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ENTREVISTA O que festejar no Ano Internacional das Florestas?

Aula Aberta 7 O prazer de ensinar ciências

ANO I - NO 7 - 2011 - R$ 6,90

FÍSICA

LIXO NUCLEAR RECICLADO Reatores de nêutrons rápidos permitem reaproveitar os resíduos radiativos para gerar mais eletricidade

MATEMÁTICA

Leis racionais que se aplicam a situações determinadas pelo acaso

QUÍMICA

Produção de energia que imita a fotossíntese e não prejudica o ambiente

BIOLOGIA

O combustível das células funciona como mensageiro entre elas

GEOGRAFIA

O mundo ficou mais rico, mas não resolveu o problema da miséria



SUMÁRIO

SCIENTIFIC AMERICAN BRASILredacaosciam@duettoeditorial.com.br – AULA ABERTA 2011 – Número 7

10 ENTREVISTA

PARA ONDE VÃO NOSSAS MATAS?

Por Ísis Nóbile Diniz

Mesmo animais não ameaçados de extinção, como o macaco-de-cheiro (Saimiri sciureus), podem desaparecer por causa do desmatamento

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16 24 28

NOTAS A história de um cadáver famoso tem reviravolta surpreendente

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BIOLOGIA A vida dupla do ATP

44

GEOGRAFIA O fim da miséria

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PARA O PROFESSOR

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LIVROS

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ENSAIO Acesso limitado

FÍSICA Lixo nuclear bem reciclado QUÍMICA A reinvenção da folha vegetal MATEMÁTICA O lúdico na teoria dos jogos CAPA: Jana Brenning

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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Brasil www.sciam.com.br

Aula Aberta 7 COMITÊ EXECUTIVO Jorge Carneiro, Luiz Fernando Pedroso, Lula Vieira (diretor de marketing), Cidinha Cabral (diretora comercial) e Ana Carolina Trannin (diretora de operações) DIRETORA DE REDAÇÃO Ana Claudia Ferrari Especial Aula Aberta 7 EDITOR: Luiz Marin DIAGRAMAÇÃO: Paula de Freitas Lopes redacaosciam@duettoeditorial.com.br EDITOR-CHEFE: Ulisses Capozzoli EDITORA DE ARTE: Simone Oliveira Vieira ASSISTENTES DE ARTE: João Marcelo Simões e Ana Salles PESQUISA ICONOGRÁFICA: Gabriela Farcetta e Lorena Travassos (assistente) ASSISTENTE DE REDAÇÃO: Elena Regina Pucinelli SUPERVISORA DE REVISÃO: Edna Adorno COLABORADORES: Luiz Roberto Malta, Maria Stella Valli e Saulo Krieger (revisão) PUBLICIDADE publicidade@duettoeditorial.com.br DIRETORA DE MERCADO PUBLICITÁRIO: Sandra Garcia COORDENADOR DE PUBLICIDADE: Robson de Souza REPRESENTANTES COMERCIAIS ALAGOAS/BAHIA/ PERNAMBUCO/SERGIPE: Pedro Amarante – (79) 3246-4139/ 9978-8962 BRASÍLIA: Sônia Brandão – (61) 3321-4304 ESPÍRITO SANTO: Dídimo Effgen – (27) 3229-1986/ 3062-1953/ 8846-4493/ 9715-7586 RIO DE JANEIRO: Carla Torres – (21) 22240095 PROJETOS ESPECIAIS - FARMACÊUTICO EXECUTIVOS DE NEGÓCIOS: Walter Pinheiro e Rafaela Martins MARKETING GERENTE DE MARKETING: Guilherme Gabriel MARKETING EVENTOS: Cássia Peres COORDENADORA DE MARKETING LEITOR: Camilla Milanello ASSISTENTE DE MARKETING PUBLICITÁRIO: Rodrigo Sampaio OPERAÇÕES GERENTE FINANCEIRA: Arianne Castilha SUPERVISORA DE PLANEJAMENTO: Dilene Cestarolli CIRCULAÇÃO Circulação Avulsa GERENTE: Ana Paula Gonçalves PRODUÇÃO GRÁFICA: Wagner Pinheiro ASSISTENTE DE PCP: Paula Medeiros VENDAS AVULSAS: Fernanda Ciccarelli Assinaturas Coordenadores VENDAS PESSOAIS: Antonio Carlos de Abreu VENDAS TELEMARKETING: Viviane Tocegui NÚCLEO MULTIMÍDIA DIRETORA: Mariana Monné REDATORA DO SITE: Fernanda Figueiredo WEB DESIGNER: Rafael Gushiken COORDENADORA DE VENDAS WEB: Michele Lima ASSISTENTE ADMINISTRATIVA: Sabrina de Macedo SCIENTIFIC AMERICAN INTERNATIONAL EDITOR IN CHIEF: Mariette DiChristina MANAGING EDITOR: RICKI L. RUSTING CHIEF NEWS EDITOR: PHILIP M. YAM SENIOR WRITER: Gary Stix EDITORS: Davide Castelvecchi, Mark Fischetti, Steve Mirsky, -Michael Moyer, George Musser, Christine Soares, Kate Wong DESIGN DIRECTOR: Michael Mrak PHOTOGRAPHY EDITOR: Monica Bradley VICE PRESIDENT, OPERATIONS AND ADMINISTRATION: Frances Newburg PRESIDENT: Steven Inchcoombe Scientific American Brasil é uma publicação da Ediouro Duetto Editorial Ltda., - sob licença de Scientific American, Inc.

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EDITORIAL

O

tema que permeia boa parte desta edição é energia. Claro, ela está presente em tudo que acontece no Universo, mas no caso nosso interesse está voltado para a almejada busca de desenvolvimento econômico e social sem que isso provoque um desequilíbrio do ambiente ou acarrete riscos à vida no planeta. E quando se fala em desequilíbrio, inclui-se necessariamente a vida das florestas, assunto que inspirou a entrevista com Luiz Paulo Pinto, diretor do Programa Mata Atlântica da Conservação Internacional. Cabe lembrar que 2011 é o Ano Internacional das Florestas. Quanto às ameaças à saúde e à vida no planeta, uma das grandes preocupações concentra-se na utilização da fissão do átomo para produção de eletricidade. Discutem-se muito e há bastante tempo as vantagens e desvantagens das usinas nucleares, com a balança da opinião popular quase sempre pendendo para o lado negativo desse tipo de recurso. O recuo da Alemanha ao refrear a construção de novas instalações atômicas após o dramático evento em Fukushima é um exemplo. As termonucleares, entretanto, provocam prejuízos ambientais bem menores que as formas convencionais de produção de energia. Sem elas, certos países, como a França, colapsariam, com consequências econômicas planetárias. As usinas estão aí, a opção por elas está feita, o que nos cabe agora e sempre é aumentar a segurança nas operações. Isso abrange os cuidados com o lixo nuclear, um dos temas aqui tratados, que deve ser discutido e divulgado para os alunos e a sociedade, pois só o conhecimento dos riscos é que nos assegura a coragem para evitá-los ou enfrentá-los. A escolha de uma matriz energética, porém, não exclui alternativas, como o aproveitamento dos ventos, das marés e da luz solar, fontes inesgotáveis de energia limpa, embora sempre requeiram projetos que avaliem os impactos ambientais. Uma das formas interessantes de utilização da energia gratuita que diariamente aquece nosso planeta é a fotossíntese artificial – fonte de combustível que rendeu uma proposta de atividades na área de química. Questões globais como o uso e a produção de energia estão de alguma forma na pauta dos debates sobre o desenvolvimento econômico das nações menos favorecidas. O artigo “O Fim da Miséria” mostra onde estão os bolsões de pobreza no mundo e apresenta soluções para acabar com ela. Um tema para ser examinado e discutido com os alunos, visando, sobretudo, a formação de uma “cidadania planetária”, como defendia nosso geógrafo Milton Santos. Além desses assuntos, esta edição revela uma propriedade pouco conhecida do ATP, a molécula que fornece energia aos nossos músculos, e contempla a área de matemática com uma análise das probabilidades envolvidas nos chamados jogos de azar, um caminho quase obrigatório para compreender o funcionamento das estatísticas. Tudo isso com uma novidade: as seções de conteúdos didáticos Para o Professor estão agora agrupadas no fim da revista. Boa leitura e boas aulas!

IMPRESSÃO: Ediouro Gráfica

Luiz Carlos Pizarro Marin

Aula Aberta no 7, ISSN 2176163-9. Distribuição com exclusividade para todo o Brasil: DINAP S.A. Rua Doutor Kenkiti Shimomoto, 1678.

redacaosciam@duettoeditorial.com.br SCI AM BR

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AULA ABERTA



NOTASNOTASNOTA Sepultado? Ötzi, o Homem do Gelo, não teria morrido no local onde alpinistas encontraram seu corpo em 1991.

ARQUEOLOGIA

O Adeus ao Homem do Gelo

E

le é um dos mais famosos cadáveres antigos já descobertos : um homem de 46 anos com um ferimento de flecha no ombro esquerdo, cujo corpo e pertences acabaram descansando numa passagem no alto de uma montanha há cerca de 5 mil anos. Desde que os restos de Ötzi, o Homem do Gelo, foram avistados pela primeira vez por alpinistas, próximo da fronteira entre Áustria e Itália, em 1991, cientistas trabalham para determinar como ele morreu e por que seu corpo estava em um lugar tão remoto. A principal teoria propõe que ele fugiu para lá e congelou até a morte após ter sido atingido por uma flecha em meio a um confronto com um grupo. Entretanto, um novo estudo questiona esse cenário de conflito e sugere que o Homem do Gelo morreu em um combate no vale abaixo e foi posteriormente transportado para um local elevado para a realização de uma cerimônia de despedida. Uma equipe de pesquisadores italianos e americanos chegou a essa conclusão após analisar a distribuição dos bens pessoais do Homem do Gelo, que incluíam uma mochila e outros itens tradicionalmente interpretados como equipamento de montanhismo. Concluíram que se ele tivesse morrido próximo ou no local onde foi encontrado e estivesse carregando seu equipamento 6

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quando morreu, então os ciclos de congelamento e descongelamento teriam distribuído os artefatos em um padrão aleatório ao redor de seu corpo. Na verdade, o padrão de distribuição encontrado mostrou dois agrupamentos distintos de artefatos, um próximo de algumas lajes de pedra, interpretadas como restos de uma plataforma de sepultamento e outro em uma depressão nas proximidades onde os alpinistas encontraram seu corpo. O estudo sugere que seus restos e os equipamentos volumosos foram depositados precisamente sobre a pequena plataforma de pedra e posteriormente carregados pela água até a depressão. Além disso, as armas inacabadas e o colchão de capim que acompanhavam o Homem do Gelo são mais bem explicados como objetos fúnebres e uma mortalha do que como equipamento de montanhismo. Análises de pólen anteriores indicaram uma diferença de tempo entre a hora da morte e o sepultamento. Considerando também essa evidência, os investigadores sugerem que o Homem do Gelo morreu em um local de baixa altitude durante a primavera e os membros de seu grupo conservaram seu corpo em gelo até o fim do verão, quando o carregaram para cima da montanha para um adeus final. – Kate Wong AULA ABERTA

CORTESIA DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA DO TIROL DO SUL (WWW.ICEMAN.IT)

A HISTÓRIA DE UM CADÁVER FAMOSO TEM REVIRAVOLTA SURPREENDENTE


ASNOTASNOTASNO BIOLOGIA

Que É Isso

U

m mundo muito, muito pequeno: a cada ano a Nikon solicita a inscrição de milhares de cientistas que utilizam câmeras e microscópios ópticos para que capturem imagens de fenômenos invisíveis a olho nu. O vencedor de 2010 foi Jonas G. King, candidato a Ph.D. em ciências biológicas na Vanderbilt University. King e o principal pesquisador de seu laboratório, Julián F. Hillyer, estudam o sistema circulatório de mosquitos no que se refere à malária. A foto vencedora é do coração de um mosquito, um tubo de 2 milímetros de comprimento, parcialmente visto no centro da foto. Para capturar a imagem, King e Hillyer fatiaram o abdome do Anopheles gambiae, o mais

importante transmissor da malária. O parasita se torna infectante para humanos conforme se desloca do intestino intermediário do mosquito para suas glândulas salivares. A equipe abriu as paredes externas do abdome, retirou os órgãos internos, mas deixou o coração intacto. Eles então tingiram o tecido utilizando corantes fluorescentes. O verde na foto revela a musculatura do coração. O azul mostra os núcleos das células. A imagem ajuda os cientistas a ver como os mosquitos bombeiam sangue e, por extensão, o parasita da malária através de seus corpos. – Anna Kuchment

CORTESIA DE JONAS G. KING

REVELAÇÃO DO SISTEMA CIRCULATÓRIO DE MOSQUITOS GANHA PRÊMIO

Musculatura do coração do Anopheles gambie.

BRASILEIRINHOS NO CÉU

ANDRÉ GARCIA (gráfico do Sistema Solar)

A

União Astronômica Internacional (UAI) reconheceu o nome “Brasileirinhos” para o asteroide 15453 (XD96), descoberto em 1998 pelo astrofísico venezuelano Orlando Naranjo. O nome foi sugerido em 2009 por estudantes da Escola Municipal Maria Pavanati Favaro, de Campinas, após conquistarem o prêmio “Super Solução” do 3o Grande Desafio, evento organizado pelo Museu Exploratório de Ciências (MC), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O registro do nome já pode ser encontrado na página da Nasa. Como consta na descrição do registro, Brasileirinhos é uma homenagem a todos os estudantes brasileiros, como forma de incentivá-los a atingir as metas necessárias em seus estudos. Não foi tão simples definir o nome do asteroide. Para chegar até o escolhido, os estudantes atenderam a uma série de exigências da UAI: o nome não podia ter mais de 16 caracteres; preferencialmente ser apenas uma palavra; não ser ofensivo; ser pronunciável em qualquer idioma; e não se parecer com outro nome já sugerido. AULA ABERTA

É a segunda vez que o Museu de Ciências da Unicamp alcança o espaço. Em 2007, com o desafio “Apagar o foco de incêndio na floresta” os alunos do Colégio Oswaldo Cruz, de Ourinhos, batizaram o asteroide 12367, do mesmo pesquisador, com o nome da cidade. Em 2009, “Você é capaz de salvar uma espécie em extinção?” deu à professora de ciências Rosa Maria Siviero e aos alunos Danklas Santos, Fernando Cezar Filho, David Macedo, Heloísa de Souza, Jônatas Santos e Michael da Silveira a oportunidade de repetir o feito, homenageando estudantes de todo o país. Para a diretora educacional do MC, Adriana Rossi, batizar um asteroide supera o imediatismo dos prêmios materiais e, no sentido etimológico da palavra, eleva o mérito das equipes para limites universais. “Receber isso como reconhecimento pelo sucesso indica o valor do esforço realizado. Serve de estímulo para trabalhar com ciência e qualquer outra tarefa que requeira dedicação e esforço coletivo”, avalia ela.

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NOTASNOTASNOTASNOTASNOTASNOTASNOTASN FÍSICA

Afinal, Qual É o Tamanho do Próton? NOVAS DESCOBERTAS DESAFIAM UMA TEORIA BÁSICA DA FÍSICA ATÉ ENTÃO ESTABELECIDA

F

ísicos estão coçando a cabeça desde julho, quando uma equipe de pesquisa anunciou que o próton, bloco de construção básico da matéria, é 4% menor que se pensava anteriormente. A descoberta, publicada na Nature, vai de encontro às predições teóricas baseadas na eletrodinâmica quântica (QED, na sigla em inglês), a teoria fundamental da força eletromagnética que passou pelos testes mais severos da física. Randolf Pohl, do Instituto Max Planck de Óptica Quântica, em Garching, Alemanha, e seus colaboradores, utilizaram um laser para sondar átomos exóticos de hidrogênio produzidos em laboratório nos quais partículas elementares conhecidas como múons orbitam os núcleos de um único próton, substituindo os usuais elétrons. A energia do laser fez com que os átomos exibissem uma fluorescência em comprimentos de onda característicos de raios X. Essa frequência mostrou uma série de efeitos sutis, incluindo o pouco conhecido fato de que uma partícula em órbita – seja um múon ou um elétron – frequentemente passa direto através do próton. Isso é possível porque os prótons são compostos de partículas elementares menores (geralmente três quarks), e a maior parte do espaço dentro de um próton está vazia. Ao calcularem os efeitos do raio do próton nessas trajetórias através do núcleo, os pesquisadores puderam estimar o raio do próton como 0,84184 femtômetro (1 femtômetro é 1 quadrilionésimo de 1

QUESTÃO DE ESCALA (Medidas em metros)

0,00001

Tamanho de uma célula humana

0,0000000001

Tamanho de um átomo de hidrogênio

0,00000000000000084184 Tamanho de um próton, de acordo com as mais recentes medições

metro). Esse número é menor que todas as medidas realizadas anteriormente, que variavam entre 0,8768 e 0,897 femtômetro. De qualquer forma, o próton é muito menor até mesmo que um átomo de hidrogênio. Se o átomo fosse do tamanho de um campo de futebol, o próton teria o tamanho de uma formiga. Ao lidar com dimensões tão pequenas a possibilidade de erro sempre existe. Entretanto, após 12 anos de esforços meticulosos, os membros da equipe estão seguros de que nenhuma sutileza imprevista arruinou suas medições. Teóricos também conferiram os cálculos envolvidos na interpretação do comportamento dos múons e na previsão do tamanho do próton, que são relativamente simples. Alguns físicos sugeriram que a interação entre múons e prótons pudesse se complicar devido a inesperados pares de partículas e suas antipartículas que podem aparecer brevemente no vácuo dentro e ao redor do núcleo. Os candidatos mais prováveis são pares de elétrons e antielétrons, que não devem aparecer normalmente na física de átomos, pelo menos não de acordo com a teoria padrão. “Isso pode ser a primeira indicação de que algo está errado com a nossa ideia” de CQD, observa Krzysztof Pachucki, teórico da Universidade de Varsóvia, na Polônia. A teoria pode precisar de algum ajuste, mas provavelmente não de uma revisão completa, acrescenta. Seja como for, físicos ainda terão de coçar muito a cabeça nos próximos anos. – Davide Castelvecchi

Falácia

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20

0 Conservapédia, a enciclopédia on-line criada pelo advogado Andrew Schlafly, sugere que a teoria da relatividade de Einstein faz parte de um complô liberal.

30

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50

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40 Cientistas do governo relatam que três quartos do petróleo que vazou no Golfo do México foram “eliminados”. Novas evidências de fontes independentes sugerem que resta muito mais que isso.

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70

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Fato

100 60 No ano passado a Toyota declarou que problemas eletrônicos não eram responsáveis pela aceleração repentina observada em seus carros. Relatórios preliminares do governo americano mostram que a empresa está certa.

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GETTY IMAGES (EINSTEIN); JEFF HALLER NEW YORK TIMES (VAZAMENTO DE ÓLEO); CORTESIA DA TOYOTA (CARRO)

ÍNDICE CIENTÍFICO


SNOTASNOTASNOTASNOTASNOTASNOTASNOTAS LUZ E SOM, OS GATILHOS DA DOR

ANTONIO CRUZ-ABR

A

TERRA ARRASADA: “Fertilização” do solo pelo fogo não é benéfica como se pensa.

