas Magri
Revisão Elaine Cuencas Santos Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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ÍNDICE Editorial......................................................................................... 4 A formação no centro da agenda cultural............................ 6 Juca Ferreira
EMIA, Vocacional e PIÁ: Trajetórias, singularidades e desafios.................................... 7 Eduardo Augusto Sena
O agente público artesão e a cidade em formação........................................................... 8 Mica Farina
Ensaio para políticas intersetoriais ou Sobre cultura, saúde e outras políticas de fronteira.................................................. 9 Priscila Tamis
REFLEXÕES
EXPERIÊNCIAS
MEMÓRIA
Vocar........................................................................................... 11
Você me Entende? ............................................................... 35
Pensar a partir da distância ............................................... 55
Leonel Dias
Herbert Henrique
Luiz Pimentel
POP Performance..................................................................... 12
A escuta como processo cartográfico: pela experiência do corpo como lugar de passagem................................................................. 38
Encontro com o Público........................................................ 58
Vanderlei Lucentini
Ateliê contemporâneo e público: espaço/tempo de trabalho...................................................... 16 Andréa Tavares
Escrita à deriva: paisagens do Programa Vocacional........................................................... 19 Luiz Claudio Cândido
Traçando caminhos para as práticas artístico-pedagógicas no Vocacional Música...................... 23
Carolini Lucci
Entrevista com MariaTendlau................................................ 62
Reflexões acerca do ensino da arte ................................. 40
Conversa entre grupos........................................................... 64
Ângela Coltri
Notas sobre vazios ou um breve relato sobre o elefante branco.......................................................... 42 Ilma Guiderolli
A matéria do invisível............................................................... 43
André Luiz Martinez Sant’Anna
Daniela Schittini
Entre ilhas e naufrágios práticas de deriva na Cracolândia........................................ 25
Ensaio sobre uma trajetória - as danças urbanas no programa vocacional ........................................ 45
Rafael Presto
Ivo Alcântara
Questões recorrentes, martelando na mesma tecla ou é possivel ampliar o programa sem resolver pendências anteriores?..................................... 28
Traçando Limites ...................................................................... 47
Pedro Campanha
O projeto vocacional sob a perspectiva da autorregulação na aprendizagem musical.................... 30 Claudia Polastre
Celso Frateschi
Murilo Gaulês
Arte e política, potência criativa .......................................... 49
Banda Bellize – registro de memória................................. 65 Luis Reys
Ensaios virtuais.......................................................................... 66 Vários autores
Processos artísticos, tempos e espaços: Encontro sobre formação artístico-cultural na cidade de São Paulo........................................................... 67 Andrea Fraga, Cintia Campolina, Fafi Prado, Flávia Giacomini, Priscila Tamis, Priscilla Vilas-Boas, Suzana Schmidt e Zina Filler
Equipe Vocacional 2014.......................................................... 68
Lígia Botelho
Dance para ser desenhado .................................................. 52 Lara Dau Vieira
O homem cachorro em: o enigma do mestre ignorante.............................................. 32 Leonardo Moreira e Stefano Noelli
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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EDITORIAL A
revista Vocare traz em sua quarta edição um panorama acerca das reflexões e práticas em andamento do Programa Vocacional focalizado em duas vertentes: pesquisa-ação e memória. Compreendendo o trabalho dos artistas orientadores e coordenadores como possibilidade de investigação constante, a equipe do Programa contou com a escrita ensaística como procedimento para impulsionar a reflexão criativa sobre o que se experimenta na prática, nas suas relações com os equipamentos culturais nos quais atuam e com a própria cidade e no empreendimento de seus processos artístico-pedagógicos. A pesquisa-ação tem como característica a investigação participativa, é o pesquisador atuando lado a lado com seu objeto de pesquisa e, por isso, constantemente se questionando a respeito da sua própria intervenção, observação e ação. Assim, essa atitude de pesquisa também pressupõe um envolvimento não apenas com as questões artísticas, mas também socioculturais que norteiam o todo o trabalho da equipe do programa. Dessa maneira, os ensaios apresentados nesta edição demonstram a apreciação da própria experiência junto aos artistas vocacionados, abordam questões e descobertas na criação de materialidades artísticas e processos pedagógicos e trazem a atitude crítica como característica marcante proporcionando o questionamento do próprio trabalho e muitas vezes apontando para novas possibilidades na investigação artística. O foco na memória do Programa é inaugurado nesta edição, a partir de uma iniciativa de artistas orientadores que se preocuparam em avaliar a construção e evolução do Programa Vocacional, suas bases artístico-pedagógicas, avanços, desacertos e conquistas. Notamos que esse é um foco relevante para a pesquisa dentro do Programa e esperamos dar prosseguimento a este trabalho nas próximas edições.
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VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
A parceria com os artistas do Projeto Artes Visuais também se faz marcante nesta edição. Os artistas propõem um projeto gráfico com a intenção de transmitir visualmente o afeto, o ser afetado e o afetar tratando a experiência no Programa como a exposição ao conjunto de fatos que ocorrem na cidade. Através de conectivos símbolos que representam conceitos e linguagens – há a proposta da leitura dos artigos como a entrega à experiência e à memória como seleção e não simplesmente sedimentação de conteúdos. Percebe-se a fragmentação como possibilidade de mapeamento e reunião dos afetos, daí a preferência por detalhes de imagens e não por privilegiar imagens mais descritivas das ações. Os conceitos utilizados nessa navegação são os seis princípios norteadores do Programa Vocacional, assim como as cinco linguagens como campos expandidos de ação e atração. Há proposta nesta edição de que o leitor/pesquisador marque os tags/conectivos como forma de criar seus próprios caminhos por entre as sessões apresentadas. O encarte da revista também é proposto como um material investigativo e é apresentado como um dispositivo poético, um portolano de pequisa-ação para a revista e que pode ser expandido como ação para o espaço da cidade. Esperamos que, desta maneira, nossos leitores sejam instigados pelo prazer, pela reflexão e pelos desafios que os artistas têm em sua complexa tarefa de se defrontar com a proposição e o desvelamento de processos criativos emancipatórios por entre a amplitude socioeconômica e cultural da cidade de São Paulo. Cintia Campolina Suzana Schmidt Equipe Vocacional Artes Visuais
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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EMIA, Vocacional e PIÁ:
trajetórias, singularidades e desafios
A S
ão Paulo se consolida como uma das principais capitais culturais do mundo. Nos últimos anos, cresceu a oferta de programação e outras iniciativas artísticas, com forte atuação do poder público na produção, financiamento direto e fomento dessas atividades. A Prefeitura de São Paulo conta hoje com uma ampla rede de equipamentos culturais. São mais de 200 espaços, como teatros, bibliotecas, centros culturais, CEUs e Casas de Cultura, que aliam programação diversa e de qualidade com atividades de formação artística. No âmbito das ações de formação da Secretaria Municipal de Cultura, o papel dos programas PIÁ, Vocacional e a Escola Municipal de Iniciação Artística é estratégico. Esses programas de formação estão em franco crescimento e têm sido fortalecidos, aliando objetivos de iniciação artística com formação de novos públicos. Em 2014, 84 espaços da cidade ofereceram mais de 8 mil vagas para crianças, jovens, adultos e idosos. Por meio da parceria entre as Secretarias de Educação e Cultura, o PIÁ e o Vocacional vêm ampliando sua rede de atuação, e ganharam força com a retomada, neste ano, da gestão compartilhada dos CEUs. A Secretaria também investiu na reflexão sobre esses processos com a realização do Seminário ‘Processos Artísticos, Tempos e Espaços’. Ainda no âmbito das novas políticas que estão em fase de implantação, a recente incorporação da primeira infância e da terceira idade são estratégicas para atuar efetivamente no campo da inclusão. Em parceria com o São Paulo Carinhosa, programa da Prefeitura de São Paulo com foco na primeira infância, as ações para este público devem ser incrementadas no próximo ano. Está 6
VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
prevista também para o ano de 2015 a ampliação das linguagens oferecidas, incluindo literatura, circo, fotografia, moda e cultura digital. Além de seu objetivo primordial, tais programas de formação ajudam também a identificar e apontar demandas e necessidades culturais em diversos pontos da cidade, pois são ações capilarizadas nos territórios, que quando incorporadas e transformadas em políticas públicas contribuem para a valorização da pluralidade de manifestações. A Secretaria Municipal de Cultura pretende seguir no aprimoramento e ampliação de suas atividades de formação, garantindo também reflexão qualificada e avaliação permanente de suas iniciativas.
Juca Ferreira Secretário Municipal de Cultura de São Paulo
Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo realiza continuadamente diferentes ações que tem por objetivo fomentar o fazer artístico e cultural, propiciar a experimentação estética e o desenvolvimento de processos criativos emancipatórios. Realizadas em uma rede de equipamentos públicos espraiada por todas as regiões da cidade, oferecem a um público bastante diversificado vivências e meios que potencializam o desenvolvimento autônomo de seus universos simbólicos. Nesse cenário, o Departamento de Expansão Cultural (DEC), através de sua Divisão de Formação Artística e Cultural, é responsável pela gestão de três importantes iniciativas, portadoras de características distintas, mas que compartilham esses propósitos e cujas ações se direcionam para o seu alcance. Com uma trajetória que completa 35 anos em 2015, a Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA) se consolidou, ao longo desses anos, como umas das mais importantes instituições destinadas ao público infantil na cidade. Desenvolvida a partir de uma inovadora metodologia, fundamentada na integração das linguagens de música, dança, teatro e artes visuais, e concebida para atuar junto à faixa etária compreendida entre os 5 e 12 anos, a EMIA ofereceu, em 2014, um total de 1.800 vagas. Durante a gestão da Prefeita Marta Suplicy, em reconhecimento dessa trajetória, e com o objetivo de estender para um público mais amplo o acúmulo de vivências que tem palco na EMIA, foi realizado nos Centros Educacionais Unificados o Programa “EMIA nos CEUs”. Em 2008, a partir dessa experiência, e da atualização de seus princípios conceituais e metodológicos, nasce o Programa de Iniciação Artística – PIÁ, que vem construindo uma trajetória e identidade próprias. Gradualmente implementado em diferentes equipamentos públicos desde então, o programa atende atualmente 1.800 crianças em 18 equipamentos públicos (Centros Educacionais Unificados, Bibliotecas, Centros Culturais), além do projeto piloto desenvolvido em parceria com a EMEF Brigadeiro Henrique Fontenelle. Com um percurso singular, que contou com a participação ativa de artistas e atores culturais na sua formulação e desenvolvimento, o Programa Vocacional, que completou 13 anos em 2014, realiza suas atividades em mais de 70 equipamentos, localizados em todas as regiões da cidade e responsáveis pelo oferecimento de mais de 4.600 vagas, distribuídas nas linguagens de música, dança, teatro, artes visuais e artes integradas. Resultado dessa
INSTITUCIONAIS
A formação no centro da agenda cultural
capilaridade e alcance, o programa vem se afirmando como um importante agente articulador das dinâmicas culturais locais, envolvendo tanto indivíduos quanto grupos e coletivos artísticos. Em conjunto, a atuação dos quase 350 artistas, que anualmente tomam parte dessas iniciativas, é responsável pelo florescer de novas vocações, vivências e percepções e, importante ressaltar, de uma memória cultural viva da cidade. Contudo, essa formidável estrutura, reconhecidamente bem avaliada como estratégia de implementação de políticas públicas com foco na iniciação e formação cultural, também precisa enfrentar desafios e lacunas importantes. Primeiramente, se faz necessário reconhecer que o alcance desses programas ainda é insuficiente para atender a demanda observada pela Secretaria Municipal de Cultura. A inclusão de novas linguagens, notadamente nas áreas de livro e leitura, bem como a expansão das ações para atendimento específico do público de terceira idade e da primeira infância nos programas, projetos e ações da Divisão de Formação Artística e Cultural, conformam tópicos que tem sido reiteradamente solicitados nas escutas e diálogos públicos realizados pela Pasta. É igualmente imperativa a necessidade de formulação e desenvolvimento de novos marcos operacionais, aptos a captar a multiplicidade dos atores culturais e as novas formas de organização que as dinâmicas culturais contemporâneas admitem, bem como adequar os programas à modos mais adequados de gestão, que permitam aos artistas e profissionais envolvidos lograr melhores condições de trabalho. O método adequado para romper esses obstáculos e vencer esses desafios, acreditamos, deve estar assente no diálogo constante entre os diferentes atores interessados (artistas, usuários, Poder Público) e na criação de estratégias que consideram as premissas que orientam as ações (e aspirações) de cada parte. Desse modo, é possível admitir que do embate de ideias e proposições seja possível emergir as bases que irão orientar as ações futuras dessas iniciativas que, desde sempre e então, se fortaleceram a partir de uma plataforma que tem como força motriz a ação coletiva e colaborativa, e a interação entre o público e o artista. Eduardo Augusto Sena Diretor do Departamento de Expansão Cultural
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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artesão e a cidade em formação
U
m luthier é um artesão. Busca sonoridades. Pesquisa madeiras, materiais, formatos e fluxos. Cria e constrói exoesqueletos - prolongamentos dos dedos, dos punhos, do coração que percutem, amplificam, filtram e modulam vibrações no mundo. É também um esteta da pólis. Todos, fundamentalmente, o são. Podemos definir o cidadão cultural como um esteta da pólis. Um agente público é também um artesão. Que cidade estará construindo o artesão agente público?
Diferença como expressão, igualdade como razão A diferença é matéria prima da expressão cultural. Da diferença, identidade e de suas relações nascem as culturas. Diferença não é sinônimo de desigualdade como poderíamos imaginar. E igualdade não é massificação. Na vida urbana, cada vez mais urbana e menos vivida, esta pseudo-igualdade, não a de direitos e oportunidades, mas aquela reduzida à hegemonia cultural, sustenta para todos e tudo que é preciso aniquilar para assim, consumir mais. Uma criança de doze anos já assistiu mais de 20 mil assassinatos reproduzidos em telas. Sem perceber, extenuados e excitados, nós adultos capturamos o tempo expressivo das crianças. Nosso filho sonhou com uma heroína com asas de borboleta, ela tinha uma cicatriz no queixo e não vendia doces e balas nos faróis.
O tema da formação em evolução Retorno ao artesão agente público. Quais serão os instrumentos do amanhã? Michel Serres afirma que o “mundo mudou tanto que os jovens precisam reinventar a roda”. Missão compartilhada pela formação cultural. Ouvimos, ao mesmo tempo, ecos do pensador italiano Umberto - “algumas invenções não podem ser melhoradas”. Um francês pensou o mundo enquanto raízes, um alemão pensou com espinhos, nós, queremos folhas, flores, odores e cores. Há cidades dentro da cidade: imensas, invisíveis, um mapa da exclusão. Uma política redistributiva não significa dividir mentes e espíritos. Significa outra coisa. Não significa reforçar ou levantar novos muros. Significa conviver. Parece inexistir um único problema público que possa ser tratado individualmente, isolado ou segregado. Precisamos de todos. 8
VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Ensaio para políticas intersetoriais ou Sobre cultura, saúde e outras políticas de fronteira
INSTITUCIONAIS
O agente público
Cidadania cultural, saberes e convivência A atualidade da cidade de São Paulo aponta de um lado, para a ampliação dos tempos e espaços formadores, com mais acesso, participação e diversidade, e do outro, para a insistente manutenção da capitalização dos indivíduos submetidos ao jogo mercadológico. São Paulo se revê nesta gestão que busca avançar superando paradigmas culturais opressivos e excludentes que levaram seus habitantes a se enclausurarem em seus domínios privados, nos habitáculos de seus carros, e territórios que reforçam guetos e muros. As políticas culturais do município se revestem de estratégias para reverter esta lógica com o resgate e a valorização do espaço público; o fortalecimento do diálogo na construção das políticas públicas e no seu reconhecimento como elemento democrático por excelência; na atualização e na recuperação de iniciativas criativas para a cidade; e na busca de sinergias para o enfrentamento de problemas públicos que emperram a construção de uma cidade mais inclusiva e humana. Mais festiva, alegre e feliz.
Práxis - diretrizes da formação artística e cultural para a cidade Finalizamos assim, recomeçando. Seguimos caminhando em direção diversa daquelas que reduzem a experiência artística e a vivência cultural a seus valores mercadológicos e a sua dimensão eventual. Reafirmamos as diretrizes das nossas políticas de formação com a radicalidade de uma produção artística e cultural para toda e qualquer idade, para todo e qualquer tempo, em todo e qualquer espaço: Promover a formação artística e cultural livre e emancipadora; Fortalecer as políticas de cidadania cultural; Democratizar o acesso à formação artística e cultural para todos; Contribuir para as políticas setoriais de formação cultural; Contribuir para a memória cultural da cidade e de suas políticas de formação; Estabelecer projetos de formação para formadores. 2014, é primavera em São Paulo. Mica Farina Diretor da Divisão de Formação Artística e Cultural
A
ideia é a integralidade dos indivíduos e populações, alcance, articulação e garantia de direitos fundamentais. A ação é a política de agenciamentos na qual os atores são cada um e todos - agentes públicos na construção coletiva dos espaços, sejam estes equipamentos, ruas, trens, ônibus, praças ou avenidas. O método é cartográfico - diálogo, agenciamento de forças e afetos, escrita, planos, ato. O que nos acompanha - experiência e experimentação, sustentadas pela emancipação e voz de seus compositores. Não se alcança integralidade sem a ousadia da disposição e disponibilidade em criar junto ritmo, espaço, tempo, contratempo. Quando integralizamos nossas práticas conceituais e atitudinais nos comprometemos com a diversidade de forças que atravessam um campo e essa é a aposta das políticas intersetoriais. Política de fronteira, que não despedaça nem fragmenta, borra os especialismos, arranja e desarranja, movimenta e sacode as linhas, alinhavando qualidade intensiva nas parcerias. Afirmamos a transversalização das vidas em acontecimento e do cotidiano da cidade. Tensionar as certezas é um desvício do olhar de grande utilidade. Articular proposições macropolíticas pede uma constante complexificação micropolítica de posturas e olhares. E é assim que a intersetorialidade potencializa nossas ações, tornando-as mais engajadas com as singularidades territoriais, com as vozes que constantemente nos alcançam e fazem passagem. Abrimos interstícios oxigenadores e tornamos o diálogo uma força ativa de relação para fazer-inventar o que desconhecemos: novas linguagens, novos caminhos e caminhares, novos discursos, novo corpo... deslocar fronteiras de percepção e afecção. Tecnologia relacional que dá visibilidade e dizibilidade às diferenças, produzindo responsabilização ética pelos efeitos que constantemente somos capazes e pelas variações de estilísticas que afirmamos. É a produção de subjetividades e subjetivações, as quais nos implicam histórica e coletivamente aos ambientes, às propostas de cuidado, às dimensões democráticas de organização social.
Aqui subjetividade não é compreendida como propriedade intimista de um sujeito ou por determinações sociais, mas em conexão rizomática com processos sociais, culturais, tecnológicos, midiáticos, ecológicos, urbanos. Pensamos a subjetividade como processo e não como estrutura: a ideia de interioridade identitária cede lugar à de processualidade e pluralidade em constante transmutação e relação com exterioridades, sendo assim processos de subjetivação. Em 1986 aconteceu no Brasil a 8ª Conferência Nacional de Saúde que, de modo complementar e colaborativo à Organização Mundial de Saúde (OMS), define saúde como “a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde”. Neste sentido, a relação dicotômica saúde/doença do paradigma hegemônico do saber biomédico (com o fim ideal de conservação funcional do corpo orgânico), patologizante e quimicoterapêutico, dá lugar ao corpo associado à mente, às emoções, relações socioeconômicas e coletividades. Saúde, portanto, que não é da unicidade de um órgão, mas da trama também rizomática na qual este estabelece suas relações e funcionalidades, desnaturalizando procedimentos que transformam problemas sociais em problemas de saúde. É neste sentido criativo e ampliado que as políticas de cultura e formação artística e cultural estão implicadas com as políticas do corpo, políticas de narratividades, de produção de saúde, subjetividades e territórios geográficos e existenciais. Está aí nosso desafio e compromisso, enquanto agentes públicos, enquanto cidadãos. Este é o intento de uma narrativa dos atravessamentos, da transversalidade das práticas e conceitos - o movimento de uma abertura comunicacional. Priscila Tamis Coordenadora de Ação Cultural
Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014
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REFLEXÕES
REFLEXÕES
VOCAR Leonel Dias
Vocar: tender, escolher, chamar, pender. Coletivos, bandas, trupes, coros de cena, de corpo, performers, facilitadores e multiplicadores, espíritos e almas em movimento. Interessados e descompromissados, frequentes e esporádicos, conscientes e alienados desenham o mundo do Vocacional. Olhando, escutando, dividindo ou distraidamente presentes, artistas pensam se relacionar através de infinitas possibilidades de protocolos e assuntos: determinação e engano. Encontros, processos, produtos, papos-cabeça, formas, conteúdos, estudos, pensamentos, vivências, dinâmicas, interlocuções e explicações fazem par a propostas politicamente corretas e indiscretas: interlocuções e deslumbres por viagens em busca de um ideal simplesmente próximo e irreal. O enigmático mundo da imagem, fantasia e realização, permeia o colorido timbrístico das mentes e assola artisticamente a incômoda proposta da cultura em prol do movimento: transgressão, sem agressão. Deslocamento: vocação como vontade, manifestação de instinto, reação não passiva a partir de um exemplo sedutor, prazer pela virtude. Ideia: contrapartida de uma pré-aposta, consciência do inconsistente, a sorte em memória.
Espaço. Verbo, verba, verso. Versão do universo inverso… Vozes, sussurros, ruídos alternados de agonia e euforia; ansiedade passada e depressão futura. Ritmos, intensidades, durações, tonalidades súbitas e infinitas: objetos íntimos e não identificados, sujeitos imperceptíveis e assombrosos, criatividade sem imaginação. Quantos elementos para uma substância idêntica, pura e desconhecida, ardente e degradável. Meio sonoramente poluído por linguagens recém-ignoradas, gestos indeterminados, conceitos e seitas impregnados de satisfação e dúvida.
Tempo. Arte aplicada à cultura: de graça. Na prática plástica e messiânica grupos e indivíduos se confundem e identificam figurinos, figuras e configurações através de realidade ilusória, pesquisa lúdica, difusa: ação sem intensão, padrão sem produção, perdão sem profusão. Conforme se combinam: espaço se dilui no tempo, a persona em público, atuação disseminada. Ideia permeia a ilusão.
Vocar: querer, ter, gostar. Leonel Dias é violoncelista, regente e professor. Doutor em Musicologia pela ECA – USP. Coordenador do Projeto Vocacional Música. Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 11
Vanderlei Lucentini
A
POP Performance surge de uma iniciativa conjunta entre o COLABOR da ECA-USP, o PGEHA-USP, Streaming Museum de Nova York, Espaço Cultural Tendal da Lapa e o Projeto Vocacional. O evento fez parte do lançamento internacional simultâneo do videoclipe Mutual Core da cantora islandesa Björk ocorrido no dia 10 de agosto de 2013. Além do lançamento do clip, houve um outro em queforam tratados alguns procedimentos de artistas da cena pop que transitam pela mixagem da performance art e música pop como Lady Gaga, Alice Cooper, Björk, Laurie Anderson, entre outros. A concepção de pop adotada no evento foge ao convencionalismo midiático em relação à questão do, exaustivamente vinculado, culto da celebridade instantânea e ao hiperconsumo do entretenimento. Para fugir desse estereótipo utilizamos a abordagem de Nicolas Bouriaud (2011:182) sobre as raízes do pop como uma forma pura de explosão imagética: […] para a qual, mais ainda que como alusões literais de Roy Lichtenstein como explosões da história em quadrinhos, uma ampliação (blowup) e a multiplicação representam equivalentes plásticos da deflagração. A serialidade pop não é uma tradução apenas da produção de massa, mas também da reação em cadeia da explosão atômica, uma imagem de um mundo decomponível ao infinito pela fissão nuclear. Ao contextualizarmos a relação música e performance art, percebemos que há poucos estudos na fronteira entre essas duas linguagens. Contudo, tem proliferado uma quantidade de nomenclaturas que definem essa relação a partir dos anos 50 até 12 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
hoje. No decorrer do processo histórico, esse encontro ficou distribuído em uma pluralidade de rótulos, dos quais podemos citar: gesamtkunstwerk em Richard Wagner, happening em John Cage, intermedia dos compositores do movimento Fluxus, ópera multimídia em Jocy de Oliveira e Conrado Silva, teatro musical em Gilberto Mendes, performance multimídia em Laurie Anderson, brain opera em TodMachover, CNN Opera em John Adams, teatro total e instrumental em Mauricio Kagel, ópera televisiva em Robert Ashley, teatrical-performance musicem Steve Reich e BerylKorot, performance sônica em TrevorWishart, new opera em Philip Glass e Robert Wilson, electropera de Vanderlei Lucentini e a electro metal rock opera em Lady Gaga.
Performance Art e PerformingArts Em termos práticos, no campo do estudo da performance, a palavra designa uma plêiade de trabalhos cujo ponto seminal é a atuação. Mesmo convivendo amistosamente, esses territórios são ambíguos e agrupam manifestações atuantes em dois modelos: performingart e performance art. Assim, torna-se necessário traçar uma abordagem conceitual que afaste a nebulosidade, apontando as diferenças entre esses dois enfoques artísticos. Dessa forma, podemos notar a existência de elementos comuns na configuração das linguagens tradicionais como o teatro, a dança e a música, rotuladas de performingarts e performance art. Erwing Goffman (1959:22) propôs quatro fatores comuns na configuração de qualquer padrão de performance nas linguagens tradicionais (performingarts) e também na performance art, quais sejam: o material (som na música, texto no teatro, movimento
Rodrigo Munhoz
REFLEXÕES
PERFORMANCE
na dança), os agentes (os músicos, os dançarinos, os atores), as obras (uma composição musical, uma coreografia, um espetáculo teatral) e o público. Contudo, para que esse processo ocorra está implícita a necessidade da presença física de seres humanos para desempenharem certas habilidades, por meio de treinamento ou especialização, atendendo ao requisito da especificidade de cada linguagem. Segundo Patrice Pavis (2011:27), as artes da cena, o equivalente inglês para performingarts “são performadas, criadas diretamente para um público que assiste a representação materializada através do teatro falado, cantado, dançado ou mimicado (gestual), como exemplos mais conhecidos o balé, a pantomima, a ópera”.
