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RPG e História
from Play Test #2
por Thiago Pinheiro
Qualquer observador desavisado, que passa por aquele grupo de jovens sentados em roda no chão de praças, livrarias ou outros locais públicos, (até porque, os com mais idade raramente sentam no chão...), e os vê jogando dados de acrílico multifacetados, com planilhas de personagens, livros de regras e cenários, gritando desesperadamente como se suas vidas dependessem disso, (e muitas vezes, por conta de suas imaginações férteis, dependem mesmo!), pode achar que o RPG (Role-Playing Game) é pura e simplesmente uma forma de entretenimento, uma maneira de liberar o impulso criativo, o que de fato pode ser.
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Mas então qual a relação desse jogo com a História? Uma ciência que para muitos é simplesmente incompreensível. Bem, não estou aqui para trazer essa resposta. E é neste momento que posso até ver tu me xingares. Calma jovem, trazer respostas prontas é deveras entediante, portanto, proponho que trabalhemos alguns pontos interessantes sobre o tema.
Por vezes eu observo o movimento social denominado RPG como uma cebola. Cebola? Um negócio que só alguns conseguem apreciar, e que te faz chorar antes de aprender a gostar? Não! Quer dizer, as vezes é isso mesmo que o RPG é, mas no geral, ele me parece com uma cebola pelo fato de, assim como ela, ter várias camadas. Sendo uma simples forma de divertimento para alguns, uma metodologia de ensino ou estudo para outros, etc. Assim, o RPG pode ser visto como um hobby, uma ferramenta, um objeto de estudo... enfim, algo com múltiplas aplicabilidades.
Mas pensemos no RPG e sua estrita relação com a História, minha área específica de atuação. Muitos cenários de jogos tratam de recortes específicos na história, fornecendo um vasto material para ambientação e compreensão do período histórico escolhido. Além disso, podemos contar sempre com a mão do Mestre do Jogo, que com um pouquinho de pesquisa e adaptação, será capaz de ambientar sua campanha em qualquer período da sociedade humana que desejar explorar.
Até em jogos de fantasia medieval, que poderiam ser considerados um pano de fundo mais fora da realidade, podemos peneirar aspectos usuais de algum momento histórico, tanto em sua estrutura como jogo, como por exemplo, as classes do D&D, inspiradas em profissões reais, como os Clérigos, que derivam das ordens de cavalaria religiosas, como os Cavaleiros Hospitalários, ativos principalmente em auxílio aos peregrinos cristãos na Terra Santa, e que devido aos conflitos religiosos locais, tiveram que pegar em armas, em nome da sua fé. Até mesmo o fato dos Clérigo do jogo usarem maças ao invés de espadas tem inspiração real, uma vez que muitos dos bispos que lutavam ao lado de seus exércitos, foram retratados portando armas contundentes, o que levou alguns estudiosos a acreditarem haver uma razão teológica para a predileção por esse tipo arma, mais precisamente na passagem bíblica contida em Mateus 26:52,53 (Então Jesus disse-lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão/ Ou pensas tu que eu não poderia agora orar a meu Pai, e que ele não me daria mais de doze legiões de anjos?).
Os Paladinos, outra classe bastante popular na fantasia medieval, apesar de sua semelhança com os Clérigos, estavam mais voltados para a busca pela justiça e nobreza, do que para a fé em si. Assim, a fonte de inspiração para eles advém da nobreza laica, principalmente do direito divino dos reis, e do rito chamado Toque Divino, ou Toque dos Reis, muito usual nas monarquias medievais da Inglaterra e França, segundo o qual acreditava-se que com a imposição das mãos, o monarca, por conta de sua investidura divina, poderia curar os enfermos. Esses nobres
são conhecidos como os Reis Taumaturgos (o que me lembra do poder de um outro jogo de RPG, mas essa explanação fica pra próxima).
Prosseguindo, podemos identificar no enredo de D&D a inspiração em uma medievalidade mitológica e fantástica, cuja base bebeu bastante nas culturas nórdica e céltica, além de uma miscelânea de quase todas as criaturas existentes em quase todas as mitologias e panteões, que vemos apresentadas nas diversas edições de livros de monstros ou bestiários de Dungeons and Dragons e afins.
Agora, se queres ter história geral de forma bem divertida jogada na tua cara, eu aconselharia os cenários do Mundo das Trevas, da editora White Wolf, principalmente os módulos da Idade das Trevas, uma linha de produtos que estabelece como pano de fundo a Idade Média, retratada de forma ainda mais obscura e fria do que foi na realidade. Esse é o tipo de cenário que fomenta tanto Narradores quanto Jogadores a se inteirar mais da rotina, costumes e modo de vida da época, para enriquecer tanto a narração quanto a interpretação dos personagens.