MEIO AMBIENTE

Plantas contra Queimadas EMBRAPA DESENVOLVE TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS AO USO DO FOGO

E

ntre agosto e setembro deste ano algumas regiões do Brasil sofreram grande estiagem, marcada pela intensificação das queimadas e por espessa nuvem de fumaça que cobre as cidades. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), os satélites registraram, em um único dia de agosto, 12.629 focos de queimadas em todo o país, a maioria nas regiões Norte e Centro-Oeste. Além dos danos causados à Natureza, as queimadas prejudicam a saúde porque afetam a qualidade do ar e provocam doenças respiratórias. Encontrar alternativas ao uso do fogo na agropecuária tem sido um desafio para instituições de pesquisa como a Embrapa, que há vários anos atua no desenvolvimento de soluções tecnológicas para evitar o fogo nas atividades agrícolas e pecuárias. O fogo é uma das mais antigas práticas incorporadas aos sistemas de produção, por facilitar a limpeza de área e porque, acredita-se, a prática torna a terra mais fértil, incorporando nutrientes da vegetação ao solo. Apesar de essa crença ser verdadeira, parte dos nutrientes incorporados com a queimada como cálcio, potássio e magnésio – promotores do suposto fenômeno de fertilização do solo – se perde na atmosfera, fazendo com que o efeito dessa “fertilização” seja efêmero. Tecnologias simples e acessíveis, como o uso AULA ABERTA

de leguminosas, podem substituir o sistema de derruba e queima. A mucuna-preta está entre as alternativas utilizadas por agricultores para evitar o uso do fogo na agricultura, ajudando na recuperação de áreas degradadas. De fácil cultivo, a planta proporciona benefícios ao solo e pode melhorar a produtividade agrícola. Segundo o pesquisador da Embrapa Acre Falberni Costa, o cultivo de plantas de cobertura de solo, como as leguminosas, ajuda na proteção contra os processos erosivos causados pela ação da chuva, adiciona nitrogênio orgânico ao solo para cultivos sucessores ao das leguminosas, auxilia no combate às ervas daninhas, com reflexos na limpeza das áreas para cultivo, e incorpora matéria orgânica ao solo, servindo de adubo natural. Outra opção para uma agricultura sem fogo é a trituração da capoeira, que serve de cobertura e adubo natural para o solo. As tecnologias alternativas desenvolvidas pela Embrapa Acre contemplam também a pecuária. Entre elas está o amendoim forrageiro, leguminosa bastante utilizada em consórcio com gramíneas. Suas folhas e talos secos servem para adubar o solo, aumentando a fertilidade e a capacidade produtiva, resultando em melhoria na qualidade das pastagens e aumento da longevidade dos capins e evitando a queima para renovação de pastagens. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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exposição prolongada ao barulho e à luz, em especial a do Sol, desencadeia crises de enxaqueca em 30% a 40% dos casos, segundo estudo coordenado pelo neurologista Elcio Juliato Piovesan, da Sociedade Brasileira de Cefaleia. Segundo ele, isso ocorre porque os pacientes com enxaqueca apresentam um estado de sensibilidade maior. “A luz é um estímulo externo que acentua essa hipersensibilidade, e a região do cérebro mais sensível a estas alterações é o lobo occipital – responsável por processar os estímulos visuais”, explica. Segundo o neurologista, um paciente com enxaqueca que apresente problemas visuais pode ter maior dificuldade de controlar a dor. “Quando corrigimos erros visuais, diminui a intensidade da enxaqueca”, explica ele. Outra causa de agravamento da dor é a fonofobia – sensibilidade ou aversão ao barulho. Para 96,6% de pacientes cegos, o ruído agrava a crise de enxaqueca. No entanto, pacientes não completamente cegos indicam a fotofobia como causa de agravamento da dor. Em pessoas com deficiência visual, a região do córtex occipital perde essa função, mas não fica inativa. Essa área passa a colaborar com a recepção de estímulos táteis e auditivos, por exemplo. Para Piovesan, o estudo demonstra que o cérebro é um sistema dinâmico, e as várias formas de sensibilidade interagem para que o paciente consiga manter o máximo de contato com o meio externo.


ENTREVISTA

Para onde vão as nossas

matas?

Por Ísis Nóbile Diniz

s florestas cobrem 31% da área terrestre, garantem a sobrevivência de 1,6 bilhão de pessoas e abrigam cerca de 300 milhões de habitantes. Para destacar essa importância, promover a preservação ambiental e, também, incentivar a reflexão sobre a relação do homem com as matas, a Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu 2011o Ano Internacional das Florestas sob o slogan: “Proteja as florestas, elas protegem você”. O Brasil, segundo maior país com área total coberta por matas – perde para a Rússia e suas florestas boreais –, tem pouco a comemorar. A Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos em biodiversidade, aparece na lista dos dez que mais correm risco de desaparecer. Mundialmente, o Brasil é conhecido pela Floresta Amazônica que habita o imaginário das pessoas inspirando, por exemplo, filmes épicos como Avatar. Não é por menos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o bioma Amazônia ocupa quase metade do território nacional – é a maior floresta tropical do planeta. E ela vai além das fronteiras, se estende pelos vizinhos Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. Sozinha, a Amazônia responde por 26% das florestas tropicais remanescentes do mundo. Apesar dessa grandeza, é graças a todos os biomas brasileiros que o país abriga mais de 20% do número total de espécies endêmicas do planeta e um deles em especial. Segundo a organização não governamental (ONG) SOS Mata Atlântica, a floresta que cede o nome à organização é o bioma mais rico em biodiversidade do planeta. Estima-se, porém, que restou 7% a 21% da vegetação original da Mata Atlântica, valores cuja variação se deve ao tipo de levantamento considerado. Esse é o resultado de décadas de desmatamento. No bioma, vive mais de 60% da população brasileira. São cerca de 110 milhões de pessoas que dependem, direta e indiretamente, da conservação dos remanescentes

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AULA ABERTA

© JOÃO PRUDENTE/PULSAR IMAGENS

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No Ano Internacional das Florestas, o diretor do Programa Mata Atlântica mostra o pouco que temos para comemorar


ARQUIVO CI-BRASIL

das florestas para a garantia do abastecimento de água, a regulação do clima, a fertilidade do solo. Luiz Paulo Pinto, diretor do Programa Mata Atlântica da ONG Conservação Internacional, conta qual a situação atual do bioma e acredita na sua recuperação. AULA ABERTA Qual é a situação atual da Mata Atlântica? O desmatamento se estabilizou? LUIZ PAULO Análises recentes revelam a gravidade da situação: mais de 80% dos fragmentos florestais remanescentes possuem menos de 50 hectares. Manchas de floresta desse tamanho podem ainda reter parte da biodiversidade, mas a grande maioria está sujeita à pressão intensa como incêndios, caça, pisoteio de gado, invasão de espécies exóticas, retirada de produtos madeireiros e não madeireiros, além de processos naturais como maior insolação, ventos, e outros fatores que acelaram mudanças no microclima característico daquela área e que podem alterar os rumos da dinâmica florestal. Em síntese, estudos mostram que o nível de fragmentação dos ecossistemas naturais, agindo de forma combinada com outros fatores de degradação, está provocando modificações profundas na biodiversidade, levando ao declínio local irreversível de espécies da flora e da fauna, além da degradação de solos, da água e de outros elementos da paisagem, que podem afetar os serviços ambientais proporcionados pela floresta. Se quisermos proteger a biodiversidade e manter os serviços ambientais dessas florestas, temos de criar mais espaços protegidos e recuperar parte da floresta e de outros ambientes naturais. A grande preocupação é que menos de 2% do território da Mata Atlântica está coberto por unidades de conservação de proteção integral, ou seja, parques, reservas biológicas e estações ecológicas. AULA ABERTA

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LUIZ LU IZ PPAULO AULO AU LO PPINTO INTO IN TO ad adve adverte: dvert rtee: menos de 2% do território da Mata Atlântica (no alto) está protegido


O QUE SÃO FLORESTAS? De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO): “Áreas medindo mais de 0,5 ha com árvores maiores que 5 m de altura e cobertura de copa superior a 10%, ou árvores capazes de alcançar este parâmetro in situ. Isto não inclui terra predominantemente sob uso agrícola ou urbano”.

AULA ABERTA Há anos, organizações não governamentais e empresas trabalham com conscientização e reflorestamento da Mata Atlântica. Segundo alguns dados, certas áreas já foram recuperadas. Por que essa recuperação é lenta? LUIZ PAULO A ciência da restauração florestal da Mata Atlântica e do Brasil teve grande avanço. Existem metodologias e processos testados e reconhecidos envolvendo gestão, planejamento da restauração, tecnologias de intervenção e técnicas de monitoramento. A restauração não é algo simples e as taxas de sucesso no longo prazo ainda são muito baixas, muitas vezes por falhas na condução de algum desses componentes. As ações e intervenções necessárias esbarram também nas diferenças regionais em termos de capacidade técnica instalada, em dificuldades impostas pelo estado ainda fragmentado do conhecimento sobre a sua biodiversidade, nas diferenças em um ambiente de forte pressão antrópica, marcado pela complexidade nas relações sociais e econômicas, e nas dificuldades de engajamento de proprietários rurais resistentes a intervenções ambientais. Isso sem contar o custo elevado (R$10.000,00/hectare em média) da restauração. São poucos incentivos econômicos e investimentos, públicos e privados, capazes de cobrir projetos e territórios extensos. 12

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AULA ABERTA Segundo algumas instituições, é possível recuperar as áreas degradadas até que tenhamos 21% da cobertura original da Mata Atlântica. Acredita ser verdade? Como pode ser viável? LUIZ PAULO Sim. O histórico de projetos e de ações de restauração florestal da Mata Atlântica mostra que a experiência no tema, combinada com a capacidade humana, institucional e política existentes podem contribuir para uma evolução rápida das iniciativas de restauração. Um importante passo foi dado nessa direção em 2009. Uma aliança multi-institucional chamada Pacto pela Restauração da Mata Atlântica foi estabelecida com o objetivo de restaurar 15 milhões de hectares até 2050. O Pacto conta com mais de 165 membros de diversos setores da sociedade (organizações ambientais nacionais e internacionais, instituições governamentais, empresas, centros de pesquisa, comunidades, etc.) e vem trabalhando para criar integração e colaboração entre seus membros a fim de estabelecer uma rede institucional capacitada para ações de restauração florestal no bioma. As primeiras análises do Pacto resultaram no Mapa de Áreas Potenciais para Restauração, com a indicação de 17 milhões de hectares de áreas potenciais para a restauração florestal da Mata Atlântica. Acreditamos, também, que a AULA ABERTA

© LUOMAN/ISTOCKPHOTO

O DESMATAMENTO como este na Amazônia compromete o fluxo de água no solo, nos rios e na atmosfera


restauração pode gerar benefícios econômicos, por meio do pagamento aos produtores pelos serviços ambientais resultantes da restauração, como detentores de biodiversidade, de carbono, como produtores de água, além da possibilidade de uso dessas áreas restauradas para diversificação da produção, por meio da disponibilização de produtos madeireiros e não madeireiros.

REPRODUÇÃO

AULA ABERTA Qual a importância em manter as florestas em pé? LUIZ PAULO As florestas sempre estiveram associadas ao modo de vida das sociedades, influenciando a sobrevivência de famílias. A ciência cada vez mais decifra a importância da cobertura florestal na manutenção do fluxo de água no solo, nos rios e na atmosfera, assim como nas emissões globais de dióxido de carbono. As florestas são importantíssimas pela manutenção de cerca de 90% da biodiversidade terrestre. Têm sido amplamente reconhecidos e discutidos nos últimos anos os “serviços ecossistêmicos” proporcionados pelas florestas (também chamados “serviços ambientais” em determinadas ocasiões para efeitos legais e de políticas públicas). Alguns estados como o Espírito Santo e o Rio de Janeiro já possuem programas de pagamento por serviços ambientais, como reconhecimento dos serviços de uma floresta ou outro tipo de ambiente natural. O Pagamento por Serviços Ambientais é um sistema em que os beneficiários fazem pagamentos a proprietários rurais ou outros detentores dos meios de provisão de um determinado serviço, para que estes adotem práticas que garantam a conservação e/ou restauração do ambiente objeto daquele contrato – por exemplo, um manancial em uma floresta conservada ou em recuperação. Na Mata Atlântica, existem mais de 40 iniciativas planejando e/ou adotando esse conceito. Só no estado do Espírito Santo já são mais de 180 proprietários rurais beneficiados e recebendo recursos pelo programa Produtores de Água. AULA ABERTA O que falta para o Brasil perceber sua riqueza natural e preservá-la? LUIZ PAULO Mesmo com uma economia fortemente dependente de recursos naturais, tem faltado vontade política ao governo brasileiro para se reinventar em seu modelo AULA ABERTA

de desenvolvimento. Pesquisas de opinião coordenadas pelo MMA sobre o que a sociedade pensa a respeito da proteção ambiental mostram o aumento gradual de interesse e reconhecimento da população sobre o tema. Entretanto, ainda existe um abismo entre a intenção e a prática, e há dificuldades para a maior parte da população entender a relação direta entre a floresta e suas necessidades diárias. Sendo assim, somente ações integradas e coletivas e uma articulação e mobilização geral da sociedade poderão garantir o futuro dessas áreas. É preciso rever prioridades, fortalecer o

PARTICIPAÇÃO BRASILEIRA No total, 60,7% do território do Brasil é coberto por florestas, segundo o Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Por isso, o governo brasileiro anunciou que serão realizados vários eventos objetivando sensibilizar a sociedade sobre a importância da preservação das florestas. Uma das ações é o lançamento do site tupiniquim do Ano Internacional das Florestas (www.anodafloresta.com.br). No site oficial do evento (www.un.org/ forests/), consta que o país sediará, pela primeira vez, a Conferência internacional IUFRO Tree Biotechnology 2011. Segundo a Embrapa, trata-se do evento mais importante na área de biotecnologia florestal promovido há mais de 20 anos pela União Internacional de Organizações de Pesquisa Florestal (IUFRO). Este ano, entre os dias 26 de junho e 1o de julho, a conferência terá como tema ”De genomas à integração e geração de resultados” e deverá contar com a participação de cerca de 500 pessoas, sendo 300 brasileiros e 200 estrangeiros.

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Alguns estados já possuem programas de pagamento em reconhecimento aos serviços de uma floresta

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A organização não governamental Conservação Internacional (CI) elaborou uma lista (abaixo) com as dez florestas do mundo que passaram pela maior perda do seu hábitat natural. Eles encabeçam um rol de 35 Matas chamadas de “hot spots”, os locais mais ricos em biodiversidade e mais ameaçados de extinsão. Veja quais são as matas que correm mais risco de desaparecer. Todas as florestas citadas perderam cerca de 90% de sua vegetação original com um agravante: cada uma abriga ao menos 1.500 espécies de plantas nativas. De acordo com a CI, a Mata Atlântica, por exemplo, possui 8 mil plantas, 323 anfíbios e 48 mamíferos endêmicos. O fim dessas florestas significa a perda dessa biodiversidade para sempre. BACIA DO MEDITERRÂNEO Sul da Europa, norte da África, oeste da Ásia (a mais ameaçada, com 5% da sua cobertura original preservada) INDO-BIRMÂNIA (nos países asiáticos Mianmar, Camboja, Laos, Tailândia e Vietnã, com 5% da vegetação natural) NOVA ZELÂNDIA (também 5%); Sunda (Indonésia, Malásia e Brunei, com 7%) FILIPINAS (7%) MATA ATLÂNTICA (Brasil, com 8%) MONTANHAS DO CENTRO-SUL DA CHINA (8%) PROVÍNCIA FLORÍSTICA DA CALIFÓRNIA, NOS ESTADOS UNIDOS (10%) FLORESTAS DE AFROMONTANE (Moçambique, Tanzânia, Quênia e Somália, com 10%) MADAGASCAR E ILHAS DO OCEANO ÍNDICO (Madagascar, Seychelles, Ilhas Maurício, União das Comores e Reunião, 10%)

sistema de governança e gestão dos territórios, ampliar a proteção e restauração florestal em áreas prioritárias, investir em ciência, tecnologia e inovação, e ampliar substancialmente os investimentos financeiros nessa área para garantir, no longo prazo, a conservação da biodiversidade e a manutenção dos serviços ambientais das florestas. AULA ABERTA Aliás, o “novo” Código Florestal não vai na contramão da “moda” atual de preservar o meio ambiente? LUIZ PAULO É bom esclarecer que não há novo Código Florestal, o que há é uma proposta de reforma liderada pelo relatório do deputado Aldo Rebelo, fortemente apoiado pela CNA e pelos ruralistas. A proposta do deputado, se aprovada na forma original, será desastrosa para o meio ambiente, gerando riscos de apagão energético inclusive, uma vez que pela supressão de áreas de proteção permanente (áreas definidas para proteção de cursos de água) condena a produção e a manutenção hídrica do Brasil. O afã por mais áreas de cultivo, sem análise científica de seus riscos, poderá acarretar grande perda

de vidas nas áreas de forte risco ambiental, onde vive a maioria das populações pobres. É incompreensível que em tempos de mudanças climáticas se queira relaxar na conservação de áreas florestais e serviços ecossistêmicos. Isso contradiz os alarmes da ciência e os compromissos brasileiros perante as Convenções do Clima e da Biodiversidade, ratificados formalmente pelo Brasil, além de nos colocar em um cenário de possíveis grandes investimentos necessários para mitigar suas consequências. Do ponto de vista econômico, os ganhos de área certamente não compensarão as vantagens relativas de ter o agronegócio brasileiro como o mais verde do mundo. O Código Florestal deveria ser carregado como “plus” nos produtos brasileiros. Isso não quer dizer que o Código Florestal não necessite de ajustes. O ideal seria um código que fosse capaz de determinar a cobertura florestal de cada ecossistema, dentro de cada bioma, de forma a garantir o pleno funcionamento dos serviços ambientais e conservação da biodiversidade. O Código Florestal deveria estar em conformidade com o cenário de paisagem que queremos para daqui a 50, 100 anos, como garantia ao desenvolvimento sustentável do Brasil.

MESMO ANIMAIS não ameaçados de extinção, como o macacode-cheiro (Saimiri sciureus), podem desaparecer por causa do desmatamento

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© AMMIT/SHUTTERSTOCK

AS DEZ FLORESTAS MAIS AMEAÇADAS DO MUNDO

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E A AMAZÔNIA? E O CERRADO?