Performance Art e Vanguardas Históricas
A relação histórica e conceitual da performance arttem, em grande parte, suporte no trabalho de teóricos como RoseLee Goldberg, Jacob Glusberg e Renato Cohen. Esses autores associam o surgimento da performance art com as atividades de artistas dos movimentos vanguardistas do século XX, em particular aqueles vinculados aos movimentos futurista, cubo-futurista, agitprop, dadaísta, surrealista e Bauhaus. A historiadora da linguagem, Rose Lee Goldberg aplica o termo performance a todas as manifestações artísticas precedentes à performance art, tratando as diversas manifestações anteriores a ela, principalmente as ações surgidas no seio das vanguardas artísticas europeias, como gêneros da performance. Como linguagem artística, a performance art não apresenta uma definição fácil e precisa, pois tem uma agenda ampla e sin-
gular, permitindo aos performers realizarem os mais diversos processos de criação, execução e trânsito entre as linguagens. Além do uso do corpo em situações inauditas em apresentações ao vivo, Goldberg (2006: IX) afirma que os praticantes da performance utilizam também ao seu modo “quaisquer disciplinas e quaisquer meios como material – literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitetura e pintura, assim como vídeo, cinema, slides e narrações, empregando-as nas mais diversas combinações”. De uma forma provocativa, a editora Bonnie Maranca (1981:62) afirma que a maior parte da nova geração que faz performance está mais em sintonia com os mundos da arte e da música do que o mundo do teatro. Indo ao encontro dessa afirmação e voltando aos pré-requisitos determinantes explicitados por Goffman para a realização de qualquer modelo de performance – o material, o agente, a obra e o público - nota-se que essa estrutura também figura na maioria das performances musicais ao vivo. Na esfera musical, esses quatro componentes estruturantes se materializam por meio de uma cadeia formada pelo som, compositores/intérpretes, peças musicais e audiência. Em síntese, o padrão da performance musical/sonora consiste de sons/ruídos feitos por músicos que apresentam essa resultante para uma plateia. Dessa forma, rumaremos em direção à criação de subsídios teóricos e conceituais nos estudos realizados da performance art em relação aos campos musicais e sônicos. Em nosso ponto de vista, músicos são artistas e mostram as suas inquietações estéticas, através de performances, como os artistas da cena e das visualidades. Similarmente ao que ocorreu, tanto no campo cênico como nas artes visuais; na música, alguns compositores representativos Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 13
Música como Performance Art
situados na Europa, com mais força, a partir dos anos 60, praticaram procedimentos similares aos de dramaturgos, coreógrafos e artistas visuais, contudo não adotaram, então, conscientemente, a nomenclatura performance art. Ao falar da inter-relação entre teatro (chamado de total) e multimídia, Elliott Schwartz e Daniel Godfey (1993:137) listam uma série de características que identificam essa vertente da música contemporânea em relação às outras abordagens, elas são: •estímulo visual como a iluminação, o filme, slides ou vídeo; •movimento e fala por parte dos dançarinos, atores ou dos próprios performers musicais; •objetos físicos ou props, englobando desde objetos domésticos a esculturas, pinturas e outras formas de artes visuais; •uso criativo do espaço físico, tal como o posicionamento ou movimento incomum das fontes sonoras – performers ou alto-falantes – por toda a área da performance; •participação da audiência na performance e/ou na composição de uma obra. Essas abordagens foram colocadas por Schwartz e Godfey, sintetizando a postura de uma nova geração de compositores de vanguarda que colocaram a figura do intérprete musical, na mesma hierarquia musical dos criadores 14 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Simon Frith foi um dos primeiros pensadores a defender a relação da música com a performance art. A contribuição de Frith para esse debate é transferir esses pontos para além das artes plásticas e cênicas e relacioná-lo ao campo da música, em que o músico também opera como um performer, especialmente no contexto da música popular. Para desenvolver essa afirmação, Frith faz alguns questionamentos importantes que são fundamentais para qualquer discussão sobre a performance dentro da cultura. A performance art é uma forma retórica, uma retórica dos gestos, em que geralmente os movimentos corporais e gestuais - incluindo o uso da voz - dominam as outras formas de signos comunicativos, como a linguagem e a iconografia. Para entender a performance art na música, é fundamental realçar o papel do corpo e a sua articulação como um objeto (um objeto erótico, um objeto de atração, um objeto de repulsão, um objeto social) e entender como um sujeito, que molda o objeto pelo desejo e pela vontade do performer, cria um objeto com significado. Retoricamente, a performance art não é uma forma de representação, mas uma postura: ela tem a capacidade de submeter o público aos movimentos corporais dos performers, como o caso das cantoras pop Madonna e Lady Gaga. Frith conceitua esse envolvimento dos artistas pop em um processo classificado de doubleenactment [dupla atuação]:em que se configura tanto uma star personality (a imagem, idiossincrasias e as habilidades do performer) e uma songpersonality(a personalidade do narrador da canção). Para Frith o papel requerido do performer de música pop é ter a habilidade de conduzir as duas personalidades, atuando simultaneamente em cada canção e fazendo com que o público reconheça esses indícios. Segundo Frith (1996:171), o movimento interior e exterior dessas “personalidades” no ato de cantar é sempre contextualizado pela ação performática no decorrer de uma série de canções em um concerto para uma audiência.
volvidas na performance de um músico. Auslander (2006:102) parte do conceito de personagem para chegar à persona musical da seguinte maneira: O conceito de personagem requer uma outra tradução quando aplicado aos músicos, ao contrário dos atores, obviamente porque os músicos não costumam retratar personagens fictícios. Eu argumento que quando vemos um músico tocar ou cantar, não estamos simplesmente vendo a pessoa real tocando, como acontece aos atores, há uma entidade que faz a mediação entre os músicos e o ato de performance. Quando ouvimos o músico tocar, a origem do som é uma versão daquela pessoa construída com uma finalidade específica de tocar a música sob circunstâncias especiais. [...] O que os músicos performam, em primeiro lugar, não é música, mas suas próprias identidades como músicos, as suas personas musicais. Ele utiliza o termo persona para descrever a presença performática, distante de um caráter abertamente ficcional e sem uma simples equivalência com a identidade real do artista. O autor já havia previamente colocado o termo persona nas discussões sobre a performance art, teatro experimental e comédia stand-up. Além de Auslander, outros teóricos da performance art também utilizaram a palavra persona para designar o modo como o performer se coloca durante a ação performática. Mesmo em um enfoque direcionado para a música popular, similarmente adotado por Frith, Auslander enfatiza que o conceito de persona musical pode, em princípio, ser aplicado a uma ampla maioria dos músicos – cantores, instrumentistas e regente. E também, independentemente dos gêneros musicais, o termo pode ser aplicado ao rock contemporâneo, ao jazz, à música erudita, entre outros.
Partindo desses procedimentos conceituais, obtivemos nas últimas três edições da Pop Performance uma série de construções performáticas que absorveram e colocaram em cena a resultante desses procedimentos. Qualitativamente, dentro do evento, tivemos a criação de diversas performances que foram apresentadas por coletivos, artistas vocacionados e convidados. Os artistas e vocacionados participantes dos eventos foram: Amor Experimental, Descompanhia Teatral, Loop B, Opera Vlu, Re(c)organize, Christian Lins, Pedro Klavier, Robson Ferraz, Vitoria Elisabeth, Alea N, Milena Araújo, Pacheles dos Teclados, Chorões da Freguesia, Amalgamados, M’Bóle, Plataforma Desvio, Aglomerados, Pedro “Dega” Nazaré, Grupo Olho d’Água, Dona Candinha Trio e Cantaris. Enfim, o momento tardio da performance na música chegou e a Pop Performance é a ponta de lança desse processo. Vanderlei Lucentini é compositor e Mestre em Estética e História da arte pelo PGEHA-USP. A sua área de estudo se direciona para a convergência entre música, performance art e tecnologia digital. Atualmente é coordenador regional de ação do Programa Vocacional na região Norte e Centro-Oeste.
Persona Musical Philip Auslander (2006:105) acredita que é “difícil imaginar as diversas modalidades de teatro, ópera, dança ou até mesmo a música de concerto estejam integradas ao cotidiano como a música popular parece estar e, na performance art, a vida é muitas vezes integrada à arte e não o contrário”. Diferentes atores, cantores de ópera e musicais ou até mesmo dançarinos de balé, os músicos normalmente não retratam claramente personagens ficcionais em suas performances. Parece, portanto, razoável analisar a performance musical como uma espécie de performance de identidade. Com o intuito de tornar clara a relação entre as identidades musicais e fugir do termo personagem mais próximo ao teatro do que da música, Auslander procurou uma nova terminologia para atender às necessidades e ao funcionamento das camadas en-
Referências bibliográficas AUSLANDER, Philip. Musical Personae. TDR: The Drama Review, MIT Press, Vol. 50, Nº 1 (T189), Spring 2006, p. 100-119, 2006. BOURRIAUD, Nicolas. Radicante. São Paulo: Martins Fontes, 2011. COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989 DIXON, Steve. Digital Performance: a history of new media in theater, dance, performance art, and installation. Cambrigde: MIT Press, 2007. FRITH, Simon. Performing rites: on the value of popular music. Cambridge: Havard University Press, 1996. GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Garden City, 1959. MARRANCA, Bonnie. The Politics of Performance. PAJ: A Journal of Perfomance and Art, Vol. 6, Nº 1, p. 54-67, 1981. MOORE, Allan. Song Means: analysing and interpreting recorded popular song. Surrey: Ashgate Publishing Company, 2012. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva: 2011. GOLDBERG, RoseLee. A Arte da Performance: do Futurismo ao Presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2009. LOEFFLER, Carl. Introduction, Performance Anthology. Source Book of California Performance Art. São Francisco: Last Gasp Press and Contemporary Arts Press, 1989. SCHWARTZ, Elliott e GODFEY, Daniel. Music since 1945 issues, materials, and literature. Belmont: Schrimmer, 1993. Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 15
REFLEXÕES
Ateliê
contemporâneo e público:
Andréa Tavares
U
m ateliê é um espaço de trabalho. O espaço de trabalho do artista. Um artista se forma e trabalha em um ateliê. O espaço da pesquisa e da experimentação é um lugar de trabalho onde se guardam instrumentos e tempo. É um território onde materialidades sugerem ideias e pensamentos se tornam materiais. O ateliê é um centro social, uma célula revolucionária, a igreja de uma nova religião, a sala de trabalho de um comerciante, um continente convencional para ideias pré-estabelecidas, o lar de um culto, uma fábrica de produtos, uma clínica, uma cozinha limpa, um sótão caótico, um lugar de experimentação, o covil do artista solitário. Segundo o artista e crítico Brian O´Doherty desde o século XIX o ateliê é tudo isso, e posso acrescentar que também é um local de formação, uma vez que é o espaço privilegiado do fazer e da reflexão artística. O trabalho do artista conjuga fazer e reflexão muitas vezes de modo indistinto, não podendo ser percebido com clareza a diferença entre ambas; o fazer considerado como ação transformadora na matéria é reflexão sobre sentidos possíveis enquanto a (re)significa, o ato de refletir, ainda que mentalmente, por sua vez modificaria o modo de pensar e o modo de agir sobre ela. O artista norte americano Robert Smithson escreveu certa vez que o artista é capaz de fazer arte apenas com o olhar. Seria a cabeça do produtor de arte o seu primeiro ateliê? Talvez. Na prática artística contemporânea podemos pensar em artistas e mesmos coletivos de arte que não precisam de bases físicas, como galpões ou salas, o trabalho que antes acontecia desta forma pode se pulverizar na interação digital, o celular, o tablete ou o computador podem fazer as vezes do ateliê. Mas o que quero discutir aqui, apesar desta primeira divagação, é um contexto de trabalho e produção artística específico, os ateliês instaurados pelo Programa Vocacional de Artes Visuais. Digo instaurados porque 16 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
espaço-tempo de trabalho
antes da ação do programa, dos encontros entre artista-orientador e vocacionados, os ateliês não existiam como tal são instauradas na prática cotidiana pelos interesses dos artistas vocacionados. O presente texto parte da hipótese de que o ateliê no Programa Vocacional é um lugar físico configurado por um desejo. Assim necessitamos de salas e equipamentos para a experimentação das linguagens da mesma forma que necessitamos de desejos, artistas vocacionados. O objetivo geral do Programa Vocacional segundo o “Material Norteador” é “a instauração de processos criativos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas” e o especifico de artes visuais ode “provocar ações do pensamento criador e imaginativo, fornecendo meios para a realização de pesquisas que levem a experimentar novas linguagens e novos procedimentos de criação”. São encontros de 3hs por semana com cada turma e um artista-orientador em equipamentos culturais do munícipio da cidade de São Paulo. O programa organiza tempo, orientação e espaço para que os sujeitos interessados em desenvolver uma produção em artes visuais o possam fazer. Considerando os objetivos podemos concluir que se privilegia a produção individual de sujeitos que pensam por si mesmos, que podem produzir segundo as suas necessidades, mas para os quais fornecemos a possibilidade de experimentar linguagens e procedimentos que talvez desconhecessem. O papel do artista-orientador, relacionado no Material Norteador do Programa, ao do “mestre ignorante” defendido pelo filósofo Jacques Ranciere é de provocar uma produção criando encontros. Na prática o artista orientador questiona e provoca questionamentos através de proposições práticas e dialógicas e o modelo de espaço de trabalho que cabe na nossa proposta é o de um espaço de experimentação e risco, um lugar para a descoberta de mundos possíveis. Um lugar de encontro onde a criação indi-
vidual é estimulada através do diálogo coletivo que acontece em equipamentos públicos; assim temos como espaço de trabalho um ateliê coletivo e público. Cabe discorrer sobre o que consideramos trabalho. Produção de pensamento, compartilhamento de ideias, experimentação técnica tudo isso configura trabalho. Não estamos falando simplesmente do exercício de um ofício técnico, o Programa Vocacional não é profissionalizante, o que não exclui a discussão do exercício da arte profissionalmente. O filósofo Nicolas Borriaud em seu livro “Estética Relacional” define o artista como um produtor de tempo, no desenvolvimento de seu argumento o autor aponta a importância das proposições artísticas suspenderem o tempo organizado da lógica capitalista utilitarista, como uma situação que fornece meios para a existência de um pensamento crítico sobre a sociedade, um tempo suspenso como um lugar onde podemos nos ver em contexto e em outras funções. Embora Jacques Ranciere tenha criticado muitas vezes seu conterrâneo, Borriaud, ele também defende que as artes potencializam a capacidade dos sujeitos driblarem os papéis que lhes foram outorgados pela sociedade utilitarista, assim o metalúrgico pode ser cantor, o cobrador de ônibus um poeta, a dona de casa uma vídeo-maker, o padeiro um pintor. Uma proposta artística suspende este tempo e abre mundos possíveis. Assim também a produção artística possibilita esta suspensão, para Borriaud a produção e a fruição da obra de arte são coincidentes, uma vez que a proposição artística só se realiza no encontro com o outro. Artista, produtor, espectador, fruidor se encontram em uma proposição, seja ela performance ou cartaz, vídeo ou instalação, pintura ou desenho, e o tempo está suspenso, novos mundos podem se configurar. Novos mundos são novas possibilidades, ou possibilidades até mesmo imprevistas, segundo Ranciére de agir no mundo este seria para ele o “regime estético” da arte. O trabalho nos encontros do Programa Vocacional de Artes Visuais é suspender o tempo para perceber outras possibilidades de ação através da experimentação das linguagens. Lembrando que a experimentação das linguagens acontece em espaços públicos: Casas de Cultura, CEUS, Bibliotecas, Centros Culturais. Cada equipamento determina um espaço físico para nossos encontros. Uma parceria é estabelecida entre artista-orientador e seu grupo de artistas vocacionados e a gestão dos equipamentos. O Artes Visuais existe há 3 anos dentro do programa Vocacional, é um projeto recente. Saliento isso porque acredito que esta parceria entre programa e equipamentos leve tempo para acontecer, para que as necessidades de todos sejam identificadas e os desejos reconhecidos. No cotidiano o equipamento nos fornece uma sala, com mesas e cadeiras. Este espaço muitas vezes é usado também para outras atividades, a princípio não temos um ateliê
de artes desenhado como tal. Como seria um ateliê de artes desenhado por um projeto de arquitetura? Como o ateliê pressupõe exercícios práticos com materiais diversos teríamos bancadas de trabalho fixas e fortes, pias, armários, boa iluminação, boa ventilação. Podemos estender isso e pensar que a experimentação com linguagens demanda ferramentas e materiais, que muitas vezes também não encontramos nos equipamentos. Assim, os artistas-orientadores disponibilizam suas ferramentas e materiais pessoais, pedem que os vocacionados também contribuam. Daí a necessidade de buscar parcerias estreitas com os equipamentos que auxiliam na instauração dos processos de trabalho. Coisas simples como a necessidade de usar um martelo, uma fita crepe, ou de ter um armário na sala são resolvidas nestas parcerias. Um papel diferente fora do padrão sulfite e canson, um lápis integral, uma caneta com ponta pincel, uma aquarela, tudo isso instiga o vocacionado a testar sua produção e ver possibilidades para ela que antes não percebia. Várias maneiras de contornar as dificuldades materiais tem sido encontradas, aqui gostaria de citar duas, as soluções encontradas na Casa de Cultura do Itaim Paulista e na Biblioteca Nuto Santanna. Na Casa de Cultura Itaim Paulista o Programa de Artes Visuais está em seu terceiro ano, e com o mesmo artista-orientador há dois anos, Flávio Camargo. Esta situação possibilitou que pudesse ser instaurado ali um ateliê somente para o Vocacional onde temos espaço para experimentar linguagens como o grafite, o stencil e a xilogravura, pintando e colando papéis nas paredes. O grupo de vocacionados que se reúne ali, já se configura como coletivo de arte e contribui também ao levar seu próprio material. As intervenções urbanas com grafite instigaram o grupo a utilizar outras formas de criação de imagens e intervenções, estão agora pesquisando vídeo mapping. Foi importante ali a persistência, três anos consecutivos com a mesma linguagem. Conseguiram instaurar ali um ateliê onde os participantes administram seu tempo. Os vocacionados se organizam para criar ações de intervenção fora do horário dos encontros, que são percebidos por eles como um momento de experimentação, planejamento, pesquisa e reflexão sobre estas ações na rua. Em outra parte da cidade na Biblioteca Nuto Santanna outra parceria bem sucedida está no seu segundo ano. A artista orientadora Talita Caselato com os vocacionados juntamente com a administração da Biblioteca instauraram um verdadeiro espaço de trabalho. A sala que poderíamos chamar de ateliê, guarda os materiais e ferramentas, mas o espaço todo do jardim e as salas de leitura são usados pelos vocacionados. O trabalho iniciado no ano passado com o grupo de vocacionados resultou em um projeto aprovado pelo VAI “Confessa uma história pra mim?”, de BruRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 17
na Edilamar e Isabella Carvalho. Agora a AO também as orienta neste projeto e o ateliê se tornou um pouco um escritório de produção, na medida em que elas precisam fazer a divulgação, a produção, o registro e o relatório do projeto que envolve performance, fotografia, vídeo, desenho, xilogravura. A administração do equipamento, diante do comprometimento das vocacionadas, permitiu a utilização da sala fora dos horários dos encontros do vocacional, assim um exercício verdadeiro de emancipação se põe em processo. Tudo aconteceu porque um tempo/espaço de trabalho foi instaurado. Um ateliê não é simplesmente um lugar físico, ele precisa de produtores de tempo, mas os produtores de tempo também precisam de um lugar físico que possibilite uma situação de encontro. O artista Ricardo Basbaum defende“ a noção de artista como ‘dispositivo de atuação’ – ainda que só possa ser inerente à própria condição de invenção e autonomia da arte a partir do Renascimento e da modernidade, com a ênfase de sua atuação sendo gradativamente deslocada do virtuosismo artesanal para a produção
de dispositivos sensíveis de pensamento.” (BASBAUM, Ricardo. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários. LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo, Cobogó e Fundação Bienal de São Paulo, 2006. p. 57). O artista como “dispositivo de atuação” tem posição mutante, é agenciador de propostas, não apenas produtor de objetos, em suas diversas manifestações compõe o campo da arte. Essa noção contemporânea é exercida na prática dentro do programa, tanto na figura do AO quanto no vocacionado. No entanto o local de trabalho, como local de encontro e experimentação se faz necessário como lugar de atrito entre matéria e pensamento. No contexto da cidade a população pode se apropriar dos espaços da cultura como produtores, e não apenas espectadores representados em números de visitantes. Instaurar ateliês e equipa-los é potencializar as possibilidades de apropriação do espaço público na ação dos cidadãos percebidos como produtores emancipados.
Andréa Tavares é coordenadora de pesquisa-ação do programa Vocacional Artes Visuais. Professora de gravura em metal e litografia na FAAP. Artista plástica com mestrado em Poéticas Visuais pela ECA USP onde atualmente desenvolve sua pesquisa de doutorado.
