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Julia Preto
Julia de Campos Preto juliacpreto@icloud.com
…Se eu forçar a vista.
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"She wants to go home But nobody's home That's where she lies Broken inside" — Nobody’s home - Avril Lavigne
Eu costumava viver num castelo. Havia um belo jardim. Ele era cuidado melindrosamente pela minha mãe antes e depois de eu ter nascido. Ela era assim. Cuidava de tudo que era vivo, tinha uma paixão pela vida que muitos invejavam. Ela foi a rainha do meu castelo, apesar de ela sempre discordar. Dizia que havia me criado rainha, não princesa. Nesse castelo, além do meu jardim, havia muitos súditos. Eram silenciosos, pareciam indefesos, por isso eu sempre cuidei deles antes de tudo. Minha mãe sempre disse que uma rainha deveria ser bem letrada, então nunca deixou minha educação de lado, pelo contrário, era exigente. “A arte da palavra e o conhecimento fazem de você um líder ou uma sobrevivente”, ela dizia. Sempre quis deixa-la orgulhosa, por isso sempre fui dedicada. Meu pai era meu rei, apesar de consideravelmente ausente. Era dono de um coração frio, mas eu achava que no fundo ele era bom. Tinha até uma cadeira real só dele. Ah, e faltam as paredes. Bem, as paredes eram como nos livros, feitas de rocha com alguns musgos bonitos.
Como todo livro bom, também tinha um monstro. Nunca gostei de ir dormir, era aí que ele aparecia, então assumi que fosse um sonho. Era uma silhueta que eu não reconhecia. Sempre pareceu tão real, mas nunca saí do meu quarto para saber se ele estava por perto. A madeira do chão rangia, até ouvia vagamente uma porta abrir, mas tudo o que eu via era o escuro. Forçava os olhos da cama e nada, só escuro. Tinha sempre uma donzela, ela chorava baixinho como se não quisesse ser ouvida, mas o que meus olhos não viam, meus ouvidos ouviam em dobro; era só eu fechar os olhos. Quando eu acordava, a primeira coisa que sentia era o cheiro do café fresquinho, da manteiga e do pão torrado de cheiro crocante. Dava água na boca, por isso eu corria até a cozinha para pegar um pedaço e contar a aventura da noite passada. Ela acordava muito cedo, dizia que tinha que ajeitar tudo para o café, minha mãe, digo. Mas, depois do café, sentávamos no sofá para falar do meu sonho. Eu me aconchegava perto do seu peito de mãe para que pudesse sentir o perfume doce, mais agradável que qualquer outra flor do jardim. Quanto aos meus sonhos, eram normais, e rainhas não devem levantar da cama por motivos bobos. Dormir era importante. Como veem, ela, por vezes, mentia para mim. Mas então, numa manhã, minha mãe morreu. Meu pai contou-me que ela tinha um coração fraco e, no meio da noite, havia sofrido um ataque.
Minha mãe morreu e a fantasia morreu com ela. Quando eu acordava não sentia mais o cheiro de pão ou de manteiga. Nos primeiros dias, foi até bom: não sentia cheiro de nada. Contudo, não levou muito tempo para que eu visse as garrafas de álcool acumulando-se e aquele cheiro tornando-se familiar; era o novo cheiro da manhã. O real descia pela garganta rasgando-a, mas não havia o que fazer, descia e era isso. Chorar? Para quem? Seria um choro mudo, preso na mesma garganta. Penso eu que a dúvida era a pior parte., pois ela desregulava qualquer tentativa de ignorar as possibilidades. Em um momento tento esquecer, no outro, olho uma caneca vermelha e mil possibilidades mais vem à mente. Coração fraco? Por um lado, sim, por outro lado, não. Haviam me ensinado muito até ali; muito sob um manto diáfano e fantasioso. Entretanto, depois da morte dela, fui obrigada a rasgar esse manto, construído durante tantos anos e gotas de suor. Eu via-me ali com uma adaga bonita. Via-me enfiando-a na seda e cortando aqueles fios… um por um… até a ponta. Terminei o trabalho, olhei aquele manto rasgado e senti um aperto no peito como se tivesse acabado de cortar alguém ao meio. Era isso. Levou mais tempo que pretendia, mas saí daquela casa o mais rápido que pude usando de concursos públicos e alguns contatos. Sem o príncipe que um dia almejei. Num passado eu vi a vida sob os olhos de uma criança, mas uma criança mentirosa e ingênua. Enxergava a beleza nas simples coisas através de uma venda de linho sobre os olhos. Eram sombras. Hoje odeio sentir-me criança e só de 79
pensar sobre isso, dor estômago, uma azia. Se eu forçar a vista, consigo ver o eu de hoje ainda num conto de fadas, mas não um desses tradicionais, um bem mais feio que o dos livros, sem princesas ou príncipes. Só musgos bonitos. Sei que essa alma no meu peito ainda é criança, mas meu jardim, infelizmente, morreu com a casa.
Julia de Campos Preto