A redução da área de pastagens pode ser compensada pela intensificação da produção

Magno Castelo Branco, presidente da ONG Iniciativa Verde e especialista na área florestal, alerta para os riscos que os dois biomas – principalmente o Cerrado –, que cobrem quase 75% do país, correm: “Os motores da degradação da Amazônia atualmente são os mesmos de 10 e 20 anos atrás: desmatamento para obtenção de madeira e a abertura de novas áreas produtivas, principalmente para a criação de gado e plantio de soja. Porém, o Cerrado está em uma posição realmente delicada e isso é um sinal de que devemos combater o desmatamento no Brasil de forma ampla e irrestrita. Enquanto as taxas de desmatamento na Amazônia caíram principalmente por meio de ações do governo, estima-se que houve uma migração desses vetores de desmatamento para o Cerrado, que é menos “protegido”. Como exemplo, a Política Nacional de Mudanças Climáticas estipula meta de 80% de redução do desmatamento na Amazônia e 40% no Cerrado, um sinal óbvio de que esse bioma não tem recebido a importância que merece. Mais da metade desse bioma foi destruído, e boa parte do que restou se encontra bastante fragmentado, o que contribui ainda mais para o seu desaparecimento. É preciso que o Cerrado, e também a Caatinga, recebam a mesma atenção na nossa agenda ambiental que a Mata Atlântica e a Amazônia têm recebido. Se isso não for feito com urgência, em poucas décadas teremos a confirmação de um triste cenário no que diz respeito a esses biomas”.

AULA ABERTA Algumas pesquisas afirmam que é possível produzir mais alimentos sem desmatar mais. Acredita nisso? LUIZ PAULO Sim. As informações geradas por pesquisas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo mostram que a agricultura pode se expandir territorialmente ocupando as terras de elevada aptidão agrícola hoje utilizadas com pecuária extensiva. A agricultura ocupa por volta de 67 milhões de hectares no país, já apresentando produtividades elevadas. A maior parte das terras de elevada aptidão para agricultura já foram abertas. O estoque de terras de elevada e média aptidão para agricultura já abertas e que estão sob pastagens é de 29 milhões de hectares e 32 milhões de hectares respectivamente, totalizando 61 milhões de hectares. Esse estoque pode quase dobrar o tamanho da área agrícola sem que seja necessário derrubar um pé de árvore. A diminuição da área de pecuária brasileira pode ser compensada pela intensificação da produção. AULA ABERTA Enfim, é possível continuar desenvolvendo a economia do país sem degradar mais ainda o meio ambiente? Como? LUIZ PAULO Sim. De acordo com o relatóAULA ABERTA

rio intitulado “Rumo a uma Economia Verde: Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável e a Erradicação da Pobreza”, lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) em fevereiro deste ano, investir 2% do PIB mundial em dez setores estratégicos pode viabilizar a transição rumo a uma “economia verde” de baixo carbono. Apoiada por políticas nacionais e internacionais inovadoras, a soma, que atualmente corresponde a cerca de 1,3 trilhão de dólares por ano, fomentaria o crescimento da economia global a níveis provavelmente superiores aos dos atuais modelos econômicos. O relatório mostra a “economia verde” como um catalisador-chave para o crescimento e erradicação da pobreza nas economias em desenvolvimento, nas quais, em alguns casos, cerca de 90% do PIB está ligado à natureza ou a recursos naturais tais como a água potável. A Mata Atlântica possui, aproximadamente, 70% do PIB nacional, e o Brasil é uma das dez maiores economias do planeta. O país tem capacidade e pode conciliar desenvolvimento e conservação da biodiversidade, levando bemestar para milhões de brasileiros. Está na hora de escolhermos esse novo caminho! Ísis Nóbile Diniz é jornalista especializada em ciência e meio ambiente. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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FÍSICA

LIXO

Por William H. Hannum, Gerald E. Marsh e George S. Stanford

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JANA BRENNING

Reatores de nêutrons rápidos extrairiam muito mais energia de combustível reaproveitado em usinas, minimizariam os riscos da proliferação de armas e reduziriam o tempo necessário de isolamento dos dejetos AULA ABERTA


NUCLEAR BEM RECICLADO

A

despeito da duradoura preocupação pública com a segurança da energia nuclear, mais e mais pessoas estão percebendo que pode ser o modo mais amigável ao ambiente de gerar grandes quantidades de eletricidade. Várias nações, incluindo Brasil, China, Egito, Finlândia, Índia, Japão, Rússia, Coreia do Sul, Vietnã e talvez Paquistão, estão construindo ou projetando usinas nucleares. Nos Estados Unidos, porém, a última instalação do tipo foi construída há cerca de 30. Se desenvolvida de forma sensata, a energia nuclear seria verdadeiramente sustentável e essencialmente inexaurível, operando sem contribuir para a mudança climática. Em especial, uma forma relativamente nova de tecnologia nuclear poderia superar os principais problemas dos métodos atuais de geração de eletricidade por fissão de átomos – as preocupações sobre acidentes de reatores, o potencial de desvio de combustível nuclear para armas de destruição em massa e o esgotamento das reservas globais de urânio economicamente disponível. Esse ciclo de combustível nuclear combinaria duas inovações: processamento pirometalúrgico (método de alta temperatura para obter combustível a partir da reciclagem do lixo do reator) e reatores modernos de nêutrons rápidos, capazes de queimar esse combustível. Com essa abordagem, a radioatividade do lixo gerada cairia para níveis seguros em poucas centenas de anos, assim eliminando a necessidade de segregar o lixo por dezenas de milhares de anos. Para que nêutrons provoquem fissão nuclear de forma eficiente, precisam viajar muito devagar ou muito rápido. A maioria das usinas contém o que são chamados de reatores térmicos, alimentados por nêutrons de velocidade (ou energia) relativamente baixa, ricocheteando dentro de seus núcleos. Embora reatores térmicos gerem calor e, portanto, eletricidade com eficiência, eles não minimizam a produção de lixo radioativo. Todos os reatores produzem energia ao quebrar os núcleos de átomos de metais pesados (com alto peso atômico), principalmente urânio e derivados. Na Natureza, o urânio aparece como uma mistura de dois isótopos, o facilmente fissionável urânio 235 (que é chamado de "físsil") e o muito mais estável urânio 238. A queima de urânio em um reator atômico é iniciada e sustentada por nêutrons. Quando o núcleo de um átomo físsil é atingido por um nêutron, especialmente um de movimento lento, ele provavelmente vai se queAULA ABERTA

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CONCEITO

ENERGIA NUCLEAR Energia que mantém os prótons e nêutrons juntos no núcleo. Pode ser liberada por uma reação nuclear de fissão ou por decaimento radioativo. CONCEITO

FISSÃO Divisão de um núcleo pesado em duas partes quase iguais, acompanhada da liberação de energia além de um ou mais nêutrons. CONCEITO

REATOR NUCLEAR Equipamento no qual a reação de fissão em cadeia pode ser iniciada, mantida e controlada. Reatores nucleares são usados na indústria de energia para produzir vapor, gerando eletricidade em usinas termonucleares. CONCEITO

RADIOATIVIDADE Fenômeno natural de decaimento espontâneo ou transmutação de um núcleo atômico instável até atingir a estabilidade.


CONCEITO

REAÇÃO EM CADEIA Reação que estimula a sua própria repetição. Numa reação de fissão em cadeia, um núcleo de um material físsil absorve um nêutron e cinde-se, liberando nêutrons adicionais que, por sua vez, são absorvidos por outros núcleos físseis, repetindo o processo.

brar (fissão), liberando quantidades substanciais de energia e vários outros nêutrons. Alguns desses nêutrons emitidos então acertam outros átomos físseis próximos, fazendo com que eles se quebrem, assim propagando uma reação nuclear em cadeia. O calor resultante é guiado para fora do reator, onde transforma água em vapor, que é usado para girar uma turbina que alimenta um gerador elétrico. O urânio 238 não é físsil; ele é chamado de "fissionável" porque algumas vezes ele se quebra ao ser atingido por um nêutron rápido. Ele também é chamado de "fértil", porque quando um átomo de urânio 238 absorve um nêutron sem se quebrar, ele se converte em plutônio 239, que, como o urânio 235, é físsil e pode sustentar uma reação em cadeia. Após cerca de três anos de vida útil, quando o combustível usado de um reator é removido em razão do esgotamento de urânio 235, o plutônio já contribui com mais da metade da energia gerada pela usina. Em um reator térmico, os nêutrons, que nascem rápidos, são desacelerados nas interações com átomos de baixo peso atômico, como o hidrogênio da água que circula pelo núcleo do reator. Todos os cerca de 440 reatores comerciais em operação, exceto dois, são térmicos. A maioria deles – incluindo os 103 reatores de usinas americanas – emprega a água tanto para desacelerar os nêutrons como para transportar o calor criado pela fissão para o gerador elétrico associado. Esses sistemas térmicos são em sua maioria o que os engenheiros chamam de reatores de água leve. Em qualquer usina nuclear, átomos de metais pesados são consumidos conforme o combustível "queima". Embora as usinas comecem com combustível que teve seu conteúdo de urânio 235 enriquecido, a maior parte desse urânio facilmente fissionável se perde após três anos. Quando os técnicos removem o combustível exaurido, apenas um vigésimo dos átomos potencialmente fissionáveis nele (urânio 235, plutônio e urânio 238) foi usado, de forma que o chamado combustível gasto ainda tem cerca de 95% da energia original. Além disso, apenas um décimo do minério de urânio extraído é convertido em combustível no processo de enriquecimento (durante o qual a concentração de urânio 235 aumenta), de forma que menos de um centésimo do conteúdo de energia total do minério é usado para gerar energia nas usinas atuais. Esse fato significa que o combustível usado dos reatores térmicos atuais ainda tem potencial para gerar muita energia. Como o suprimento mundial de urânio é finito e o crescimento continuado do núme18

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ro de reatores térmicos poderia exaurir as reservas de urânio de baixo custo disponíveis em umas poucas décadas, faz pouco sentido descartar esse combustível "gasto" ou as "sobras" deixadas pelo processo de enriquecimento. O combustível gasto consiste em três classes de materiais. Os produtos da fissão, que compõem cerca de 5% do combustível usado, são o lixo real – as cinzas do “fogo” da fissão, em uma analogia com uma combustão comum. Eles se resumem a uma coleção de elementos mais leves criados quando os átomos pesados se quebram. A mistura é altamente radioativa nos primeiros anos. Após uma década, a atividade é dominada por dois isótopos, césio 137 e estrôncio 90. Ambos são solúveis em água, então devem ser armazenados com muito cuidado. Em cerca de três séculos, a radioatividade desses isótopos declina por um fator de mil, a ponto de eles se tornarem totalmente inofensivos. O urânio compõe o grosso do combustível nuclear gasto (cerca de 94%); esse é o urânio não fissionado que perdeu a maioria do urânio 235 e parece urânio natural (que é apenas 0,71% urânio 235 físsil). Esse componente é apenas levemente radioativo e, se separado dos produtos da fissão e do resto do material no combustível gasto, poderia ser armazenado para uso futuro em instalações que não requerem alta segurança. O que equilibra o material – a parte realmente preocupante – é o componente transurânico, elementos mais pesados que o urânio. Essa parte do combustível é principalmente composta de uma mistura de isótopos de plutônio, com uma presença significativa de amerício. Embora os elementos transurânicos constituam apenas 1% do combustível gasto, eles são a principal fonte do problema do lixo nuclear hoje. As meias-vidas (o período em que a radioatividade cai pela metade) desses átomos vão até dezenas de milhares de anos, característica que levou o governo americano a exigir que o depósito de lixo nuclear de alto nível planejado para a montanha Yucca, em Nevada, isole combustível gasto por mais de 10 mil anos.

ESTRATÉGIA ANTIQUADA Os primeiros engenheiros nucleares esperavam que o plutônio no combustível gasto dos reatores térmicos fosse removido e então usado em reatores de nêutrons rápidos do tipo FBR (“reatores criadores rápidos”, na sigla em inglês, porque foram projetados para produzir mais plutônio do que consomem). Os pioneiros da energia nuclear também imaginaram AULA ABERTA


NOVO MODELO DE USINA UM CICLO DE ENERGIA nuclear mais seguro e sustentável para um futuro mais verde poderia ser baseado no reator avançado de metal líquido (ALMR, sigla em inglês), projeto desenvolvido nos anos 1980 por pesquisadores do Laboratório Nacional de Argonne (EUA). Como todas as usinas de energia atômica, um sistema baseado no ALMR dependeria de reações em cadeia no núcleo para produzir calor necessário e gerar eletricidade. Usinas nucleares

comerciais atuais usam reatores térmicos, que dependem de nêutrons lentos para propagar as reações em cadeia em combustível de urânio e plutônio. Um sistema baseado no ALMR, em comparação, usaria nêutrons rápidos (mais energéticos), que podem quebrar também átomos transurânicos pesados e estáveis. O novo reator queimaria combustível reciclado, proveniente de material gasto nos

reatores térmicos. Isso significa um melhor aproveitamento do combustível inicial. Na maioria dos projetos de reatores térmicos, a água flui até o núcleo para desacelerar nêutrons e mantê-lo frio. O ALMR, no entanto, emprega uma piscina de sódio líquido circulante como resfriador (1). O sódio não desacelera muito os nêutrons rápidos e conduz calor muito bem, o que melhora a eficiência das usinas.

O sistema de nêutrons rápidos funcionaria assim: a fusão no núcleo do reator aqueceria o sódio que circula no resfriador. Parte do sódio quente fluiria para um ciclo intermediário de troca de calor (2). Lá ele transferiria sua energia térmica para sódio líquido não radioativo que corre por tubulações adjacentes, mas separadas (3), de um ciclo de sódio secundário. O sódio não radioativo (4) finalmente levaria o calor à caldeira do gerador a vapor (não mostrado na ilustração).

Ar quente Ar frio Topo do silo do reator

Fluxo de sódio quente para o gerador

Sistema de refrigeração de ar e módulo de exaustão

Abrigo do reator

o el d Nív

Fundações do reator

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Trocador de calor intermediário

Ciclo de sódio secundário

SEGURANÇA NO REATOR

Bomba de sódio

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Bomba de sódio Sódio frio bombeado para o núcleo quente

1

Sódio aquecido bombeado para o trocador de calor

Piscina de sódio líquido

Amortecedores (isolante sísmico)

DON FOLEY

AULA ABERTA

Sódio não radioativo circulando entre o trocador de calor e o gerador a vapor

Vaso do reator

Base do silo do reator

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Durante a operação, bombas poderosas forçariam o resfriador de sódio pelo núcleo. Se as bombas falhassem, a gravidade faria circular o resfriador. ■ Se as bombas do resfriador falhassem ou parassem, aparelhos de segurança especiais também permitiriam que mais nêutrons (do que na operação normal) escapassem do reator, baixando sua temperatura. ■ Em uma emergência, seis cilindros absorventes de nêutrons desceriam até o núcleo do reator para desligálo imediatamente. ■ Caso as reações em cadeia continuassem, milhares de bolas de carboneto de boro seriam lançadas no núcleo, garantindo o desligamento. ■

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Núcleo quente do reator (barras de combustível de urânio)

o chã

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uma economia que envolvesse o comércio livre de plutônio, mas esse elemento pode ser usado para fazer bombas. Conforme a tecnologia nuclear se espalhou além das principais superpotências, o potencial bélico levou a preocupações sobre a proliferação descontrolada de armas. O Tratado de Não Proliferação Nuclear respondeu parcialmente a esse problema em 1968. Países que desejassem os benefícios da tecnologia de energia nuclear poderiam assinar o tratado e prometer não adquirir armas atômicas, enquanto as nações já armadas concordariam em ajudar as demais com as aplicações pacíficas. Embora um grupo de inspetores internacionais desde então tenha monitorado a adesão dos membros ao tratado, a eficácia desse acordo internacional tem sido fragilizada pelo fato de que não existem meios de impor a obediência às regras. Armas nucleares exigem plutônio quimicamente puro e com grande quantidade do isótopo 239. O plutônio das usinas nucleares comerciais em geral contém quantidades substanciais de outros isótopos, tornando difícil usá-lo em bombas, e a purificação é muito cara. A despeito disso, o uso de lixo de reatores

em armas não é inconcebível. Por isso o ex-presidente Jimmy Carter baniu o reprocessamento civil de combustível nuclear nos Estados Unidos em 1977. Para ele, se o plutônio não fosse recuperado do combustível gasto, não poderia ser usado em bombas. Carter também quis que os EUA estabelecessem um exemplo para o resto do mundo. Reino Unido, França, Rússia e Japão, no entanto, não seguiram os americanos, e o reprocessamento de plutônio para uso em usinas continua a ocorrer em várias nações.

ABORDAGEM ALTERNATIVA Quando o banimento foi implementado, o “reprocessamento” era sinônimo de Purex (abreviação para extração de plutônio de urânio), técnica desenvolvida para responder à necessidade de obter plutônio puro para bombas. A tecnologia de reatores de nêutrons rápidos, no entanto, permite uma estratégia de reciclagem alternativa que não envolve plutônio puro em nenhuma etapa. Reatores rápidos podem, portanto, minimizar o risco de que o combustível deixado pela produção de energia seja usado em armas, mas apresentam uma capacidade incomum de extrair a má-

RECICLAGEM INTELIGENTE O SEGREDO DA RECICLAGEM pirometalúrgica do combustível nuclear é o procedimento de eletrorrefinamento. Esse processo livra o combustível usado do verdadeiro lixo: produtos da fissão do urânio, do plutônio e de outros actinídeos (elementos radioativos muito pesados com longas meias-vidas). O plutônio é mantido misturado com os actinídeos, de forma que não possa ser usado diretamente em armas nucleares. O combustível gasto dos reatores térmicos atuais (óxidos de plutônio e urânio) primeiro passaria por um processo de oxirredução para convertê-lo em metal. Já nos reatores rápidos, que queimam urânio Combustível óxido dos reatores térmicos

Maior parte dos produtos da fissão

metálico, o combustível gasto iria direto para o eletrorrefinador. O eletrorrefinamento se assemelha à galvanoplastia: combustível usado ligado a um ânodo ficaria em suspensão num banho químico; uma corrente elétrica então revestiria um catodo com uma camada de urânio e outros elementos actinídeos. Os elementos extraídos seriam enviados ao processador do catodo para remoção de sais residuais e cádmio remascentes do refinamento. Por fim, urânio e actinídeos restantes seriam forjados na forma de bastões de combustível fresco. Os sais e o cádmio seriam reciclados.