Referências bibliográficas BASBAUM, Ricardo. Deslocamentos rítmicos: o artista como agenciador, como curador e como crítico. IN: 27ª Bienal de São Paulo – Seminários. LAGNADO, Lisette. (org.). São Paulo, Cobogó e Fundação Bienal de São Paulo, 2006). BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires, Adriana Hidalgo editora, 2006. O´DOHERTY, Brian. Studio and Cube. New York, Columbia University, 2009. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo, editora 34, 2005. SMITHSON, Robert. Uma sedimentação da mente: projetos de terra. IN: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. Escritos de Artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006. 18 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
REFLEXÕES
Escrita à deriva:
paisagens do Programa Vocacional
Luiz Claudio Cândido
P
asso zero: De repente, salta de dentro de um livro palavras que juntas se agarram ao meu corpo. Elas dançam em mim como em um assalto, em um ato violento, e faz com que, momentaneamente, o tempo se eternize. Danço com estas palavras, envoltas em mim até me deparar diante de um enorme despertador que me sacode e diz: “O ensaio não é a articulação de um pensamento apenas, mas de um pensamento como ponta de lança de uma existência empenhada. O ensaio vibra com a tensão daquela luta entre pensamento e vida, e entre vida e morte que Unamuno chamava de ‘agonia’. Por isso, o ensaio não resolve, como o faz o tratado, o seu assunto. Não explica o seu assunto, e neste sentido não informa aos seus leitores. Pelo contrário, transforma o seu assunto em enigma. Implica-se no assunto, e implica nele seus leitores. Este é o seu atrativo.” (FLUSSER, p. 86). Eis-me aqui, disposto a (me) ensaiar. Ponho-me à deriva no ato da escrita que será tecida por meio do meu caminhar, deslocar por algumas paisagens do Programa Vocacional. Primeira paisagem de onde parto, foco aberto, o Programa Vocacional: O Programa Vocacional é constituído, atualmente, por cinco projetos distintos, a saber, Vocacional Teatro, Vocacional Dança, Vocacional Música, Vocacional Artes Visuais e Vocacional Artes Integradas. Embora sejam todos regidos pelo material norteador, cada um destes projetos, de acordo com seu contexto e experiências históricas, tem uma lida sui generis com este, eclo-
dindo em cada um deles um processo de singularização. Tal processo de singularização gera uma multiplicidade de olhares sobre o Programa Vocacional, que passa a ser visto não como um todo homogêneo, mas como heterogêneo, composto por perspectivas distintas que ora são consonantes ora dissonantes entre si. De braços dados com Deleuze e Guattari, atribuirei ao Programa Vocacional o epíteto de esquizofrênico e, sob a minha perspectiva de andarilho, de flaneur, não há conotação negativa alguma, por que: O esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo: ele é a tendência desenvolvida, o subproduto, o proletário e o anjo exterminador. Ele embaralha todos os códigos e carrega os fluxos decodificados do desejo. O real flui. Os dois aspectos do processo se reúnem: o processo metafísico que nos põe em contato com o ‘demoníaco’ na natureza ou no coração da terra, o processo histórico da produção social que restitui às máquinas desejantes uma autonomia em relação à máquina social desterritorializada. (DELEUZE; GUATTARI, p. 53). Neste meu perpassar por esta primeira paisagem, observei que os artistas (coordenadores e AOs) reagem diferentemente diante da esquizofrenia. Assim, a mesma frase, com construção gramatical idêntica, que muitas vezes circula em conversas, reflexões, etc., a saber, “O Programa Vocacional é esquizofrênico’’, tem sentidos completamente distintos para uns e para outros. A partir desta minha observação e para conseguir alinhavar meus escritos vagueantes, se fez necessário, para mim, criar uma tipologia, momenRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 19
tânea, inconclusa, somente com a intenção de conseguir compartilhar o que vejo neste deslocamento: dois tipos, o primeiro corresponde àquele que vê a esquizofrenia como reativa e o segundo como afirmativa. Se, em uma licença poética, pudéssemos antropomorfizar o Programa Vocacional, de sua boca seria proferida uma multiplicidade de discursos e, às vezes, divergentes entre si. A esta boca ‘’Torre de Babel contemporânea’’, na qual ‘’cada um diz uma coisa’’, incomoda o primeiro tipo, para quem e cada um dizer uma coisa é um problema. É necessário intervir para que haja uma unidade discursiva, identitária - aqui a diferença é vista quase sempre como negativa - o mal - e pretende-se a sua supressão (ou confinamento). Para o segundo tipo, a esquizofrenia é vista, metaforicamente, como uma patologia, um desvio da normalidade, deve ser diagnosticada, tratada, remediada. Em geral, este tipo busca a afirmação cada vez maior da identidade/essência de cada linguagem/projeto. Mas será que esta tentativa de preservação da identidade não acaba gerando um isolamento excludente ou uma ‘’xenofobia’’, evitando o contato com os demais projetos, que são vistos, sob as lentes sartreana, como ‘’o inferno são os outros’’? O ‘’outro’’ aqui não seria visto como um ‘’perigo’’ à manutenção desta identidade? Um argumento corrente para este tipo é a defesa da objetividade e pragmatismo, ou seja, se não houvesse tanta discussão, em virtude das múltiplas vozes que se manifestam, seríamos mais eficientes. Então, calar as vozes dissonantes ou ao menos minimizá-las ao quase silêncio, de maneira sutil ou explícita, é um ponto fundamental da estratégia de atuação. Primam pela síntese e vivem em busca de um líder, um pastor, alguém que os guie. Para o segundo tipo, que podemos chamar de não reativos, a polifonia discursiva, as várias perspectivas concomitantes, não geram um mal estar, um incômodo, mas ao contrário fomenta o embate de ideias. Sendo assim, não busca a supressão de vozes dissonantes, mas o embate entre elas, o embate das ideias. A esquizofrenia aqui tende a ser vista como algo potencializador, porque busca agenciar múltiplos pontos de vistas, criando sentidos, às vezes, não usuais. Nestes casos, os processos de subjetivação são mais evidentes, não se tem o foco absoluto na objetividade, nem descamba para uma subjetividade absoluta, mas trafega entre os dois. O ato de pensar, discutir, refletir, colocar em xeque o senso comum parece ser uma
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atitude deste tipo que tende a buscar um maior diálogo entre os projetos e linguagens artísticas e as fronteiras entre elas tornam-se mais tênues. Buscam enveredar pela seara da experimentação, do risco, do impossível. Para eles a heterogeneidade não é um problema, assim como a noção de identidade perde seu sentido, uma vez que não se pensa em um ‘’eu fixo’’, mas um ‘’eu em constante transformação’’, sendo reinventado a cada encontro, embora guarde uma tendência de si. Primam pelo transbordamento e não buscam um salvador, um líder; buscam talvez lideranças móveis, temporárias, que não se cristalizam em uma única figura. Evidentemente, que estes dois tipos são extremos de uma reta que tem inúmeras diferenças. Segunda paisagem, fechando um pouco mais o foco, o Projeto Vocacional Teatro: Adentro agora a paisagem dos coordenadores do Vocacional Teatro, que se encontram semanalmente na galeria Olido. Ela é composta por dez coordenadores artístico-pedagógicos de equipes em que cada um atua em uma microrregião da cidade e um coordenador de Projeto com pensamentos e perspectivas distintos em relação ao Programa Vocacional. Em outras palavras, se levarmos em consideração somente os coordenadores do Projeto Vocacional Teatro, este não é um todo homogêneo, um coro uníssono de vozes e pensamentos em comum. Além disso, nele a tipologia descrita acima permanece e os dois tipos coexistem. Qualquer tentativa de homogeneização esta fadada à generalização, muitas vezes realizada à custa da necessidade de síntese e representatividade, que acaba por abafar, desprezar outras vozes que coexistem no mesmo projeto. Mas por que, embora seja heterogêneo, há uma persistência em se afirmar uma homogeneidade? A quem interessa que o Projeto Vocacional Teatro seja visto como homogêneo? Será que a função, coordenador de projeto, cativa do conceito de representação, consegue ‘’representar a voz’’ dos coordenadores de equipe e, consequentemente, do Projeto Vocacional Teatro? As reflexões sobre os processos criativos instaurados nas orientações aos artistas vocacionados não conseguem adentrar esta paisagem e nem tampouco os processos de investigação das equipes. Em geral, aqui nos deparamos com informes e demandas institucionais, reclamações sobre a estrutura do Programa Vocacional e
estratégias de mudança desta. Embora sejamos regidos pelo material norteador, há uma tensão entre este e a prática encontrada aqui: a ignorância não é bem vinda e avançamos, pouco a pouco, rumo a um pragmatismo, calcado na eficiência e objetividade. Pude observar a presença de um discurso nesta coletividade que afirma a grande dificuldade desta em se relacionar com os demais projetos do Programa Vocacional. Pergunto-me: será que ela não está criando uma situação de falta de abertura ao diálogo, um fechamento, claustrofóbico, em si mesmo? Será que os 12 anos de existência do Projeto Vocacional Teatro, nascedouro do Programa Vocacional, se tornou um fardo por demais pesado e a vasta acumulação de experiência no campo artístico-pedagógico, bastante alinhado com as proposições do retorno do teatro de grupo de meados da década de 1990, não foram potentes o suficiente para escapar de uma cristalização deste projeto, que beira a insularidade ou autismo, nos momentos mais agudos? Embora nesta coletividade dos coordenadores do Vocacional Teatro, sejam tecidos olhares bastante críticos em relação aos demais projetos falta-lhe fôlego para lançar olhares para si mesmo e problematizar suas escolhas e atitudes e apontar suas contradições/ incoerências. Paisagens periféricas, fechando ainda mais o foco, a equipe Leste 3/Vocacional Teatro: Aqui espacialmente saímos do centro, da Galeria Olido, onde são realizados os encontros das paisagens anteriormente descritas e rumamos para a periferia da cidade: nossas reuniões de pesquisa-ação, conhecidas como, reunião de equipe, são realizadas, semanalmente, no extremo leste, em Guaianases, no CEU Jambeiro. Na equipe Leste 3/Vocacional Teatro, sob minha coordenação, também reina a mesma heterogeneidade presente nas coletividades anteriores e os mesmos tipos já citados: os AOs tem experiências distintas no Programa Vocacional e cada um tem uma relação com nossas reuniões de pesquisa-ação. Grosso modo, nos encontros semanais com a equipe Leste 3/Vocacional Teatro, buscamos a instauração de uma dinâmica de feitura de ensaios para refletir sobre as orientações dos processos criativos dos artistas vocacionados e as práticas artístico-pedagógicas. Para isso, adotamos como um procedimento que alimenta, em nossos encontros semanais, a materialização das experiências que os processos criativos emancipatórios geram em algum suporte (textual,
vídeo-gráfico, cênico, fotográfico, performativo, verbal, etc.). O ensaio não pretende ser um ponto final, a conclusão de uma investigação, mas um entre, um meio para que o pensamento escape da fixidez, do senso comum, da perspectiva única, superficial: seria uma tentativa de experimentação do pensamento, do pensar e se pensar. Com isso, a reunião de pesquisa-ação não é um espaço de solução, mas de fomento de problemas, que assume para si contornos artístico-pedagógicos: alimentados pelas proposições do mestre ignorante, a partir da obra de Jacques Ranciere, ela não é um espaço para ‘’clarificar’’, ‘’iluminar’’, para que o coordenador de equipe ‘’ensine’’ o AO, mas sim para que pense coletivamente os problemas, para lançar olhares sobre o que ambos desconhecem, ignoram. Ela se propõe uma zona de interferências, de fluxo que comporta o ir e vir das questões da Equipe e das orientações, de lá para cá e de cá para lá, num movimento ininterrupto e de contaminação mútua, esquizofrênica, dos artistas orientadores que perdem sua identidade fixa e se deixam “serem muitos” no ato de sua orientação ao ‘ouvir outras vozes’ que o compõe – vozes estas que foram ouvidas durante as reuniões de pesquisa-ação, a partir dos estudos e reflexões sobre os processos criativos em andamento. Sob a minha perspectiva, quando falo ensaio, não me refiro somente à produção de uma materialidade escrita, textual (ou em outro suporte qualquer), mas de uma atitude ensaística, Como se lançar nas orientações/coordenações no desconhecido, na experimentação do rabiscar, riscar, escrever, apagar, reescrever, rasurar, voltar a escrever, voltar a rasurar e apagar e escrever novamente e assim sucessivamente e ad infinitum? Embora reine a heterogeneidade entre os artistas orientadores da equipe Leste 3/Vocacional Teatro, este fato estimula e não coíbe o diálogo entre eles. Eles realizam visitas entre si e neste intercâmbio têm a possibilidade de lançar olhares para sua prática e do outro, num processo de alteridade: o diálogo não busca valorar, mas encontrar as diferenças entre as práticas artístico-pedagógicas. Quais são as questões que o Artista Orientador formula ao realizar esta visita, tanto para si quanto para o outro? Estas visitas não se restringem somente aos Artistas orientadores da equipe Leste 3/Vocacional Teatro, mas aos artistas orientadores de outros projetos do Programa Vocacional1. Se há dificuldade de
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tador, que terá que rever sua prática constantemente, acertando, errando, avançando, recuando, experimentando os desafios-perguntas que cada processo criativo lança. Não que a tradição teatral, com sua história erigida, não tenha espaço nestes processos criativos, entretanto nem sempre ela se mostra suficiente para abarcar ‘’a voz’’ dos artistas vocacionados. Ao enveredar pela seara da construção de materialidades estéticas que dialoguem diretamente com as inquietações dos artistas vocacionados - inquietações estas que vão eclodindo, paulatinamente, por meio de um tatear constante e que vão dando forma àquilo que eles pretendem ‘’falar’’ - ou simplesmente falam -, os meios e modos de produção comumente conhecidos no meio teatral sofrem um processo de desnaturalização e cada coletividade vai confeccionando coletivamente a sua forma de organização. Nesta paisagem podemos ver irromper novas formas de relação, de existência, nas quais a produção de sentido não está mais centralizada nas mãos de um -pseudo - detentor do saber, em um mestre que lança perguntas socráticas, delimitando o campo das respostas possíveis. Nela somos pegos pelo colarinho, muitas vezes, de súbito, e ficamos cara a cara com tudo aquilo que a experiência artística tem de mais temível e sublime: o impossível, o indizível, o imponderável.
Luiz Claudio Cândido participa do Programa Vocacional desde 2007, no Projeto Vocacional Teatro, desempenhou as função de Artista Orientador e atualmente é Coordenador Artístico-pedagógico de Equipe atuando na região da zona leste da cidade.
Referências bibliográficas DELEUZE e GUATTARI, O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Imago, 1976. FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998.
Notas 1
Sobretudo do Vocacional Dança, equipe Leste 3, sob a coordenação de Nininha Araújo.
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Traçando caminhos para as práticas
REFLEXÕES
abertura no Projeto Vocacional Teatro, na paisagem dos coordenadores, o mesmo não podemos afirmar em relação aos artistas orientadores nos equipamentos. Eles tendem a estabelecer um diálogo maior entre os projetos do Programa Vocacional, desde que seja uma necessidade dos processos criativos orientados. Pude observar que esta troca entre os artistas orientadores do Programa Vocacional fomenta o trânsito dos artistas vocacionados pelos projetos que atuam em um mesmo equipamento e também a ampliação do olhar deles sobre o seu processo criativo, meios e modos de produção. Estas parcerias fomentam também o coordenador de equipe com relação à percepção das singularidades de cada Projeto do Programa Vocacional e, consequentemente, a abertura dos canais de comunicação entre eles. Paisagem micro, foco maximamente fechado, as orientações dos processos criativos: Nesta paisagem o elemento fundamental é o processo criativo dos artistas vocacionados, alicerçado pela prática artístico-pedagógica proposta pelo material norteador. Em cada grupo ou turma orientada na equipe Leste 3/vocacional Teatro reina a heterogeneidade: as características e contextos específicos tornam múltiplos os meios e modos de produção e as formas e conteúdos das materialidades artísticas produzidas. Assim, cada artista orientador tem diante de si o desafio de lidar com a instauração de processos criativos que, muitas vezes, fogem/escapam daqueles a quem a prática contempla plenamente. Sem mesuras, os processos criativos dos artistas vocacionados derrubam os monumentos erguidos pela formação do artista orientador: aqueles preceitos que eram caros e inestimáveis, imprescindíveis para a realização de uma experiência artística, soçobram e forçam que ele descubra junto com aqueles o trajeto a ser percorrido e o que dele resultará. Faz-se imprescindível uma atitude ensaística do orien-
artístico-pedagógicas no Vocacional Música
André Luiz Martinez Sant’Anna
O
Programa Vocacional, segundo seu Material Norteador, pretende criar processos emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas. A premissa é instaurar processos criativos a partir da pesquisa e da formulação de perguntas, prescindindo, em um primeiro momento, da aquisição de técnicas e habilidades específicas como prerrogativa para a experiência e a expressão artística. O artista orientador realizaria, então, a condução e apoio a esse processo de geração de consciência, de novas subjetividades e de autonomia que, como práxis coletiva e social, levaria os artistas vocacionados à emancipação. Nesse sentido, o orientador não é o responsável direto pela emancipação do vocacionado, mas propõe formas de convivência e de aprendizado que transformam tanto o último quanto o primeiro. O estudo do Material Norteador nos aproxima da pedagogia de Paulo Freire e de algumas teorias dos filósofos Félix Guattari, Jacques Rancière e Walter Benjamin, para citar apenas alguns pensadores que dialogam com a proposta do Programa. É um material vasto, interessante e que, se aprofundado, pode produzir um denso embasamento teórico. No entanto, seria o Material Norteador, com seu amplo vocabulário próprio, suficiente para direcionar a prática do artista orientador em suas orientações dentro do Programa Vocacional? São muitas as questões suscitadas durante as reuniões de equipe sobre como proceder durante os encontros com os vocacionados e quais as possibilidades e ferramentas a serem utilizadas. Na linguagem musical, especificamente, quais são as teorias que podem servir para apoiar as práticas artístico-pedagógicas a serem desenvolvidas e que se posicionam em consonância com a proposta do Programa? As atividades de pesquisa e criação do fazer humano acontecem por meio da observação e experimentação de conhecimentos previamente existentes nas mais diversas áreas. Assim, para responder a essas questões e embasar minhas reflexões pessoais, procurei ir além do Material Norteador. Busquei um aprofundamento na pedagogia de Paulo Freire, de modo que pudesse me apropriar de suas ideias, ao mesmo tempo em que me debrucei sobre os trabalhos do educador musical inglês Keith Swanwick, cuja investigação envolve, entre outros elementos, o desenvolvimento musical
a partir de processos metafóricos. Imbuído pelo pensamento dos dois autores, vislumbrei direções e possibilidades para os encontros semanais do Vocacional. Para Paulo Freire (1987), o diálogo é o componente-chave para a transformação do mundo e da construção do conhecimento. Ainda, por meio do diálogo haverá conscientização, pois como consequência dele, é possível a visão ampla das situações. É possível o conhecer e é necessário o escutar. E escutar é saber, é conhecer previamente, sem fazer conjeturas, para então diagnosticar os fatores que influenciam situações problemáticas do processo pedagógico. “Que o pensar do educador só ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação. Por isso, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes nem a estes impostos” (ibidem, p. 63). Portanto, o diálogo estabelece uma igualdade em que os interlocutores são sujeitos atuantes e em que todos procuram pensar e agir criticamente. Por meio do diálogo, prática essencial da pedagogia freireana, foi possível construir um modo de ir ao encontro das necessidades e anseios dos vocacionados. Dar voz e ouvidos faz parte da pesquisa e da reflexão proposta pelo Programa. Pesquisa no sentido de descobrir as demandas individuais, coletivas e do indivíduo inserido no contexto coletivo, que são instâncias diferentes. Ao vocacionado se abriu um canal permanente de intercomunicação entre os objetivos do grupo e os pessoais, de modo que se conquistasse autonomia para propor e participar das escolhas e das práticas artísticas. Que se conquistasse reflexão, quando discutimos sobre as nossas práticas, desconstruímos procedimentos técnico-musicais e processos criativos coletivamente. Impregnamos de sentido nossas atividades ao transformar a reflexão em um instrumental não só do artista orientador, mas também do vocacionado. Já entre as ferramentas que podem servir de base para as práticas artístico-pedagógicas na área musical, posso citar os Três Princípios da Educação Musical, desenvolvidos por Keith Swanwick (2003) cujo diálogo com o Material Norteador e com Paulo Freire é evidente. Com ênfase nos pontos de contato entre as teorias, os princípios, resumidamente, são: Considerar a música como discurso: Transformar sons e meloRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 23
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andamento, nos níveis de acentuação, nas mudanças de dinâmica e na articulação – como o movimento de um som ao outro está organizado”. A busca pela expressão derivada da composição de uma música autoral direcionou o desenvolvimento técnico-musical dos vocacionados. Foi a partir da vontade de se comunicar, de construir uma experiência significativa para si e para os outros que eles se empenharam em aprimorar suas habilidades, conhecimentos e iniciaram a conquista da fluência musical. A canção Eu vou esperar é uma materialidade artística em que acredito que os princípios de Swanwick, as premissas do Material Norteador e o conceito de diálogo proposto por Paulo Freire estabeleceram pontos de intersecção. Juntas, possibilitaram a visualização de um caminho a ser delineado durante as orientações do Programa de modo a embasar não só a teoria, mas principalmente a prática, um dos pilares da emancipação dos artistas vocacionados.
André Sant’Anna é artista orientador do Programa Vocacional Música no CEU Alto Alegre. Regente coral e cantor graduado em Regência pela UNESP pesquisa a construção da sensibilização musical por meio da experimentação sensorial e corporal.
Referências bibliográficas DELMANTO, I. et al. As premissas pedagógicas: o material norteador. Revista Vocare: Revista do Programa Vocacional, São Paulo, n. 3, 2013. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GUATTARI, F. & ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. SWANWICK, K. Ensinando música musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003.
REFLEXÕES
dias em estruturas que dão origem a experiências significativas e processos metafóricos; Considerar o discurso do aluno: Integrar as experiências musicais e repertórios pessoais, propor a interação entre diferentes culturas, e; Fluência musical no início e no final: Permite a liberdade de escolha e a tomada de decisões que leva à autonomia. O autor defende que seus princípios se retroalimentam. Assim, procurei fomentar estratégias que os contemplassem de maneira intuitiva. Uma delas foi a composição de uma canção com o grupo da tarde do CEU Alto Alegre. A atividade obteve como resultado a descoberta e apreciação da experiência musical dos vocacionados, o exercício da ação coletiva geradora de significados e o desenvolvimento técnico pela necessidade da expressão criativa. O processo começou com a proposta de que trouxéssemos um texto em prosa ou poesia e uma música instrumental ou canção (ambos poderiam ser de autoria própria ou de terceiros) com as quais nos identificássemos e que dissessem um pouco sobre cada um de nós. Após lermos e ouvirmos o material de todos, interagindo diferentes preferências e tendências, conversamos sobre os aspectos que mais nos chamaram a atenção em cada um dos exemplos. Destacamos palavras e versos dos textos assim como apontamos trechos das músicas nos quais os elementos da linguagem musical e características de interpretação enfatizavam seu caráter e expressão. Aproveitamos para discutir sobre as formas poéticas e suas ligações com as formas da canção. Dessa maneira, pude considerar o discurso dos vocacionados e me aproximar do que eles traziam como experiência artística, musical e do universo poético de cada um. A próxima etapa foi usar o processo anterior como motriz. O material poético e musical revelado ao longo de nossos encontros deu origem, com base em diversos jogos de improvisação, a um conjunto de palavras, ritmos e pequenos motivos melódicos. Foram devidamente organizados em melodias que se transformaram em um refrão. O refrão foi “adotado” pelos vocacionados e, ao mesmo tempo, propiciou unidade ao grupo que se engajou na composição de uma introdução e das estrofes, criando uma estrutura maior para aquela pequena ideia musical original, agora a canção Eu vou esperar. A ação criativa coletiva desde a improvisação até a composição da canção preencheu de significado e de processos metafóricos a experiência musical dos vocacionados. Nesse momento pudemos adentrar um pouco mais nas questões técnicas e musicais, devido à abertura sucedida pela necessidade da execução das ideias que foram surgindo. Conversamos sobre a aplicação dos efeitos expressivos proporcionados por variações de dinâmica, andamento, timbre e textura, pois, como sugere Swanwick (2003, p. 62), “O caráter expressivo está implícito em muitos tipos de decisões de performance, na escolha do
Entre ilhas
e naufrágios
práticas de deriva na Cracolândia
Rafael Presto
P
rograma De Braços Abertos
Segundo a própria Prefeitura de São Paulo: “O princípio do Programa De Braços Abertos é o resgate social dos usuários de crack a partir do trabalho remunerado, alimentação e moradia digna, com a diretriz de intervenção não violenta”. “Iniciado no dia 14 de janeiro, projeto oferece vagas em hotéis, três refeições diárias, participação em uma frente de trabalho de varrição por quatro horas diárias, duas horas de capacitação e renda de R$ 15 por dia.”1 O acerto do Programa De Braços Abertos parte de sua radicalidade: adotar o método clínico-político da Redução de Danos como norte essencial em suas ações. Partindo desta premissa, existem três recortes fundamentais na produção desta empreitada: o diálogo constante com os usuários do programa; articulação de diversas secretarias municipais para sua realização2 e a mudança de paradigma para abordar a questão das substâncias psicoativas. Enquanto Artistas Orientadores do Programa Vocacional, fizemos questão de habitar os diversos espaços do De Braços Abertos: acompanhamos as varrições da Frente de Trabalho durante algumas semanas; visitamos as pensões onde moram os beneficiários; percorremos cotidianamente a cena de uso, o fluxo da cracolândia; e, acima de tudo, habitamos o Centro Integrado de Reinserção Social “De Braços Abertos”, espaço localizado na rua Helvetia, Campos Elíseos, chamada por usuários e profissionais, coloquialmente, de Tenda De Braços Abertos. A Tenda cumpre uma função de porta de entrada para o Programa, além de um digno princípio de redução da miséria: quando sentem a necessidade de uma ilha de descanso, quando precisam se proteger da chuva, os moradores das ruas da Luz buscam abrigo no espaço seco da tenda. A organização dos usuários do equipamento tem seu costume. Sob cobertores, colchonetes, caixas de papelões, os corpos em descanso se organizam a partir de uma perspectiva, a do aparelho de televisão, elemento organizador central do espaço, praticamente o deus da tenda.
O Programa, em um curto espaço de tempo3, ganhou muita visibilidade na mídia, tanto nacional como internacional. Isso implicou uma mudança na rotina da Tenda, que passou a receber diariamente a visita de todos os tipos de atores sociais: ministros, secretários, deputados, cinegrafistas, fotógrafos, pastores, tudo com ampla cobertura midiática. É preciso tomar cuidado com esta prática de exposição excessiva. As ações do programa não podem se preocupar em manter o saldo positivo na esfera global das representações e com isso prejudicar a estratégia de produção de cuidado, pautado na prática micropolítica de vínculo e cogestão. Como um projeto com tão pouco tempo de vida pode ser colocado nesse lugar tão importante, praticamente uma tábua de salvação política? Serão esses atravessamentos externos os principais agentes de fragilização do projeto? Onde posicionar nossa ação artístico-pedagógica vocacional em meio a todo este furacão?
Provocações Primeiras Programa De Braços Abertos: avançado empreendimento de redução de danos ou caça níquel eleitoreiro? Qual o limite entre o assistencialismo e a produção de vínculos? Como agir no sentido contrário da espetacularização? Atuar na região dos Campos Elíseos é estar lado a lado com o peso de uma construção simbólica: nomear, oficialmente, uma região da cidade como ‘cracolândia’ define muito de suas possibilidades de composição, seus fluxos possíveis de construção. Crackeiro é um termo que nivela o humano e a droga, mais uma das muitas violências simbólicas que atravessam o bairro da Luz. Essa usinagem simbólica parece ser o norte das ações do Vocacional nesse território bastante singular. Quais as significações possíveis para os Campos Elíseos? Quem opera essas significações? Qual afeto atravessa o território? Como produzir canais de diálogo e experiência pela tangente? Quem envolver com nossas ações: usuários do programa, moradores do Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 25
Metodologia e Instrumental em Funcionamento bairro, pessoas do fluxo? Quais qualidades possíveis de ação direta em um contexto como esse? Qual nosso amparo para atuar na Tenda De Braços Abertos? Como faremos nossa guerrilha vocacional? Chegar devagar: cartografar o terreno, seus campos de potência, possibilidades de composição, urgências vitais. Como partir de um dispositivo artístico para construção do encontro, do vínculo, em um local em que a pretensão do vínculo é premissa de atuação para diversos profissionais (saúde, assistência social, direitos humanos, religiosos)? Como aplicar linhas de diferença na composição desses vínculos a partir da experiência estética? A emancipação pode ser entendida enquanto um processo de produção de cuidado? Última provocação. Habito, literalmente, o espaço onde as fronteiras se borram: Artista Orientador do Programa Vocacional, oficineiro do CAPS; território em ruínas, potência dos modos de existir não hegemônicos. Existe uma urgência da ignorância na orientação que faremos por este território. Ou nos vestimos com nossos dessaberes, nos debruçamos radicalmente sobre a alteridade do outro neste contexto, ou corremos o risco de ser mais um dos muitos atores sociais que capitalizam a miséria aguda que compõe esse território. Na singularidade extrema deste espaço afirmam-se os nortes do Programa Vocacional. A emancipação enquanto bomba política.
A micropolítica como princípio no limite da invisibilidade Depois de colecionarmos diversos naufrágios no início de nossa empreitada, todos vinculados a não possibilidade de demarcar um espaço coletivo institucional de experiência artística, restou-nos os vínculos singulares que acabamos compondo com os usuários que conhecemos nas ações realizadas junto a Tenda e ao Programa De Braços Abertos. Em nossas incursões pelo estigmatizado território da cracolândia, já conhecemos muitas pessoas que, de uma maneira ou outra, transitaram por territórios artísticos. O que nos fez pensar: não seria o caso de arriscarmos então uma atuação vocacional pautada nesse encontro singular, nesse vínculo direto, atuar culturalmente aí, nesse agenciamento do corpo a corpo? Investir radicalmente na micropolítica do encontro, longe dos agenciamentos institucionais? Partindo desses questionamentos, decidimos adotar uma estratégia de encontros diretos, de conversas e projetos artísticos inventados e praticados pessoa por pessoa, cada um singularmente compreendido como um artista vocacionado. Assim, inventamos uma metodologia de trabalho para planejar, produzir e cartografar esses agenciamentos estéticos micropolíticos, chamada PAS (Projeto Artístico Singular). O termo é inspirado no PTS (Projeto Terapêutico Singular), conceito chave 26 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
dentro das práticas emancipatórias que compõe a saúde mental atualmente, muito presente no território multidisciplinar e intersetorial que é o De Braços Abertos. As relações que tecemos com todos os sujeitos únicos que conhecemos dentro do programa são o ponto de partida do PAS. Essa metodologia é apoiada em um instrumental pedagógico: uma ficha cartográfica do PAS. Esta ficha cartográfica, além de proporcionar um registro, serve de ponto de apoio para a elaboração das próximas ações realizadas pelos artistas orientadores. Este instrumental, no entanto, não deve ser preenchido durante o encontro; deve sempre ser preenchida depois, garantindo à ficha cartográfica seu lugar de reflexão.
Como funciona essa metodologia de trabalho? Dividimos em duas etapas essa metodologia de ação e registro. A primeira etapa é a de Vínculo e Mapeamento, na qual, através dos encontros singulares produzidos por nossas vivências no Programa De Braços Abertos, começamos a cartografar o que determinada pessoa compreende por cultura, arte, produção simbólica, e quais as linguagens/habilidades ela já tem. Assim, dentro da etapa de Vínculo e Mapeamento, dois campos devem ser preenchidos no instrumental de trabalho. O primeiro deles chama-se Referências Culturais, em que se registram os muitos campos culturais que atravessam aquele determinado artista vocacionado. O segundo campo é o de Afinidades Artísticas, as especificidades de práticas e acúmulos que aquela pessoa carrega, seja tocar um instrumento, pintar telas, escrever contos, atuar, compor rimas, enfim, qualquer afinidade com alguma ação artística concreta que aquela pessoa tenha realizado ou simplesmente tenha desejo. Passada esta etapa de Vínculo e Mapeamento, entramos na etapa do Projeto Artístico Singular propriamente. Aqui são planejadas ações, sempre em conjunto com o artista vocacionado, que ocuparão os encontros do Vocacional. Também aqui, o Projeto Artístico Singular se divide em dois eixos complementares. O primeiro chama-se Processos de Apreciação, em que se partilham idas às experiências estéticas que alimentem o campo cultural desejante do artista vocacionado, seja uma ida ao museu, a uma peça de teatro, um parque, um círculo de meditação, um sarau de poesia, tudo aquilo que sirva para a composição de um campo referencial estético singular. O segundo eixo do Projeto Artístico Singular chama-se Processos de Elaboração, em que uma experiência de produção estética é realizada através de um processo continuado de criação: a materialização artística dos encontros micropolíticos desta metodologia. Um dos objetivos é sim tecer, nos encontro e agenciamentos únicos, acontecimentos concretos. Fazer um pouco de arte.
