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MUNDO DAS TREVAS

O lançamento bem sucedido, em 1991, de Vampiro: A Máscara, um RPG de horror pessoal, foi o marco inicial do que posteriormente foi denominado de Mundo das Trevas (World of Darkness), formado por uma série de jogos interligados, com temáticas adultas e abordando diferentes aspectos do terror e do sobrenatural. Mas vamos dar um passo de cada vez…

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Desde o surgimento de D&D e a popularização crescente dos jogos de RPG, diversas editoras já haviam flertado com a temática do horror, lançando títulos como, por exemplo, Call of Cthulhu (Chaosium, 1981) e Ravenloft (TSR, 1983), porém, o gênero ainda era considerado “difícil” do ponto de vista comercial, uma vez que os jogos pareciam atingir apenas um pequeno nicho dentro do mercado consumidor de RPGs. Ainda assim, o game designer Mark Rein- -Hagen tinha grande interesse pelo tema, porém, buscava uma forma de atualizar a ideia, um verdadeiro diferencial, pois acreditava que um jogo onde os personagens fossem apenas caçadores de vampiros poderia se tornar chato e repetitivo rapidamente.

Influenciado diretamente pela cultura pop do final da década 80 e início dos anos 90, na forma de obras de cinema, quadrinhos e música, como por exemplo Garotos Perdidos, Blade Runner, Highlander: O Guerreiro Imortal, Sandman, Sisters of Mercy e The Cure, Rein-Hagen concebeu o chamado mundo Punk-Gótico, um planeta Terra bastante similar ao nosso, porém com todas as suas características mais sombrias e perversas acentuadas.

Desigualdade social, corrupção, jogos de poder e um sentimento constante de desesperança e sofrimento permeiam a fantasia urbana criada por Rein-Hagen. Um mundo difícil, onde os humanos geralmente são tratados como peões ou vítimas, seja das grandes corporações, seja das criaturas sobrenaturais. Aliado a isso, o mundo apre

sentava também uma estética visual bastante diferente do que havia sido feito até então, totalmente inspirada no estilo gótico e sombrio, contribuindo para o clima desejado nas histórias.

Mas no jogo idealizado por Rein-Hagen, os jogadores não seriam os humanos explorados, lutando por sua sobrevivência, eles seriam os próprios Vampiros, fazendo o papel de opressores, ou combatendo seu instinto natural de agir dessa forma! Assim começavam a surgir os conceitos de Vampiro: A Máscara.

Os vampiros de Rein-Hagen, embora apresentassem várias características oriundas dos mitos populares, se diferenciavam por sua organização em clãs e por sua cultura e estrutura de poder própria e bem definida, agindo como uma espécie de poder nos bastidores, influenciando e tentando conduzir os destinos da humanidade desde o início dos tempos.

Em 1991, Rein-Hagen fundiu sua antiga companhia, a Lion Rampant, com a empresa dos irmãos Steve e Stewart Wiacek, a White Wolf Magazine, dando origem à White Wolf Publishing, cujo primeiro lançamento foi justamente Vampiro: A Máscara.

Em que pese a crítica especializada tenha destacado alguns aspectos técnicos negativos, de uma maneira geral, o livro recebeu boas críticas no sentido de que apresentava uma ambientação sólida e priorizava a interpretação dos personagens e a criação de histórias, uma tendência que já vinha se desenvolvendo no meio, mas Vampiro foi o primeiro RPG a dar grande destaque a isso, tornando-a um elemento central do jogo.

Em 1992, foi lançada a segunda edição de Vampiro já com algumas revisões e um melhor tratamento gráfico. Posteriormente, no mesmo ano, a White Wolf publicou o segundo jogo integrante do Mundo das Trevas, Lobisomem: O Apocalipse, onde os jogadores interpretam uma visão bem diferente do que entendemos, pelo senso comum, de um lobisomem.

Embora eles ainda sejam ferozes e do- tados de grande capacidade destrutiva, no Mundo das Trevas eles são apresentados (em linhas bem gerais) como guerreiros defensores de Gaia (a Terra), lutando em uma batalha perdida contra a destruição do planeta pelas forças de uma poderosa enti- dade maligna, denominada Wyrm.

Seguindo o padrão estabelecido em Vampiro, os Lobisomens, ou Garou, tam- bém se organizavam em grupos distintos, as tribos, e possuíam uma extensa organi- zação política com diversas camadas, tudo em prol da possibilidade da criação de in- trigas e manipulações sociais, mesmo sen- do o jogo um pouco mais orientado para a ação do que seu predecessor.

Uma vez mais, o clima de angústia e a sensação de impotência diante de uma ba- talha que já estava perdida eram o pano de fundo do jogo. Além disso, o cenário deixa bastante claro que os Vampiros são cria- turas da Wyrm, ou seja, inimigos naturais dos lobisomens, criando a sensação de

continuidade e, ao mesmo tempo, uma ligação e rivalidade instantâneas entre os dois cenários.