Catodo

Moldes da forja

Elementos aquecidos Urânio e actinídeos

Ânodo Metal

Forno Combustível triturado Sais e cádmio

Metal

Novos cilindros de combustível metálico UNIDADE DE OXIRREDUÇÃO

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ELETRORREFINARIA

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PROCESSADOR DE CATODO

SISTEMA DE FORJA POR INJEÇÃO

AULA ABERTA

DON FOLEY

Combustível metálico triturado de reatores rápidos COMBUSTÍVEL GASTO


LABORATÓRIO NACIONAL DE ARGONNE

xima quantidade de energia do combustível nuclear. Essa técnica pode extrair mais energia do combustível nuclear do que os reatores térmicos, pois nêutrons de movimento rápido (mais energéticos) causam fissões atômicas com mais eficiência do que os nêutrons térmicos lentos. Essa eficiência deriva de dois fenômenos. Em velocidades menores, muito mais nêutrons são absorvidos em reações que não causam fissão e são perdidos. Além disso, a energia maior de um nêutron rápido torna muito mais provável que um átomo pesado fértil, como urânio 238, fissione quando atingido. Por isso, não apenas o urânio 235 e o plutônio 239 provavelmente fissionarão em um reator rápido, mas uma fração apreciável dos átomos transurânicos mais pesados também passará pelo mesmo processo. A água não pode ser usada em um reator rápido para transportar calor do núcleo – deixaria os nêutrons rápidos mais lentos. Portanto, os engenheiros costumam usar um metal líquido, como sódio, como resfriador e transportador de calor. Metal líquido tem uma grande vantagem sobre água. Sistemas resfriados por água operam em pressão muito alta, de forma que um pequeno vazamento pode rapidamente se tornar uma grande liberação de vapor e talvez uma séria quebra de tubulação, com rápida perda de resfriamento do reator. Sistemas de metal líquido, no entanto, operam em pressão atmosférica normal, por isso apresentam menos risco de grandes vazamentos. O sódio, porém, pega fogo se exposto à água e precisa ser manuseado com cuidado. Mas muitas usinas já adquiriram bastante experiência com o manuseio da substância ao longo dos anos, e métodos de controle estão bem desenvolvidos. Pesquisadores do Laboratório Nacional de Argonne começaram a desenvolver a tecnologia de reatores rápidos nos anos 1950. Trinta anos depois a pesquisa foi redirecionada para um reator rápido com combustível metálico resfriado por um metal líquido (ALMR, reator avançado de metal líquido na sigla em inglês), que deveria ser integrado a uma unidade de processamento pirometalúrgica de alta temperatura para reciclar e reabastecer o combustível. Engenheiros também investigaram vários outros conceitos de reatores rápidos, alguns queimando urânio ou plutônio metálicos como combustível, outros usando combustíveis oxidados. Resfriadores de chumbo líquido e uma solução de chumbo e bismuto já foram usados. A estratégia do ALMR é mais adequada às necessidades atuais porque seu combustível metálico permite que seja facilmente adaptável à reciclagem metalúrgica. AULA ABERTA

O URÂNIO e os elementos actinídeos extraídos do combustível gasto de reator térmico são aglomerados no catodo de um eletrorrefinador durante o procedimento de piroprocessamento. Após mais processamento, o combustível metálico pode ser queimado em reatores de nêutrons rápidos.

PIROPROCESSAMENTO O processo pirometalúrgico (apelidado de “piro” pelos engenheiros) extrai uma mistura de elementos transurânicos do combustível usado, em vez de plutônio puro, como na rota do Purex. Ele é baseado em galvanoplastia – o uso de eletricidade para coletar, em um eletrodo de metal condutor, metal extraído como íons de uma mistura química. Duas abordagens similares foram desenvolvidas, nos Estados Unidos e na Rússia. A maior diferença é que os russos processam combustível óxido, enquanto o combustível em um ALMR é metálico. No piroprocesso americano no ALMR (ver ilustração à esq.), técnicos dissolvem o combustível metálico gasto em uma mistura química. Então uma corrente elétrica coleta plutônio e outros elementos transurânicos seletivamente em um eletrodo, junto com alguns dos produtos da fissão e boa parte do urânio. A maioria dos produtos da fissão e parte do urânio são mantidas na mistura. Quando o processo é concluído, os operadores removem o eletrodo, retiram os materiais acumulados, derretem-nos e forjam um lingote. Depois, passam o lingote a uma unidade de refabricação para conversão em combustível de reatores rápidos. Quando a mistura se torna saturada de produtos da fissão, técnicos limpam o solvente e processam os produtos da fissão extraídos para armazenamento permanente como lixo. Assim, de modo diferente do atual método SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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OS AUTORES William H. Hannum, Gerald E. Marsh e George S. Stanford trabalharam no desenvolvimento de reatores rápidos antes de se aposentar do Laboratório Nacional de Argonne, do Departamento de Energia (DOE) dos Estados Unidos. Hannum trabalhou como chefe do desenvolvimento de física nuclear do DOE e foi vice-diretor geral da Agência de Energia Nuclear da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, em Paris. Marsh trabalhou como consultor de tecnologia e política nuclear estratégica do Departamento de Defesa americano, durante as administrações Reagan, Bush e Clinton. Stanford concentrou sua carreira em física nuclear experimental, física de reatores e segurança de reatores rápidos.


VANTAGENS E DESVANTAGENS DE CADA CICLO DE COMBUSTÍVEL Três sistemas principais para queima de combustível nuclear e administração do lixo gerado podem ser empregados.

SISTEMA SEM RECICLAGEM

RECICLAGEM DE PLUTÔNIO

RECICLAGEM COMPLETA

Combustível é queimado nos reatores térmicos e não é reprocessado; utilizado nos Estados Unidos (o complexo de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, usa o mesmo regime)

Plutônio é extraído do combustível usado nos reatores térmicos em um processo chamado Purex; alguns países industrializados recorrem ao método

Combustível reciclado preparado em processos pirometalúrgicos pode ser queimado em reatores avançados de nêutrons rápidos; tecnologia em teste

USO DO COMBUSTÍVEL 5% usados no reator térmico

5% usados

6% usados

95% desperdiçados

94% desperdiçados

Pouco mais de 94% usados no reator rápido Menos de 1% desperdiçado

Suprimento inicial de combustível Usa cerca de 5% da energia do combustível de reatores térmicos e menos de 1% da energia do minério de urânio (fonte original do combustível)

Usa cerca de 6% da energia no combustível original do reator e menos de 1% da energia do minério de urânio

Não é capaz de queimar urânio empobrecido (parte removida quando o minério é enriquecido) ou urânio de combustível gasto

Não pode queimar urânio empobrecido ou urânio de combustível gasto

Vermelho: requer rigoroso sistema de segurança Minas de urânio Enriquecimento para concentrar urânio físsil Fabricação de combustível Usinas elétricas Armazém temporário de lixo (até o lixo poder ser permanentemente descartado) Depósito permanente capaz de isolar o lixo com segurança por 10 mil anos (Não exige manipulação de plutônio ou operações de processamento de lixo

Pode aproveitar mais de 99% da energia do combustível gasto de reatores térmicos Após o combustível do reator térmico acabar, pode queimar urânio empobrecido para recuperar mais de 99% do restante da energia do minério de urânio

INSTALAÇÕES E OPERAÇÕES NECESSÁRIAS Laranja: requer segurança moderada

Azul: risco potencial para gerações futuras

Minas de urânio Enriquecimento de combustível Mistura de plutônio Fabricação de combustível externa Reprocessamento Purex externo Usinas elétricas Armazém temporário de lixo Processamento de lixo externo Armazenamento permanente capaz de isolar o lixo por 10 mil anos

Fabricação de combustível no local Sistema de processamento pirometalúrgico no local (reciclagem imediata de cobustível gasto) Usinas elétricas Processamento de lixo no local Armazém capaz de isolar lixo por menos de 500 anos (Nenhuma necessidade de mineração por séculos) (Elimina para sempre a necessidade de enriquecimento de urânio)

DESTINO DO PLUTÔNIO Crescentes estoques do plutônio de combustível usado Plutônio excedente aplicável em armas só se degrada lentamente ao ser misturado com combustível novo

Crescentes estoques do plutônio de combustível usado, disponível para comercialização Plutônio excedente aplicável em armas só se degrada lentamente ao ser misturado com combustível novo

Tamanho dos estoques encolhe, por fim, a apenas aquele que está sendo usado em reatores e centros de reciclagem Excedente de plutônio aplicável em armas pode ser esgotado rapidamente Plutônio do combustível é impuro demais para interesses bélicos

Combustível gasto, mas ainda rico em energia, é isolado em contêineres e instalações de armazenagem subterrâneas O lixo é radioativo o suficiente para ser definido como “autoprotegido” por umas poucas centenas de anos contra a maioria dos grupos que desejam obter plutônio 239 para construir armas nucleares

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Lixo vítreo rico em energia, altamente estável O lixo é radioativo o suficiente para ser definido como “autoprotegido” por umas poucas centenas de anos contra a maioria dos grupos que desejam obter plutônio 239 para construir armas nucleares

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

Formas de lixo sob medida teriam de ficar intactas por apenas 500 anos, período após o qual não oferece risco algum Como não tem plutônio, o lixo não teria utilidade bélica

AULA ABERTA

DON FOLEY

TIPOS DE LIXO


Purex, o piroprocesso coleta virtualmente todos os elementos transurânicos (incluindo o plutônio), com considerável dispensa de urânio e produtos da fissão. Apenas uma porção muito pequena do componente transurânico acaba no lixo final, o que reduz bastante o tempo requerido de isolamento. A mistura de produtos da fissão e transurânicos é inútil para armas ou para reatores térmicos. Esse material, porém, é não apenas útil, mas mais vantajoso para reatores rápidos. Embora a tecnologia de reciclagem pirometalúrgica ainda não esteja totalmente pronta para uso comercial, pesquisadores já comprovaram seus princípios básicos.

CICLOS COMPARADOS As capacidades de operação dos reatores térmicos e rápidos são similares em alguns aspectos, mas em outros as diferenças são enormes (ver quadro na pág. 22). Uma usina elétrica de reator térmico de 1.000 megawatts, por exemplo, consome mais de 100 toneladas de combustível por ano. A taxa de gasto anual de um reator rápido com a mesma capacidade elétrica, em comparação, é um pouco mais que uma única tonelada de produtos de fissão, somada aos traços de transurânicos. O gerenciamento de lixo do ciclo ALMR seria bem mais simples. Como os subprodutos dos reatores rápidos não teriam grandes quantidades de transurânicos de longa vida, sua radiação cairia, em várias centenas de anos em vez de dezenas de milhares, ao nível do minério de onde vieram. Se os reatores rápidos fossem usados exclusivamente, o transporte de materiais altamente radioativos aconteceria em apenas duas circunstâncias – quando o lixo produzido pela fissão fosse enviado para armazenamento e quando o combustível de inicialização fosse enviado a um novo reator. O comércio de plutônio seria eliminado. O sistema de reatores rápidos com processamento pirometalúrgico é notavelmente versátil. Ele poderia ser consumidor ou produtor de plutônio, ou operar de modo equilibrado. Operando como produtor, o sistema forneceria material de inicialização para outras usinas de reatores rápidos. Como consumidor, usaria o excesso de plutônio e de material potencial para bombas. Se um modo equilibrado fosse escolhido, o único combustível adicional que uma usina nuclear exigiria seria uma infusão periódica de urânio “empobrecido” (com pouco isótopo 235) para substituir os átomos de metais pesados que passaram pela fissão. Cálculos indicam que essa tecnologia seria economicamente competitiva. AULA ABERTA

Certamente a reciclagem pirometalúrgica será bem mais barata do que o reprocessamento Purex, mas a viabilidade econômica real do sistema não pode ser conhecida antes de ser demonstrada. A economia geral de qualquer fonte de energia depende não só de custos diretos, mas também das chamadas “externalidades”, custos dos efeitos externos resultantes do uso da tecnologia, difíceis de quantificar. Quando queimamos carvão para produzir eletricidade, por exemplo, a sociedade aceita os efeitos prejudiciais à saúde e os custos ambientais envolvidos. Portanto, pode-se dizer que esses custos “subsidiam” a geração de energia por combustíveis fósseis, seja diretamente ou via efeitos indiretos na sociedade. Comparações econômicas que não levam as externalidades em conta são irrealistas e enganadoras.

REATORES HÍBRIDOS Se reatores rápidos avançados entrarem em uso, primeiro queimarão combustível reciclado via piroprocessamento a partir de material rejeitado de reatores térmicos. Esse lixo, que agora está “temporariamente” armazenado, seria transportado para usinas que pudessem processá-lo, transformando-o em três tipos de subprodutos. O primeiro, altamente radioativo, conteria a maioria dos produtos da fissão, junto com traços de elementos transurânicos. Eles seriam transformados em um material fisicamente estável – talvez uma substância vítrea – e então enviados para despejo definitivo. O segundo conteria virtualmente todos os transurânicos, junto com algum urânio e produtos da fissão. Seriam convertidos em combustível metálico de reator rápido em uma instalação de piroprocessamento e então transferidos para reatores ALMR. O terceiro (cerca de 2% do combustível gasto de reatores térmicos) conteria o grosso do urânio, agora empobrecido. Ele seria útil no futuro como combustível de reatores rápidos. Não se constrói uma infraestrutura dessas da noite para o dia. Se fôssemos começar hoje, o primeiro dos reatores rápidos poderia estar em operação dentro de 15 anos. Quando os reatores térmicos atuais atingirem o fim de sua vida útil, eles poderiam ser substituídos por reatores rápidos. Caso isso ocorresse, não haveria mais necessidade de minerar urânio por séculos, e o enriquecimento de urânio seria dispensável. No longo prazo, a reciclagem de combustível de reatores rápidos seria tão eficiente que as reservas atuais de urânio durariam indefinidamente. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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ÃO DE SUGEST S

DE ATIVIDÁA G. 54 NA P

CONCEITO

MEGAWATT (MW) é um múltiplo da unidade de medida watt correspondente a 106 watts, isto é, 1.000.000 W.

PARA CONHECER MAIS LWR recycle: necessity or impediment? G. S. Stanford, em Proceedings of Global 2003. Encontro de Inverno da ANS, Nova Orleans, 16-20 de novembro, 2003. Disponível em www. nationalcenter.org/LWRStanford.pdf S-PRISM fuel cycle study. Allen Dubberly e colegas, em Proceedings of ICAPP ’03. Estudo 3144. 4-7 de maio de 2003. The technology of the integral fast reactor and its associated fuel cycle. W. H. Hannum (ed.), em Progress in Nuclear Energy, número especial, vol. 31, nos 1-2, 1997. Breeder reactors: a renewable energy source. Bernard L. Cohen, em American Journal of Physics, vol. 51, no 1, janeiro de 1983. Integral fast reactors: source of safe, abundant, non-polluting power. George Stanford. Estudo em National Policy Analysis. Disponível em www.nationalcenter.org/NPA378.html


A Reinvenção da QUÍMICA

Folha Vegetal Combustível definitivo pode não derivar de milho ou algas, mas diretamente do Sol Por Antonio Regalado

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COMBUSTÍVEL QUÍMICO Material que sofre combustão; reage com um comburente – geralmente o gás oxigênio –, liberando grande quantidade de energia.

O AUTOR Antonio Regalado é repórter de ciência e tecnologia e colaborador latino-americano da revista Science. Ele vive em São Paulo, onde escreve sobre assuntos ligados a energia.

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AULA ABERTA

ILUSTRAÇÕES DE CHERIE SINNEN

C

omo um pregador que anuncia um inferno de “fogo e enxofre”, Nathan S. Lewis vem proferindo um discurso sobre a crise energética que é, ao mesmo tempo, aterrador e estimulante. Para evitar um aquecimento global potencialmente debilitante, o químico do California Institute of Technology (Caltech) afirma que a civilização deve ser capaz de gerar mais de 10 trilhões de watts de energia limpa e livre de carbono até 2050. Isso corresponde a três vezes a demanda média americana de 3,2 trilhões de watts. O represamento de todos os lagos, rios e riachos do planeta, avalia ele, só forneceria 5 trilhões de watts de energia hidrelétrica. A energia nuclear poderia dar conta do recado, mas o mundo precisaria construir um novo reator a cada dois dias nos próximos 50 anos. Antes que seus ouvintes fiquem excessivamente deprimidos, Lewis anuncia uma fonte de salvação: o Sol lança mais energia sobre a Terra por hora do que a energia que a humanidade consome em um ano. Mas ressalta que, para se salvar, a humanidade carece de uma descoberta radical em tecnologia de combustível solar: folhas artificiais que captem seus raios e produzam combustível químico em massa no local, de modo muito semelhante ao das plantas. Esse combustível pode ser queimado como petróleo ou gás natural para abastecer carros e gerar calor ou energia elétrica, e também armazenado e utilizado quando o Sol se põe. O laboratório de Lewis é um de vários que produzem protótipos de folhas, não muito maiores que chips de computadores, para produzir combustível de hidrogênio a partir de água, em vez da glicose gerada por folhas naturais. Ao contrário dos combustíveis fósseis, a queima do hidrogênio é limpa. Outros pesquisadores trabalham em ideias competitivas para captar a energia do Sol, como algas geneticamente alteradas que liberam biocombustíveis, ou novos organismos biológicos desenvolvidos por bioengenharia para produzir petróleo. Todas essas abordagens destinam-se a transformar luz solar em energia química armazenável, transportável e facilmente consumida. Lewis, no entanto, argumenta que a opção de folhas produzidas pelo homem é a solução mais viável para atingir os níveis de produção industrial necessários para abastecer a civilização. Embora alguns protótipos laboratoriais tenham produzido pequenas quantidades de combustível solar direto – ou eletrocombustível, como as substâncias químicas são ocasionalmente chamadas –, a tecnologia ainda necessita ser aprimorada para ser manufaturada em grande escala e a preços baixos. Para abastecer os Estados Unidos de energia, Lewis calcula que, em vez de dispositivos específicos, parecidos com chips, o país precisaria produzir películas de combustível solar finas e flexíveis, que saíssem de linhas de produção de alta velocidade, como jornais. Essas lâminas, ou membranas, deveriam ser tão baratas como carpetes sob medida e, por fim, cobrir uma área de aproximadamente 53 mil km², equivalente à superfície da Paraíba, no Brasil.


Folhas artificiais poderiam utilizar luz solar para produzir combustível de hidrogênio para veículos e usinas elétricas. AULA ABERTA

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FOTOSSÍNTESE Processo que ocorre nos seres autótrofos, no qual carboidratos e oxigênio são sintetizados a partir de dióxido de carbono, água e energia luminosa (fótons).

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CATALISADOR Material que acelera uma reação química sem ser consumido durante o processo. O catalisador, em geral, modifica o mecanismo de reação, ou seja, interfere nas etapas intermediárias que ocorrem durante a transformação dos reagentes nos produtos.

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CÉLULAS FOTOVOLTAICAS Dispositivos que transformam a energia luminosa em energia elétrica.

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CÉLULAS DE COMBUSTÍVEL São baterias – dispositivos que transformam energia química diretamente em energia elétrica – que apresentam operação contínua por serem alimentadas por uma reação entre um combustível e o oxigênio, sem o contato direto entre esses reagentes.