Este instrumental não tem a intenção de se solidificar. Ao contrário, ele deve ser poroso e quebradiço, sempre modificado de acordo com o processo desenvolvido com cada pessoa. A ideia é potencializar as ações que estamos realizando que, acreditamos, localizam-se no lado oposto de uma política cultural baseada em eventos e em dados quantitativos. Não nos interessa hiperpublicizar nenhuma experiência, fazer nenhuma grande operação artística. Esses acontecimentos, aliás, fragilizam de uma maneira geral o Programa De Braços Abertos. É preciso calma, paciência e uma relação direta com os beneficiários dessa iniciativa ousada, neste momento. Essa é a nossa aposta como artistas orientadores: a radicalidade da possibilidade micropolítica do encontro artístico. No momento que escrevo este artigo, estamos em pleno vapor com a experimentação desta metodologia. O primeiro resultado concreto foi um vídeo-ensaio intitulado Como Fazer um Didgeridoo?, Concebido por José Abreu, Xamã Urbano, figura sensacional que tivemos o imenso prazer de encontrar em nosso cotidiano e vocacional trabalho. O vídeo pode ser conferido no link: “https://www.youtube.com/watch?v=ph_kld5ptVA”. Não sabemos onde tudo isso vai dar, se colecionaremos mais outros (infinitos) naufrágios ou se achamos alguma ilha escondida. Entre ilha e naufrágios, seguimos tecendo nossas derivas.
Rafael Presto é teatrista e percussionista do Coletivo de Galochas, oficineiro do CAPS Infantil Sé e Artista Orientador do Vocacional no Programa De Braços Abertos. É membro do DAR (Desentorpecendo a Razão) e Arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial.
Referências bibliográficas AMARANTE, Paulo e NOCAM, Fernanda (orgs.). Saúde Mental e Arte: Práticas, Saberes e Debates.Zagodini, São Paulo, 2012. AUGÉ, Marc. Não Lugares. Papirus, Campinas, 1994. BEY, Hakin. TAZ: Zonas Autônomas Temporárias. 3ª Ed. Conrad Editora do Brasil, São Paulo, 2011. CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade in Evelyn Furquim Werneck Lima (org.) Espaço e Teatro: do edifício teatral a cidade como palco. 7Letras, Rio de Janeiro, 2008. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 24ª edição. Graal, São Paulo, 2007. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Papirus, Campinas, 1990. JACQUES, Paola Berenstein e BRITTO, Fabiana Dultra. Corpografia Urbanas: Relações entre o Corpo e a Cidade. EDUFBA, Salvador, 2010. RAUTER, Cristina. Oficinas para Quê? Uma Proposta Ético-Estético-Político para oficinas terapêuticas in Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2000. SCARCELLI, I. R. Entre o hospício e a cidade: dilemas no campo da saúde mental. Zagodoni Editora, São Paulo, 2011. TAMIS, Priscila. Trajetos na cidade – cartografias de saúde e subjetividade. Dissertação (Mestrado) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
Notas
http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/3377 http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/2118#ad-image-0 acessado no dia 29/07/2014. 1
As seguintes secretarias estão envolvidas no Programa De Braços Abertos: Secretaria Municipal de Saúde (SMS), Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), Trabalho e Empreendedorismo (SDTE), Segurança Urbana (SMSU), Desenvolvimento Urbano (SMDU) e Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Além, é claro, por isso o Vocacional atuando dentro do Programa, da Secretaria Municipal de Cultural (SMC). 2
O Programa De Braços Abertos tem pouco mais de seis meses no momento que este artigo foi escrito. 3
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28 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
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REFLEXÕES
O projeto vocacional
sob a perspectiva
da autorregulação na aprendizagem musical Claudia Polastre
“O
cenário não era diferente do das inúmeras orientações que ocorrem toda semana no projeto Música Vocacional. Pessoas reunidas para aprender-fazer música e estabelecer sentidos no que sabe - observa - faz. Formaram uma roda e o AO coloca o instrumento metalofone no meio dela e passa uma sequência de acordes para os vocacionados que já tocam um pouco de violão – Am-Dm-G7-C. Eles poderiam tocar em qualquer nota da parte de baixo do metafolone, como se estivessem tocando nas teclas brancas do piano. E ao se arriscarem no improviso percebiam que as melodias combinavam com a sequência harmônica dos violões: culminaram nas notas da escala do maior assimilando a sequência harmônica.”1 Na tentativa de estabelecer uma teia de relações entre o artista orientador e sua expertise musical para realização de suas práticas, como a descrita acima com os vocacionados, reflito sobre uma metodologia que, empiricamente, percebo que ocorre nas práticas dos artistas-orientadores do projeto música vocacional: o processo da autorregulação na criação musical. Pela observação das práticas utilizadas no meu trabalho no vocacional, primeiro como AO, depois como coordenadora, entendo que elas podem ser observadas sob um sistema que está compreendido por diferentes autores que estudam o processo de aprendizagem, dentre eles Zimmermam2 e Bandura. O sistema ao qual me refiro é o da autorregulação na perspectiva cognitiva. Nesse sistema o que se destaca é o exercício do homem em intervir intencionalmente em seu ambiente. Diz respeito aos mecanismos que as pessoas usam para controlar o seu próprio processo de aprendizagem. Implica estabelecer um objetivo, ou norma de estudo, e controlar o próprio progresso através de estratégias tais 30 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
como monitoração, elaboração e gerenciamento de esforço. Antecipar cenários construídos por ações e seus efeitos e, pela observação, escolher cursos de ação que julgarem mais convenientes ou necessários para uma aprendizagem mais efetiva, perpassa os meios de produção de muitas orientações dos AOs e condiz com os princípios da autorregulação. O tema da autorregulação vem sendo investigado por diversas abordagens da psicologia e pedagogia3. Em todo o processo da autorregulação ocorrem três etapas: a auto-observação, o processo de julgamento e a autorreação. As três etapas, segundo Bandura (1991), devem ser ativadas de forma integrada e atuam em interação com o ambiente na determinação do comportamento do individuo. Essas etapas nos fornecem subsídios para estabelecer conexões com o processo pedagógico criativo dos AOs. Num primeiro momento, pela auto-observação, se conseguiria verificar as dimensões de desempenho e qualidade do monitoramento da atividade sugerida. Nessa etapa se estabelece a proposta em que a amplitude das varias dimensões do artista orientador é potencializada por meio do seu desempenho: qualidade, quantidade, originalidade e sociabilidade estão no contexto. Num segundo momento, acontece a fase do processo de julgamento. Nela os padrões pessoais e as dificuldades que o AO tem em propor alguma atividade que “foge” do sua expertise, sobressaem e o AO vai à busca de estratégias e conteúdos necessários para conectar a vontade do vocacionado com o seu entendimento. Nesse momento todas as referências sob o seu desempenho e o valor da atividade são determinantes para a efetivação da proposta oferecida. Na última etapa, temos a autorreação. Nesse momento faz-se
necessário uma autorreação avaliativa para que o AO tenha o entendimento sobre sua ação: se ela foi tangível e se houve, ou não, reações por parte das pessoas integrantes da orientação. Em geral, estudantes podem ser descritos como aprendizes autorregulados devido à ativa participação que têm em seu próprio processo de aprendizagem em termos de metacognição, comportamento e motivação. Com o processo de pesquisa do artista-orientador não ocorre diferente. Nele observamos como se faz necessário planejar a orientação e suas ações, como controlar e avaliar seus processos cognitivos, motivacionais e suas possibilidades e limitação e, ainda, como se necessita do autoconhecimento sobre o próprio modo de aprender. Todo esse cenário se amplifica, quando pensamos nas ações culturais propostas pelos AOs. Elas potencializam o processo criativo, abstraem o cognitivo, estabelecem objetivos e buscam padrões facilitadores que conectem a expertise do artista com as vontades do vocacionado. “Pedro, animado com o resultado de sua apresentação numa mostra, chegou com uma nova composição. Era um samba que queria harmonizar. A AO resolveu pensar a situação sob uma condição que não tinha feito anteriormente: interferir o mínimo no processo criativo do criador. Se automonitorou. Resolveu esperar, estimular o vocacionado. Ele além de não ter o conhecimento suficiente harmônico do violão para executar a tarefa, também não sabia se fazer entender, porém tinha a vontade. A AO procurou escutar a vontade do rapaz, destituída do seu expertise num processo de autoavaliação. Ao final da orientação, após ela ter percor-
rido o “processo de desconstrução”, como o chamou, reconstruiu seu conhecimento. A vontade do vocacionado fora atingida e uma primeira versão da música estava pronta. Chamou-se Não quero mais aspargos.”4 No procedimento adotado pela artista orientadora observamos a utilização da metodologia da autorregulação, mesmo ela não sendo ciente disto. Da auto-observação da sua estratégia de ação, ela transitou para a reflexão sobre o que poderia auxiliar, para atender o interesse do vocacionado, e avaliou como o desdobramento da ação realizada foi efetivado. A materialidade artística conquistada pelo grupo foi uma das comprovações dessa efetivação.
Claudia Polastre participa do Programa Vocacional desde 2008. Atualmente é coordenadora da equipe norte do Projeto Vocacional Música. Fez doutorado em História da cultura na USP e mestrado em Música na UNESP.
Referências bibliográficas BANDURA, A. Self-regulation of motivation through anticipatory and self- reactive mechanisms. In: Dienstbier, R.A. (Ed.) Perspectives on motivation: Nebraska symposium on motivation. Lincoln, University of Nebraska Press, vol. 38, pp. 69-164, 1991 ZIMMERMAN, B. A social cognitive view of self-regulated academic learning. Journal of Educational Psychology, 81(3), 329-339, 1989.
Notas 1
Orientação realizada em maio de 2014 no Tendal da Lapa pelo artista orientador Ricardo Valverde.
Zimmerman, B. (1989). A social cognitive view of self-regulated academic learning .Journal of Educational Psychology, 81(3), 329-339. 2
Na teoria social cognitiva Bandura tem trabalhado a construção da autorregulação ao longo de sua trajetória investigativa, sendo um dos processos bem marcados no livro Social foundations of thought and action: a social cognitive theory, 1986. A autorregulação é um processo consciente e voluntário de governo, pelo qual possibilita a gerência dos próprios comportamentos, pensamentos e sentimentos voltados e adaptados para obtenção de metas pessoais e guiados por padrões gerais de conduta. Trata-se um fenômeno multifacetado que opera por meio de processos cognitivos subsidiários, incluindo automonitoramento, julgamentos autoavaliativos e autorreações. BANDURA, A. Self-regulation of motivation through anticipatory and self- reactive mechanisms. In: Dienstbier, R.A. (Ed.) Perspectives on motivation: Nebraska symposium on motivation. Lincoln, University of Nebraska Press, vol. 38, pp. 69-164. , 1991. 3
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Orientação realizada em julho de 2014 na Casa de Cultura Salvador Ligabue pela artista orientadora Angela Coltri Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 31
Leonardo Moreira é formado em artes plásticas, Mestre em Filosofia e estudante de filosofia na USP; é artista orientador do Projeto Artes Visuais do Vocacional no Centro Cultural da Penha. Stefano Noelli é desenhista e quadrinista e artista vocacionado do 32 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Projeto Artes Visuais no Centro Cultural da Penha,
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EXPERIÊNCIAS
Você me entende?
EXPERIÊNCIAS
Herbert Henrique Equipe Leste 3 Teatro
F
ragmento: A estética do ensaio
Nesse ensaio, tentarei realizar a difícil tarefa do compartilhamento da pesquisação e processo artístico vivenciado junto à turma de artistas vocacionados do Vocacional Teatro CEU Água Azul, em sua edição de 2013. Difícil, pois diante de uma complexa cadeia de encontros, relações, desejos, olhares, entre outras complexidades inerentes de uma coletividade, meu olhar é apenas uma possibilidade das múltiplas que eclodem de tal fenômeno polifônico, do qual capturo aquilo que me salta aos olhos e dessa constelação de fragmentos atribuo um sentido arbitrário, que poderia ser rearticulado infinitas vezes dependendo de seu observador. Ou melhor, a realidade ali posta pode ser vista como uma obra de arte a qual, dependendo do artista, poderia compô-la dentro de sua poética: quais as possíveis dramaturgias escritas, pinturas compostas, danças ou cenas encenadas para se compartilhar a experiência vivenciada? Esta foi uma de minhas primeiras inquietações lançadas no início de minha pesquisação, a qual culminou em uma experiência artística processual com a eclosão de múltiplos conteúdos e formas estéticas dos artistas vocacionados e que foi batizada por eles como VOCÊ ME ENTENDE?. Desta maneira, a própria forma estética desse ensaio não poderia trair o processo que ele pretende compartilhar, sendo seu próprio aspecto formal uma reflexão ensaística em si. Múltiplas são as possibilidades estéticas de relação com este texto: a forma mais conhecida, linear, seguindo a trajetória sequencial com começo, meio e fim; a criação de diferentes trilhas, relacionando seus fragmentos; a criação de relação entre um ou mais fragmentos com algum repertório do leitor. Além destas, o leitor pode ficar à vontade para descobrir outras formas de passear pelo texto. Cada fragmento, inclusive esse denominado A estética do ensaio, pode ser visto como um microensaio que “Não explica o seu assunto,... transforma o seu assunto em enigma.” (FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EDUSP, 1998, p. 96). Dessa forma, sua conclusão transborda suas páginas e propõe ao leitor,
caso queira, finalizar seu próprio quebra cabeças com as possíveis relações acima citadas. Proponho aqui outra possível chave de entrada que o leitor pode utilizar para adentra-lo, chave essa que o intitula: VOCÊ ME ENTENDE?
Fragmento: A pesquisação do artista orientador: O artista orientador é o detentor do conhecimento? Tendo como disparo as provocações do Material Norteador e a ferramenta pesquisação propostos pelo programa, me lancei a seguinte inquietação inicial para os encontros e, consequentemente, o processo artístico: fomentar em suas composições a eclosão das múltiplas vozes, desejos e formas estéticas dos artistas vocacionados, despertando nesses o ato de suas coproponências e conduções compartilhadas. Na prática surge uma problemática. Romper a relação professoral incutida nos imaginários meu e dos artistas vocacionados e os estereótipos sobre o teatro. Conforme os encontros aconteciam, múltiplos eram os discursos e formas lançadas pelos artistas em suas experimentações propostas, mas percebia que a relação de poder estabelecida, a qual eu era o detentor do conhecimento e iria ensiná-los a fazer “O Teatro”, acabava por constranger e tornar menor as potencialidades proeminentes daquela coletividade. Seria eu tão esclarecido sobre tal assunto? Existe uma verdade sobre o que é ou não arte? Será que as formas e conteúdos propostos pelos artistas vocacionados são menos artísticas que as minhas?
Fragmento: A pesquisação dos artistas vocacionados em parceria com a pesquisação do artista orientador Em um dos encontros a partir de uma conversa, surge o desejo dos artistas vocacionados em estreitar diálogo com os coordenadores do CEU e com a comunidade do entorno. Esse desejo aparece das seguintes inquietações ali trazidas pelos artistas vocaRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 35
cionados: “antes de participar do Vocacional eu via o CEU como uma escola grande aonde se vai, às vezes, para jogar bola... quando eu passava enfrente e via o guarda na porta ficava com receio de entrar. Para mim aqui parecia um clube... hoje tenho outro olhar sobre o CEU, mas será que a comunidade sabe que o CEU é espaço de cultura e arte também?”. Percebo ali que não é uma, mas duas pesquisações que compuseram o processo, uma é a do artista orientador, a supracitada, e outra a do artista orientador em parceria com os artistas vocacionados na constituição do processo artístico a partir das inquietações e desejos proeminentes dos encontros daquela coletividade. Neste encontro é lançado um desafio, realizar o compartilhamento das produções e questões do processo, através de um encontro aberto com a comunidade do entorno e os coordenadores do equipamento. Outro objetivo era fomentar na comunidade o olhar para o CEU como um espaço de produção e compartilhamento artístico e cultural. Até então o processo artístico caminhava para uma polifonia de formas estéticas e conteúdos. O diálogo desejado com o entorno já acontecia entre os participantes nos encontros e, ao invés de sintetizar a experiência em uma única forma e conteúdo, optou-se por manter essa polifonia e compartilhar essas múltiplas vozes que habitavam o processo.
Fragmento: O encontro VOCÊ ME ENTENDE? Abaixo uma possível definição do VOCÊ ME ENTENDE?, nas palavras da artista vocacionada Jenniffer Sofia, a partir de uma resposta dada a uma postagem em um evento criado no Facebook para o encontro aberto:
Fragmento: O processo como ação cultural: ação artística e/é ação cultural As propostas artísticas, a condução dos encontros e processos, o planejamento, divulgação e condução do encontro VOCÊ ME ENTENDE? foram de responsabilidade dos próprios artistas vocacionados, sob a orientação do artista orientador. Eles dialogavam com a coordenação para o agendamento das atividades e ensaios extras no encontro do vocacional; pensavam em estratégias de aproximação com a comunidade, etc. O nome VOCÊ ME ENTENDE? surgiu em um encontro de planejamento do encontro aberto. Vimos que o nome sintetizava conteudística e formalmente o desejo de diálogo, lançado inicialmente e, por ser uma pergunta, convidava o interlocutor ao diálogo. O fato dos artistas vocacionados assumirem a autoria e condução do processo/encontro fez com que eles se apropriassem cada vez mais não só do processo artístico, mas do próprio espaço do CEU como um espaço público. O diálogo com a coordenação do espaço se estabeleceu e não se tornava mais uma incógnita. Buscava-se tornar a divulgação já um ato artístico e poético em que a comunidade poderia ter acesso às questões do processo vi36 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
venciado. Questionava-se que tipo de estética teriam os cartazes e foram feitas intervenções e instalações poéticas dentro do CEU e em espaços públicos que tinham essa dupla função, de ser um compartilhamento e a divulgação do encontro aberto. Para os cartazes, pensando em evidenciar o caráter polifônico e estético foi proposto que cada artista produzisse um cartaz em que ele evidenciaria de forma estética sua visão sobre o VOCÊ ME ENTENDE? como se fosse um depoimento pessoal. Os cartazes tornavam-se obras plásticas. Como ação-poética, realizamos em um feriado a ação Picnic Poético. Nessa, foi proposto que no dia trouxéssemos comidas e bebidas para a realização de um piquenique. Antes do evento, realizamos formas de intervenção do espaço público dentro e fora do CEU, e após essa experiência o piquenique tornou-se um espaço tanto de alimento literal, como poético, nos alimentando das trocas de impressões sobre a experiência vivenciada. Foram propostas também duas instalações: uma tinha o intuito de criar no CEU a relação de ambiente familiar, como em um lar. Para isso, foram desenhadas com fitas crepe casas no chão de passagem; outra de propor uma relação de diálogo e troca de pensamentos com a comunidade. Nesta foram desenhadas árvores nas paredes com papéis que formavam os frutos. Nestes papéis, era permitido a quem quisesse deixar algum pensamento para compartilhar com alguém. Neste processo de feitura os artistas vocacionados acabavam se tornando os próprios agentes e multiplicadores culturais da região e o processo artístico um processo de ação cultural em si. Foram realizados no ano dois encontros abertos em que o primeiro trouxe novos participantes que compuseram as criações do segundo encontro VOCÊ ME ENTENDE?.
Fragmento: Encontros Estéticos: Arte é/gera conhecimento? Com o passar do tempo das orientações, comecei a perceber que o encontro em si era uma composição estética que ditava um tipo de imaginário, de modo de organização, produção e produto estético do coletivo: era a própria forma como eu me relacionava com os artistas vocacionados, minha presença corporal, o tom de voz, o tipo e a sequência de exercícios escolhido, a forma como eles eram passados, as palavras escolhidas na hora de propor ou dialogar com os vocacionados, etc. Enfim, a construção do encontro era tal como a construção de uma dramaturgia, de uma materialidade estética. Com o intuito de colocar em movimento e compartilhar essa reflexão com os artistas vocacionados experimentei a subversão total do formato mais tradicional do encontro, (aquecimento, improvisação em grupos, apreciação final em roda), propondo o que chamei de Encontros Estéticos. O objetivo desses encontros era tentar instaurar uma experiência estética, na qual fosse pensado detalhadamente o ‘’desenho’’ do encontro (ritmos, iluminação, espaço, etc.). Neles, forma e conteúdo serviam como disparadores de reflexões práticas e teóricas sobre o processo vivenciado, com
possíveis desdobramentos dessas experiências estéticas em produções dos seus participantes. Em um desses encontros, a proposta foi vivenciar uma experiência de silêncio e de trajetória no escuro. Neste, em um determinado momento, colávamos na boca um papel escrito VOCÊ ME ENTENDE?, permanecíamos com ele durante um tempo e, em seguida, escrevíamos uma carta sobre o vivenciado. Após o termino desse encontro três artistas vocacionados, Jeniffer Sofia, Denis Xavier e Beatriz Cazetta, desdobraram essa em uma proposta: resolveram ir embora juntos com os papéis ainda colados na boca. No encontro seguinte, compartilharam essa experiência, citando as diferentes reações das pessoas que eles encontravam no caminho, a partir do estranhamento gerado por aquela forma estética que eles compunham. Nas palavras de uma senhora que encontraram pelo caminho, que ao ver aquela imagem disse: “Nem eu me entendo meu filho...”. Os encontros estéticos alargaram as percepções e proposições estéticas dos artistas vocacionados: possibilitaram um diálogo mais intenso entre os diferentes processos criativos daquela coletividade e uma experimentação formal que borrava as fronteiras das linguagens artísticas. O que importava era a tentativa de gerar uma experiência e não se manter na linguagem teatral exclusivamente: Henrique Macinni e Hingrid Araújo faziam criações com movimentos coreografados em espaços diversos; Airton Alves propôs pensar o desenho estético de recepção do público, Silvana Aparecida e Jady Aparecida propuseram a criação das árvores nas paredes de entrada do teatro, onde o público poderia escrever em retângulos coloridos que formavam suas folhas e o coletivo propôs desenhar com fitas crepe casas no chão de passagem do CEU externo ao teatro. Estabeleci um link entre os Encontros Estéticos e as relações que os artistas vocacionados tinham com o espaço do CEU. A arquitetura do CEU como um todo ou até a arquitetura do teatro do CEU, um palco semiarena, eram formas estéticas que ditavam um imaginário e uma forma de relação. Os artistas vocacionados propuseram à comunidade e aos coordenadores do CEU outras
relações estéticas com o espaço do CEU, por meio das instalações e intervenções realizadas como divulgação e compartilhamento do processo e encontro VOCÊ ME ENTENDE?, que geravam estranhamentos e possíveis reflexões sobre a utilização daquele espaço público. Na instalação da casa, as faxineiras do equipamento ficaram na dúvida se removiam ou não as fitas crepes que estavam no chão do CEU formando as casas. Ao consultar a gestora do CEU, Maria Elisa, esta se utilizou da instalação para discutir com os funcionários do CEU sobre arte e ação cultural e, consequentemente, a importância da permanência daquela intervenção criada no espaço pelos artistas vocacionados. A partir de então os funcionários se tornaram mais próximos de nossas criações e, muitas vezes, explicaram-nas para os visitantes do CEU.
Herbert Henrique Jesus de Souza é artista orientador do Programa Vocacional, no Projeto Vocacional Teatro, desde 2013. É também artista performer da Descompan(h)ia Demo_Lições Artística iLTDAs desde 2008.
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EXPERIÊNCIAS
Acomoescuta processo cartográfico
Pela experiência do corpo como lugar de passagem
Carolini Lucci Equipe Sul 2A Dança
aquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe, eu teria sido obrigado a deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim mesmo depois de ter me bloqueado. Isso teria constituído uma experiência rica em interesse e novidade, se é verdade, como fui levado a dizer sem que pudesse fazê-lo do outro modo, que mesmo o mais pálido caminho comporta um andamento totalmente distinto, uma outra palidez, tanto ao redor quanto ao ir, e inversamente. Samuel Beckett.1
T
ransitar é condição primeira para atuar na coordenação de uma equipe de artistas no Programa Vocacional. O que o corpo experimenta quando transita? Viajo aos equipamentos e escolho ir de transporte público para que a atenção do meu corpo esteja no ato de transitar pelo caminho, no ambiente da cidade. Observo que o estado de um corpo em trânsito nasce de um mundo visto em movimento. Paisagens, corpos, situações, diálogos, pensamentos, apenas passam por mim e isto quer dizer que não me fixo a nada. Nasce a minha primeira constatação: transitar é “deixar passar”, permitir-se ser atravessado continuamente. Assim como experimentar processos de criação, o corpo que dança pode tornar-se passagem de estados, memórias, sensações, imagens. O corpo, lugar de passagem, escolhe caminhos, vai, volta pelo sentido inverso, busca novas direções, às vezes fica parado no mesmo lugar, busca despadronizar caminhos... Este corpo-via se identifica com a constatação de Beckett em sua afirmação: “mesmo o mais pálido caminho comporta um andamento totalmente distinto”. Identifico neste processo um agenciamento de desejos pela criação de um corpo como lugar de passagem. Na tentativa de dar voz a este desejo, coloco-me em movimento a partir da criação de um “corpo-via”, “corpo-veia”, corpo que liga ou religa espaços, lugares, estações internas, falas presas, interditadas. Em cada visita a equipamentos, em cada encontro com artistas, estudo a minha escuta, de modo a observar e cartogra38 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
far, em que aspectos dos processos artísticos pedagógicos posso me tornar este corpo-lugar. Pergunto-me: Como posso ser “meio” neste espaço de encontros? Como posso ser o “entre” de um encontro? O que precisa ser religado no cruzamento dos corpos? Sendo tarefa de o cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem, dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento ‘as linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo, um antropófago (ROLNIK, 2011). Investigar a escuta para o artista contemporâneo, talvez esteja intimamente vinculado a esta proposição de Rolnik sobre o papel do cartógrafo. O artista cartógrafo, interessado em acompanhar os movimentos de transformação da paisagem; artista que cria e recria constantemente para si um corpo poroso e permeável ‘a passagem de falas mais profundas, talvez inconscientes, aos afetos e intensidades que pedem passagem’. O artista do Programa pode experimentar o corpo em estado de escuta aos afetos que pedem passagem, o corpo em estado cartográfico/ antropófago, e isto gera em mim novos agenciamentos de desejos.2 Tenho sido movida pela possibilidade de buscar novas vias de passagem a falas que não estão explícitas, falas que não estão sen-
do escutadas entre coordenadores do NAC e os princípios do Programa Vocacional; desvelar passagens entre a fala de um artista e de um coordenador de cultura e vice-versa; encontrar pontes possíveis das propostas e processos de criação entre vocacionados e artistas. Observo que há processo de criação no ato de escutar na medida em que fazemos escolhas e que a escuta interfere diretamente na construção da própria fala. Neste sentido, percebo a escuta como um ato antropofágico3 no qual somos necessariamente desterritorializados e convidados a reorganizar continuamente os princípios que nos movem. A escuta, como estratégia de produzir desejo, faz com que nunca sejamos os mesmos, e sim um corpo que ao silenciar a cada ato de escutar ‘experimenta uma sucessão ilimitada de singularidades finitas’ (ROLNIK, 2011).