Em seu lançamento, Lobisomem também recebeu algumas críticas negativas quanto à mecânica do sistema e a extensa e complicada mitologia criada, mas, ainda assim, o aspecto psicológico do jogo e sua ênfase na interpretação dos personagens foram bastante elogiados.

Outro lançamento de 1992 teria grande importância na história da White Wolf. O suplemento A World of Darkness (Mundo das Trevas) foi o primeiro livro a fazer uma espécie de volta ao mundo, estabelecendo os primórdios da presença de criaturas sobrenaturais em diversas regiões, como por exemplo Ilhas Britânicas, Hong Kong e Haiti. Várias idéias ali presentes foram posteriormente desenvolvidas em outros livros, em alguns casos dando origem a linhas inteiras de novos produtos, como os diversos suplementos abordando o Oriente.

Em 1993, além da segunda edição de Lobisomem, a White Wolf lança seu terceiro jogo, Mago: A Ascensão, que, embora tenha sido o primeiro no qual Mark Rein-Hagen não esteve diretamente envolvido no processo criativo, utilizou muitos conceitos criados por ele para um antigo jogo, Ars Magica, apenas adaptando o cenário para o mundo moderno e para os padrões estabelecidos nos jogos anteriores.

A cosmologia de Mago foi criada com base no que já havia sido mostrado em Lobisomem: O Apocalipse, pegando vários elementos estabelecidos no jogo anterior e expandindo-os, ou apenas apresentando-os sob a ótica dos Magos, que nem sempre coincide com a dos Garou. Mago até hoje é considerado um jogo bastante complexo, indicado para jogadores experientes que gostam de desafios. Assim, como os cenários anteriores, Mago conta com uma ambientação extensa e detalhada, porém somado a isso temos várias pitadas de metafísica, filosofia e, em última análise, visão de mundo, o que requer do jogador uma boa dose de esforço intelectual na criação do personagem, não tanto pelo sistema do jogo, mas pela tarefa de encontrar a essência do personagem, o que com certeza será uma parte muito importante para o desenrolar da história.

1993 também foi o ano que marcou o primeiro uso de um logotipo para representar o Mundo das Trevas, criado a partir do logo usado para o suplemento A World of Darkness, publicado no ano anterior. No entanto, o logo teve curta duração, sendo substituído no ano seguinte, com o lançamento do próximo grande jogo da White Wolf.

O ano de 1994 nos trouxe Wraith: The Oblivion (Aparição: O Esquecimento), que repaginou o conceito de Assombrações e Fantasmas. Focando na existência pós-morte, jogadores deveria representar almas ainda presas ao mundo dos vivos por questões não resolvidas. Como de praxe nos jogos da companhia, toda uma sociedade pós vida foi construída, com seus subgrupos e intrigas políticas, porém, um dos diferenciais do jogo era o fato de que a Sombra, o lado “ruim” de cada personagem, ou seja, aquela parte que representava todas as suas piores características, medos e erros, era representada por outro jogador, e não pelo criador do personagem, o que com certeza criava muitas possibilidades narrativas e deixava o jogo bem mais interessante.

Por fim, em 1995 foi lançado o último dos cenários considerados básicos do Mundo das

Trevas, Changeling: The Dreaming (Fadas: O Sonho), que abordou o mundo dos Fae, seres mágicos oriundos do Reino dos Sonhos, que acabaram aprisionados na Terra, vendo sua magia, o chamado Glamour, definhar ao longo dos anos, frente ao avanço inclemente da banalidade e do pensamento racional. Ao contrário do que nos vêm logo à mente, Changeling não trata apenas das “fadas” presentes em especial na cultura anglo-saxã, mas, apresenta variações que envolvem diversas outras mitologias, como por exemplo a Grega, Indiana e até mesmo Yorubá.

Nesses primeiros anos, a White Wolf lançou uma série de suplementos que foram expandindo as regras e as ambientações de cada um dos cenários estabelecidos, quase sempre fazendo referências aos outros jogos da linha, reforçando o fato de que toda essa gama de seres sobrenaturais habitam o mesmo universo e, em maior ou menor grau, tinham chances de interagir entre si.

A partir de 1996, a White Wolf também iniciou uma linha de cenários históricos, que nada mais eram do que jogos ambientados em épocas específicas do passado do Mundo das Trevas, escolhidas a partir da relevância para cada cenário: Idade Média (Vampiro, Lobisomem e Changeling), Velho Oeste (Lobisomem), Renascimento (Mago), Era Vitoriana (Vampiro) e I Guerra Mundial (Wraith). Esses cenários, especialmente os da Idade Média, seguiram com uma certa independência, com suplementos próprios, e às vezes sendo utilizados para construir tramas que iriam influenciar o desenvolvimento do cenário moderno.