Longe de ser um sonho fantástico, essa tecnologia vem progredindo espasmodicamente desde as pressões do ex-presidente Jimmy Carter por fontes de energia alternativas durante a crise do petróleo, na década de 70. Agora, diante da ameaça de um novo período energético e climático crítico, o combustível solar subitamente se tornou alvo de atenção. Stenbjörn Styring, da Universidade de Uppsala, na Suécia, que pesquisa o desenvolvimento de sistemas artificiais que imitam a fotossíntese, assegura que o número de consórcios dedicados a esse desafio passou de apenas dois, em 2001, para 29 atualmente. “São tantos que talvez não estejamos contando corretamente”, duvida. Na fotossíntese, as folhas verdes utilizam energia solar para organizar as ligações químicas de água e dióxido de carbono, e produzir e armazenar combustível em forma de açúcares. “Queremos criar algo que seja o mais parecido possível a uma folha”, relata Lewis, referindo-se a dispositivos com funcionamento igualmente simples, mas que produzam uma substância química diferente. A folha artificial que Lewis está projetando exige dois elementos principais: um coletor para converter energia solar (fótons) em energia elétrica (elétrons) e um eletrolisador que utiliza a energia de elétrons para dissociar a água em moléculas de oxigênio e hidrogênio. Um catalisador – substância química ou metal – é acrescentado para ajudar a divisão molecular. Células fotovoltaicas, que já criam energia elétrica a partir da luz solar e de eletrolisadores, são utilizadas em vários processos comerciais; portanto, o truque, aqui, é unir os dois em películas solares baratas e eficientes. Protótipos volumosos foram desenvolvidos para demonstrar como essa união funcionaria. Engenheiros da montadora de carros japonesa Honda, por exemplo, construíram uma caixa mais alta que uma geladeira, coberta de células fotovoltaicas. Em seu interior, um eletrolisador utiliza a eletricidade solar para dissociar moléculas de água. A caixa então libera o oxigênio resultante no ar ambiente e comprime e armazena o hidrogênio restante, que a Honda gostaria de usar para recarregar carros equipados com células de combustível. Em princípio, esse mecanismo ajudaria a solucionar o aquecimento global, já que apenas luz solar e água são necessárias para gerar energia; o subproduto é o oxigênio, e a descarga resultante posteriormente da queima de hidrogênio em uma célula de combustível é a água. O problema é que células solares comerciais contêm dispendiosos cristais de silício. E os eletrolisadores estão cheios de platina, o metal 26

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

nobre que até hoje é o melhor material para catalisar a reação de decomposição da água, mas uma onça troy (31,10... gramas) desse material custa cerca de US$ 1,5 mil (perto de R$ 2,7 mil). Isso significa que a estação de hidrogênio solar da Honda jamais inundará o mundo de energia. Lewis calcula que, para atender à demanda global, futuros dispositivos de combustível solar teriam de custar menos de US$ 1 por 0,09 m2 de superfície coletora de luz solar, além de terem capacidade de converter 10% da energia dessa luz em combustível químico. Para isso, será necessária uma tecnologia fundamentalmente nova, aplicável em grande escala.

EM BUSCA DE UM CATALISADOR A procura por uma tecnologia como essa ainda é incipiente, apesar de várias décadas de trabalhos intermitentes. Daniel G. Nocera, do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e um colega descobriram em 2008 uma combinação barata de fosfato e cobalto, capaz de catalisar a produção de oxigênio – etapa necessária da reação para decompor a água. Embora o dispositivo do protótipo fosse apenas parte do quebra-cabeça – os pesquisadores não encontraram um catalisador melhor para liberar hidrogênio, o combustível de fato – o MIT o apregoou como um “importante salto” rumo à “fotossíntese artificial”. Nocera chegou a prever que, em breve, os americanos estariam produzindo hidrogênio para os seus carros utilizando equipamentos de fundo de quintal e a preços razoáveis. Essas alegações ousadas não foram bem recebidas por alguns peritos em energia solar. Eles insistem em que as pesquisas ainda têm décadas pela frente. Outros são mais teimosos: o Departamento de Energia e a empresa de capital de risco Polaris Venture Partners apoiam o atual trabalho de Nocera na Sun Catalytix, uma empresa que ele criou em Cambridge, Massachusetts. No Caltech, enquanto isso, Lewis vem trabalhando em um meio de coletar e converter os fótons solares – primeiro passo em qualquer dispositivo de combustível solar – muito mais barato que células solares convencionais de silício cristalino. Ele projetou e produziu um coletor de nanofios de silício embutidos em uma película de plástico transparente que, quando expandido, pode ser “enrolado e desenrolado como um cobertor” (ver quadro na pág. 27). Seus nanofios podem converter luz em energia elétrica com eficiência de 7%. Isso literalmente empalidece diante de uma comparação com células solares comerciais, que chegam a uma eficiência de até 20%. Mas se o material pudesse ser produzido em escala suficienteAULA ABERTA


COMO FUNCIONA NANOFIOS SOLARES IMITAM A NATUREZA Plantas aproveitam a energia do Sol para transformar dióxido de carbono e água em glicose – combustível químico que pode ser utilizado ou armazenado (à esquerda). Pesquisadores estão desenvolvendo folhas artificiais que usam a luz solar para dissociar moléculas de água e, assim, gerar combustível hidrogênio. O grupo do Caltech projeta uma pequena folha com uma disposição de nanofios de silício que poderiam produzir hidrogênio (à direita).

FOLHA NATURAL

Cloroplasto

FOLHA ARTIFICIAL ENTRADA DE ENERGIA. Fótons solares são absorvidos por um material fotoativo: em plantas, por tilacoides no interior de um cloroplasto; em dispositivos artificiais de decomposição de água, por nanofios semicondutores.

Fóton

H2O Tilacoide H+

e-

Nanofio Catalisador de semicondutor oxidação

OXIDAÇÃO. A energia absorvida pelos fótons expulsa elétrons de moléculas de água no cloroplasto ou nos dispositivos artificiais, o que divide as moléculas em íons hidrogênio (H+) e oxigênio.

2

Estroma

CO2

REDUÇÃO. Em plantas, íons H+ se combinam com elétrons e dióxido de carbono para formar glicose no estroma. No dispositivo artificial, os íons H+ atravessam uma membrana e se combinam com elétrons para formar moléculas de hidrogênio.

SAÍDA DE COMBUSTÍVEL. Os dois processos geram um combustível armazenável e transportável: glicose Glicose em plantas; hidrogênio nos arranjos artificiais.

mente barata – aquelas lâminas que saem rolando de uma prensa como jornais – uma eficiência mais baixa poderia ser aceitável. Também se debate se o hidrogênio é a melhor opção para produzir combustível solar. Equipes que trabalham com organismos biológicos capazes de produzir biocombustíveis líquidos argumentam que são mais fáceis de armazenar e transportar que hidrogênio. Mas o gás hidrogênio também é flexível: pode ser usado em carros com células de combustíveis, queimado em usinas elétricas para gerar eletricidade, e até servir como matéria-prima na produção de diesel sintético. Mesmo assim, “a solução é produzir um combustível químico energeticamente denso”, com emissões mínimas de carbono, enfatiza Lewis. “Não vamos nos prender em nenhum deles em particular.” AULA ABERTA

Catalisador de redução H2 Hidrogênio

Folhas reais provam que a luz solar pode ser convertida em combustível usando apenas elementos comuns. A humanidade é capaz de imitar esse processo para resgatar o planeta do aquecimento global? O prognóstico não é claro. “O fato de não conseguirmos resolver o problema com componentes prontos, à nossa disposição nas prateleiras de lojas, é a razão por que esse é um período tão empolgante para trabalhar nessa área”, considera Lewis. Mas ele está preocupado porque a sociedade ainda não compreendeu as dimensões do problema energético, nem por que soluções revolucionárias são tão necessárias. É por isso que ele passa tanto tempo no circuito de palestras, pregando a salvação solar. “Ainda não estamos tratando esse problema como algo em que podemos nos dar ao luxo de falhar”, considera ele. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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Nanofio semicondutor

ÃO DE SUGEST S

DE ATIVIDÁA G. 56 NA P

PARA CONHECER MAIS Powering the planet with solar fuel. Harry B. Gray, em Nature Chemistry, vol. 1, no 7, abril de 2009. Powering the planet: chemical challenges in solar energy utilization. Nathan S. Lewis e Daniel G. Nocera, em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 103, no 43, págs. 15.72915.735, 24 de outubro de 2006.


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AULA ABERTA

ILUSTRAÇÃO: LOCAL DO CREDITO PAULONONONNONONONONON ZYLBERMAN

MATEMÁTICA


O LÚDICO na teoria dos jogos

A teoria das probabilidades, com raízes no século 15, define campos que vão das loterias ao mercado de seguros com enorme impacto na economia Por Renato Gianella

A

LOCAL DO CREDITO NONONNONONONONON

história da matemática está diretamente ligada à descoberta dos números indo-arábicos. Os gregos de Tales a Euclides construíram a obra-prima do pensamento humano, um sistema lógico onde as proposições se deduzem umas das outras com tal exatidão que nenhuma demonstração provoca dúvida. É o sistema de geometria de Euclides. Dado seu gosto pela aposta, a teoria das probabilidades parece uma disciplina sob medida para os gregos, mas faltava-lhes um sistema de numeração que lhes permitisse calcular. A mitologia grega recorreu a um gigantesco jogo de dados para explicar o que hoje chamamos Big Bang. Três irmãos, através de dados, partilharam o Universo: Zeus ganhou os céus, Poseidon os mares e Hades, o perdedor, tornou-se o senhor dos infernos. AULA ABERTA

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PROPOSIÇÕES A geometria de Euclides parte de algumas proposições que são aceitas como base para a estruturação de toda a teoria. Tais proposições são os postulados, aceitos tacitamente, como “No espaço existem infinitos pontos não alinhados”. Já os teoremas são proposições que carecem de demonstrações realizadas a partir da aceitação dos postulados; por exemplo, “Existem infinitas retas”.


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FIBONACCI No Liber abaci consta o conhecido problema acerca da reprodução dos coelhos, a partir do qual se constitui a sequência de Fibonacci: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21..., em que um termo qualquer, a partir do terceiro, é obtido pela soma dos dois termos anteriores.

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TRIÂNGULO ARITMÉTICO Conhecido também por “Triângulo de Pascal”.

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DESVIO PADRÃO É uma medida da dispersão dos elementos de um conjunto, ou seja, reflete o quanto os elementos do conjunto, como um todo, se afastam do valor médio.

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A bibliografia sobre a probabilidade é monumental e discorrer sobre toda ela é tarefa árdua; procuramos nos restringir a seus fatos mais significativos.

MÉTODO LOTO RAINBOW Nosso propósito é oferecer um modelo matemático probabilístico simples aos apostadores dos jogos de prognósticos com o intuito de mostrar sua organização e o comportamento probabilístico de seus resultados. Podemos justificar nossa proposta com a fala de Francis Bacon, segundo o qual “o conhecimento das causas secretas e do movimento das coisas aumenta os limites do império humano tornando tudo possível”. As pessoas ainda apostam na loteria da mesma forma que nossos antepassados. Jogam baseadas em datas de aniversário, sonhos e todos os tipos de “números da sorte”. São formas de apostar sem nenhuma racionalidade ou embasamento matemático. Isso não nos satisfazia e buscávamos uma maneira de representar os jogos que trouxesse uma organização no aparente caos dos resultados. Pensar em termos de combinações individuais não é prático nem leva a conclusão alguma. Afinal, as loterias têm tipicamente milhões de resultados possíveis. O caminho lógico seria tentar organizar esses resultados individuais em grupos que tivessem um mesmo padrão de comportamento. A forma mais natural de conseguir essa ordenação foi através da classificação das combinações em função das dezenas e não dos números em si. Nosso estudo começou com a Super Sena, que foi operada pela Caixa Econômica Federal entre 1995 e 2001. Os exemplos aqui apresentados são baseados nessa loteria. A Super Sena era o que se chama de loteria 6/48, ou seja, são sorteados 6 números de um conjunto formado pelos números de 1 a 48. O total de resultados possíveis é calculado pela conhecida fórmula de combinações simples de n elementos tomados p a p: C(n,p) = n!/((n-p)! * p!) Para n=48 e p=6: C(48,6) = 48!/((48-6)! * 6!) = 12.271.512. Vamos calcular quantas seriam as combinações se tratássemos as dezenas no lugar dos números. De um a 48 temos cinco dezenas possíveis: os números de um a nove pertencem à dezena zero, de 10 a 19 à dezena 1, e assim por diante. Cada dezena pode sair mais de uma vez. Como sorteamos seis elementos e só temos cinco possíveis fica claro que pelo menos uma dezena aparecerá mais de uma vez! Aplicando a fórmula de combinações com repetição determinamos que temos apenas 210 resultados possíveis. Cada uma dessas 210 AULA ABERTA

DIVULGAÇÃO

PACCIOLI, que ensinou matemática a Leonardo da Vinci, iniciou o estudo das probabilidades em 1494

A história dos números no Ocidente começa em 1202 quando Leonardo Pisano (atualmente conhecido como Fibonacci) escreve Liber abaci (Livro do ábaco), um livro extraordinário para qualquer padrão. Em 1494 Luca Paccioli, outro matemático italiano, escreve Summa de arithmetica, geometria e proporcionalità. Paccioli foi quem ensinou matemática a Leonardo da Vinci, e no seu livro propõe o enigma conhecido como o problema dos pontos: “A e B estão empenhados em um honesto jogo de balla. Eles concordam em continuar até que um deles vença seis rodadas. O jogo é encerrado quando A vencia cinco, e B três rodadas. Como deveriam ser divididas as apostas?”, Historicamente o início do estudo da probabilidade é atribuído à Summa, pela proposição do jogo de balla, pois marca o início da análise matemática da probabilidade. Girolamo Cardano (1501-1576), no seu tratado sobre o jogo Liber de ludo aleae (Livro dos Jogos de Azar), pode ter sido o primeiro a introduzir o lado estatístico da teoria das probabilidades. Descobriu que o arremesso de dois dados produz, não onze (de 2 a 12), mas 36 combinações possíveis. Por volta de 1650 o cavaleiro de Méré, que se orgulhava de sua habilidade matemática e de sua capacidade de calcular as vantagens nos cassinos, propõe o velho problema dos pontos a Pascal. Pascal se corresponde com Fermat e após dois anos de conversações cada um deles resolve o problema a sua maneira. Pascal inovou usando o triângulo aritmético, enquanto Fermat voltou-se para a álgebra pura. Do diálogo entre esses gigantes nasce o núcleo matemático da Teoria das Probabilidades. Pascal e Fermat detiveram a chave de um método sistemático de cálculo das probabilidades de eventos futuros. Embora não tivessem dado a volta completa, inseriram a chave na fechadura. Jacob Bernoulli (1654-1705) descreve a Lei dos Grandes Números (Ars conjectandi – 1713): “Em uma amostragem a diferença entre a média real e a observada diminuirá à medida que aumentar o número de amostras”. Como se sabe, J. Bernoulli determinou as probabilidades empiricamente e a posteriori. Abraham de Moivre (1667-1754) estabelece o conceito de desvio padrão em sua obra The doctrine of chances – 1733. O ciclo da evolução da rigorosa medição das probabilidades encerrase em 1760.


THE IMAGE BANK

combinações representa uma “maneira de jogar”, ou seja, representam jogos com um mesmo padrão de comportamento. A cada uma dessas maneiras de combinar demos o nome de gabarito.

GABARITOS Um gabarito tem uma probabilidade teórica que é dada pelo quociente do seu número de combinações pelo total de combinações da loteria. Esse resultado é apresentado na tabela de probabilidade teórica dos gabaritos com o auxílio de uma representação colorida das dezenas, conforme a convenção de cores (tabelas 1 e 2). Fica claro, por essas tabelas, que existem gabaritos mais prováveis que outros. Assim, vemos que jogos com todos os números de uma mesma dezena têm probabilidade baixíssima de ocorrer, enquanto aqueles que apresentam apenas um par de uma mesma dezena são os mais prováveis. Partindo dessa tabela e agrupando os gabaritos pela sua cor inicial, obtemos um resultado interessante. Os gabaritos que se iniciam com amarelo, seguido de qualquer outra cor, representam cerca de 42% de chances nessa loteria. Assim criamos uma nova tabela com as probabilidades de acordo com a formação AULA ABERTA

inicial dos gabaritos. Nós a chamamos de probabilidade por start (tabela 3). Classificamos também os gabaritos de acordo com a quantidade de vezes que as cores se repetem em sua formação (tabela 4). Assim, o agrupamento dos gabaritos de acordo com o seu tipo descrito produz a tabela de probabilidade teórica por tipo (tabela 5). As tabelas de start e tipo são bastante concisas e trazem informações muito importantes: • Os gabaritos que se iniciam com um amarelo representam apenas cerca de 42% de chance. • Existem apenas cinco gabaritos do tipo P (par de uma cor), mas eles representam cerca de 14% das possibilidades. • Os gabaritos PP (dois pares de cores distintas) formam o tipo mais frequente, com aproximadamente 38% de chance de ocorrência.

COMPARAÇÃO DOS RESULTADOS TEÓRICOS COM OS REAIS Um modelo matemático não tem validade se os dados reais não seguirem o comportamento esperado. Assim, precisamos tabular os resultados reais para SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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AS LOTERIAS TÊM MILHÕES de resultados possíveis, e o caminho lógico está em tentar organizar resultados em padrões de comportamento


TABELA 1

CONVENÇÃO DE CORES

NOME DA DEZENA

01 02 03 04 05 06 07 08 09

ZERO

SIGLA

COR AMARELO

10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29

UM

D0 D1

DOIS

D2

CINZA

30 31 32 33 34 35 36 37 38 39

TRÊS

D3

VERDE

QUATRO

D4

ROSA

40 41 42 43 44 45 46 47 48

AZUL-CLARO

TABELA 2

NÚMERO DO GABARITO

... ...

GABARITO

COMBINAÇÕES

CÁLCULO (%)

1

364.500

2,97

2

364.500

2,97

3

364.500

2,97

4

324.000

2,64

5

324.000

2,64

6

182.250

1,49

7

182.250

1,49

8

182.250

1,49

9

182.250

1,49

10

182.250

1,49

11

182.250

1,49

12

164.025

1,34

13

164.025

1,34

18

162.000

1,32

209

84

0,0007

210

84 12.271.512

0,0007 100,00

Total de combinações

TABELA 3

START

O AUTOR Renato Gianella, engenheiro civil formado pela Escola de Engenharia Mackenzie, turma de 1961, atuou no campo de infraestrutura viária, pontes, terraplenagem e pavimentação. Nascido em São Manuel – estado de São Paulo –, foi aluno dos maristas, Colégio Arquidiocesano de São Paulo. Além de engenharia e matemática, Gianella tem interesse em história e filosofia da ciência.

QUANTIDADE DE GABARITOS

PROBABILIDADE (%)

56

42,23

35

24,13

20

6,26

10

0,76

4

0,04

1

0,00

21

9,68

15

8,71

10

3,57

1

0,00

...

32

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

AULA ABERTA


compará-los com os teóricos. A tabela básica é a tabela de extração, que apresenta todos os resultados em blocos de 100 extrações. Os números sorteados são mostrados sob a forma colorida com o número do gabarito indicado na coluna correspondente ao seu tipo. Por exemplo, o primeiro resultado ao lado contém uma trinca de mesma cor (azul), assim o seu número de gabarito (44) é indicado na coluna dos tipos T. O cabeçalho da tabela fornece um resumo das quantidades esperadas e dos fatos para cada um dos tipos de gabarito (tabela 6). Os resultados sumarizados por gabaritos, tipos e starts são apresentados em tabelas que chamamos de painéis de controle. Essas tabelas mostram claramente que os resultados reais seguem a média esperada para cada um deles (tabelas 7, 8 e 9).