Carolini Lucci é artista, coordenadora da equipe sul 2a no Programa Vocacional Dança. Graduada em Comunicação das Artes do Corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é criadora – intérprete no grupo dirigido por Marta Soares.
Referências Bibliográficas ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo/Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011. DELEUZE, Gilles, & GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976; LAPOUJADE, David. O Corpo que não aguenta mais. Tradução: Tiago Seixas Themudo. Revisão: Daniel Lins.
Notas As citações de Beckett foram traduzidas por Luiz Orland em “O Corpo que não aguenta mais”. A palavra desejo é utilizada aqui na concepção trabalhada por Deleuze e Guattari. Esses autores partem do pressuposto que a realidade é pura produção, composta por singularidades e sustentada pelo desejo, sendo assim, desejo aqui é produtor de realidades, processo de produção de universos psicossociais. O desejo cria a possibilidade de produção, criação, invenção de modos e formas vitais. A realidade é produção desejante e o desejo é a força motriz que impulsiona a máquina subjetiva, ou seja, que impulsiona o ser humano a produzir, a imergir num devir criador e impulsiona a subjetividade em múltiplas direções. (Deleuze, G., & GuattariI, F. (1976) O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago). 3 O sentido etimológico original da palavra “antropófago” (do anthropos, “homem” e phagein, “comer”). O Manifesto Antropófago (ou Manifesto Antropofágico) foi um Manifesto Literário escrito por , principal agitador cultural do início do Modernismo no Brasil. 1 2
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EXPERIÊNCIAS
Reflexões acerca
do ensino da Arte
Angela Coltri Equipe Norte Música
O
texto de Regina Machado é sobre o ensino da arte, uma reflexão sobre o ato de ensinar do professor de artes. E acima de tudo, o texto tem como linguagem a arte. Sem nunca ser metodológico ou sistemático, sem deixar de ser saboroso. E é sobre isso que o texto nos atenta, sobre a presença da arte no ensino, sobre aproximar o processo de ensino e aprendizado ao processo de criação. Três elementos metaforizam o encontro que o professor deve propiciar entre os alunos e a arte. O horizonte, no conto “O espelho” de Machado de Assis e o conto “A sopa de pedra”, no qual o personagem principal é Pedro Malasartes. Do conto de Machado de Assis, o mais importante está no final: Resumindo o assunto: numa sala pequena, à noite, quatro homens de idade madura discutiam “questões de alta transcendência” enquanto um quinto personagem permanecia calado. Depois de muito tempo de falações metafísicas, solicitado a dar sua opinião, o homem quieto conta um caso que aconteceu com ele quando era jovem. Lembro-me da última frase do texto de Machado de Assis: Quando os outros voltaram a si, o narrador havia descido as escadas. Nesse final, Machado de Assis fala da falta de necessidade de dar uma explicação racional, um final à obra, do valor que a arte tem por si só, já que ela não se propôs a explicar nada, mas a tocar as pessoas, ou mesmo a fazê-las se “tocarem”, entrarem em contato com seu íntimo, seu “outro lado”. Como diria Regina Machado: Já pensou se Machado de Assis resolvesse explicar que o caso do Jacobina foi tão bem contado que deixou os outros sem palavras? O conto de Pedro Malasartes é muito clássico, resumidamente, Malasartes resolve convencer uma velha avarenta a lhe dar ingredientes para sua sopa, de uma maneira inusitada: despertando a sua curiosidade. Ele diz que vai fazer uma sopa de pedras e pede-lhe somente a panela emprestada. A confiança de Malasartes é tamanha que a curiosidade da velha é despertada de tal modo que, só para ver onde vai dar, que sabor terá sua sopa de pedras, ela lhe dá todos os ingredientes que tem pouco a pouco. 40 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Regina faz uma leitura “subversiva” do texto, colocando Pedro Malasartes como o artista educador e a velha avarenta como o aluno de arte. A avareza é comparada por Regina ao resguardo do aluno: um gesto cauteloso de abrir a cortina para ver o que está acontecendo lá fora. Como se a velha/aluno dissesse: no que isso me diz respeito? De modo que a sopa só conterá os ingredientes do aluno se o professor se utilizar da arte, da curiosidade do aluno para cozinhá-la. Se Malasartes dissesse à velha “você tem que me dar a batata” ela nunca daria. Assim é com o aluno de arte. Levar Gabriel, Pablo, Manuel, jovens de cerca de quinze anos a dizerem, após muitas reticências que “curtiram” uma música que eu gosto de tocar com certeza tem a ver com essa condição do silêncio. Eles gostaram não porque eu disse a eles que eles tinham que gostar, (mesmo porque eu não disse) mas porque a minha paixão por aquilo despertou algum tipo de curiosidade dentro das cabeças deles. As composições que surgiram a partir de certas orientações também ilustram curiosamente essa reflexão. Numa semana, a prática que eu fiz exigia deles que cada um contribuísse com um trecho da melodia. Essa exigência os obrigou a tentar, e o resultado da obrigação foi colocá-los em contato com barreiras: (medo/timidez). O resultado, porém foi muito pouco artístico, tinha muito pouco deles ali. Sem que eu pedisse, na semana seguinte Pedro chegou com uma composição, que por motivos pessoais ele se sentiu inspirado a fazer. Ali estava simplesmente “ele”, suas referências, talentos, sentimentos, angustias. Durante a orientação finalizamos sua composição e a maior certeza que eu tenho é de que ele saiu de lá satisfeito, porque ficou realmente bom. O clima de inspiração, efervescência, foi lindo e os outros vocacionados presentes participando da composição se sentiram inspirados a escrever e produzir a arte deles. Como eles viam a arte de Pedro nascer ali, em sua frente, eu era apenas o médico fazendo o parto. Manuel como Pedro comentou que parecia o Chico Xavier, escrevendo compulsivamente e essa será a próxima obra a ajudarmos a nascer. O ensaio Porque arte: entre a regra e a exceção, de Teixeira Co-
elho discute de maneira intempestiva e “agulhada”, as diferenças entre cultura e arte, e o uso social que faz delas. O texto traz um historicismo inerente a um crítico de arte, carregado de fatos e citações. A frase de Godard “a cultura é a regra e a arte, a exceção” carrega em si o conceito básico desdobrado no texto. A arte traz em si um potencial destrutivo, de morte, de questionamento, de perigo, de negatividade. Enquanto que a cultura é o positivismo, o hábito, o conforto, a construção. A arte deve ser um pensamento sobre o mundo, não somente sobre a própria arte, a arte deve insistir em ser modo de pensar. Em uma passagem interessante, o autor promove uma argumentação em defesa da audaciosa afirmação do compositor alemão Karlheinz Stockhausen [1928-2007], que considerou o atentado ao World Trade Center uma obra de arte insuperável. Nesta afirmação estão contidos os conceitos que diferenciam a arte da cultura. São estes: transcendência; perigo (a exemplo da perseguição que sofreram os artistas durante as ditaduras), a metáfora da morte: a entrega que os músicos devem ter perante seu compromisso com a arte. Então, de maneira quase cômica, é tratado o ressentimento que a cultura carrega em relação à arte. Por quê? A arte não está preocupada com o nós, com o coletivo, e sim somente com o próprio artista. Seu compromisso não é com mais ninguém além de si mesma. Basicamente, a arte não estando a serviço de ninguém não carrega em si obrigatoriedade de ser duradoura, convergente, séria, politicamente correta. A máxima é: A cultura é uma necessidade, mas a arte é questão de desejo. A arte não é necessária. Após esta nova leitura, reflito: Será que estou impulsionando meus alunos (do Vocacional e outros) a fazerem arte? Unindo o pensamento do crítico de arte Teixeira Coelho ao da professora doutora de arte e genial contadora de histórias Regina Machado, penso se o silêncio ao qual se referia Regina Machado. Não seria a essa atitude egoica da arte citada por Teixeira Coelho, essa falta de vontade de se explicar, de ser clara, objetiva. Mais: essa vontade de ser subjetiva, misteriosa. Chego a um paradoxo do ofício de professor de arte: como conciliar esse antagonismo retórico, como ser ao mesmo tempo herói e bandido? Como ser aquele que “esconde o ouro” e aquele que “entrega o ouro”? Como ser ao mesmo tempo aquele que esclarece e a aquele que confunde? O ensino é uma ação, então penso em ações que possam levar a um fazer artístico. Um ponto que é preciso despertar dentro destes potenciais artistas é a curiosidade, a gana de fazer algo. A gana de tocar o som que você ouve; aprova, mas não consegue reproduzir. De transportar para o instrumento ideias que eles realmente queiram dizer ao mundo, seja lá porque for. De criar novos sons, músicas com os próprios recursos.
Numa última orientação o vocacionado Pedro logo disse “Já compus mais uma”. Mexendo o mínimo possível em sua melodia, a encaixei numa harmonia e mais uma música foi composta, tudo em comum acordo. O título da música é “Não quero mais aspargos”. Este revela o total descompromisso com qualquer tipo de causa. Não pretende “pensar mundo”, como sugere Teixeira Coelho. No entanto, o resultado que o trabalho provoca é extremamente progressivo. Ele, Pedro, está extremamente empolgado em adquirir as ferramentas para fazer aquilo sozinho, ou seja, em aprender música. Pensando que a arte, diferente da cultura, e mesmo na vida de Pedro, não é obrigatória, e deve vir do desejo, a missão de despertá-lo, aqui, foi cumprida. A maneira como guiar esta criação também deve ser muito cuidadosa. Definir e harmonizar uma melodia alheia é algo muito perigoso. Deve ser feito livre de preconceitos, de olhos fechados, afinal de contas, não sou eu quem está criando. Procurei compreender o mais fielmente possível a melodia que estava no ouvido interno dele. Muito mais difícil assim, pois não sendo eu quem guia os caminhos da melodia, acabo pisando em harmonias menos familiares para mim. É um processo de desconstrução, para a reconstrução do meu conhecimento. Parafraseando Teixeira Coelho, nessa construção procurei ser mais arte e menos cultura.
Angela Coltri do Amaral é artista-orientadora de música pelo projeto Vocacional na Casa de Cultura Salvador Ligabue, Freguesia do Ó.
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Notas sobre vazios
ou um breve relato sobre o elefante branco
do invisível
EXPERIÊNCIAS
EXPERIÊNCIAS
A matéria
Daniela Schitini Equipe Região Leste - Teatro
Ilma Guideroli (texto e foto) Equipe Lesta Artes Visuais
A
lotação de prefixo 3.26 avança pela Rua Inácio Monteiro já depois de quase 30 minutos desde que deixara o Terminal Guaianazes. É possível avistar um grande edifício que contrasta com a paisagem local na mesma proporção de sua escala. Desço no ponto indicado pelo cobrador: estranhamento imediato. Todo branco, poderia tranquilamente se passar por hospital. Imponente e ao mesmo tempo melancólico. De frente, um campo de futebol amador. Terra batida, imensidão. Atrás do campo, um mar de casas acompanha a topografia do terreno: estou na Vila Yolanda, Cidade Tiradentes. Extremo da Zona Leste de São Paulo. Ainda com certo receio, entro no prédio. Tudo muito limpo. Asséptico. Polido. Esterilizado. Conforme subo a grande rampa de acesso aos três andares, minha angústia aumenta. Não há indícios, registros, pegadas, marcas, vestígios, pistas: o crime perfeito. Nunca descobrirão! Conforme avanço, percebo que existem mais seguranças e funcionários da limpeza que frequentadores. Entristeço. Logo sou tomada por uma sensação de vazio inexplicável. O que fazer, como fazer, por onde começar? Onde estão as pessoas? Quero ver gente, conversar, conhecer, trocar, ocupar. Quero entender. Ao longo das semanas, minha angústia abranda-se. Aos poucos, pessoas aparecem, desenhos vão surgindo junto com relatos. Tento mapear através dos depoimentos que tipo de relação cada um tem com o Elefante Branco – apelido dado ao Centro Cultural pelos moradores do entorno. “Você se sente pertencente a este espaço?” Um riso tímido e sem graça é a resposta que recebo. O processo tem sido longo e árduo, porém gratificante. Percebi que antes de orientar qualquer tipo de projeto artístico, é preciso fazer com que elas sintam-se seguras e capazes. Isso leva tempo, é uma construção lenta e diária. É preciso primeiro ganhar a con42 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
fiança, mostrar que estou lá para ajudar, para fazer junto, para apontar caminhos e numa relação de igualdade. Os próximos meses prometem reflexões oportunas e férteis. Aos poucos, os espaços vão sendo ocupados, a seu tempo, da maneira que é possível fazê-lo. E eu pacientemente aprendo a lidar com os vazios em suas diversas nuances e densidades. De repente o vazio de outrora já não é assim tão vazio... em meio ao cinza-concreto-frio, ainda existe pulso. E potência.
Ilma Guideroli é artista-orientadora do Programa Vocacional Artes Visuais no Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, região leste. Mestre em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas. Desenvolve pesquisas em espaços urbanos através da fotografia.
“O
caminho é da não matéria para a matéria.” Ouvi essa frase numa das nossas reuniões do vocacional, quando falávamos de uma referência: do artista Joseph Beuys. Depois vi uma frase desse próprio artista que diz: “Pega-se um material indeterminado e que é levado a um lugar preciso para que ali seja feita uma forma determinada. Um é indeterminado, o outro determinado. É um processo que faz com que algo indeterminado assuma uma forma determinada, por meio do movimento.” Assim que terminei de ler, pensei em como é difícil provocar ou descobrir esse processo que abarca o misterioso, o desconhecido e em como temos de trabalhar e investigar essa possibilidade de transformação da não matéria para a matéria, do invisível para o visível, ou nas palavras de Beuys, do indeterminado para o determinado. Uma alquimia que é como uma provocação, um desafio, uma inversão, como se a evolução estivesse nesse caminho invertido, da não matéria, do invisível, do indeterminado para a matéria, visível, determinada e o mais alto grau de evolução fosse então se tornar matéria visível que traz em si o invisível. “Trazer corpos às almas”. Outra frase presente no livro sobre Beuys. Senti uma alegria por essa frase estar presente em um livro sobre o pensamento e sentimento de um artista, pois penso que esse processo que ele descreve do indeterminado para o determinado revela em certo sentido o caminho de todo artista, que tem como material muitas vezes algo invisível ou mesmo algo concreto que não significa e nem existe sem uma relação com outro material ou com outro ser, sem um movimento. O artista precisa dar forma, tornar visível a sua leitura do invisível, estabelecer relações que transformem um material, seja concreto ou invisível, em material artístico. Agora, lembro-me de uma imagem presente numa frase de Rodin, quando ele diz que a escultura já estava presente naquele material, já existia, mas não era visível, ele apenas a revelou, tornou visível.
Quando estamos diante de uma obra de arte, geralmente ela nos escapa, ela não cabe em palavras apenas, nem em imagens somente, nem pode ser totalmente definida, as suas possibilidades permanecem infinitas e a nossa percepção em movimento constante. Uma obra de arte é viva, a cada instante transformada pelos diferentes olhares que atuam sobre ela, e apesar disso não perde a sua integridade. Em um trecho do livro “O Poder do Mito”, Bill Moyers pergunta para Joseph Campbell: Quem hoje interpreta, para nós, as coisas que não são vistas? Campbell responde: Essa é a função do artista. Portanto para chegar a esse grau máximo de evolução do indeterminado para o determinado é necessário trabalhar com o que não é visto, mas existe. Trabalhar com a sutileza, a percepção de entrelinhas, dos silêncios, dos vazios, dos olhares, do desconhecido. Sei que esse início de texto talvez esteja um pouco fantasmagórico demais, invisível demais, ainda num caminho inicial, longe da evolução talvez pretendida por Beuys. Sei também que o Vocacional é um projeto artístico-pedagógico. Pedagógico. O que pode significar que muitas vezes precisa de explicação, de métodos, de formatos. Pois bem, não é só o projeto que precisa, nós também precisamos de um mínimo grau de segurança para trabalhar, de disciplina e planejamento. Temos os nossos caminhos, os nossos procedimentos, aqueles que consideramos que funcionam. Não é preciso dispensar totalmente a nossa bagagem, as nossas muletas, mas é preciso saber transformá-las, saber conduzir e nos deixar conduzir quando elas começam a se deslocar. Existe um momento em que o processo artístico também passa a conduzir o condutor e nesse momento é que geralmente precisamos decidir se assumimos o risco de tentar uma alquimia, de transformar o invisível em visível, de perder o controle absoluto sobre o nosso objeto de pesquisa, de não saber exatamente o caminho e ainda assim se deixar caminhar. Percebo depois de alguns anos conduzindo os chamados procesRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 43
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diz Shakespeare: “Nossos festejos terminaram. Como eu os avisei, eram espíritos todos esses nossos atores; dissiparam-se no ar, no ar impalpável... Somos feitos da matéria dos sonhos e nossa vida pequenina é cercada pelo sono.” Por alguns instantes, conseguimos despertar do nosso sono. Algumas vezes, no palco, a alquimia acontece e a não matéria passa a ser matéria, elas – as pessoas - se tornam uma coisa só, o invisível passa a ser visto, o indeterminado passa a ser determinado. Quando isso realmente acontece o artista sente que chegou perto da sua mais evoluída capacidade de criação. O artista sente que está absolutamente desperto e em relação, reverenciando a matéria dos sonhos de que é feito. Mas não podemos esquecer que estamos no teatro, num palco, e sabemos que dali a algum tempo o palco volta a estar vazio. Vazio. O invisível volta a reinar. E precisamos recomeçar a caminhar, recomeçar a despertar. Inventar um novo caminho.
Daniela Schitini é artista orientadora do projeto Vocacional Teatro nos anos de 2004, 2006, 2007, 2008, 2012 e coordenadora de equipe nos anos de 2009, 2010 e 2011.
Ensaio sobre uma trajetória
EXPERIÊNCIAS
sos artísticos pedagógicos que um elemento fundamental e muito presente nos procedimentos que proponho é a escolha. A escolha dificulta: exige reflexão, intuição, escuta, decisão. A escolha é dolorida, envolve uma responsabilidade e um desapego. A escolha é um elemento fundamental para transformar a não matéria em matéria, aquilo que existia como potência passa a ser visível. A partir do momento em que sentimos que podemos escolher, agir sobre o nosso próprio material, sentimos também os limites e as surpresas que a nossa escolha e ação revela. Começamos a sentir a fagulha da criação, a nossa capacidade de invenção. Relato alguns acontecimentos em uma das turmas que orientei em 2012 com a turma da Casa Chico Science, que trouxe questões que dialogam com essas reflexões. Levei ao grupo propostas de textos para servir como material de improvisação e de investigação, para que experimentassem criar a partir deles. E depois de alguns encontros e tentativas, eles disseram não para esse material. E surpreendentemente esse não, me alegrou. A escolha começou a acontecer, a relação começou a revelar os quereres e as dúvidas. O invisível começou a se transformar, a querer aparecer. Começamos então a realizar alguns exercícios e improvisos a partir de um livro que uma das vocacionadas trouxe sobre Shakespeare. Levei para casa o livro, li alguns trechos e percebi que ali tínhamos o relato bem humorado de uma vida cheia de lacunas e de dúvidas e de fatos desconhecidos. Notei que talvez trabalhando com alguns aspectos dessa vida desconhecida, indeterminada, trabalhando com as lacunas, os artistas vocacionados poderiam criar as suas próprias hipóteses, inventar uma vida para Shakespeare, fazendo dele também um personagem e não só um autor. Agora eles seriam os autores. E eles começaram a criar essa vida imaginária, embarcaram nessa tentativa e foram construindo essa vida do autor mais conhecido e desconhecido do planeta e assim continuaram dizendo sim a esse processo de criação. Pressinto que eles disseram sim porque começaram a sentir que podem ser autores, podem brincar de ser como Shakespeare, esse gênio tão distante, que eles podem ser artistas, realizar escolhas, que podem conduzir esse material e serem conduzidos por ele. O que me faz voltar a Joseph Beuys, e a sua afirmação de que a separação entre vida e arte talvez não exista. “Todo homem é um artista,” diz ele. Fiquei surpresa ao observar a alegria deles de trabalhar sobre esse ponto de partida que é a vida do Shakespeare, um mestre em criar pontes unindo o invisível e visível. Percebi que esse era um caminho naquele momento para o surgimento do material artístico do grupo. O material que surgia na cena era o que mantinha aquelas pessoas juntas, criando. Claro que eu sabia que, a qualquer momento, aquilo poderia se desfazer, desaparecer. Como diria e
As danças urbanas no Programa Vocacional
Ivo Alcântara Colaboração: Ana Maria Krein, Duda Moreno, Lenilson P. Rodriguês, Pedro Peu, Rodrigo Cândido, Urubatan Miranda.
I
nicio esta escrita a partir das minhas experiências adquiridas desde agosto de 2007, quando fui o único contratado com a formação em Danças Urbanas, na função de artista orientador pelo Programa. Agrego também toda a bagagem que carrego desde 1992, quando me vi envolvido com a cultura urbana, iniciando os meus primeiros passos de dança. Este esboço tem o objetivo de desmistificar alguns (pre)conceitos relativos às danças urbanas, contribuindo assim com a pesquisa em desenvolver processos artísticos emancipatórios a partir da estética proposta por este tipo de dança e o material norteador do Programa Vocacional. Naquele momento, nas reuniões artístico pedagógicas entraram em cena os grandes nomes e pensadores da dança moderna e contemporânea: Rudolf Laban, Merce Cunningham, Pina Bausch Martha Graham, William Forsythe. Percebi que apesar da minha formação não ser acadêmica, eu tinha as minhas próprias referências advindas das Danças Urbanas. Vi que os pensamentos artísticos se cruzam em momentos diferentes e atualmente consigo identificar semelhanças entre as técnicas e conceitos dos pesquisadores citados anteriormente nas propostas de Dom Campbell, Gregory Campbellock Jr, Boogaloo Sam, Ken Swift, Buddah Stretch, entre outros tantos.
Abaixo, apresento a de ilustração em que apresento a utilização deste material como ferramenta pedagógica em minhas orientações. Destaco as principais características das danças em questão e traço um paralelo com os princípios do Programa Vocacional.
Oficina x orientação Vale compreender que Danças Urbanas, mais conhecidas como Street Dance ou, na tradução literal, Dança de Rua, por ter quase seis décadas de existência, representa cultura viva, em constante movimento que está sempre se atualizando, se reinventando e se reorganizando. Este seguimento surgiu nos Estados Unidos no final da década de 60, e chegou ao Brasil no início dos anos 80, tendo como principais referências de aprendizado imagens em videoclipes, filmes no cinema e em VHS. Motivo este pelo qual a maioria dos dançarinos era autodidata e dava importância apenas para a reprodução do movimento pelo movimento. Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 45
O Movimento Soul/Funk tendo como grandes precursores os intérpretes norte-americanos James Brown, Aretha Franklin, Rufus Thomas, entre outros, foi o responsável direto pelo surgimento das Danças Sociais, conhecidas como “Social Dances”, danças que se caracterizam por não possuir um vocabulário tão complexo, e por serem pequenas sequências de movimento que normalmente são executadas repetidamente de forma cíclica. Esta manifestação tinha o caráter de aproximação entre pessoas, proporcionando momentos de celebração entre os participantes e apreciadores. Características estas que se relacionam com os princípios do programa Vocacional e que utilizo como ponto de partida em meus encontros e ações culturais. A dança Locking, de Don Campbell, criada no final da década de 60, é considerada a dança clássica entre as Street Dances norte-americanas. Apresenta movimentos dinâmicos e em seu principal passo, o Lock traz a “pausa” como qualidade indispensável. Além desta característica, destaco ainda que a maioria dos passos pertencentes ao seu vocabulário de movimentos parte da execução e do trabalho com os membros superiores, concentrando-se em dedos, punhos, cotovelos e ombros.
Ivo Alcântara é artista orientador do Vocacional Dança no CEU Jaçanã, equipe norte. É pesquisador das danças urbanas e arte-educador na Fábrica de Cultura Jaçanã.
Referências bibliográficas
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DIAS, Raul e MOTTA, Fábio. HIP HOP – Cultura de Rua. São Paulo: HHB Studio, 2011. GLITZ, Nathalia. DANÇAS URBANAS – Histórico e Possibilidades. TCC - Universidade FMU. São Paulo, 2012. GUARATO, Rafael. DANÇA DE RUA - Corpos para além do movimento. Uberlândia: EDUFU, 2008. PIMENTEL, Spensy. O LIVRO VERMELHO DO HIP HOP. TCC - Fac. de Jornalismo da USP. São Paulo, 1997. RIBEIRO, Ana Claudia e CARDOSO, Ricardo. DANÇA DE RUA. Campinas: Editora Átomo, 2011.
Traçando limites Murilo Gaulês Equipe Região Norte 2 - Teatro
C
artografia (do grego chartis = mapa e graphein = escrita) é a ciência que trata da concepção, produção, difusão, utilização e estudo dos mapas. É um desenho que acompanha e que se faz ao mesmo tempo dos movimentos de transformação da paisagem (ROLNIK, 1989, p.2), como uma minuciosa arte de registro daquilo que é observado, da criação de linhas, cores e formas a fim de prover a visualização de dados espaciais. Dessa forma, torna-se possível analisar um todo espacial muito grande e complexo, em uma forma de escala reduzida e palpável, em que se materializam informações que ajudam a entender o objeto de análise com maior clareza e concretude. O cartógrafo é um criador de limites, que planeja, organiza, projeta, orienta, direciona e fiscaliza as diversas modalidades de levantamento, por meio do processo e análise de dados coletados, bem como pela visualização e reprodução de informações. É um articulador de limites que traça no espaço todos os atravessamentos que dele emergem. O artista-orientador no Programa Vocacional se propõe a agir como um cartógrafo. Vai a campo quando atua em seu equipamento e coleta informações. Observa com olhar atento e receptivo cada detalhe no encontro a fim de poder traçar seu mapa processual. Mapa este que é planejado em conjunto durante as reuniões de pesquisa-ação com uma equipe que trabalha com estes materiais coletados e delicadamente vai esboçando linhas, traçando limites. Vai descobrindo as potências e fragilidades, desbravando he-
EXPERIÊNCIAS
Já a dança Breaking de 1973, uma das danças mais populares entre os jovens do mundo todo, traz em seu histórico a superação, resistência, disputa ou demarcação de território. Para fazer parte ou representar uma Crew, para ganhar o seu espaço na Cyper, é preciso ser e estar no espaço, afirmar a sua identidade. A orientação no vocacional não se dá apenas ao trabalho físico, pois o orientador enxerga o indivíduo de uma maneira integral, trazendo à tona outras questões pertinentes ao artista, como desenvolvimento da identidade e da autoafirmação. Os estilos Popping e Boogaloo, assim como alguns de seus derivados, Roboting, Scarecrow, Toy Man, Puppet, Waving, Tutting, entre outros, são técnicas que estimulam seus praticantes a se transportarem a uma situação diferente do real, que vão desde a ilusão de ótica, até a caracterização de um personagem. Entre as técnicas citadas acima, alguns princípios básicos como, fluência, torção, rotação, contração muscular, isolamento das partes do corpo e a exploração dos ângulos, são recorrentes. O Freestyle Hip Hop Dance de Nova Iorque surgiu em 84, mas ganhou popularidade a partir de 92, através dos videoclipes de Michael Jackson, Mariah Carey, Will Smith e TLC, com coreografias assinadas por Buddha Stretch, trazendo a força e energia dos dançarinos em movimentos sincronizados. Seguindo uma linha cronológica, observamos que a evolução musical contribuiu para o surgimento de outros estilos de dança, pois quando um novo gênero surge, a partir da mescla ou da inserção de recursos, o corpo responde e se manifesta. Não tenho a finalidade de passar uma metodologia a ser seguida, este é o relato de uma trajetória que está em constante movimentação, que pode e deve ser contaminada a cada instante, a fim de que eu possa oferecer um trabalho adequado aos princípios do programa.