Foi também em 1996 que a editora adotou uma política de temas anuais para seus cenário principais, ou seja, todos os suplementos lançados iriam abordar a mes-

ma temática, explorando as p e c u l i a r i d a d e s de cada jogo. Assim, 1996 foi o Ano do Caçador, no qual foram explorados indivíduos, grupos e organizações que se dedicavam a estudar e caçar as criaturas sobrenaturais. O ano seguinte, foi o Ano dos Aliados, com suplementos dedicados a Lacaios, Parentes e etc, aprofundando sua relação e os motivos que os levavam a dedicar suas vidas ao auxílio de vampiros, magos, lobisomens e etc.

Em 1998, escolhido como o Ano da Lótus, a White Wolf explorou o Oriente em seus diversos jogos, detalhando o sobrenatural em pontos como Hong Kong e Tóquio, dentre outros. Além dos suplementos de cidades, foram lançados dois livros que praticamente se tornaram cenários autônomos: Kindred of the East (Vampiros do Oriente) e Hengeyokai (Metamorfos do Oriente).

Com a proximidade do fim do Século, 1999 foi escolhido como o Ano do Acerto de Contas. Naquele ano, a White Wolf promoveu grandes reviravoltas no Mundo das Trevas, avançando com os plots principais de seus jogos, em especial a linha Wratih: The Oblivion, a qual foi encerrada com o suplemento Ends of Empire. Porém um novo jogo foi lançado, também como consequência dos eventos daquele ano, Hunter: The Reckoning, que trazia o conceito de seres escolhidos por poderes misteriosos para proteger a humanidade contra as forças do Mal.

Quando o emblemático ano 2000, citado em todos os livros da White Wolf como um período de grandes mudanças (Gehenna, Apocalipse, Ascensão, etc) finalmente chegou, foi batizado de o Ano das Revelações, no qual os suplementos finalmente lançaram luz sobre alguns dos mais antigos segredos e mistérios do Mundo das Trevas, construídos ao longo de quase uma década nos diferentes cenários. No entanto, ao contrário do que muitos esperavam, o mundo não acabou!

O tema escolhido para 2001 foi o Oriente Médio, uma região que sempre foi considerada muito importante no Mundo das Trevas, mas nunca havia sido profundamente explorada nos suplementos. Assim o Ano do Escaravelho supriu essa lacuna e ainda promoveu o lançamento de mais um jogo, Mummy: The Resurrection (Múmia: A Ressurreição). Muito embora as Múmias já tivessem sido descritas antes, em outros suplementos ao longo dos anos, elas foram completamente reformuladas e atualizadas, assumindo um papel mais relevante no Mundo das Trevas.

No Ano dos Amaldiçoados (2002), alguns dos eventos ocorridos durante o Ano do Acerto de Contas (1999), e que vinham se desenvolvendo desde então, culminaram na abertura de uma acesso através do qual demônios adentraram no Mundo das Trevas. Assim, os suplementos daquele ano abriram caminho para o lançamento

do jogo Demon: The Fallen (Demônio: Os Decaídos).

Em 2003, ao invés de escolher um tema para suas publicações, a White Wolf anunciou que no ano seguinte encerraria todos os cenários do Mundo das Trevas, trazendo a conclusão de todos as tramas principais em andamentos. Três livros foram publicados ainda em 2003, sendo complementados por mais quatro em 2004, no evento que ficou conhecido como Time of Judgement (Tempo do Julgamento).

Os livros traziam várias opções para o final de cada um dos jogos da White Wolf, alguns inclusive baseados nas escolhas dos personagens durante o desenrolar das últimas sessões. O objetivo era finalizar os plots em aberto e renovar a linha de publicações da editora. Time of Judgement foi o ponto final de treze anos do que ficou conhecido posteriormente como Mundo das Trevas Clássico. É inegável o sucesso e a grande contribuição que os jogos trouxeram para a indústria do RPG, gerando um

fenômeno mundial, especialmente na década de 90, que possibilitou diversos outros lançamentos paralelos, como videogames, CDs temáticos, acessórios, romances e até mesmo uma série de TV.

Entre erros e acertos, a White Wolf ajudou a desenvolver e popularizar um estilo diferente de jogar RPG, mais voltado para a interpretação e compreensão dos aspectos psicológicos e morais dos personagens, ao invés de enxergá-los como um mero conjunto de anotações em uma folha de papel.

Apesar da proporção grandiosa que o cenário desenvolveu ao longo do tempo, ocasionando talvez até um pouco de perda de qualidade, seu legado foi forjado naquelas primeiras noites, quando os primeiros vampiros despertaram, vestiram suas roupas pretas e saíram para explorar as ruas, becos mal iluminados e casa noturnas repletas de néon daquele novo e decadente Mundo das Trevas...

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