MELHORE SEU JOGO Para acertar os seis números é preciso acertar o gabarito sorteado. Assim, o primeiro passo para formular uma aposta é escolher o gabarito. As informações que agora temos disponíveis nos permitem uma análise racional do jogo, uma vez que, sob condições de incerteza, a racionalidade e a medição são essenciais para a tomada de decisões, pois não devemos rejeitar os números quando eles prometem mais precisão que a intuição. Os principais pontos que devemos considerar são: os gabaritos são pouco recorrentes. Os mais fortes aparecem, em média, cerca de três vezes a cada 100 extrações. Os 35 primeiros gabaritos representam um pouco mais de 50% das chances. Com exceção dos cinco primeiros gabaritos, os demais aparecem cerca de uma vez a cada 100 sorteios e é pouco frequente que um deles apareça em extrações muito próximas. Os 175 gabaritos restantes, responsáveis pela outra metade das chances, são muito pouco recorrentes individualmente. Assim, podemos considerá-los como uma área de maior risco que deve ser evitada. Com esses pontos em mente, mais o conhecimento da distribuição dos gabaritos nos starts e tipos, podemos analisar as tabelas de extração e dos painéis de controle para fazer um filtro, de forma a selecionar os gabaritos em que iremos jogar. A INDÚSTRIA DO JOGO Dados de 2000 mostram que as vendas de loteria no mundo totalizaram quase US$ 130 bilhões. Uma boa parte desse total, tipicamente mais de um terço, é revertida para o Estado, sendo uma AULA ABERTA

TABELA 4

EXEMPLO

TIPO

DESCRIÇÃO Par amarelo

P

Par azul

P

Um par azul e um par verde

PP

Um par cinza e um par rosa

PP

Trinca amarela

T

Quadra cinza

Q

TIPO

DESCRIÇÃO

P PP PPP Q QP S T TP TT V

Par de uma cor Dois pares de cores distintas Três pares de cores distintas Quadras de uma cor Quadra de uma cor e par de outra Seis números de uma cor Trinca de uma cor Trinca de uma cor e par de outra Duas trincas de cores distintas Quina da mesma cor

TABELA 5

TIPO DE GABARITO

QUANTIDADE DE GABARITOS

TOTAL DE COMBINAÇÕES DO TIPO

% DO TIPO EM RELAÇÃO AO TOTAL

PP

30

4.695.975

38,27

TP

60

2.498.040

20,35

T

20

1.852.800

15,10

P

5

1.741.500

14,19

PPP

10

703.485

5,73

Q

30

484.470

3,95

QP

20

145.152

1,18

TT

10

110.736

0,90

V

20

38.556

0,31

S

5

798

0,01

TOTAL

210

12.271.512

100,00

TABELA 6

EXTRAÇÕES: 901 ATÉ 963 (63 EXTRAÇÕES) TIPO DO GABARITO

DATA 11/7/2001

EXTRAÇÃO CONCURSO 901

514

PP TP T

P PPP Q QP TT V

S

QUANTIDADE ESPERADA

24 13 10 9

4

2

1

1

0

0

QUANTIDADE DE FATOS

27 12 7 9

4

2

1

0

1

0

FAIXA

NÚMEROS SORTEADOS

2

02 12 14 17 30 45

NÚMERO DO GABARITO 44

14/7/2001

902

515

1

01 09 15 30 35 45 25

14/7/2001

903

515

2

01 09 11 37 41 45 34

18/7/2001

904

516

1

02 20 21 30 39 40 14

18/7/2001

905

516

2

14

21/7/2001

906

517

1

01 17

20/10/2001

959

543

2

05 10 18 20 26 37

24/10/2001

960

544

1

08 10 19 30 35 43 13

24/10/2001

961

544

2

01 13 14 21 34 45

27/10/2001

962

545

1

07 08 11 24 34 36

17

27/10/2001

963

545

2

15 22 29 30 32 45

11

21 32 40 43 44

50 5

23 39 43 48

...

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

33

6

1


TABELA 7

PAINEL DE CONTROLE DOS GABARITOS REALIZADO APÓS 963 EXTRAÇÕES

NÚMERO DO GABARITO

CÁLCULO

GABARITO

1

FATOS

QTDE. ESPERADA

%

%

FATOS

2

2,9703 2,9703

28,6 28,6

3,74 4,05

3

2,9703

28,6

2,91

4

2,6403

5

2,6403

6

25,4

2,80

25,4

2,49

7

1,4851 1,4851

8

1,4851

9

1,4851

14,3 14,3

1,56 1,14 1,14

10

1,4851

14,3 14,3

11

1,4851

14,3

1,35 1,66 2,49

4 3

3 2

3 2

3

3

27 24

1

3

1

1

2

3

15

1

11 11

1

13

2

16 24

4

2

2

3

1

2

2

1 1 2

PAINEL DE CONTROLE DOS STARTS

TABELA 8

REALIZADO APÓS 963 EXTRAÇÕES START

CÁLCULOS %

% FATOS

QUANTIDADE ESPERADA

FATOS POR BLOCO DE 100 EXTRAÇÕES FATOS

INÍCIO: 701 INÍCIO: 801 INÍCIO: 901 FIM: 800 FIM: 900 FIM: 963

42,23 24,13

43,09

407

415

23,26

232

6,26

5,30

60

224 51

0,76 0,04

0,62

7

6

0,00

0

0,00

0,00

0

0 0

9,68 8,71

9,45

93

91

13

7

8

8,93

84

12

6

7

3,57

4,78

34

86 46

7

6

3

0,69 0,06

0,42

7

4

1

0,00

1

0,00

0,00

0

0 0

0,95 1,42

1,66

9

16

3

0,83

14

0,95

1,14

9

8 11

1

0,29 0,04

0,10

3

1

0,10

0

0,00

0,00

0

1 0

PARA CONHECER MAIS Statistics – A first course. John E. Freund e Benjamin M. Perles. Prentice Hall, 1999. Análise combinatória, probabilidades e estatística. Fernando Trotta. Editora Sciprione, 1998. Desafio aos deuses. Peter L. Bernstein. A fascinante história do risco, Campus, 1997.

0,01 0,05

0,00

0

0

0,00

0

0,08

0,10

1

0 1

Probabilidade aplicações à estatística. Paul L.Meyer. LTC, 1983.

0,06 0,02

0,10

1

1

0

Introdução à teoria das probabilidades e suas aplicações. William Feller. Edgard Blücher, 1976.

0,00

0,00

0

1 0

0,00

0,00

0

0

34

901

90

86

TOTAL DOS GABARITOS DE 1,4851%

39 28

801

FIM: 900 FIM: 963

51

51

TOTAL DOS GABARITOS DE 2,6403%

36

701

FIM: 800

103

86

TOTAL DOS GABARITOS DE 2,9703%

FATOS POR BLOCO DE 100 EXTRAÇÕES INÍCIO: INÍCIO: INÍCIO:

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

0,10

38 16

42 29

26 15

8

5

1 1

3 2

1

1 1

AULA ABERTA


TABELA 9

PAINEL DE CONTROLE DOS TIPOS FATOS POR BLOCO DE 100 EXTRAÇÕES

REALIZADO APÓS 963 EXTRAÇÕES TIPO PP TP T P PPP Q QP TT V S

CÁLCULO %

% FATOS

QTDE. ESPERADA

FATOS

38,27

39,56

369

381

20,36

21,29

196

15,10 14,19

13,60

145

205 131

15,99

137

5,73

4,88

55

3,95

2,91

DIVULGAÇÃO

701 FIM:800 34 24

INÍCIO:

801 FIM:900 43 25

7

154

12

13

9

7

5

4

38

47 28

3

2

2

1

0,93

11

0,90

0,52

9

0,31

0,31

3

5 3

0,01

0,00

0

0

NA P

901 FIM:963 27 12

12

9

DE ATIVIDÁA G. 58

INÍCIO:

19

1,18

importante fonte de financiamento para atividades de cunho eminentemente social e cultural. Em 2001, segundo a Caixa Econômica Federal, as loterias brasileiras destinaram R$ 1,3 bilhão para programas e fundos sociais, como o Financiamento Estudantil (Fies), totalmente custeado com dinheiro das apostas. A arrecadação bateu o recorde histórico de R$ 2,8 bilhões. Parece muito, mas significa menos do que 1% do total obtido no mundo. A Califórnia, nos Estados Unidos, já destinou, desde 1985, mais de US$ 13 bilhões para os programas de educação pública através de sua loteria. Só a Inglaterra movimentou US$ 6,4 bilhões entre 2000 e 2001. Nesse país os dividendos oriundos das loterias são destinados às chamadas “boas causas”, que incluem programas socioculturais. O Museu Britânico, por exemplo, teve sua recente reforma custeada dessa forma.

INÍCIO:

ÃO DE SUGEST S

1 1

puramente pelo acaso. Essa ciência está muito longe de não ter aplicações práticas, como fica evidente pelas experiências efetuadas em grandes laboratórios, pela existência de companhias de seguros altamente respeitáveis e pela logística das empresas de grande porte e da guerra”. Peter L. Bernstein, em seu Desafio aos deuses, pergunta: “O que distingue os milhares de anos da história do que consideramos os tempos modernos? A resposta transcende em muito o progresso da ciência, da tecnologia, do capitalismo e da democracia. A ideia revolucionária que define a fronteira entre os tempos modernos e o passado é domínio do risco”. Por tudo isso, esperamos que o modelo apresentado, por sua simplicidade e exatidão, possa vir a ser uma ferramenta utilizável, lógica e satisfatória para o estudo do movimento das coisas do mundo.

CONCLUSÃO A organização dos espaços amostrais das loterias sob forma dos gabaritos traz uma luz sobre o maravilhoso movimento aleatório dos sorteios. Podemos agora ver uma ordem onde aparentemente só havia o caos. Temos assim um benefício para todos aqueles que hoje jogam totalmente no escuro nas loterias de mundo. Mais uma vez, podemos justificar nossa posição com palavras como as de Howard Eves, em Introdução à matemática, quando ele diz ser “impressionante, e mesmo algo surpreendente, que os matemáticos tenham sido capazes de desenvolver uma ciência (a teoria matemática das probabilidades) que estabelece leis racionais para reger situações determinadas AULA ABERTA

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35

EM 2001, SEGUNDO A CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, as loterias brasileiras destinaram R$ 1,3 bilhão para programas e fundos sociais, como o Financiamento Estudantil, custeado com dinheiro das apostas


BIOLOGIA

A VIDA DUPLA

DO ATP Fonte essencial de energia dentro das células, a molécula de ATP também transporta mensagens muito importantes entre elas. Esse papel duplo sugere novas ideias para o combate a doenças Por Baljit S. Khakh e Geoffrey Burnstock

U PURINA Base nitrogenada, também conhecida como base púrica (adenina e guanina), presente nos ácidos nucleicos e em biomoléculas importantes como ATP, CoenzimaA, NADH (nicotinamida adenina dinucleotídeo) entre outras.

DESMASCARADO DUAS VEZES Quando o ATP foi descoberto em 1929, pesquisadores em todo o mundo buscavam a evasiva fonte de energia das células. Em conclusões quase simultâneas, Karl Lohmann, trabalhando com Otto Meyerhof, Nobel de 1922 do Instituto Kaiser Guilherme de Pesquisa Médica em Heidelberg, e Cyrus H. Fiske, com seu aluno de graduação Yellapragada SubbaRow, da Harvard Medical School, mostraram que as atividades intracelulares que permitem a contração das células musculares dependiam de uma molécula feita de uma purina – a 36

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AULA ABERTA

KEN EWARD

CONCEITO

m dos primeiros e mais duradouros conceitos ensinados à maioria dos alunos nas aulas de biologia é que todas as células vivas usam uma pequena molécula chamada adenosina trifosfato (ATP) como combustível. Essa reserva universal de energia conduz as reações biológicas que permitem às células funcionarem e à vida florescer, fazendo do ATP um componente crucial no mundo biológico. Mas poucos sabem que a molécula, talvez a mais produzida e consumida no corpo humano, tem também uma função completamente separada, mas não menos essencial, do lado de fora das células. Uma longa série de descobertas demonstrou ser o ATP uma importante molécula sinalizadora que permite a comunicação entre as células e os tecidos pelo corpo. Na prática, o combustível universal serve também como uma linguagem universal. Quando se sugeriu a função dupla do ATP, há aproximadamente 50 anos, a ideia foi recebida com considerável ceticismo. Mas uma avalanche de descobertas nos últimos 15 anos detalhou como ele age do lado de fora das células e atua no desenvolvimento e na operação diária de órgãos e tecidos. Como está em todos os lugares, suas ações sinalizadoras têm uma influência fisiológica abrangente e única, oferecendo oportunidades incomuns para melhorar a saúde humana. Laboratórios em todo o mundo agora correm para transformar essas descobertas em terapias.


CONCEITO

TECIDO MUSCULAR LISO Tecido de contração involuntária e lenta, formado por células fusiformes e mononucleadas, presente na parede de órgãos como os que compõem o trato gastrointestinal, bexiga e útero. HYPERLINK

ACETILCOLINA

adenosina, uma combinação da base adenina com um açúcar – e três fosfatos. Em 1935, Katashi Makino, do Hospital Dailen, na Manchúria, propôs uma estrutura para a molécula, confirmada dez anos depois por Basil Lythgoe e Alexander R. Todd, do Laboratório Químico da University of Cambridge. Durante esse período, ninguém previu um papel para a molécula fora da célula. E foi assim até 1962, quando um dos autores (Burnstock) ainda era um jovem neurofisiologista da University of Melbourne, na Austrália, estudando os nervos que controlam o tecido muscular liso. No curso da pesquisa dos sinais emitidos pelo sistema nervoso autônomo (que controla funções musculares básicas, como contrações do intestino e da bexiga), viu evidências de sinais neurais que não envolviam os neurotransmissores químicos tradicionais, a acetilcolina e a noradrenalina. Intrigado por dados publicados em 1959 por Pamela Holton, do Cambridge Physiological Laboratory, sugerindo que nervos sensoriais liberavam moléculas de ATP, Burnstock decidiu determinar se o ATP poderia ser responsável pela transmissão de sinais entre os nervos motores e os músculos. Por meio de uma série de experiências, nas quais aplicou substâncias químicas para bloquear as transmissões contínuas de sinais dos neurotransmissores clássicos aos músculos lisos, ele conseguiu demonstrar que qualquer sinalização contínua dos nervos para os músculos tinha de ser levada pelo ATP. Seguindo essa pista por mais de uma década, Burnstock se sentiu confiante para propor, em 1972, a existência de “nervos purinérgicos” que liberam o ATP como neurotransmissor. Os neurônios geram impulsos elétricos que viajam por todo o comprimento neural mas não cruzam o pequeno vão entre eles, conhecido como fenda sináptica, ou o espaço entre eles e os músculos. A mensagem é encaminhada de célula a célula por transmissores químicos, como a acetilcolina, o glutamato, AULA ABERTA

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37

Atua como neurotransmissor inibitório ou excitatório de acordo com a região de ação. Na musculatura controlada pelo sistema nervoso autônomo, promove ação excitatória que culmina com a contração dos músculos lisos. Nos tecidos musculares controlados pelo sistema nervoso central e no coração, atua inibindo a célula pós-sináptica, com relaxamento muscular e diminuição da frequência cardíaca. CONCEITO

NEUROTRANSMISSORES Substâncias químicas produzidas pelas células nervosas e liberadas nas fendas sinápticas (espaços entre dois neurônios) que possibilitam a propagação do impulso nervoso.


O ATP DENTRO DAS CÉLULAS... Os estudantes aprendem que a pequena molécula adenosina trifosfato (ATP) é uma importante fonte de energia para a célula; ela abastece as atividades da maquinaria molecular que permite à célula funcionar e florescer (abaixo). Mas nem todo ATP intracelular é usado nos processos internos. Células de todos os tipos também liberam ATP para enviar mensagens a células vizinhas (direita).

CÉLULA LIBERANDO ATP Vesículas

Adenosina trifosfato (ATP) Neurotransmissor ATP H+

ATP Adenosina

1

Fosfato

Energia presa nas ligações

CÉLULA

Mitocôndria

2

ATP Fosfato liberado ATP

Energia liberada

3 ADP Núcleo

4

HYPERLINK

DOPAMINA Neurotransmissor estimulante do sistema nervoso central precursor da síntese de adrenalina e noradrenalina. CONCEITO

RECEPTORES DE ATP Também denominados receptores purinérgicos. São proteínas ou glicoproteínas presentes na membrana plasmática, que se ligam especificamente ao neurotransmissor ATP ou seus subprodutos (ADP e adenosina).

▲ Uma molécula de ATP armazena energia nas ligações entre seus três fosfatos. Eles se ligam à adenosina, uma molécula da classe das “purinas”. W As células produzem ATP continuamente em suas mitocôndrias, a partir de matérias-primas tão básicas quanto prótons (H +) derivados da glicose que passou por diversos estágios de processamento. Dentro da mitocôndria 1, os prótons emprestam a energia necessária à adição de um fosfato à adenosina difosfatada (ADP); o ATP resultante é levado ao citoplasma 2. Atividades celulares como a fabricação de proteínas tiram energia das moléculas de ATP quando o último fosfato é liberado 3. O ADP e os fosfatos livres são novamente transformados em ATP 4.

a dopamina e outros, liberados pelo neurônio. Esses transmissores cruzam a fenda e se ligam a proteínas receptoras na célula pós-sináptica, fazendo com que ela passe por uma série de mudanças internas que alteram sua atividade; neurônios receptores podem disparar seus próprios impulsos, e as células musculares, contrair-se ou relaxar. Assim, é possível uma mensagem ser transmitida de neurônio a neurônio por uma série alternada de impulsos elétricos e descargas químicas. Sempre se acreditou que cada neurônio emitisse apenas um tipo de neurotransmissor: os que liberavam a acetilcolina foram descritos como colinérgicos; os que liberavam dopamina, como dopaminérgicos, e assim por diante. O conceito de Burnstock de neurônios purinérgicos se baseava não apenas na própria observação naquele ponto, mas também no início do trabalho de uma série de alunos e colaboradores notáveis, como Max Bennett, Graeme Campbell, David Satchell, Mollie Holman e Mike Rand, das universidades de Melbourne e Londres. 38

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

ADP

ATP

QUEBRA ENZIMÁTICA

Receptor P2Y Receptor P2X

Apesar da abundância de dados mostrando a liberação de ATP dos neurônios para os tecidos musculares, intestinais e císticos, muitos neurofisiologistas continuaram céticos quanto à existência de nervos que liberassem o ATP como mensageiro, em grande parte porque achavam improvável que uma substância onipresente no organismo pudesse desempenhar um papel tão específico. Além disso, para funcionar, uma molécula sinalizadora deve encontrar um receptor adequado na célula destinatária. O primeiro receptor para um neurotransmissor foi isolado apenas em 1970, abrindo-se então a possibilidade de investigar os receptores de ATP. Muito antes de encontrá-los, no entanto, vários pesquisadores continuaram a usar métodos farmacológicos para examinar como o ATP liberado pelos neurônios levava mensagens aos músculos e outras células do corpo. Com base nesse trabalho, Burnstock sugeriu em 1978 existirem famílias separadas de receptores de ATP (que chamou de receptores P2) e para seu subproduto final, a adenosina (receptores P1). Estudos posteriores mostraram que a AULA ABERTA

PRECISION GRAPHICS

Fosfato


...E FORA DELAS

AMP

Adenosina Receptor P1

CÉLULA RECEPTORA

JOHN PHILIPS GETTY IMAGES (SZENT GYORGY); CORTESIA DE GEOFFREY BURNSTOCK (HOLMAN E BURNSTOCK); EXTRAÍDO DE “CRYSTAL STRUCTURE OF THE ATP-GATED P2X4ION CHENNEL IN THE CLOSED STATE”, POR TOSHIMITSU KAWATE, JENNIFER CARLISLE MICHEL, WILLIAM T. BIRDSONG E ERIC GOUAUX, EM NATURE, VOL. 460, 30/07/2009. PUBLICADO COM PERMISSÃO DE MACMILLAN PUBLISHERS LTD (CRISTAIS DE ATP)

O ATP torna-se um sinal quando um neurônio o libera de vesículas 1 junto com moléculas neurotransmissoras; muitas células não neurais também o liberam usando vesículas ou mecanismos similares. Enzimas logo começam a quebrar o ATP 2, removendo os fosfatos para produzir, na sequência, ADP, adenosina monofosfatada (AMP) e adenosina. O ATP e seus subprodutos levam mensagens ao se ligarem a receptores específicos nas células 3. Dois tipos distintos de receptores, chamados P2X e P2Y, reconhecem o ATP. Os últimos reconhecem também o ADP; o AMP e a adenosina se ligam a receptores P1. Com a degradação do ATP, os sinais transmitidos por seus subprodutos podem aumentar ou diminuir seus efeitos; a adenosina, por exemplo, pode se ligar a receptores P1 na célula receptora, suprimindo a liberação de ATP.

ativação dos receptores P2 pelo ATP poderia produzir efeitos celulares diferentes. Isso levou Burnstock e seu colaborador Charles Kennedy a antecipar a existência dos subtipos dos receptores P2, que eles chamaram P2X e P2Y. Ainda assim, a ideia de nervos que liberavam ATP como neurotransmissor continuou controversa e foi descartada por muitos anos. Na década de 90, no entanto, surgiram ferramentas moleculares que permitiram a muitos grupos de pesquisadores isolar os receptores de ATP e explorar seus efeitos fascinantes nas células do sistema nervoso e dos demais.