Limites são impostos para criar diferenças: diferenças entre um lugar e outro (por exemplo, a casa e o “fora”), entre uma extensão de tempo e o resto do tempo (por exemplo, infância e idade adulta), entre uma categoria de criaturas humanas e o resto da humanidade (por exemplo, as categorias de “nós” e “eles”). Pela criação de “diferenças que fazem diferença”, diferenças que reclamam a aplicação de diversos padrões de comportamento, torna-se possível manipular probabilidades: deste ou daquele lado do limite ou fronteira, determinados eventos se tornam prováveis, enquanto outros são menos prováveis e inclusive impossíveis. A massa informe passa a ser “estruturada” – tende a ter uma estrutura. Assim, podemos saber agora onde estamos, o que esperar e o que fazer. Fronteiras proporcionam confiança. Elas nos permitem saber como, onde e quando agir. Capacitam-nos a atuar de modo confiante. Zygmunt Bauman
misférios opostos, calculando distâncias e vivendo seus traçados virtuais na prática do fazer artístico, tanto nos encontros quando nas reuniões de equipe. Na ponta está o objeto a ser cartografado: o processo, a relação, os contextos, as memórias. No encontro com a equipe dá-se a forma a esta análise com a teoria, a troca, o experimento. Munidos de um glossário mínimo comum proveniente de um Material Norteador, o artista-orientador usa do seu próprio mapa pessoal para registrar o momento efêmero da criação emergente do vocacionado. Ele revisita suas trajetórias, os ângulos vislumbrados, as legendas de identificação antes definidas para reinventar o espaço, reentender suas percepções. Sim, o artista-orientador reinventa sua própria percepção, porque este tem como meta a construção de um mapa que parte do olhar do outro. Como dizia Moreno: Olho no olho. Cara a cara. E quando estiveres perto, eu arrancarei os seus olhos e os colocarei no lugar dos meus. E tu arrancara os meus olhos e os colocara no lugar dos teus. Então, eu te olharei com teus olhos e tu me olharas com os meus.” (MORENO, 1984, p.70). Essa troca de olhares, feita de forma sensível e delicada, perpassa por uma série de instâncias. Os olhos dos vocacionados são trocados com os olhos do AO que troca estes com os olhos dos artistas de sua equipe e com seu coordenador, que por sua vez, troca de olhos com outros coordenadores nas reuniões de coordenação para que depois estes olhos trocados sejam repassados até retornarem ao seu primeiro emissor. Sendo assim, com que olhos vemos aquilo que precisamos cartografar? Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 47
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Aqui os limites são traçados pela relação, no ato efêmero do contato e da troca, na vida daquilo que acontece, no debate de mestres ignorantes que trocam seus (não)saberes até encontrar a forma que contém este espaço. O espaço da relação! Que nasce do choque, do conflito, da horizontalidade, da potência individual e coletiva. Um espaço desenhado no caos. Como presumiu Gilles Deleuze: O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. [...] Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos (DELEUZE & GUATARI, 1992, p.53). Discordo um pouco de Deleuze, quando o assunto é o Programa Vocacional. Viva o caos e a sua potência criativa de inventar o novo do cruzamento de olhares, toques, percepções, vontades... Viva a delicada ordem que naturalmente está contida em todo o caos. Comecemos nosso mapa caótico!
Murilo Gaulês é Ator, diretor e professor. Formado em Artes Cênicas pela Faculdade Paulista de Artes e pós-graduado em Psicopedagogia e Arteterapia pela (FPA). Artista-orientador do Programa Vocacional de Teatro. Atualmente é diretor artístico do Coletivo Anônimo de Atuadores e integra o Núcleo Adega de Teatro.
Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. DELEUZE, G., & GUATARI, F. O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992. MORENO, Jacob Levi. O Teatro da Espontaneidade São Paulo: Summus, 1984. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989.
Arte e política: potência criativa
EXPERIÊNCIAS
Com estes mesmos olhos míticos das parcas que ora dão vida, ora cortam o fio. Este olho trocado que muda de opinião quando realocado, pois traz consigo a contaminação da experiência. Um olho que cria e ama num ato e que, quando volta para a obra, mais reflexivo, destrói o objeto amado para dar lugar ao novo. Criar e destruir sem medo de se afogar no apego. Porque mesmo aquilo que foi destruído deixa sua poeira de cinzas que sedimenta na matéria nova erigida. É como a vida e a morte – a gente não consegue pensar na vida sem pensar na morte - e assim também acontece quando se vive o trabalho. Entendido o caminho do olhar agora se arriscam os primeiros traços sobre a folha branca (que nunca é totalmente branca, pois traz consigo resquícios provindos daquele que a carregou até aqui). Começamos a esboçar sobre o tempo, sobre a história, sobre a ação, sobre a relação, sobre o espaço. Os traços representam limites, mas não limitam a criação. É papel fundamental do artista/cartógrafo reconhecer os limites envolvidos para assim poder explorá-los, dilatá-los, expandi-los ou simplesmente ignorá-los por enquanto. Essa tensão limítrofe é esboçada também em várias instâncias. O mapa vocacional é constituído de várias camadas sobrepostas que apontam sinuosidades no processo com margem para a reinvenção destas. Por isso mesmo que se trata de um mapa em movimento, em que suas erupções, alfandegas, construções, condições climáticas, densidade demográfica e qualquer outro dado registrado pode ser facilmente modificado a fim de entender a potência efêmera que a arte exige para poder ser. Por se tratar de uma cartografia coletiva, o processo de revelação destes limites é também potencializado no vocacionado que, tendo pertencimento deste ofício de olhar para além dos seus olhos, consegue diagnosticar em seu próprio procedimento características particulares que traçam um norte possível de ser seguido para algum ponto deste atlas desconhecido. Dessa forma ele se orienta e passa a ser autônomo no processo de investigação artística e de fruição de suas próprias criações. Neste momento, as linhas saem do papel e passam a penetrar o espaço que, deformado pelo traço, passa a ter sua própria constituição de tempo, linguagem, organização, regras, gravidade. O mapa explode para fora da folha e torna-se uma abertura, uma passagem para outra dimensão que, aos poucos, vai se materializando de forma mais familiar àqueles que a (re)visitam. Trata-se de um fenômeno mutante e de movimento contínuo. Elabora e reelaborado a todo o momento por vocacionados, artistas orientadores e coordenadores em uma rede de olhares e práticas que configuram novas formas, diferenciando completamente o que é o Programa Vocacional, de outro projeto de Oficinas de Formação.
Escrever é pois “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. Michel Focault - A escrita de si Ensaio - experiência modificadora de si no jogo da verdade Michel Focault - História da sexualidade II
Lígia Botelho Equipe Sul 1 Teatro
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screver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro, pesquisar, propor, instaurar processos criativos. As pesquisas nos regem! Quais são as perguntas que revelam possíveis caminhos? Quais os caminhos para nossas pesquisas? Compreender, vivenciar o processo de modo que a realidade me mova e conduza a pesquisa. Dialogar... Diálogo não significa estar em conformidade. As contradições, as ambiguidades também provocam, mas diferem da negação, que exclui. Início. Coletivos. Continuidade. Pesquisa. Processo. Construção de subjetividades. Criação. Emancipação. A história do programa se faz na história-trajetória e na potência criativa de cada artista-orientador e de cada artista-vocacionado, envolvidos nos processos artísticos. As políticas públicas parecem estar também em processo de diálogo com o Programa. O programa tem história. Tem corpo, alma e já gerou frutos. Mas a cidade conhece esta trajetória? E o tempo para a construção de processos artísticos emancipatórios? A política de regionalização promove de fato o trânsito entre artistas vocacionados? As perguntas de pesquisa, inevitavelmente, se mesclam a estas intrinsicamente ligadas às nossas ações artístico-político-pedagógicas. Não se trata de indicar questões já conhecidas, tampouco de se debruçar em lamentações, mas sim revelar arestas, contradições e instaurar proposições. A construção de processos artísticos emancipatórios precisa de tempo. De experiências. De vivências. Larrosa analisa a dificuldade de viver experiências na contemporaneidade e enfatiza a importância da suspensão do tempo para vivenciá-las:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LAROSSA, 2002, p.24) Acreditar, se entregar artisticamente a esta cidade, carregada de potência criativa, me preenche, me seduz. Me intriga a possibilidade de revolucionar e de transpor limites, por meio da arte. Vontade, caos criativo, pesquisa e garra se mesclam e me impulsionam a desenvolver pesquisas, novamente, em solo árido. Retorno. Retomo. Inicio esta jornada em novo espaço; lindo, solo rico em histórias, túneis irrigados por suor e sangue de negros escravos. E a árvore que “sangrou” quando foi feito o aterro para a construção do metrô Jabaquara? Seria uma manifestação dos nossos antepassados mediante a cobertura de tantos utensílios arqueológicos esquecidos naquele solo? E conheço um dos túneis, rota de fuga de escravos que pretendiam chegar até o porto de Santos e de lá seguir, rumo à África. E conheço a casa antiga, chamada de Sítio da Ressaca. Me encanto com a história daquele lugar: grande, lindo e vazio. O vocacional desenvolveu um rico trabalho de, 2006 a 2009, no antigo Centro Cultural Jabaquara, hoje chamado de Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro Caio Egydio de Souza AraRevista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 49
nha. Um grupo nasceu, se consolidou, se emancipou, foi contemplado pelo VAI e ainda conserva a característica de pesquisa, de investigação teatral, tão difundidas pelo Programa. O coletivo aceitou meu convite e passou a receber minhas orientações. Primeira pergunta-provocação: Porque um texto que parece ter raízes no teatro do absurdo apresenta estética tão realista em certos momentos? Em que medida a fisicalidade e os “estados corporais” poderiam provocar novas tensões, novas metáforas na encenação? Certo dia, chego e presencio jogo de aquecimento pautado no “platô”, exercício que privilegia o equilíbrio do espaço por meio dos corpos, fisicalidades, ações físicas e verbais. Ao jogo, o coletivo alia texto de uma das cenas da peça. Ao término, perguntei se se tratava de uma nova proposta para a cena. Eles negaram e disseram que era apenas um jogo de aquecimento. Nova provocação se instala: E porque não aliar o jogo à cena? O jogo parece revelar uma tensão, vida, relação tão forte entre vocês e tão entrelaçada ao contexto da cena? Juntos investigamos palavras, que parecem reger a cena: medo, tensão, disfarce, jogo, entre outras. Aliamos ao platô, estas palavras que provocaram novas relações com o espaço, com objetos, com os “estados” físicos. As novas fisicalidades revelaram novas relações, novos jogos entre os atores. Nesta perspectiva, continuamos a pesquisa investigando, a cada encontro, possibilidades de encenação. Ao subir no palco, o coletivo parece se aprisionar. Como transportar para o palco o jogo criado no chão com o mesmo frescor? E segue a investigação cênica. Instaurar processos que dialoguem com um possível produto, de modo que este trabalho leve em conta não o aprendizado e a repetição em direção ao virtuosismo, mas a utilização de estratégias que mobilizem os diversos tipos de relação do participante, tornando-o sensível e ampliando sua capacidade de jogo. O terreno é movediço e delicioso, porque abala as estruturas das certezas. Atrai e provoca temor. Como fazer com que os atuantes desejosos daquilo que lhes parece “novo”, acreditem que podem desenvolver um processo de encenação? E vem mais uma vez a questão do “novo”. Provocar, estimular a busca incessante pelo “novo”. Mas seria mesmo possível conquistar o “novo”, no mundo contemporâneo? Providencial o reencontro, por estes dias, com Mirian Celeste, Docente de Pós-Graduação e palestrante em evento sobre pedagogia em instituição de ensino das artes. Por que buscamos sempre o novo? Rejeitamos o velho? O que é velho? O que é o novo? O novo não significa o inusitado, mas a retomada de algo que se perdeu, que pode gerar novo olhar. Porque o jogo dá prazer e ao mesmo tempo abala estruturas? Recorro a Huizinga: 50 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Jogo: atividade livre, conscientemente tomada como “não séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes (HUIZINGA, 2004, p. 16). O jogo instaura, de algum modo, a luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Nesta perspectiva, o produto também pode ser elemento de jogo, na medida em que catalisa as experiências, as sensações, signos descobertos na intersecção entre jogo, corpo, texto, sonoridades e demais elementos de composição da cena por meio de processo criativo. Neste sentido, Márcia Pompeo Nogueira desenvolve: Uma proposta de superação da polêmica “Processo x produto” hoje não pode ser nem a Escola Tradicional, que nega o processo, nem a Escola Nova, que nega o produto. Hoje a parceria com o teatro deve ser vista como desejável (...). Não se deve procurar a perfeição formal, mas processos ricos que incluam as apresentações como mais um elemento do jogo. (NOGUEIRA, 1994, p. 76). E nós artistas-orientadores, em que medida nos colocamos, de fato, em estado de jogo? Tarefa desafiadora e delicada, mas necessária. Jogar com o artista vocacionado, não apenas literalmente, somente quando temos um ou dois vocacionados presentes. Improvisar, respirar, perceber quando um procedimento instaura processo criativo, provoca, desestabiliza. Parece-me necessário se colocar em estado de jogo principalmente no sentido de permitir a escuta/ a recepção sem omitir nossa responsabilidade, enquanto provocadores, assumindo o trânsito constante de referências de todos os artistas envolvidos: vocacionados e orientadores. Parafraseando Priscila Gontijo, em seu ensaio-publicação: Ser mestre ignorante não pode ser oposição, e sim complementação enredada pelo paradoxo. E completo; trânsito constante de fluxos, discurso polifônico em direção ao ato criativo.
Procuro transpor os próprios limites. Ora criando processos criativos advindos do encontro, ora coletivos, ora individuais. Como o revezamento nas turmas se faz presente, às vezes é quase um ato de heroísmo conquistar alguém para participar do encontro. Então este alguém se mescla a algum vocacionado que já veio algumas poucas vezes e construímos o processo do “encontro”. E continuo esta trajetória movida pela força artístico-político-pedagógica, própria da natureza do ofício do artista-orientador. Recorro a Ranciere (Editora 34, 2005): Arte e política fazem parte da vida e se enredam, constantemente, retratando a sociedade e ampliando a compreensão do mundo. Fazer teatro, conduzir a criação de processos artísticos emancipatórios é escolha que implica em entrega e, parafraseando minha parceira de equipe, Monica Rodrigues, em urgência poética militante. Existem muitos artistas dispostos a não fazer arte apenas para um pequeno círculo de iniciados. Isso soa democrático, mas em minha opinião, não é totalmente democrático. Democrático é transformar o pequeno círculo de iniciados em um grande círculo de iniciados. Pois a arte necessita de conhecimentos. A observação da arte só poderá levar a um prazer verdadeiro, se houver uma arte da observação. Assim como é verdade que em todo homem existe um artista, que o homem é o mais artista dentre todos os animais, também é certo que essa inclinação pode ser desenvolvida ou perecer. Subjaz à arte um saber que é um saber conquistado através do trabalho (BRECHT, citado por KOUDELA, p. 110).
Lígia Botelho é graduada em Arquitetura e Mestre em Artes Cênicas pela Unesp. Atriz do Núcleo Urbanos de Teatro, professora de Artes Cênicas no Senac e artista-orientadora do Programa Vocacional Teatro no Acervo de Memória e do Viver Afro-brasileiro Caio Egydio de Souza Aranha.
Notas 1 2
Ocupação Zuzu- Itaú Cultural - 2014 Diálogos e práticas 17, Senac Lapa Scipião.
Referências bibliográficas BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Conferencia proferida no I seminário internacional de Educação de Campinas, Revista Brasileira de Educação, 2002. Departamento de Expansão Cultural, Projeto Teatro Vocacional, SMC/PMSP, 2008. Disponível em: http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/ RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf. Acesso em: 25 set. 2008, 11:47:20 BOTELHO, Lígia Rodrigues. O teatro como meio e fim para um processo de instrumentalização do indivíduo na leitura da realidade. Dissertação de Mestrado IA UNESP 2008. GONTIJO, Priscila. Referências Artistas Orientadores x Referências Artistas Vocacionados. Revista Vocare 2013. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 5 ed. São Paulo. Perspectiva. 2004 MARTINS, Mirian Celeste Ferreira Dias. Palestra Diálogos e Práticas 17. Senac Scipião. 2014 NOGUEIRA, Márcia Pompeo, Teatro na Educação: uma proposta de superação da dicotomia entre processo e produto, in Alve, Jocélia Maria (org.) Ensino da Arte em Foco. Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 1994. RANCIERI, Jacques . A Partilha do Sensível – Estética e Política. Editora 34, 2005 KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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EXPERIÊNCIAS
Dance para ser desenhado Lara Dau Vieira Equipe Região Sul 2 - Dança
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entro deste contexto, a realidade social do CEU Paraisópolis, encrustado entre a sociedade alto padrão do Morumbi e a segunda cidade informal de 56.000 habitantes da metrópole de São Paulo, a favela Paraisópolis, me instigou como artista-orientadora do Programa Vocacional, muitas perguntas: Quem são seus frequentadores? Como eles se apresentam? Quem são os interessados em desenvolver atividades artísticas, esportivas e intelectuais ali? Quem habita este espaço? E como? Dentro de um universo desconhecido, a escolha foi mapear os frequentadores do CEU, através de registros em desenho, unindo as linguagens da Dança e das Artes Plásticas. O interesse em desenhar corpos em movimento no espaço que o homem habita e transita. A Intervenção/Instalação “Dance para ser Desenhado”, propõe um jogo de estímulos aos transeuntes/vocacionados instantâneos do CEU Paraisópolis. Eles são convidados a pausar/dançar, para a artista orientadora-desenhista, que registra o movimento de cada um, em traços rápidos em folhas de papel de seda. Os desenhos são apresentados aos dançantes, que podem deixar neles sua assinatura e alguma impressão do encontro. A ação para os vocacionados instantâneos: “Dance para ser Desenhado”, propõe um diálogo silencioso com corpos de crianças da piscina, dos adolescentes que dançam pop, dos grupos da capoeira, do boxe, do hip hop, de copeiras, faxineiras, guardas, gestão, técnicos e coordenadoras da Cultura e da Educação. O grupo de teatro “Topeiras de Boina” é o grupo orientado pela artista. Os desenhos dos vocacionados trazem diferentes corpos, diferentes texturas que falam a que vieram. São suas escolhas das poses e da gestualidade que deixam transparecer seu universo individual e coletivo. Como trabalhar com aqueles que transitam 52 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
Nos nossos dias, existem numerosos exemplos de culturas exageradamente rígidas ou exageradamente insensatas. As pequenas sociedades atrasadas, completamente dominadas por pesadíssimos tabus e costumes antigos, são exemplo das primeiras. Estas mesmas sociedades tornam-se rapidamente exemplos do segundo tipo, quando “ajudadas” pelas civilizações avançadas. O Impacto súbito de novidade social e de hesitação exploratória submerge as forças estabilizadoras da incitação ancestral e desequilibra a balança para o lado oposto. Daí resultam confusão e desintegração social. Feliz seria a sociedade que adquirisse, gradativamente, um equilíbrio perfeito entre imitação e a curiosidade, entre a escravatura da aceitação cega de imitação e experimentação progressiva e racional. Desmond Morris.
entre a imitação cega de uma sociedade fragilizada e a força da curiosidade de novas experimentações? Como dialogar com este contexto? A Proposta da Instalação é reunir todos os desenhos, formando uma única caligrafia, coreografia, em painéis e caixas revestidas dos desenhos suspensas no BEC e na biblioteca do CEU, revelando diversidade de memórias corporais, rastros de expressões e uma busca silenciosa da artista orientadora. 59 vocacionados foram desenhados até 20 de julho de 2014. A intenção é desenhar até novembro de 2014 e deixar os desenhos já executados expostos para serem reconhecidos pelos retratados e pelos outros frequentadores do CEU, trazendo a questão do pertencimento dentro deste espaço público. Entre a imitação e a curiosidade, entre a fortuna e a pobreza, construímos algo “entre” que nos faz refletir. O que temos que escutar de nós mesmos dentro sociedade contaminada por padrões e ilusões? Quais os nossos desejos? Na Biblioteca do CEU Paraisópolis, os desenhos ficaram expostos por quase dois meses e as crianças, que ali passaram, colocaram olhos e bocas nos rostos dos desenhos, talvez seja esse um dos nossos anseios, “ter olhos para ver e bocas para falar”.
Lara Dau Vieira é formada em Dança na New Dance Development School de Amsterdam e Arquitetura na EESC-USP. Atuou no Programa Vocacional como coordenadora em 2008 e 2009 e artista–orientadora em 2011, 2012 e 2014.
Referência Bibliográfica: MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. Editora Edibolso 1975. Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 53
MEMÓRIA
MEMÓRIA VOCACIONAL E MEMÓRIA:TRABALHO EM PROCESSO
Pensar a partir da distância Luiz Pimentel
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ação de investigar a memória pode tanto resultar em conforto lírico de um ser consigo mesmo e com seu tempo, quanto na convocatória do pensamento para uma imersão vertiginosa. Sabemos que a primeira possibilidade da memória tornou-se recorrente em celebrações: festas de aniversários, de debutantes, de casamento, bodas, etc. É o que se vê, por exemplo, em quadros de programas de auditório em que são relembradas as trajetórias de grandes estrelas e nos quais a ação da pesquisa serve tão somente para colher depoimentos de queridos conhecidos e familiares que, em alguns casos, disparam uma comoção generalizada. É o que acontece também em premiações de determinadas categorias - dentre elas, a teatral -, em notas fúnebres nos jornais e em discursos emocionados com os quais nos presenteamos. Memória praticada como homenagem: passagem em revista dos eventos de uma vida que servem para sublinhar e legitimar seus sentidos, seus sucessos e relevância. Campo familiar, conhecido e, portanto, quase sempre reiterativo. Entretanto, há um outro gesto que se contenta em permanecer contemplando o opaco das coisas e funda-se no prazer de perspectivar um passado sem aura. Esse gesto não se pretende mais verdadeiro ou legítimo que o anterior, mas recusa propositadamente o excesso de positividade do mundo e parte para um questionamento de suas verdades implícitas. Dedicado a escavar dessemelhanças, a memória assim perspectivada anseia pelo espanto do estranho. Tem algo a ver com montar nas costas do hipopótamo do qual nos fala Brás Cubas e, topando permanecer em seus elementos, a água e a lama, movimentar-se por terra nos vestígios do passado, sem pretender ou esperar qualquer re-
Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança; mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino. - Engana-se – replicou o animal – nós vamos à origem dos séculos. (...) Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à ventura. Já agora não se me dá a confessar que sentia umas tais cócegas ou quais cócegas de curiosidade, por saber onde ficava a origem dos séculos, se era tão misteriosa quanto a origem do Nilo, e sobretudo se valia alguma coisa mais ou menos do que a consumação dos mesmos séculos: reflexões de cérebro enfermo. Memórias póstumas de Brás Cubas
denção final. A história entendida como um quebra-cabeça cruel (MOUAWAAD, p. 118) e a memória praticada como trabalho anônimo de escriba, arqueólogo, investigador à sombra. Partindo desses pressupostos, perguntamos a nós mesmos: qual o sentido, hoje, de propor um trabalho sobre a memória do Programa Vocacional? Ora, para respondermos essa questão, tal ação deveria se relacionar à importância de entendermos o Programa na sua configuração sociopolítica atual a partir das aproximações, distanciamentos e transformações em relação à sua implantação na cidade desde 2001. Assim, o Vocacional Memória1 consiste em uma ação que quer se experimentar dentro dessa investigação, aqui presente em seus primeiros esboços. Duas ações tornam-se comuns nessa proposta: poder dialogar mais de perto com a cidade sobre os conceitos e delineamentos do Programa e analisá-lo criticamente, por via de suas transformações. O interesse ou necessidade nossa em empreender este trabalho de memória do Vocacional lida com a dificuldade que ainda temos de falar sobre ele, narrá-lo historicamente - como, por exemplo, para os novos artistas orientadores contratados nesse ano que nunca haviam participado de edições anteriores do Programa -, assim como com nosso desejo de torná-lo mais próximo das pessoas que ainda não tem conhecimento sobre sua atuação na cidade. Existe também a vontade de manter em vista as constantes reivindicações e crises pelas quais o Programa passou ao longo de sua existência, como as que tomaram força no ano de 2013, por meio da organização de assembleias de artistas orientadores que buscavam entender qual a proposta cultural da nova gestão da Secretaria Municipal de Cultura. Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 55
Assim, a memória nada teria a ver com uma perspectiva nostálgica que se dedicaria a mirar os “velhos bons tempos” para desmerecer as atuais circunstâncias, algo como agir de forma a “resgatar” os conceitos originais ou se debruçar em direção a algum fundamento inicial e, portanto, mais verdadeiro que o atual. Tampouco teria a ver com celebrar o presente, festejando um Programa que se encontra morto - nota fúnebre - ou em pleno vigor e coerência. Muito pelo contrário, aqui a memória teria de ser pensada como uma mirada seca para trás, para nossas costas, para um momento em que éramos distintos e, talvez, por meio dessa retrospectiva, indagarmos: “como pudemos nos tornar o que vimos sendo ao longo dos últimos anos?”. A recusa pela história pensada como resgate da essência perdida, fundada no eterno do mundo, interessa-nos de forma parecida àquela que interessou o professor francês Michel Foucault: O que faz com que eu não seja filósofo, no sentido clássico do termo – talvez eu não seja filósofo de jeito nenhum –, é o fato de eu não me interessar pelo eterno, não me interesso pelo que não se mexe, pelo que permanece estável sob o furta-cor das aparências; interesso-me pelo acontecimento. (...) Com efeito, trata-se, de certo modo, de retomar pelo viés da filosofia aquilo de que o teatro se ocupa, pois o teatro sempre se ocupa de um acontecimento. (...) Procuro, então, apreender qual é o acontecimento sob cujo signo nascemos e qual o que continua a nos atravessar. (FOUCAULT, 2011, p. 225) Na esteira do professor Foucault, cabe distinguir essa seção dedicada à memória de um trabalho estritamente historiográfico. Não somos historiadores e não nos pensamos assim. O que guia nosso movimento provém de um impulso afetivo de nossa ação como artistas dentro do Vocacional. É a partir de nossas perguntas artísticas, de seu diálogo com a cidade e nosso contexto atual que falamos. Logo, a analogia proposta por Foucault entre teatro e pensamento filosófico, também nos é pertinente: teatro pensado como a prática que se ocupa justamente do acontecimento e a memória como inflexão dedicada a flagrar, no passado, nossas mutações, dessemelhanças e debates silenciados. O gesto filosófico análogo ao teatro, que fascinava Michel Foucault, seria poder descrever a maneira como os homens do Ocidente viram as coisas sem nunca perguntarem se eram verdadeiras ou não e como fo56 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
ram construindo, aos poucos e por jogos do olhar, o espetáculo do mundo (FOUCAULT, 2011, p. 223). Parafraseamos Foucault, a partir de sua metáfora da cena da filosofia, e insistimos: gostaríamos de tentar descrever a maneira como se encenou e como seguimos encenando o Programa Vocacional, ou seja, como o percebemos, qual valor atribuímos a ele e como o Programa desempenhou seu papel (FOUCAULT, 2011, p. 223). E, a partir dessa ligeira tomada de distância do nosso presente, esperamos poder tomar fôlego e seguir atuando com algum vigor em nossas práticas cotidianas. Nossa participação na Revista Vocare, a princípio, seria organizada no formato de um dossiê. Porém, como ficam evidenciados pelos pressupostos que guiam o conceito de memória aqui proposto, a ideia do dossiê, com sua forma fechada e alguma coerência interna, não nos pareceu a mais apropriada. Propomos, então, o nome de seção para expor partes da pesquisa feita até o momento. Os significados de seção como parte, trecho, divisão, interessam-nos mais, pois entram em diálogo com o caráter processual da investigação, que jamais se propõe aqui como encerrado. O que nos instiga é pensar que tal espaço possa permanecer aberto para as futuras edições da publicação e que possa seguir prenhe de debates que façam sentido para o pensamento e movimento por vir do Programa. A seção começa com a transcrição de um encontro público realizado no Tendal da Lapa com o ex-secretário municipal de cultura, Celso Frateschi. Responsável pela implantação do projeto Teatro Vocacional em 2001, Frateschi retoma os princípios de sua construção e sublinha algumas de suas singularidades. Seguindo o papo com Celso, segue uma entrevista com a primeira coordenadora do projeto, Maria Tendlau. Em sua análise crítica e questionadora, Tendlau sai da situação do projeto para pensar as possibilidades de relação entre arte e política e questiona sobre a presença ou ausência de sentidos para um trabalho como o do Vocacional. Encerrando a seção, transcrevemos uma conversa realizada com sete grupos que estão ou já passaram pelo Vocacional, justamente em um ano em que a relação orientação de grupos está sendo questionada. Para além de alguns traços comuns como problemas de espaço e relação complicada com seus respectivos equipamentos, o encontro pôde também servir como troca de experiências artísticas e de modos distintos de organização. É notável que tenhamos nos detido na investigação dos momentos iniciais de formulação do Programa (arco 2001-2004). Tal fato se deve à impossibilidade de dedicarmos mais tempo para
este trabalho no curto tempo em que nos envolvemos com a proposta. Reiteramos que é nosso desejo disparar uma ação e não encerrá-la, e que são bem vindas futuras contribuições, depoimentos e pontos de vista distintos dos que aqui formulados. O trabalho seguirá sendo ampliado numa plataforma virtual e seguirá sendo desenvolvido após essa publicação (ver http://vocacionalmemoria.wordpress.com). É importante agradecermos aos parceiros que foram fundamentais na arquitetura do material presente nesta seção. Agradecemos à equipe de coordenadores do Tendal da Lapa, Carla e Marco; a Maria Tendlau e Celso Frateschi, pela gentileza de se disporem publicamente; Paulo Fabiano; Suzana Schmidt; Cíntia Campolina; Ipojucan Pereira; Valeria Lauand; Veronica Mello; aos coletivos e grupos Família Justa Causa, Improvis´Art, Pandora, Humbalada, Bastarda, Jovens Amadores e Palco para toda obra; e a todos os artistas orientadores e vocacionados do Programa Vocacional. E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. (...) Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a
trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que, aliás, começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel... (Memórias póstumas de Brás Cubas, p. 27)
Referências bibliográficas ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Abril Cultural, 1978. FOUCAULT, Michel. O saber como crime; A cena da filosofia In: ______. Arte, epistemologia, filosofia e história da medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 62-69; p. 222-247. (Ditos & Escritos VII) MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013.