Dentro da linha Idade das Trevas, meu destaque vai para o módulo básico de Vampiro Idade das Trevas, aliás o primeiro da linha a ser publicado, estabelecendo o tom a ser seguido pelos demais suplementos (a maioria infelizmente não foi lançada em português). Alguns são bastante impressionantes pela riqueza de detalhes históricos, sociais e culturais, tais como Transylvania By Night, abordando não só a famosa morada do Drácula, mas todo o Leste Europeu, e ainda o Transylvania Chronicles, uma campanha muito bem escrita, que leva os jogadores da Idade Média até os tempos atuais, com todas as histórias ambientadas naquela região. Outros livros que se destacam pela pesquisa histórica apurada e ambientação bem construída são: Jerusalem By Night, abordando o período da segunda Cruzada na Terra Santa; Constantinople By Night, apresentando a capital do Império Romano do Oriente e uma das maiores cidades medievais, acompanhando sua ascensão e queda. Mas nem só de grandes eventos ou cidades vive a Idade das Trevas… alguns suplementos descreveram outras culturas que, em algum momento histórico, tiveram forte influência na sociedade medieval europeia, como os Vikings, com seus saques, incursões e colonizações, apresentados em Wolves of the Sea. O Oriente Médio e seus extensos califados, sua cultura e ciência, trazidos pelo Islã, são objeto do livro Veil of Night. As invasões mongóis, que criaram um paradigma na Europa medieval, com sua forma diferente de guerrear e viver, enriqueceram ainda mais a linha com Wind from the East.
Pra quem curte Lobisomem, também existe um suplemento para Idade das Trevas, porém é mais fraco no sentido de realidade histórica, até por se tratar de um jogo menos urbano que Vampiro, e, portanto, com menor contato com a história humana, mas nada melhor do que os toques de um Narrador mais atento e estudioso para incorporar alguns elementos históricos e transformar a campanha em uma experiência ainda mais enriquecedora.
Para os Garou, foi dado mais destaque, em termos de período histórico, para os séculos XVII, XVIII e XIX, com suplementos como Croatan Song (vale muito a pena conferir), que tem como pano de fundo os primeiros contatos das tribos europeias com as tribos do nordeste americano, culminando com a extinção dos Croatan na ilha de Roanoke, fato de grande relevância para a formação e compreensão da sociedade Garou contemporânea, a partir daí, temos toda a linha Wild West, que trata da expansão
para o Oeste Americano e a consolidação dos Garou europeus nas Terras Puras.
Se pensarmos apenas em termos de ambientação histórica, esquecendo que se tratam de jogos diferentes, poderíamos considerar Mago: A Cruzada dos Feiticeiros, como uma ponte entre os períodos históricos retratados nos suplementos de Vampiro e Lobisomem, pois engloba desde o declínio da Alta Idade Média, passando pelo início da Renascença e chegando até o auge das grandes navegações e do colonialismo europeu, nos séculos XVII e XVIII, abrindo caminho para a linha Wild West. Apesar de bastante interessante, por tecer um recorte cultural dos diversos povos que acabaram se encontrando nesse período, indo do extremo Oriente com a monástica Irmandade de Akasha, até o extremo Ocidente com os xamanísticos Oradores dos Sonhos, Mago: A Cruzada dos Feiticeiros poderia ter trabalhado seus conceitos de modo um pouco mais simples, facilitando seu entendimento para um mercado menos familiarizado com grandes questões filosóficas e paradigmáticas. Por outro lado, acredito que a proposta do livro seja essa mesma, trazer um cenário mais complexo para jogadores mais experientes. Ou seja, se estiver iniciando no RPG ou em cenários históricos, NUNCA COMECE A JOGAR POR ELE! É um livrinho complicado de absorver...
Saindo um pouco do foco da White Wolf, um cenário que infelizmente nunca tive a oportunidade de jogar, mas do qual recebi muitas reco
mendações positivas, foi Desafio dos Bandeirantes, lançado em dezembro de 1992 pela editora GSA. Um livro de RPG 100% brasileiro, criado por Carlos Klimick, Luiz Eduardo Ricon e Flávio Andrade, ambientado em um Brasil Colônia fantasioso, que apesar de todo o cunho mitológico e fantástico, trabalha de forma satisfatória a temática política e cultural da época, bem como as relações entre os povos que compuseram a população nacional no período colonial. Um dos maiores reconhecimentos da qualidade da pesquisa histórica envolvida na criação desse RPG foi o fato do jogo ter sido levado para salas de aula de nível fundamental, como forma de estimular o estudo de história do Brasil.
Bem, esse foi apenas um recorte sucinto da minha experiência com a temática História e RPG, fruto da observação nos meus anos como jogador e historiador. Por fim, é preciso ficar claro que as ambientações dos livros citados acima, não são completas e absolutas, ou seja, esses livros não retratam a História, por maior que fosse a intenção de seus autores em representar fidedignamente as engrenagens do “tempo humano.” Isso ainda é um jogo, um entretenimento, e não uma referência acadêmica sobre o período histórico que retratam. Eles podem servir sim como um ponto de partida, não só para provocar o interesse na ciência histórica e na pesquisa por mais informações e conhecimento, mas também no saudável hábito da leitura, na criatividade e na interação social.