INTERAÇÃO E DINÂMICA O início da década de 90 viu o passo inicial do Projeto Genoma Humano, abrindo uma era prolífica na descoberta de genes que codificam proteínas importantes no corpo humano. Havia vários deles para os receptores de ATP, o que permitiu aos cientistas localizar os últimos em diferentes tipos de células. Os estudos da transmissão de sinais pelo ATP enAULA ABERTA

traram em uma nova e excitante fase. Tentativas de caracterizar a estrutura molecular dos receptores de purina provaram a existência de uma grande família de receptores e identificaram alguns canais e enzimas na superfície das células que participam da transmissão de sinais via ATP. Como previsto, duas amplas classes de receptores foram identificadas, mas o trabalho também revelou muito mais subtipos de receptores do que se esperava dentro delas. Essa diversidade significava que drogas altamente seletivas poderiam ser usadas para “desligar” esses receptores, modulando os sinais transmitidos pelo ATP apenas em tecidos ou tipos de células específicos – uma ideia que está dando frutos hoje (ver quadro na pág. 40). Após o isolamento inicial dos receptores de ATP, vários pesquisadores mostraram que as duas classes principais operam de maneiras significativamente diferentes. Os receptores P2X pertencem a uma “superfamília” de canais iônicos seletivamente permeáveis aos transmissores. Um dos autores (Khakh), com outros pesquisadores, mostrou que, quando ligados ao ATP, os receptores P2X literalmente se abrem para formar um canal que permite a entrada de sódio e grandes quantidades de íons de cálcio na célula. Os receptores P2Y, ao contrário, não abrem da mesma forma, mas o ATP ligado a sua superfície extracelular inicia uma cascata de interações moleculares dentro das células que resulta na liberação dos suprimentos internos de cálcio. Em ambos os casos, o cálcio pode iniciar eventos moleculares que alteram o comportamento da célula. Apesar de o ATP ficar na fenda sináptica por pouco tempo, os efeitos celulares da ativação do receptor podem ser curtos em alguns casos (durando milissegundos), mas duradouros em outros – às vezes, anos. Uma enxurrada de íons de cálcio entrando pelos canais P2X, por exemplo, pode levar a célula a liberar outros transmissores, como Khakh mostrou no tecido cerebral, ou o cálcio liberado pode alterar a atividade dos genes envolvidos na proliferação das células, causando mudanças nos tecidos com consequências para toda a vida. Mesmo com uma passagem tão efêmera, a presença das moléculas de ATP no espaço intercelular teria efeitos bastante duradouros. Os mecanismos da transmissão de sinais pelo ATP se tornam ainda mais fascinantes quando suas interações com os outros sistemas de transmissão extracelular de sinais são levadas em conta. Uma grande família de enzimas conhecidas como ectoATPases fica na superfície da maioria SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

39

TRANSMISSÃO PELO ATP: UMA BREVE HISTÓRIA 1929 O ATP é descoberto como a fonte de energia do tecido muscular.

1929 Albert SzentGyörgyi descobre que as purinas (a família química do ATP) têm efeitos potentes no coração. X

Albert Szent-Györgyi

1945 Confirmada a estrutura do ATP. 1959 Pamela Holton demonstra a liberação de ATP pelos nervos sensoriais.

1962 Geoffrey Burnstock demonstra a transmissão de mensagens dos neurônios para os músculos por um novo neurotransmissor. T

Mollie Holman

e Burnstock, 19

62

1972 Burnstock propõe a existência de nervos que enviam sinais por meio do ATP.

1976 Burnstock sugere que o ATP atua como um cotransmissor com outros neurotransmissores.

1993-1994 Os receptores P2X e P2Y são isolados das células.

1998 Clopidogrel, droga que age nos receptores P2Y das plaquetas, é introduzido para evitar a formação de coágulos nos vasos sanguíneos.

2009 A estrutura em forma de cristal de um receptor P2X é revelada, o que deve ajudar na descoberta de novas drogas. X Receptor P 2X 4


UM SINAL, MUITAS MENSAGENS A atividade de transmissão de sinais pelo ATP foi detectada pela primeira vez entre células nervosas e tecido muscular, mas hoje se sabe que ele opera em uma grande variedade de células pelo corpo. Exemplos selecionados do sistema cardiovascular ilustram como os efeitos do ATP podem ser diferentes em sua natureza e duração.

TIPOS DE RECEPTORES Os receptores celulares de ATP têm duas formas. O receptor P2X é um canal que se abre quando o ATP se liga a sua parte externa, permitindo que íons de cálcio e sódio invadam a célula. Quando uma molécula se liga a um P2Y, ele inicia uma cascata de sinais internos que libera as reservas interiores de íons de cálcio. Em ambos os casos, o aumento da quantidade de cálcio pode levar a eventos de curta duração, como a contração muscular. A ativação do P2Y pode iniciar mais interações moleculares e atividade genética que leva a efeitos de longo prazo, como a proliferação das células. Íon de cálcio

EFEITOS DO ATP NOS VASOS SANGUÍNEOS A Contração X As células do sistema nervoso simpático liberam ATP junto com o neurotransmissor noradrenalina. O ATP se liga aos receptores nas células musculares que formam as paredes dos vasos, causando sua rápida contração.

Células epiteliais sob tensão liberam ATP

Íon de sódio

Células musculares Nervo ATP Vaso se contrai

Vaso sanguíneo

O ATP se liga ao receptor P2Y nas células epiteliais próximas

ATP

Canal P2X

Nervo libera ATP e noradrenalina

ATP se liga ao receptor P2X na célula muscular

ATP

B Dilatação W Mudanças na corrente sanguínea produzem uma “tensão de cisalhamento” nas células epiteliais que revestem as paredes dos vasos, levando-as a liberar ATP, que ativa os receptores nas células epiteliais próximas. Elas respondem liberando óxido nítrico, que faz os vasos relaxarem.

Receptor P2Y Células danificadas vazam ATP Efeitos de curto prazo

Sinais em cascata

Plaqueta

Lesão Células epiteliais

Efeitos de longo prazo

DNA

Vaso relaxa Reserva de íons de cálcio

CÉLULA RECEPTORA

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NORADRENALINA Neurotransmissor responsável pela manutenção da pressão arterial normal no organismo e precursor da adrenalina. É uma das substâncias que mais influenciam no humor, ansiedade e sono.

C Coagulação do sangue X O ATP que vaza das células danificadas em uma lesão é quebrado em ADP; ele se liga a receptores nas plaquetas, que respondem se agregando para formar um coágulo sanguíneo que fecha a ferida.

das células, onde elas rapidamente retiram os fosfatos do ATP, um por um – sequencialmente transformando uma molécula de ATP em adenosina difosfato (ADP), adenosina monofosfato (AMP) e finalmente adenosina sozinha. Cada um dos subprodutos da quebra do ATP pode ter um efeito próprio em uma célula – como quando a adenosina se liga aos receptores P1. Fusao Kato, da Faculdade de medicina da Universidade Jikei, em Tóquio, mostrou, por exemplo, que o ATP e a adenosina agem em conjunto na rede neuronal do cérebro responsável por funções básicas do corpo, como respiração, ritmo cardíaco e ação gastrointestinal. No entanto, há outras situações em que o ATP e a adenosina se opõem, como durante a transmissão entre neurônios, na qual a adenosina pode impedir um deles de liberar ATP na fenda sináptica. Os efeitos correlatos do ATP, de 40

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

ADP se liga a receptores P2Y nas plaquetas Coágulo se forma para fechar a ferida

seus componentes e das ectoATPases extracelulares podem, então, ser vistos como uma cadeia de sinalização autorregulável em várias circunstâncias. Não são apenas os subprodutos da quebra do ATP que influenciam seus efeitos nas células. No sistema nervoso, age em conjunto com outros neurotransmissores, como um cotransmissor. A descoberta desse fenômeno em 1976 por Burnstock ajudou a rever a teoria então consolidada de que qualquer neurônio poderia sintetizar, armazenar e liberar apenas um tipo de neurotransmissor. Hoje, um conjunto substancial de evidências mostra que o ATP é tipicamente liberado junto com os neurotransmissores clássicos, como a noradrenalina ou a acetilcolina. Apesar de a cotransmissão do ATP ser a primeira a ter sido proposta e provada, o fenômeno dos neurônios que liberam mais de um tipo de transmissores ficou comprovado, como a secreAULA ABERTA

PRECISION GRAPHICS

Núcleo


Veia

D

Artéria B

C

Coração

Ferimento

Células proliferam Tecido danificado libera ATP

ATP se liga a receptores P2Y e P1 nas células epiteliais e musculares

Artéria

D Proliferação celular S Após a cirurgia para liberar uma artéria parcialmente bloqueada, o ATP liberado pelo tecido danificado se liga a receptores nas células epiteliais e musculares, induzindo-as a se multiplicar. O resultado pode ser um duradouro reestreitamento da artéria chamado restenose.

ção de GABA com glicina, dopamina com serotonina e acetilcolina com glutamato. A cotransmissão é, portanto, outro exemplo de como os estudos da transmissão de sinais pelo ATP revelaram princípios fisiológicos mais gerais, bem como moldaram e guiaram a pesquisa em outros campos.

ATP NA SAÚDE E NA DOENÇA À luz do papel ocupado pelo ATP na transmissão de sinais entre as células nervosas, não surpreende que ele tenha papel importante no funcionamento dos cinco sentidos. No olho, por exemplo, os receptores de ATP das células nervosas da retina influenciam as respostas celulares à informação recebida dos cones e bastonetes, os detectores de luz. Os nervos da retina, por sua vez, enviam ATP e acetilcolina como cotransmissores para levar suas informações aos centros de processamento sensorial no cérebro. AULA ABERTA

CORTESIA DE VAHRI BEAUMONT (KHAKH); CORTESIA DE GEOFFREY BURNSTOCK (BURNSTOCK); CORTESIA DE M. J. GRIMOSN E L. R. BLANTON TEXAS TECH UNIVERSITY (MOFO)

A

Além dessa função comum do ATP, vários grupos de pesquisa mostraram que a transmissão de sinais pelo ATP em um ponto-chave durante a formação do olho do embrião pode ter efeitos que duram por toda a vida. Nicholas Dale, da University of Warwick, na Inglaterra, e colegas mostraram que a liberação de ATP em um momento crítico no embrião é o sinal para o início do desenvolvimento dos olhos. A liberação de ATP durante a gestação é fundamental para a formação da cóclea, o órgão responsável pela audição, e a transmissão de sinais pelo ATP continua a ser crucial no funcionamento do ouvido interno dos adultos. Cerca de 50 mil células ciliadas – os neurônios que captam o som no ouvido interno – revestem a cóclea humana, e cerca de metade delas apresentam receptores de ATP, que comprovadamente reduzem a atividade neuronal em algumas circunstâncias. Além disso, as papilas gustativas (as terminações nervosas sensoriais da língua) têm receptores P2X que medeiam o sabor. Em um estudo particularmente bem elaborado, Sue C. Kinnamon e seus colegas da Colorado State University demonstraram que o ATP é um transmissor vital entre as células gustativas e os nervos correspondentes e que ratos desprovidos dos subtipos de receptores P2X2 e P2X3 não conseguem sentir sabores. Curiosamente, esses receptores presentes nas papilas gustativas são os mesmos que atuam em certos tipos de transmissão de sinais de dor. Por décadas, os cientistas sabiam que a introdução de ATP na pele causa dor. Stephen B. McMahon e seus colegas das escolas londrinas de biomedicina Guy’s, King’s e St. Thomas mostraram que a dor é causada pela ativação dos receptores de ATP P2X3 nas terminações nervosas da pele que medeiam respostas ao toque e à dor. Outra forma de dor, associada aos danos aos nervos, é chamada dor neuropática e envolve o ATP por uma rota diferente. Estudos engenhosos de Kazuhide Inoue, da Universidade de Kyushu, no Japão, e Michael Salter, da University of Toronto, mostram que um passo importante no desenvolvimento desse tipo de dor envolve a ativação dos receptores de ATP das células imunológicas da coluna, chamadas microgliócitos, que, por sua vez, liberam moléculas que irritam as fibras nervosas, causando dor crônica. Com base nas novas descobertas do papel do ATP como neurotransmissor, várias empresas farmacêuticas veem agora os receptores P2X como novos alvos de drogas para tratar a dor neuropática e a dor causada por inflamações. E a dor é apenas um dos aspectos da saúde humana a se SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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OS AUTORES Baljit S. Khakh é professor-assistente de fisiologia e neurobiologia na David Geffen School of Medicine da University of California em Los Angeles. Ele desenvolveu novas ferramentas, como receptores modificados de ATP que podem ser monitorados pela luz, para descobrir como as células o detectam e respondem a ele. Geoffrey Burnstock, o primeiro a mostrar que o ATP age como uma molécula transmissora de sinais, foi o responsável pelo departamento de anatomia e biologia de desenvolvimento da University College London por 22 anos, sendo hoje presidente do Centro Autônomo de Neurociência da Royal Free and University College Medical School em Londres. Ele ganhou vários prêmios e honrarias. Burnstock e Khakh se conheceram em 1994 em uma cafeteria em Viena, onde conversaram sobre o ATP comendo strudel de maçã.

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DOR NEUROPÁTICA Sensação dolorosa que pode acometer diversas partes do corpo, estando associada a doenças relacionadas ao sistema nervoso central, como nos nervos periféricos, na medula espinhal ou no cérebro. Essa dor pode ser consequência de doenças degenerativas que levam à compressão ou lesões no nível da coluna.


Como neurotransmissor, o ATP está diretamente envolvido na função cerebral, na percepção sensorial e no controle dos músculos e órgãos pelo sistema nervoso. Quando é liberado por células não neurais, costuma iniciar tarefas de proteção, como a construção de ossos e proliferação celular. Abaixo estão algumas áreas em que há esforços para entender e explorar as várias funções do ATP.

Medula espinhal Nervos

CÉREBRO: O ATP modula a comunicação entre os neurônios e entre eles e as células de suporte chamadas glia. Os sinais transmitidos pelo ATP e seu subproduto, a adenosina, estão envolvidos no sono, na memória, no aprendizado, no movimento e em outras atividades cerebrais, e o excesso de sinais pode ter relação com a epilepsia e alguns distúrbios psicológicos. O ATP também estimula o desenvolvimento de tecidos e o reparo pós-traumático, mas pode promover a morte celular em doenças neurodegenerativas.

Coração

Intestinos

ÓRGÃOS SENSORIAIS E CAMINHOS DE DOR: O ATP regula, e em alguns casos carrega, a informação que flui dos sensores nos olhos, orelhas, nariz e língua para o cérebro. Nervos sensíveis à dor também usam a molécula para transmitir sinais para a espinha.

Bexiga

CORAÇÃO: O ATP liberado junto com a noradrenalina por nervos autônomos estimula a contração dos músculos cardíacos. A disfunção nessa sinalização causa arritmia e alterações de pressão sanguínea.

Pênis

OUTROS ÓRGÃOS: As contrações intestinais normais e as secreções enzimáticas durante a digestão são fortemente influenciadas pelo ATP, que leva sinais dos nervos das vísceras. O controle e as contrações da bexiga também são regulados por ele, e a ereção e o relaxamento do pênis requerem sinais de ATP dos nervos para os músculos lisos e para as células epiteliais, que, por sua vez, liberam o relaxante muscular óxido nítrico.

Ossos

OSSOS: A ativação dos receptores de ATP estimula as células que criam ossos e reprime as que os destroem. PELE: Os receptores de ATP medeiam a renovação celular da pele na regeneração normal, na cicatrização de ferimentos e possivelmente nas doenças de proliferação celular como a psoríase e a esclerodermia.

Pele

SISTEMA IMUNITÁRIO: O ATP liberado pelos tecidos lesionados leva as células imunológicas a provocar inflamação, uma resposta que também pode causar dor. A inflamação excessiva e prolongada pode danificar o tecido, como na artrite reumatoide. A transmissão de sinais pelo ATP também ajuda as células imunológicas a matar células infectadas por bactérias.