Notas O Vocacional Memória é um trabalho inicialmente desenvolvido por um núcleo de artistas orientadores do Programa Vocacional que se reuniu no começo da edição de 2014. O núcleo é composto pelos AOs Andrea Tedesco, Livia Piccolo, Luiz Pimentel, Marcio Castro, Maria Emília Faganello, Marina Corazza, Priscila Carbone e Priscila Gontijo. 1
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MEMÓRIA
Encontro público com
Celso Frateschi
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AULO FABIANO: Antes de começar a conversa com o Celso, eu gostaria de falar que este encontro e esta mobilização fazem parte de uma retomada das discussões políticas, propostas pelos artistas dentro do Programa Vocacional. Uma discussão política porque tem a ver com a luta pela existência e permanência desse Programa na cidade de São Paulo. E que essa permanência possa manter suas propostas conceituais. Essa luta, que dura mais de dois anos e que tenta reestruturar e garantir o orçamento e ir contra a precarização dos Programas na cidade. É uma resistência que não deseja apenas obter soluções pontuais para um projeto específico. Ela tem a ver com um envolvimento histórico dos artistas do nosso país, talvez do mundo, pela criação de políticas públicas para as artes. E políticas que levem em consideração e que incorporem em sua estrutura o risco. Que assumam, portanto, esses movimentos tão importantes para o fazer artístico que são o risco e a crítica. E é nosso desejo que as distâncias que separam a instituição política e os conceitos de projetos como o Vocacional, que contém elementos de crítica e de risco, sejam cada vez mais diminuídas. No momento, estamos batalhando nas instituições pela continuidade do Programa, para que ele seja mais adequado às realidades que nós encontramos nos bairros com os artistas vocacionados. Mas acho muito importante que entendamos que essa batalha faz parte desse corpo histórico muito maior, que é o de construção de políticas públicas. Tendo isso em vista, vou apresentar o Celso, pra que a gente comece o nosso papo. Celso Frateschi é ator, diretor, dramaturgo e coordenador do Teatro Ágora. Em 2001, pelo Partido dos Trabalhadores (Prefeitura Marta Suplicy 2001-2004), assumiu a direção do extinto Departamento de Teatro e veio a se tornar Secretário Municipal de Cultura (SMC). Na SMC, implantou o projeto Teatro Vocacional (hoje Programa Vocacional) e o projeto Formação de público. Acho que é a partir da necessidade de criação desses Programas que podemos começar nossa conversa. 58 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
CELSO FRATESCHI: Obrigado pelo convite para estar aqui. É um prazer enorme estar especificamente no Tendal da Lapa. Esse espaço, na verdade, só existe por conta de um grupo vocacional. Antigamente, em 1988, o Tendal era um lugar completamente abandonado. Nesse último galpão, havia carros de um clube que colecionava automóveis antigos. Era simplesmente uma garagem. O resto era abandonado e ermo. Para vocês terem uma ideia, na semana em que a gente invadiu, foram encontrados dois cadáveres aqui neste terreno. Também era um lugar onde a prefeitura guardava materiais apreendidos de camelôs. E foi nessa parte que conseguimos autorização para começar a desenvolver um trabalho de teatro. O material apreendido ficava de um lado, a gente do outro. E foi juntando gente para participar. Lembro que na primeira chamada do grupo, nós éramos em 15, 20. Quatro meses depois, a gente já estava trabalhando com 200 pessoas, num happening maravilhoso que fazíamos todo sábado e domingo aqui. Foi essa força que garantiu a energia pra gente invadir o espaço todo. Eu me lembro muito bem do dia em que a gente invadiu e quebrou com marreta o muro e as paredes que separavam a rua Constança do Tendal. E acho que foi uma invasão que deu certo. Na época a gente chamava de ocupação, porque era mais bonito chamar assim. Mas foi uma invasão mesmo (risos). Era um espaço que estava privatizado de uma forma que a gente considera irregular. E foi um exercício de invasão nosso, de 200 artistas vocacionados que invadimos à marretada. E fomos tomando conta do espaço. Nem tínhamos ideia de como fazer isso e do que era esse espaço. Foi uma festa muito grande essa invasão e que gerou um primeiro espetáculo vocacional. Era um espetáculo de rua com mais de 200 atores e 1500 pessoas assistindo por dia. Isso foi muito prazeroso. E voltar aqui é muito legal. Só depois que o Tendal foi incorporado a uma Casa de Cultura da cidade. É bom lembrar que isso tudo só foi possível porque, na época, fazíamos parte do Núcleo de Cultura aqui da Lapa e a nossa prefeita era a Luiza
Erundina, que tinha muita sensibilidade em relação à ação cultural. E a Secretária de Cultura era a professora Marilena Chauí. As discussões eram todas muito fortes. Voltar aqui me lembra uma experiência de vida vibrante. Muito obrigado por terem marcado esse encontro aqui. Contei essa história porque éramos um grupo de amadores, um grupo vocacional. E essa história foi uma das inspiradoras para que criássemos o projeto na prefeitura da Marta. Em 2002, eu me tornei Secretário de Cultura e isso foi importante para a ampliação e solidificação do projeto Vocacional. Na época, eu fazia parte de um projeto de governo, e um projeto para a área de cultura da cidade de São Paulo. Isso significa que não havia ações isoladas e nada do que foi feito era fruto de um interesse meu, particular, pelo teatro. Não era um interesse isolado, era um projeto de governo, que pressupunha uma concepção de cidade, de um jeito de encarar a cidade em que vivíamos e construíamos. Geralmente, quando a gente vota na eleição, a gente não percebe esses projetos que estão por trás da propaganda televisiva, que é muito superficial. As propagandas tendem a pegar o nosso coração e fazer com que a gente se identifique com um ou outro candidato. Mais pelo viés emocional, do que pelo projeto de cidade apresentado. O nosso projeto para a cidade era de privilégio do cidadão e das relações de cidadania. Privilegiando o indivíduo, sua potencialidade e dando brechas para que ela se realizasse da maneira mais plena possível. A gente acreditava que a cidade, apesar de ser o caos que é hoje, era a maior invenção da humanidade. Se fosse tão ruim, já haveria aparecido outra forma de organização. Mas segue sendo a cidade, aquela que a gente busca para viver, pois é uma forma sofisticada de relações políticas, sociais, humanas. Acho que os projetos políticos deveriam estar interessados em aperfeiçoar a vida nessas formas. Portanto, o que a nossa visão de mundo defendia, era tomar o cidadão em primeiro plano. Isso não tinha nada a ver com querer desenvolvê-lo para ser útil para a engrenagem. Não, ele estava em primeiro plano para fazer com que a engrenagem funcionasse para deixá-lo feliz. Para que ele exercesse plenamente sua humanidade, cidadania e civilidade. Portanto, o projeto Teatro Vocacional nasceu muito próximo dessa ideia, de ver o cidadão dessa maneira, assim como muitas outras ações do governo Marta. Na área da Cultura havia um tripé para isso: formar um cidadão, apresentando conteúdos culturais criados pela humanidade ao longo da história, portanto, uma função de socialização das formas artísticas; um segundo ponto tratava de favorecer os meios de produção artística, permitir que o cidadão praticasse a arte não somente como consumidor,
mas como produtor; e terceiro, dar a possibilidade da produção artística oculta da cidade, aquela que não tinha interesse de mercado, poder se manifestar. Esse tripé gerou uma série de ações. Talvez a grande realização do governo da Marta tenha sido a construção dos CEUs, onde a Cultura tinha uma participação efetiva. Os CEUs entendiam a educação da forma com que ela deveria sempre ter sido entendida. Hoje a gente escuta o tempo todo - e o pior é que o cidadão, às vezes, aceita - que a educação serve para possibilitar que se consiga um emprego em determinada área. Ou seja, a educação serve para formar mão de obra e quanto mais mão de obra houver, mais barata ela se torna e sempre estará a serviço de outro que não o próprio cidadão. Nós entendemos a educação de uma maneira totalmente diferente. Ela teria de servir, de alguma forma, à emancipação desse ser humano e não ao aproveitamento de sua força de trabalho para uma forma mais restrita. Para nós, o processo de construção do conhecimento não se limitava à sala de aula. A sala de aula deveria organizar, talvez, esse processo. Mas sabíamos que grande parte dele acontece sempre na rua. Os saberes existem e são construídos pelo cidadão no seu dia a dia, em casa, no trabalho. E eles são tão importantes quanto a leitura e a escritura. E isso precisava ser estimulado. Digo tudo isso para lembrar que o projeto Teatro Vocacional faz parte de um conjunto de políticas para o teatro paulistano, que era formado por muitas outras ações. O Paulo Fabiano citou o Formação de público. Além desse, havia a ocupação dos espaços públicos. Não só a ocupação dos espaços teatrais, também muitas bibliotecas foram ocupadas por grupos de teatro. Espaços históricos e tombados também foram ocupados: o Teatro da Vertigem ficou mais de um ano na Casa Número 1, o Grupo XIX ficou dois anos no sítio Morrinhos. Isso fazia com que esses grupos conseguissem desenvolver suas propostas estéticas, como nunca tinham podido desenvolver antes. Os próprios teatros distritais eram ocupados por grupos. No Cacilda Becker se formalizou a Cia do Latão, por exemplo. Não havia somente a ocupação desses teatros, mas a proposição de uma direção artística para eles por parte dos grupos. Antes da prefeitura da Marta, a SMC funcionava como uma espécie de imobiliária: alugava o teatro por dois meses sem nenhum tipo de critério. Com a proposta de ocupação, a gente cedia o espaço por dois meses ao ano, com possibilidade de renovação, mais uma verba para que o grupo pudesse se manter e gerir o espaço. Então, chegamos ao Vocacional. O que fundamentou a formação do Vocacional era certa complexidade, como podem ver. Vou Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 59
tentar ser simples na explicação, porque envolve um pouco a ideia de um pensamento para a produção teatral nacional. Sabemos que as leis que regem a produção cultural, especialmente a teatral, são leis que privilegiam o mercado. Só na época da Marta foi aprovada, por exemplo, a Lei de Fomento ao Teatro. O Teatro Vocacional não entendia o teatro como uma atividade comercial. E a gente entendia, na Prefeitura, que, uma vez que a atividade comercial existia, era importante que ela acontecesse e se desenvolvesse. Mas que não era essa a função principal do Estado. O foco deveria ser o desenvolvimento do cidadão. Quando a gente pensou o Vocacional, ele estava dentro desse contexto, invertendo um pouco a moeda do jogo que acontecia. A relação entre o cidadão e o teatro pensada e tornada, como dizia o Brecht, tão necessária quanto respirar e comer. Será que o teatro deveria se fundar somente pela relação custo-benefício? Dos ingressos vendidos ou cadeiras ocupadas? Ou o teatro seria uma necessidade humana de manifestação e autoconstrução de conhecimento de si e do próprio humano? Se a gente pensa o teatro ao longo da história, podemos perceber que todo o tempo ele foi construído a partir dessa necessidade vital da gente de se entender. Da Grécia até agora, nossos grandes autores se preocuparam em entender as relações humanas, as relações sociais e suas transformações ao longo das épocas. E o teatro funciona de uma maneira brilhante pra isso. Daí que, no meu modo de entender, o teatro é uma atividade vital para o ser humano. Eu acredito que o Vocacional tem a colaborar e muito com essa necessidade de renovação que permanece no teatro. Acho que até a fraqueza do nosso teatro comercial é resultante da fragilidade do teatro amador. Essa desgraça do pensamento neoliberal, implantado pelo golpe e radicalizado pelo Fernando Henrique Cardoso e o PSDB, pensa na cultura como atividade econômica. O que a gente colocava como contraponto era inverter completamente essa equação. O que interessava não era atender o consumidor, mas o cidadão. Isso norteou a base do projeto. O Vocacional surge dentro dessa política. Uma equipe foi formada a partir da parceria com a Maria Tendlau, que foi quem me ajudou a organizar todo o setor do Teatro Vocacional na prefeitura. A ideia que a gente tinha não era formar núcleos teatrais
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pela cidade que montassem as peças já consagradas. Nem formar grupos de teatro amadores pura e simplesmente. Também não era a obrigatoriedade de realizar uma produção para mostrar depois. Tínhamos a necessidade de que, a partir do teatro, fosse desenvolvido um processo de conhecimento criativo com a população de São Paulo. Não tínhamos a preocupação de repetir o que, à época, o decadente teatro amador fazia, que era reproduzir as características de grupos profissionais. Na fundação do Teatro Vocacional, a gente partia justamente das diferenças que existiam entre o teatro profissional e o não profissional. Nos ajudou muito o estudo teórico do alemão Manfred Wekerth, que trabalhava com Brecht e escreveu o livro interessantíssimo Diálogos sobre a encenação. Para o Teatro Vocacional, sentíamos a necessidade de nos debruçarmos sobre os pontos positivos tanto do teatro amador quanto do profissional. A gente percebe que várias coisas consideradas negativas para o teatro profissional podem ser consideradas positivas para o amador, ou vocacional. A longevidade do trabalho do teatro amador, por exemplo, pode levar à necessidade não de se apresentar, mas de aprofundar o trabalho sobre um tema. O corpo do ator também é uma questão fundamental. Se a gente vê a televisão hoje em dia, você não consegue ver nenhum daqueles corpos na rua. A favela do Rio de Janeiro apresentada na novela das oito não tem nada a ver com a favela do Rio de Janeiro. Uma pessoa quando entra no metrô na novela das sete não tem nada a ver com a situação do metrô que vivemos. Tudo passa por um padrão de beleza que é impositivo. Para a televisão interessa vender produto. A gente vai comprar determinada roupinha para tentar parecer igual. O que era interessante para a gente que coordenava o Teatro Vocacional, então? Tínhamos que aproveitar a beleza de cada um. Porque, se a pessoa não se adequa ao padrão de beleza da televisão, ela tem um padrão que pode ser muito mais vivo e mais real do que aquele outro. O jeito de andar dela é singular, não é aquele jeito que faz escola de balé desde os sete anos. Não tem determinado quadril moldado e normatizado. Talvez esse ser fora da norma seja muito mais bonito teatralmente do que aquela coisa forjada dos modelos padrão. Até porque nós nunca seremos daquele jeito. Então, interessava pra gente pegar as características das pessoas que faziam o Vocacional e tentar construir o belo a partir delas.
PAULO FABIANO: Eu gostaria que você refletisse sobre duas questões, Celso. Uma delas é sobre o pensamento do teatro como uma prática na vida, uma prática mais comum e menos reservada para poucos. Nessa direção, eu insisto em relacionar o Vocacional com o projeto Formação de público, porque me parece que ampliava a possibilidade disso acontecer com mais eficiência. O Formação de público possibilitava que houvesse uma circulação de produção o ano inteiro. Ampliava a possibilidade de se ter uma relação com a arte na vida cotidianamente. A outra questão que acho importante tem a ver com essas lutas cotidianas colocadas pela presença dos artistas orientadores em espaços públicos, como reguladores entre a comunidade e a instituição. Aqui entramos numa contradição, talvez histórica, da necessidade constante do artista ter uma relação com instituições públicas para que seus projetos e ele mesmo possam permanecer. Queria saber o que você pensa disso.
Por que a gente acreditava no Vocacional? Porque ele é uma revolução justamente nesse ponto. Ele buscava desenvolver o espírito crítico do cidadão a partir de seu processo criativo. Instaurava a possibilidade de lidar com uma informação que se recebia de uma maneira criativa. Fosse ela qual fosse. E tentava-se ampliar o universo de informação que se tinha no horizonte. Sobre sua segunda questão, tenho que dizer que sempre foi muito difícil o diálogo dos artistas com os equipamentos. A Maria Tendlau pode falar mais sobre isso. São demandas e ritmos de trabalho diferentes. Existe uma questão da cultura política brasileira que são os micropoderes. E isso sempre foi terrível. (continua...) Confira a entrevista na íntegra no site: http://vocacionalmemoria.wordpress.com
CELSO FRATESCHI: O projeto Formação de público fazia parte dessa política que pensava o teatro para o município. Na gestão seguinte, do Serra, isso se rompeu. Os CEUs deixaram de fazer parte da Cultura, romperam com o Formação de público e com as ocupações dos teatros e tentaram terminar com o Vocacional e com o Fomento. Nós tínhamos terminado o mandato tendo feito com que, pelo menos, dois milhões de pessoas assistissem o mínimo de quatro espetáculos por ano. Isso acabou. A nova política preferiu fazer uma apresentação da Nicete Bruno e do Paulo Goulart no ano inteiro e divulgar isso pra caramba. São dois atores fantásticos, mas isso não pode destituir a outra coisa. Eu estava lendo aqui a primeira revista produzida pelo projeto Vocacional e estava lá o Peter Brook, o Yoshi Oida e o Sotigui Kouyaté na periferia de São Paulo, discutindo com vocacionados e orientadores. Trabalhando junto. Era um projeto que se pensava de uma forma sólida e não simplesmente propagandista. Além disso, o Formação de público convidada o cidadão a participar do Vocacional. E ainda era a ação que mais lidava com professores, nossa eterna dificuldade. Na época, os professores tinham quase vergonha de participar do projeto, pelo medo de que o aluno pudesse ler a obra melhor do que eles. A gente queria abrir um pouco a cabeça do professor, porque ele é o grande formador de opinião que a gente tem. Se ele tem sua formação artística pequena é um problema.
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MEMÓRIA
Entrevista com
Maria Tendlau
N
uma terça feira de julho, fizemos uma ponte virtual entre São Paulo e Piracicaba para conversarmos com Maria Tendlau. Atriz, encenadora e educadora, Maria fez parte da implantação do Programa Vocacional (à época, projeto Teatro Vocacional) na cidade de São Paulo e atuou como sua coordenadora entre 2001 e 2004. Atualmente morando na cidade de Piracicaba, atuando como orientadora de arte dramática pelo TUSP, Maria topou papear conosco sobre o Vocacional, sua atuação no projeto e as possibilidades de seu sentido no presente. Inquietos que somos, entrevistada e entrevistadores, fomos derivando para outros assuntos e acabamos também falando sobre o cenário político nacional e a cultura, de forma geral, em São Paulo. Como você definiria o que é o Programa Vocacional?
O plano original era o seguinte: criar uma ação, na cidade, de incentivo, qualificação e fortalecimento do teatro amador. Essa era a missão do projeto. Isso se ajustava a uma política daquela época que propunha que o teatro tomasse a cidade e pudesse trabalhar com uma ideia de “cidadania cultural”, para usar o termo da Marilena Chauí, embora o Celso Frateschi nunca tenha usado esse termo. Trabalhar com a possibilidade da cultura, no caso específico da arte, de forma a potencializar o pensamento crítico e uma apropriação de território na cidade. Isso era o plano. O que não era o plano?
Não era o plano dar aula de teatro. Esses são os dois extremos, do que era e do que não. Resposta curta (risos). O projeto Teatro Vocacional (tornado Programa Vocacional nos anos subsequentes) apareceu em 2001, junto ao Formação de público e a ocupação dos teatros distritais. Essas três ações eram pensadas como complementares e tinham a ver com um pensamento específico da Secretaria de Cultura na gestão de 2001, que visava o fazer teatral, sua difusão e
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apreciação crítica. O que parece impossível ser feito só pelo Vocacional? Por que só o Vocacional sobrevive até hoje?
Eu fico pensando nisso. A forma de ação do Vocacional, como era com o teatro e foi se tornando com as outras linguagens, é muito facilmente cooptada, muito adepta à mercadoria. Toda forma pode ser cooptada pela forma mercadoria, mas essa, talvez, seja muito mais fácil. Eu explico. Como foi conformado o projeto, num processo muito coletivo de investigação - em que cada orientador tentava transpor sua experiência de criação, conforme ocorria nos seus respectivos grupos teatrais profissionais e compartilhava suas descobertas, conquistas e malogros, com uma equipe de orientadores bastante interessada na descoberta de procedimentos que garantissem um aprendizado a partir da experiência da criação – era muito difícil estabelecer a priori um rol de práticas comuns. O que regia esta investigação era a avaliação sistemática de seus resultados e a disposição para a correção dos desvios, mirando um princípio único: o teatro pode ser compreendido, como conformação, tradução estética, de um olhar crítico para a realidade, através da prática da criação. O que facilita, a meu ver, a tradução mercadológica deste enunciado são duas características de seu modo de ação: primeiro o fato de o Teatro Vocacional atender um público que é alvo para ações de inclusão social e de controle de “risco social”; e segundo, por utilizar a forma pedagógica, ou seja, estabelecer processos de aprendizado, numa relação orientador-orientado, indivíduo-grupo. Cria-se assim um projeto que pode ser simplesmente traduzido numa relação de atendimento (e não de coinvestigação, de cocriação) a uma população especialmente relevante para as diversas ações de controle social. Tanto que o Vocacional foi o único projeto defendido para permanecer na virada da gestão, em detrimento dos outros. Essa própria dificuldade de explicar o que é o Programa e seus conceitos, já mostra que ele não é uma forma protegida, “blindada”, em relação às possibilidades de leituras equivocadas e até contrárias aos seus princípios de ação. A inexistência de um pensamento para cidade que proteja essa forma faz com que ela seja muito
facilmente deturpada. Existem dois fatores que eram fortes, na época: o primeiro, por ação da política cultural implantada e o segundo, pela própria conformação do cenário cultural relativo ao teatro, que fazia com que a primeira proposta de tripé de ações do Departamento de Teatro funcionasse e que hoje não funcionaria sem as outras. Primeiro porque, na época, existia esse pensamento de complementaridade, ou seja, não havia ações apenas no Departamento de Teatro. Acho que o Celso Frateschi, talvez, foi quem melhor tenha traduzido na ação e na linguagem dele, que é o teatro, o pensamento da gestão, tanto que virou Secretário de Cultura. Segundo, havia a força do teatro de grupo, que pode ser questionada hoje justamente na sua forma mais inicial. Foi à época do fortalecimento da Cooperativa Paulista de Teatro, da criação da Lei Municipal de Fomento ao Teatro e tudo isso foi um movimento que legitimava e dialogava com a ação da prefeitura. Existia uma ideia de teatro de grupo tomando a cidade e isso fortalecia a ideia que o Vocacional propunha.
Da parte das bibliotecas, havia uma compreensão bastante careta e engessada de ação cultural e no caso das Casas de Cultura, uma politização intensa interna. É sempre muito difícil você ter uma equipe toda com um entendimento único. Quando se criaram as subprefeituras e os CEUs, que considero um grande avanço da gestão, a coisa se complicou muito mais. Com o surgimento das subprefeituras, os equipamentos da prefeitura foram divididos, mas eram coordenados pela SMC. Com isso, os funcionários ficavam meio esquizofrênicos por terem dois chefes. Houve também o aparecimento dos CEUs, que era um projeto imenso e, mesmo com todos os possíveis equívocos de uma ação muito inovadora, fez a coisa impressionante de juntar três secretarias (esporte, cultura e educação) e, em um ano, erguer um monte de equipamentos descentralizados. Então, a gente vivia um exercício de política, no bom sentido. De uma busca de entendimento, de movimento. Seja com a comunidade, com seus representantes, com os espaços públicos... Isso já criava, em si, várias dificuldades, mas que estavam dentro do parâmetro normal. (continua...) Confira a entrevista na íntegra no site: http://vocacionalmemoria.wordpress.com
Quais transformações da missão inicial do Programa você percebia durante a gestão do Celso Frateschi ou no momento da transição de gestão?
Houve um problema evidente no ano de virada da gestão, com o questionamento da legalidade da Lei de Fomento e com o fim do Programa de Formação de Público, que culminou, inclusive, na saída de grande parte da equipe que havia criado o Vocacional. Mas antes, já havia dificuldades. Existe, na verdade, uma grande dificuldade em qualquer institucionalização. A nossa tinha a ver em como a Secretaria de Cultura havia sido organizada durante um tempo, como era pensada a cada gestão e como os poderes se organizavam dentro dela. Então, por exemplo, existia o Departamento de Casas de Cultura que era ligado ao gabinete. No momento em que se cria o Departamento de Teatro, ele se organiza para atuar dentro das bibliotecas (que eram coordenadas por dois departamentos diferentes) e Casas de Cultura. Tudo isso já era uma grande complicação, justamente porque entrava no quintal dos outros, com todos os entendimentos equivocados possíveis.
Notas Mudança de gestão da prefeitura de São Paulo em 2005, com a eleição de José Serra pelo PSDB. 2 Ex-secretário de Cultura, responsável pela implantação do projeto Teatro Vocacional e também presente nesta seção de memória. 1
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MEMÓRIA
Conversa entre grupos
Banda Bellize
registro da memória Luís Reys
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uma terça à noite, o interfone de um apartamento alugado na Santa Cecília não parava de tocar. Era gente e mais gente chegando, trazendo bebidas, pães, bolos, salgados e sua presença para o encontro de grupos de artistas vocacionados e ex-vocacionados. A sala pareceu pequena de repente e, com muito entusiasmo, começamos a conversa com os que ali estavam. Ouvimos representantes dos grupos ou coletivos Família Justa Causa (música), Improvis´Art (dança), Pandora, Humbalada, Bastarda, Jovens Amadores e Palco para toda obra (teatro) que com muita gentileza compareceram ao chamado dos AOs. A transcrição da conversa pode ser lida a seguir e cabe pensar o quanto encontros de trocas entre artistas vocacionados e orientadores de regiões distintas podem evocar a ampliação de nossas questões comuns e divergentes. JHOW, Família Justa Causa: Eu sempre cantei rap. Mas era dentro de outra linguagem, que tinha mais a ver com protesto. Na época, eu pensava que gostaria de fazer uma música diferenciada e que todo mundo pudesse curtir. Em 2008, foi quando ficamos sabendo do Vocacional e tivemos nosso primeiro artista-orientador, no CEU Lajeado, em Guaianazes. Ficamos com ele um ano, aprendemos algumas coisas e em 2009 tivemos outra artista-orientadora e começamos a desenvolver mais nosso canto, nosso comportamento e nossa fala. O rap tem muita gíria e, dependendo do lugar, não faz muito sentido falar tanta. Na televisão, por exemplo, você não fala a gíria “malandragem” e tudo mais. Não é legal. Isso foi bacana, pois a gente começou a fazer várias coisas diferentes em termos de música, comportamento, pesquisa. Começamos a pesquisar MPB, samba e não ficamos só no rap. Porque o rap a gente já tinha nascido escutando. A artista-orientadora propôs novas coisas e acabou enriquecendo nosso trabalho. A Família Justa Causa é formada por mim, pelo meu cunhado, meu sobrinho... somos uma família mesmo, em seis pessoas (risos). Passou o ano de 2009, a gente viu que estava num patamar legal e decidiu fazer shows. Aí entramos no Vocacional Apresenta. Era muito legal esse projeto, porque íamos para vários equipamentos aqui em São Paulo. Eu sei que o Vocacional e o Vocacional Apresenta são projetos diferentes, mas foi no Apresenta que vimos a dificuldade do Programa. Nós não tínhamos nenhuma ajuda de custo e colocávamos tudo do próprio bolso. E
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também tinha o problema da divulgação. Não havia. Não tinha público. Às vezes, tinha público no CEU porque a gente fechava com o pessoal do EJA, mas quando não tinha a gente apresentava para duas pessoas... Lógico que o legal não é, necessariamente, a quantidade de gente vendo, mas sim a evolução do nosso trabalho (...) A gente gravou nosso primeiro disco, chamado É aquilo e fizemos um espetáculo com o mesmo nome. No primeiro não temos a participação de ninguém porque queríamos dar foco para o nosso trabalho. No segundo convidamos o Rapin´Hood, o DMN, grupo antigo de rap, Lindomar 3L, que era braço direito do GOG e um pessoal de backing vocal que canta R&B. TATIANA, Cia. Humbalada: Eu comecei a fazer Vocacional em 2001 e os outros membros da companhia começaram a fazer em 2003. Em 2005, formamos o grupo. Estávamos na Casa de Cultura de Interlagos, que não existe mais. BRUNO, Cia. Humbalada: Em 2003, quando a gente começou, havia um momento histórico na cidade de São Paulo muito peculiar: os CEUs estavam surgindo; havia o movimento Arte Contra Barbárie, que era proposto por muitos artistas que queriam discutir a situação do teatro na cidade; havia o surgimento do Programa VAI e do Vocacional; e tinha o Projeto Formação de público. Tudo estava fervendo na cidade. A gente sentia que essa discussão que havia na cidade sobre teatro e, mais especificamente, teatro de grupo, interferia na nossa orientação. A gente tinha orientação, depois via um espetáculo apresentando-se no CEU, que também era uma novidade, via um grupo conhecido ganhando o VAI... estava tudo começando. E tinha a gestão do PT, da Marta Suplicy. (continua...) Confira a entrevista na íntegra no site: http://vocacionalmemoria.wordpress.com
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eguir pela contramão. Esta foi a opção da Banda Bellize, grupo originado nos primórdios do Música Vocacional e que continua trilhando seu caminho no difícil mercado da música independente. Quando fui Artista Orientador, tive contato com meninos de quatro bandas diferentes, que tinham conhecimento do projeto e foram buscar orientações para seus grupos, coisa muito bem-vinda no programa Música Vocacional. Combinamos uma agenda para as bandas, algo como encontros quinzenais para cada grupo e um encontro geral no final do mês, sempre nos domingos em que eu orientava. Também precisariam vir ao CEU, que não dispunha de equipamentos para que eles ligassem os instrumentos. Domingo de manhã, por volta das 8h, Gu, baixista do Bellize, pegava emprestado o carro de um familiar para levar ao CEU todo o equipamento que a banda tinha. Uma viagem não bastava, fazia duas. Na terceira viagem pegava os colegas da banda e às 10h estavam no teatro, fazendo o aquecimento junto com o Coral. Ao meio-dia finalmente montavam a aparelhagem própria no teatro do CEU para começarmos as orientações, que passaram a ser semanais já que as outras bandas não toparam participar. Às 14h desmontavam tudo e se preparavam para a orientação de violão. Após isso, mais três viagens de volta para levar o equipamento e devolver o carro emprestado. Todo domingo. Já dava para perceber que ali tinha algo diferente. Aquela vontade de ir atrás do conhecimento, de fazer tudo pela música me lembrava muito o meu próprio início. Após um tempo, os meninos da Bellize decidiram não mais participar das orientações de violão que estavam voltadas para o público iniciante. Era um momento quando falávamos muito sobre a sustentabilidade do programa, os estímulos e condições que daríamos para que as atividades artísticas continuassem a acontecer de forma autônoma nos meses de ausência do Vocacional. Convidei-os então para que frequentassem as orientações de violão, mas como orientadores. Acreditava que seria uma boa oportunidade para testar e compartilhar o seu conhecimento, além de prepará-los para a possível função de professor de música, desejo manifestado por Pedro, vocalista e compositor da banda. Em 2010 as orientações voluntárias continuavam acontecendo. E o resultado? A turma cresceu. Os músicos da Bellize estavam confiantes, seguros. Os vocacionados e alunos viraram fãs incondicionais da banda, tanto pela qualidade de suas canções, quanto
pela entrega e disposição de passar seus conhecimentos para sua comunidade. No meu primeiro dia de trabalho daquele ano, fui recebido pelos meninos da Banda entregando a grande turma para a minha orientação. Respondi com uma proposta indecente: “Por que não continuam o ótimo trabalho mais este ano?” Com toda essa entrega e a confiança da comunidade e dos coordenadores do CEU, os projetos começaram a aparecer. Aqui, transcrevo a entrevista que fiz recentemente com o grupo: O que foi o Programa Vocacional para a banda Bellize?
Participar do Programa Vocacional foi um grande presente e mudou totalmente o rumo da nossa carreira e diria até das nossas personalidades. A Bellize nasceu junto do Projeto Música Vocacional, em 2008, e acreditamos que por isso a banda sempre teve no programa um grande amigo. Nele aprendemos desde como nos comportarmos em cima de um palco, até a importância das outras linguagens artísticas dentro da música. Foram anos valiosos para nós. Qual foi a relação com a coordenação do Equipamento (CEU Guarapiranga) e o quanto isso foi importante para o desenvolvimento do grupo?
Desde o início das orientações no CEU Guarapiranga, nós tivemos uma relação muito próxima com toda a equipe de coordenação e até nos dias de hoje (mesmo não sendo mais as mesmas pessoas). Essa relação é fundamental, e abriu mais portas para nós, ela melhorou o aproveitamento da banda no Vocacional e nos deu mais espaço e autonomia para trabalhar em nossa região e até fora dela. Confira a entrevista na íntegra no blog: www.formacaoartecultura.blogspot.com Luís Reys é Músico, atuou como artista orientador no Programa Vocacional Música de 2009 a 2011 e atualmente é Coordenador de Equipe.
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MEMÓRIA
Ensaios
Processos artísticos, tempos e espaços:
Virtuais
Encontro sobre formação
artístico-cultural
na cidade de São Paulo
Deslocamento Para viver a contradição José Romero
Experiência e música Fabrício Gonçalez Zavanella
Deslocamentos, itinerância, nomadismo -o espaço ENTRE– uma observação sobre o vocacional dança
O corpo como atualidade da existência
Em busca da música evocada por um texto literário
Um processo e uma canção
Andrea Cavinato
Nininha Araujo
PIÁ, Vocacional, continuidade... Sebastião Bazotti
Alejandro López Jericó
Ana Eliza Colomar
Grande Viagem
Violeca & Rabelino
A pesquisa-ação nos espaços de atuação
Rosana Massuela
Marcus Simon
Rosana Antunes
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C
omo um dos marcos da Coordenação de Formação e Pesquisa no Programa de Iniciação Artística (PIÁ) e no Programa Vocacional o encontro Processos Artísticos, Tempos e Espaços, veio configurar-se como um espaço de conexão, discussão e novos apontamentos, implicados com as diretrizes de formação da Secretaria Municipal de Cultura. A esta proposta somou-se a participação da Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA) para a construção de um eixo comum. Para a efetivação do encontro, a parceria com o Centro Cultural São Paulo foi de fundamental importância. O acontecimento teve a oportunidade de fazer importantes articulações entre os programas do Departamento de Expansão Cultural (DEC) - Vocacional, PIÁ e EMIA - bem como as aproximações e interlocuções com as Coordenadorias de Bibliotecas, Centros Educacionais Unificados (CEUs) , Centros Culturais e Secretaria Municipal de Educação através dos Departamentos de Orientação Técnica (DOT) de São Paulo. Realizado entre os dias 5 e 19 de setembro de 2014, o encontro estruturou-se em diversos momentos. As Rodas de Conversa “Territórios de Atuação e Cartografias Artísticas”, com a Profa. Dra. Lilian Amaral e Rodrigo Munhoz (PIÁ); “Tempos e Espaços da Experiência”, com a Profa. Dra. Lucia Maciel Barbosa de Oliveira e Tatiana Guimarães (Programa Vocacional) e “Infância e Construção Compartilhada de Saberes”, com o Prof. Dr. Marcos Ferreira e Sandra Cunha (EMIA) foram abertas à participação do público. Com a finalidade de abordar o tema do encontro sob distintas perspectivas pelos pesquisadores convidados, artistas educadores e representantes de equipamentos públicos de cultura, as rodas acompanharam os perfis dos convidados que expuseram suas dinâmicas próprias em diálogo com proposições artísticas dos programas.
Vivências Artísticas e Compartilhamentos de Processos foram oferecidos pelos artistas dos Programas Vocacional, PIÁ e EMIA em alguns equipamentos públicos da Cultura apresentando as pesquisas-ação efetuadas nos respectivos programas e as abordagens artístico-pedagógicas da EMIA. Além disso, aconteceram conversas com os artistas Roberto André e Guto Lacaz e com a Profa. Dra. Patrícia Prado que, por meio de suas experiências, estabeleceram um diálogo com as práticas dos programas e da escola. Com o intuito de dar voz aos participantes dos programas PIÁ e Vocacional e aos alunos da EMIA, o encontro ofereceu um Espaço Expositivo no Centro Cultural São Paulo que abrigou uma instalação áudio visual, performances e outras materialidades dos processos desenvolvidos pelos seus participantes. Como síntese e memória do encontro Processos Artísticos, Tempos e Espaços está prevista uma publicação em parceria com o CCSP contendo textos reflexivos e registros fotográficos. A distribuição será feita em equipamentos da Secretaria Municipal de Cultura e Secretaria Municipal de Educação, além de outras instituições culturais da cidade de São Paulo. Na certeza de termos inaugurado novos tempos e espaços de diálogo entre os programas e as diretrizes das Secretarias de Cultura e de Educação, esperamos ter colaborado de maneira efetiva com a discussão sobre formação artístico-cultural na cidade de São Paulo.
Concepção e Organização do Encontro:
Andrea Fraga, Cintia Campolina, Fafi Prado, Flávia Giacomini, Priscila Tamis, Priscilla Vilas-Boas, Suzana Schmidt e Zina Filler Revista do Programa Vocacional - VOCARE 2014 67
Divisão de Formação Artística e Cultural Diretor MICA FARINA
Coordenador Administrativo ILTON TOSHIAKI HANASHIRO YOGI
Coordenação de Ação Cultural PRISCILA TAMIS FLÁVIA GIACOMINI COSTA
Equipe MERCEDES CRISTINA R. SANDOVAL GILMAR CHINA K. BUENO DE S. LEITE ISABELLA DE SOUZA RODRIGUES
Equipe Vocacional 2014 Coordenadores de Formação CINTIA CAMPOLINA DE ONOFRE SUZANA SCHMIDT VIGANÓ Coordenadores Regionais IRLAINY REGINA MADAZZIO MARA HELENO FERNANDES VANDERLEI BAEZA LUCENTINI Coordenadores de Projeto IPOJUCAN PEREIRA DA SILVA JOSÉ DA SILVA ROMERO JOSÉ LEONEL GONÇALVES DIAS LUCIANA BORTOLETTO ODINO FINEO DE ANDRADE PIZZINGRILLI Coordenadores Artístico Pedagógicos ADRIANA AMARAL DOS SANTOS ALEJANDRO JAVIER LÓPEZ JERICÓ ANA CRISTINA CURVELLO DE ARAÚJO PETERSEN ANDRÉA PAULA PEREIRA TAVARES ANDREA TEDESCO CANALES ROCHA CAROLINI LUCCI CLAUDIA APARECIDA POLASTRE CLAUDIA PALMA DA FONSECA DOUGLAS CLEMENTE DE SOUZA ELENITA BORGEaS DE QUEIRÓZ BERNARDI GABRIELA FLORES NUNES IELTXU MARTINEZ ORTUETA JUDSON FORLAN GONZAGA CABRAL LUCIANA ABEL ARCURI LUCIANO GENTILE LUIS FERNANDO CERVEIRA REYS LUIZ CLAUDIO CANDIDO MARCELO FRANCISCO DO NASCIMENTO MARCIO DE CASTRO MARGARETH MAIELLO MENDES MARINA CORAZZA PADOVANI MAYKI FABIANI OLMEDO MELISSA MIGUELES PANZUTTI PAULO SERGIO FABIANO DE OLIVEIRA PETICIA CARVALHO DE MORAES PRISCILA LUZ GONTIJO SOARES ROBSON ALFIERI SEBASTIÃO BAZOTTI TATIANA LEME GUIMARÃES YASKARA DONIZETI MANZINI Artistas Orientadores ADRIANO LIMA MATOS ALAN ALBERT SCHERK ALDA MARIA SOARES ABREU ALVES ALENCAR MARTINS NETO ALEXANDRE ANDREAS ACHCAR TRIPICIANO ALEXANDRE RIBEIRO DE OLIVEIRA ALLYSON MENDES DO AMARAL ANA ELISA TORRES COLOMAR ANA MARIA DE ANDRADE ANA MARIA KREIN ANDERSON MARQUES DA SILVA
68 VOCARE 2014 - Revista do Programa Vocacional
ANDERSON MAURICIO DOS SANTOS ANDRÉ LUIZ MARTINEZ SANT’ANNA ANDRE RICARDO DE OLIVEIRA ANDREA APARECIDA CAVINATO ANDREA COSTA SOARES ANDRESSA FERRAREZI ANGELA COLTRI DO AMARAL ANGELA MARIA DE BARROS ANGÉLICA RENY GUIMARÃES ROVIDA ANIE WELTER DE OLIVEIRA ANTONIO CASSIO CASTELAN ANTONIO DE MATTOS CABRAL BEATRIZ SILVA CRUZ BRUNO ALEXANDER PEREIRA DE MACEDO CAIO MARINHO MAIMONE CARLA TIEMI TANIGUCHI CARLOS ALBERTO PONTES JUNIOR CARLOS EDUARDO CANHAMEIRO CARLOS GUSTAVO RIBAS BALI CAROLINA GOMES MOREIRA CAROLINA NÓBREGA SILVA CRISTINA D’AVILA MELLO KEHDY DANIELA SCHITINI DANILO CAPUTO DORTA EDSON DOS SANTOS SILVA EDUARDO LUIZ FRAGA EDUARDO PEREIRA MAFALDA ENOQUE DOS SANTOS SOBRINHO ERNANDES ALVES DE ARAUJO EVANISE FIGUEIREDO DE OLIVEIRA FABIO RESENDE FABRÍCIO GONÇALVES ZAVANELLA FERNANDA DE OLIVEIRA PAIROL FERNANDA MARTIN BAPTISTA DE FARIA FERNANDO DE BRITO MACHADO FERNANDO SILVA ALVES FLAVIO DA COSTA CAMARGO FRANCISCA DA PENHA SANTOS FRANK ROBERTO AGUILLAR GABRIEL PINHEIRO MACHADO MILLIET GABRIELA SILVEIRA DE ANDRADE GISELE PENAFIERI GLAUCIA RIBEIRO FELIPE CABRAL GUSTAVO LEMOS PICANÇO HERBERT HENRIQUE JESUS DE SOUZA HERCULES ZACHARIAS LIMA DE MORAIS IGOR GASPARINI ILMA CARLA ZAROTTI GUIDEROLI IVO THADEU BATISTA DE ALCANTARA JANAINA BRIZOLLA DE OLIVEIRA JARDELIO SANTOS ALVES JEFFERSON PAULO MOREIRA JONATÃ PUENTE VIEIRA JORDANA DOLORES PEIXOTO JOSÉ EDSON DE LIMA JOSEFA PEREIRA DA SILVA JULIMARI PAMPLONA DA SILVA JUNIOR CLEITON GONÇALVES KALONI SCHARNOVSKI KÁTIA DA SILVA SANTOS KLEBER LUIZ DE PAULA LAIS MARQUES SILVA
LARA PINHEIRO VIEIRA LARISSA VERBISCK ALCÂNTARA BONFIM LEANDRO DE SOUZA LEANDRO GARCIA E GARCIA H. P. POLATO LENILSON PEREIRA RODRIGUES LEONARDO OLIVEIRA MOREIRA LEONARDO ROGÉRIO MUSSI DE SOUZA LIGIA HELENA DE ALMEIDA LIGIA RODRIGUES BOTELHO LINA PAOLA GOMEZ ARIAS LIVIA PICCOLO LOURENÇO PRADO BRASIL LOURIVAL MIRANDA LUCÉLIA COELHO BARBOSA LUCIA YUMIKO KAKAZU LUCIANA PONCE MENDES DE ALMEIDA LUIS FERNANDO DINIZ LEITE LUIS PAULO DE ALMEIDA MAEDA LUIZ PAULO PIMENTEL DE SOUZA LUIZA SOUSA ROMÃO MAERCIO MAIA ALVES MAINÁ FERNANDES YAMACHI MARCELO DE ANDRADE MELO MARCIA NEMER JENTZSCH MARCIO DANTAS SILVA MARCUS HENRIQUE SIMON MARIA EMILIA FAGANELLO MARIA EUGENIA BLANQUES DE GUSMÃO MARIA LUCIA TOME BRANCO MARIA STELA TOBAR MARIUCCI MARIA TATIANA DO MONTE OLIVEIRA ASSIS MARIANA DE OLIVEIRA COSTA MARIANA DUARTE SILVEIRA MARIANA MIFANO GALENDER MARINA VECCHIONE UNGARO MARTHA LUIZA MACEDO COSTA BERNARDO MAURICIO DIOGO DA SILVA MIGUEL ATTICCIATI PRATA MONICA RODRIGUES MORGANA SILVA DE SOUSA MURILO DE PAULA SOUZA MURILO MORAES GAULES NALOANA DE LIMA COSTA NATACHA DIAS NATÁLIA SIUFI RIZZO NATHALIA BIAVASCHI GLITZ OSMAR TADEU FARIA OSVALDO PINHEIRO DA SILVA PAULA BELLAGUARDA DE CASTRO SEPULVIDA PAULO VITOR GIRCYS PEDRO DOS SANTOS PEDRO FELICIO DE OLIVEIRA PEDRO LUIS DE CASTRO CAMPANHA PÉRICLES MARTINS DA SILVA PRISCILLA CARBONE RAFAEL TADEU MIRANDA RAFAEL VICENTE FERREIRA RAFAELA LIMA CARNEIRO RAIMUNDA MARIA MOURA DA SILVA RAONI FELIPPE GARCIA RAPHAEL DE PAULA RIBEIRO RAQUEL ANASTÁSIA SIMONI REGINA KUTKA RENATO FAGUNDES VASCONCELOS RICARDO CORREA LIMA DOS SANTOS RICARDO DE ALMEIDA VALVERDE RITA TATIANA GUALBERTO DE ALMEIDA
ROBERTA DA SILVA SANTOS ROBERTO CARLOS MORETTO RODRIGO DOS SANTOS CÂNDIDO ROGERIO DIAS DA SILVA ROGES DOGLAS LEAL DA CONCEIÇÃO RONALDE MONEZZI FILHO ROSANA ANTUNES ROSANA TONHOLI MASSUELA RUBIA CRISLAINE MAURA BRAGA SERGIO SEGAL CARDOSO DA SILVA SHEILA DE SOUZA LEANDRO TALITA CASELATO TATIANA MELITELLO WASHIYA TELMO RODRIGUES ROCHA THAIANNY ESTEFANATO GOUVEA THAÍS CAROLINE PÓVOA BALATON THAIS OLIVEIRA PINTO THAIS PONZONI DOS SANTOS URUBATAN MIRANDA DA SILVA VALÉRIA RAMOS LAUAND VALTER NUNES DE SANT ANNA VANESSA DE OLIVEIRA CORREA VÂNIA DE OLIVEIRA VERONICA PEREIRA PINTO VICENTE LATORRE FILHO WAGNER MAZZINI BRANCACCIO WELLERSON MINUZ CAMARGOS WILHELM ARAÚJO DA SILVA Pontos de Atuação Biblioteca Adelpha Figueiredo Biblioteca Affonso Taunay Biblioteca Afonso Schmidt Biblioteca Alceu Amoroso Lima Biblioteca Álvares de Azevedo Biblioteca Belmonte Biblioteca Cassiano Ricardo Biblioteca Cora Coralina Biblioteca Monteiro Lobato Biblioteca Narbal Fontes Biblioteca Nuto Sant’Anna Biblioteca Pedro Nava Casa de Cultura Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro Casa de Cultura Butantã Casa de Cultura Casa Amarela - Júlio Guerra Casa de Cultura Cora Coralina Casa de Cultura Espaço Cultural Tendal da Lapa Casa de Cultura Itaim Paulista Casa de Cultura Palhaço Carequinha Casa de Cultura Popular do M’Boi Mirim Casa de Cultura Raul Seixas Casa de Cultura Salvador Ligabue Casa de Cultura Santo Amaro - Manoel Cardoso de Mendonça Casa de Cultura São Mateus Casa de Cultura Tremembé Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes Centro Cultural da Penha CEU Água Azul CEU Alto Alegre CEU Alvarenga CEU Aricanduva CEU Azul da Cor do Mar CEU Butantã CEU Caminho do Mar CEU Campo Limpo CEU Cantos do Amanhecer
CEU Capão Redondo CEU Casablanca CEU Cidade Dutra CEU Feitiço da Vila CEU Formosa CEU Guarapiranga CEU Inácio Monteiro CEU Jaçanã CEU Jaguaré CEU Jambeiro CEU Jardim Paulistano CEU Lajeado CEU Meninos CEU Navegantes CEU Paraisópolis CEU Parelheiros CEU Parque Anhanguera CEU Parque Bristol CEU Parque São Carlos CEU Parque Veredas CEU Paz CEU Pera e Marmelo CEU Perus CEU Quinta do Sol CEU Rosa da China CEU São Mateus CEU São Rafael CEU Sapopemba CEU Tiquatira CEU Três Lagos CEU Três Pontes CEU Uirapuru CEU Vila Atlântica CEU Vila Curuçá CEU Vila do Sol CEU Vila Rubi Galeria Olido Programa de Braços Abertos Teatro Alfredo Mesquita Teatro Cacilda Becker Teatro Leopoldo Fróes Teatro Zanoni Ferrite
Vocacional