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SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL SCIEN

beneficiar em pouco tempo das terapias voltadas ao ATP e seus receptores. Pessoas com problemas cardíacos e circulatórios estão entre os que se beneficiarão das futuras drogas que poderão agir sobre os receptores de ATP. A razão fica clara quando vemos os eventos que se seguem a um ferimento. As células afetadas ou fisicamente danificadas podem liberar ou derramar ATP no espaço extracelular. Nessas situações, a transmissão de sinais pelo ATP resulta em respostas de proteção e cura, incluindo as plaquetas, células do sangue responsáveis pela fomação de coágulo para parar o sangramento de uma ferida. As plaquetas têm o receptor P2Y12, e sua ativação pelo ATP extracelular as induz a transformações que levam à formação do coágulo. É claro que esse processo também contribui para a formação de coágulos nos vasos, que causam os ataques cardíacos e derrames. Uma droga “arrasaquarteirão”, o clopidogrel, funciona bloqueando o receptor P2Y12 das plaquetas, evitando que o ATP promova a coagulação. Várias drogas que funcionam de modos parecidos também estão em testes clínicos avançados para doenças coronarianas. Uma área terapêutica igualmente promissora é o aparelho digestivo. James J. Galligan, da Michigan State University, e outros demonstraram que o ATP enviado pelo sistema nervoso intestinal para a parede do intestino atua nos receptores P2X e P2Y controlando as contrações rítmicas que empurram a comida pelo trato digestivo. Enquanto isso, o ATP que se liga aos receptores P2Y nas células que revestem a superfície interna do intestino estimula a liberação de enzimas digestivas. Os agentes que atuam nesses receptores para modular essas funções estão sendo avidamente procurados pelas empresas farmacêuticas como potenciais tratamentos para a síndrome do cólon irritado e sua forma mais severa, a doença de Crohn. O envolvimento do ATP no funcionamento sadio de outros órgãos e tecidos faz dele um possível medicamento para uma longa lista de doenças, como as renais, ósseas, císticas, cutâneas e até neurológicas e psiquiátricas. Mais que isso, pode ser uma das ferramentas naturais do corpo contra o câncer. Eliezer Rapaport, quando na Boston University School of Medicine, descreveu um efeito antitumonal da molécula pela primeira vez em 1983. Ele também foi recebido com ceticismo, mas a pesquisa realizada desde então por vários laboratórios independentes mostrou que ela pode inibir o crescimento dos AULA ABERTA

PRECISION GRAPHICS

ANATOMIA DO ATP

Cérebro


ORIGENS REMOTAS

CONCEITO

COÁGULO

A descoberta dos receptores de ATP nas plantas e formas de vida primitivas, como amebas e vermes, sugere que a molécula ganhou essa função logo no início da evolução da vida. No fungo Dictyostelium discoideum (ao lado), receptores ativados pelo ATP que lembram os canais P2X em humanos controlam a entrada e saída de água das células.

tumores do câncer de próstata, mama, intestino, ovário e esôfago, assim como o das células do melanoma. O ATP age em uma frente promovendo o suicídio das células tumorais e em outra promovendo a diferenciação celular, que retarda a proliferação de células tumorosas. Muito trabalho ainda tem de ser feito para transformar as novas descobertas sobre o ATP em novos remédios que possam ser usados nas clínicas. Mas muitos laboratórios e companhias farmacêuticas buscam ativamente drogas que ativem ou silenciem seletivamente os subtipos de receptores de ATP, inibam ou aumentem sua liberação ou inibam sua quebra quando for liberado pelas células.

O SUPREMO MENSAGEIRO A onipresença do ATP como molécula transmissora de informações traz ao menos um grande desafio: desenvolver drogas destinadas a apenas um órgão ou tecido, sem causar efeitos colaterais em outras partes do corpo. Essa preocupação não se restringe a ele, no entanto, e a grande variedade de subtipos de diferentes tipos de células tornará a restrição das novas terapias mais viável. Khakh tem feito experiências com a criação de receptores “desenhados”, que podem ser incorporados a células cultivadas ou até mesmo a cobaias vivas e usados para testar os efeitos de mudar sutilmente a função de uma proteína receptora P2X. Esse é apenas um método que permite aos pesquisadores manipular a transmissão de sinais pelo ATP de modo controlado e estudar os resultados em organismos vivos. Uma das descobertas mais importantes dos últimos 20 anos foi a estrutura em forma de cristal de um canal P2X de um peixe-zebra por Eric Gouaux e seus colegas da Oregon Health and Science University. Essa conquista marcante mostra detalhes em escala atômica de como um receptor de ATP funciona e abre caminho para um entendimento da transmissão de sinais pelo ATP desde o nível AULA ABERTA

Estrutura formada durante o processo de coagulação sanguínea composta por células como hemácias, leucócitos e plaquetas as quais ficam retidas na rede de fibrina, impedindo o vazamento do sangue. molecular até o de sistemas fisiológicos inteiros. Isso vai acelerar significativamente o processo de descoberta de drogas. Evidências recentes da existência de receptores de ATP nas plantas e organismos simples, como algas verdes, amebas e esquistossomos, oferecem a possibilidade de que o estudo da transmissão de sinais pelo ATP também pode ser útil na agricultura e no tratamento de doenças infecciosas. Sua presença em formas de vida tão diferentes sugere, também, que a função do ATP como molécula transmissora surgiu no início da evolução da vida – talvez mais ou menos simultaneamente à sua adoção como fonte de energia. Muitos relatos de efeitos potentes causados pela molécula e seus derivados na maioria dos invertebrados e nos vertebrados inferiores também sugerem que sua influência seja realmente disseminada. É gratificante para nós ver como o papel do ATP como molécula transmissora de sinais deixou de ser a ideia dúbia de 50 anos atrás para um grande e vibrante campo de pesquisa hoje, de interesse para toda a comunidade da biologia e de grande importância para a medicina. Estamos ansiosos para ver como as próximas descobertas na compreensão da fascinante jornada dupla do ATP serão exploradas para melhorar a qualidade da vida humana.

CONCEITO

MELANOMA Tipo de câncer que tem origem nos melanócitos (células produtoras de melanina, substância que determina a cor da pele).

HYPERLINK

VERTEBRADOS INFERIORES Animais que apresentam coluna segmentada e crânio, para proteção cerebral, como peixes, anfíbios, répteis e aves. Nestes, o cérebro controla predominantemente as funções de órgãos sensoriais.

PARA CONHECER MAIS Physiology and pathophysiology of purinergic neurotransmission. Geoffrey Burnstock, em Physiological Reviews, vol. 87, no 2, págs. 659-797, abril de 2007. Pathophysiology and therapeutic potential of purinergic signalling. Geoffrey Burnstock, em Pharmacological Reviews, vol. 58, no 1, págs. 58-86, março de 2006. Molecular physiology of P2X receptors and ATP signalling at synapses. Baljit S. Khakh, em Nature Reviews Neuroscience, vol. 2, págs. 165-174, março de 2001. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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ÃO DE SUGEST S

DE ATIVIDÁA G. 60 NA P


O fim

GEOGRAFIA

da MISÉRIA A economia está tirando grande parte da humanidade da pobreza, mas são necessárias medidas especiais para ajudar aqueles em situação de desespero

HYPERLINK

POBREZA Medido por diferentes indicadores, estado de carência de indivíduos e grupos, seja por renda insuficiente ou ausência de bens e serviços coletivos. Não atendimento de necessidades básicas como moradia, alimentação, vestuário, saúde, educação etc. HYPERLINK

METAS DO MILÊNIO Estabelecidas pela ONU para serem cumpridas pelos países até 2015: erradicar a pobreza e a fome, universalizar a educação básica, igualdade entre os sexos, reduzir a mortalidade infantil, melhorar a saúde materna, combate ao HIV/ aids e outras doenças, garantir a sustentabilidade ambiental e estabelecer parcerias para o desenvolvimento em escala mundial.

Q

uase todas as pessoas que viveram ao longo da história foram tremendamente pobres. A fome, a morte no parto, doenças infecciosas e inúmeros outros riscos constituíram a norma na maior parte dos séculos. O triste destino da humanidade passou a mudar com a Revolução Industrial, que começou em torno de 1750. Novos conhecimentos científicos e inovações tecnológicas permitiram que uma proporção crescente da população global rompesse os grilhões da pobreza extrema. Dois séculos e meio depois, mais de 5 bilhões dos 6,5 bilhões de pessoas conseguem satisfazer as necessidades básicas, podendo-se portanto dizer que escaparam das condições precárias que permeavam outrora a vida diária. Contudo, um de cada seis habitantes deste planeta ainda luta diariamente para satisfazer algumas ou todas as suas necessidades críticas, como nutrição adequada, água não contaminada, abrigo seguro e saneamento, bem como acesso aos cuidados de saúde. Essas pessoas vivem com 1 dólar por dia ou menos, sendo ignoradas pelos serviços públicos na saúde, educação e infraestrutura. Cada dia, mais de 20 mil morrem por falta de comida, água potável, remédios ou outras necessidades essenciais. 44

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Pela primeira vez na história, a prosperidade econômica global, proporcionada pelo progresso científico e tecnológico contínuo e pela acumulação autorreforçadora de riqueza, trouxe ao mundo a perspectiva da total eliminação da pobreza extrema. Essa possibilidade pode parecer fantasiosa para alguns, mas o progresso econômico substancial da China, Índia e outras regiões de baixa renda da Ásia nos últimos 25 anos demonstra ser ela realista. Além disso, a estabilização da população mundial, prevista para perto de meados deste século, ajudará a abrandar as pressões sobre o clima, ecossistemas e recursos naturais da Terra – pressões que poderiam anular os ganhos econômicos. Mas embora o crescimento econômico tenha mostrado uma capacidade notável de tirar grandes números de pessoas da pobreza extrema, o progresso não é automático nem inevitável. Forças do mercado e o livre comércio não bastam. Muitas regiões estão dominadas pela armadilha da pobreza: faltam os recursos financeiros para fazer os investimentos necessários em infraestrutura, educação, sistemas de saúde e outras necessidades vitais. No entanto, o fim de tal pobreza é factível se um esforço global conjunto for realizado, como as nações do mundo prometeram ao adotar as Metas de Desenvolvimento do Milênio, em uma cúpula da AULA ABERTA

AN BERRY MAGNUM PHOTOS

Por Jeffrey D. Sachs


A POBREZA EXTREMA pode se tornar coisa do passado em poucas décadas se os países afluentes aplicarem uma pequena porcentagem de sua riqueza para ajudar 1,1 bilhão de pessoas a superar sua condição. Aqui, um vilarejo em Gana, abastecido com água de uma única cisterna.

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ALÉM DA INÉRCIA ECONÔMICA Nos últimos anos, os economistas aprenderam muita coisa sobre como os países se desenvolvem e quais barreiras podem obstruir o caminho. Uma nova espécie de economia do desenvolvimento vem emergindo, mais fundamentada na ciência: uma “economia clínica” semelhante à medicina moderna. Os atuais profissionais médicos compreendem que as doenças resultam da interação de um amplo conjunto de fatores e distúrbios: patógenos, nutrição, meio ambiente, envelhecimento, genética individual e da população e estilo de vida. Eles também sabem que uma chave para o tratamento apropriado é a capacidade de fazer diagnósticos individualizados da origem da doença. De forma semelhante, os economistas do desenvolvimento precisam de uma melhor capacidade de diagnóstico para reconhecer que as patologias econômicas têm uma ampla variedade de causas, inclusive muitas fora do alcance da prática econômica tradicional. A opinião pública dos países afluentes costuma atribuir a pobreza extrema a falhas dos próprios países pobres – ou pelo menos de seus governos. A raça era outrora considerada um fator decisivo. Depois foi a cultura: desvios e tabus religiosos, divisão em castas, falta de espírito empreendedor, desigualdade entre os sexos. Tais teorias vêm perdendo força, à medida que sociedades com uma variedade crescente de religiões e culturas têm alcançado uma prosperidade relativa. Além disso, certos aspectos supostamente imutáveis da cultura (como opções de fertilidade e os papéis dos sexos e castas) na verdade mudam, muitas vezes profundamente, à medida que as sociedades se tornam urbanas e economicamente desenvolvidas. 46

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Recentemente, os comentaristas têm se concentrado no “mau governo”, muitas vezes um eufemismo para corrupção. Eles argumentam que a pobreza persiste porque os governos deixam de abrir seus mercados, fornecer serviços públicos e combater a corrupção. Se esses regimes arrumassem a casa, tais países floresceriam. Os programas de ajuda para o desenvolvimento se tornaram, em grande parte, uma série de palestras sobre a boa governança. A disponibilidade de dados comparativos entre os países e em séries temporais agora permite aos especialistas análises bem mais sistemáticas. Embora o debate continue, dados indicam que não é só a governança que afeta o crescimento econômico. De acordo com pesquisas da Transparência Internacional, muitos países asiáticos em rápido

ENCRUZILHADA DA POBREZA O PROBLEMA: ■

Embora a maior parte da humanidade tenha conseguido se libertar da pobreza extrema e endêmica desde o início da Revolução Industrial, cerca de 1,1 bilhão dos atuais 6,5 bilhões de habitantes globais são miseráveis em um mundo de abundância. Essas pessoas, que sobrevivem com menos de 1 dólar por dia, têm pouco acesso a nutrição adequada, água potável e abrigo, bem como saneamento básico e cuidados de saúde. O que podemos fazer para tirar da pobreza extrema essa enorme fatia da população?

O PLANO: ■

Dobrar o auxílio financeiro de países afluentes contra a pobreza para cerca de US$160 bilhões anuais traria uma melhora significativa para o apuro em que se encontra um sexto dos humanos. Esse valor constituiria cerca de 0,5% do PIB dos países ricos. Como esses investimentos não incluem outros tipos de ajuda, como gastos com grandes projetos de infraestrutura, combate à mudança climática ou reconstrução pós-conflito, doadores deveriam se comprometer com a velha meta de 0,7% do PIB em 2015. Essas doações, frequentemente fornecidas a grupos locais, precisam ser monitoradas de perto e auditadas para garantir que sejam direcionadas de maneira correta aos realmente necessitados.

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ONU em 2000. Um núcleo dedicado de agências de desenvolvimento, instituições financeiras internacionais, organizações não governamentais e comunidades no mundo em desenvolvimento já constitui uma rede global de expertise e boa vontade para ajudar a atingir esse objetivo. Eu e meus colegas do Projeto do Milênio da ONU publicamos um plano para reduzir pela metade a taxa de pobreza extrema até 2015 (em comparação com 1990) e para alcançar outras metas quantitativas em redução da fome, doenças e degradação ambiental. Em meu livro The end of poverty (O fim da pobreza), argumento que um programa de investimentos públicos em grande escala e direcionado poderia eliminar esse problema até 2025, assim como a varíola foi erradicada.

Comida para jovens refugiados africanos.

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DOENÇA CRÔNICA: MUNDO RICO, GENTE POBRE APESAR DE A MISÉRIA estar espalhada pelo mundo, existem áreas de concentração. De acordo com muitos estudos, o problema da pobreza extrema (pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia) é mais indomável na África Subsaariana, nos Andes, na América Central e nas nações isoladas na Ásia Central. No mapa abaixo, produzido pelo Centro de Pesquisas da Pobreza Crônica, a escala de tamanho dos países está de acordo com seu número de habitantes em pobreza irreversível. A cor indica o nível de renda da maior parte dos habitantes pobres de cada país. Quando dados oficiais são insuficientes, os pesquisadores estimam as taxas nacionais de pobreza. Afeganistão Estados Unidos Canadá

Paquistão Europa

Rússia

Nepal

Coreia do Norte

Bangladesh

Iraque

Mianmar México

ML MR

Haiti

Colômbia

SN GN SL LR

Venezuela

Equador

BF

GH

ER

SU

TD

BJ

Índia SO

ET

NI

Vietnã

CF UG

IC TG Peru Bolívia

NE

China

Brasil Paraguai

KE CM CG AO

CD

BI

RW

MW ZM ZW

KM MG Indonésia

MZ ZA

FONTE: CENTRO DE PESQUISAS EM POBREZA CRÔNICA (WWW.CHRONICPOVERTY.ORG)

Abr. AO BF Desesperadamente pobres BI Muito pobres BJ Relativamente não pobres CD Dados insuficientes CF CG Nações industrializadas CM ER

Nome do país Angola Burkina Fasso Burundi Benin República Democrática do Congo República Centro-Africana Congo (Brazzaville) Camarões Eritreia

crescimento são percebidos pelos líderes empresariais como mais corruptos que países africanos de crescimento lento. A geografia – incluindo recursos naturais, clima, topografia e proximidade das rotas comerciais e grandes mercados – é pelo menos tão importante quanto a boa governança. Em 1776, Adam Smith já argumentava que altos custos de transporte inibiam o desenvolvimento nas áreas do interior da África e da Ásia. Outros aspectos geográficos, como o alto índice de doenças nos trópicos, também interferem. Um estudo recente de meu colega Xavier Sala-i-Martin da Universidade Columbia, demonstrou mais uma vez que os países tropicais assolados pela malária têm experimentado um crescimento menor que aqueles livres da doença. A boa notícia é que os fatores geográficos moldam, mas não decidem, o destino econômico de um país. A tecnologia pode neutralizá-los: a seca pode ser combatida com sistemas de irrigação, o isolamento, com estradas e telefones celulares, as doenças, com prevenção e terapia. AULA ABERTA

Filipinas

Camboja

TZ

LS Abr. ET GH GN IC KE KM LR LS MG

Nome do país Etiópia Gana Guiné Costa do Marfim Quênia Comores Libéria Lesoto Madagascar

Abr. MW ML MR MZ NE NI RW SL SN

Nome do país Malauí Mali Mauritânia Moçambique Níger Nigéria Ruanda Serra Leoa Senegal

A outra grande ideia é que, embora o mecanismo mais poderoso de redução da pobreza extrema seja encorajar o crescimento econômico geral, uma maré ascendente não eleva necessariamente todos os barcos. A renda média pode aumentar, mas se ela for distribuída desigualmente, os pobres poderão pouco se beneficiar, e os bolsões de pobreza extrema persistirão (especialmente em regiões geograficamente desprovidas). Além disso, o crescimento não é um simples fenômeno de livre mercado. Ele requer serviços públicos básicos: infraestrutura, saúde, educação e inovação científica e tecnológica. Desse modo, muitas das recomendações das últimas duas décadas emanadas de Washington – de que os governos dos países de baixa renda deveriam reduzir os gastos públicos para abrir espaço ao setor privado – erram o alvo. O gasto governamental, direcionado a investimentos em áreas críticas, é em si um incentivo vital ao crescimento, especialmente se seus efeitos atingirem a população mais pobre. SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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Abr. SO SU TD TG TZ UG ZA ZM ZW

Nome do país Somália Sudão Chade Togo Tanzânia Uganda África do Sul Zâmbia Zimbábue

O AUTOR Jeffrey D. Sachs dirige o Instituto da Terra da Universidade Columbia e o Projeto do Milênio da ONU. Como economista, fez sua formação acadêmica toda na Universidade Harvard. É conhecido por ter assessorado governos da América Latina, leste da Europa e ex-União Soviética, Ásia e África sobre reformas econômicas e por seu trabalho em órgãos internacionais para promover a redução da pobreza, o controle das doenças e a redução da dívida dos países pobres.


GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E AJUDA EXTERNA Cidadãos de países industrializados costumam ter dúvidas sobre onde e como são gastas as doações de seus governos (oriundas do dinheiro dos impostos) para ajudar os pobres de nações estrangeiras. Eis algumas respostas breves:

A globalização está tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres?

O aumento da renda nos países pobres resultará na queda da renda nos países ricos?

Em geral, a resposta é “não”. A globalização está promovendo avanços muito rápidos de muitas economias pobres, em especial na Ásia. O comércio internacional e os influxos de investimentos externos foram fatores importantes do crescimento econômico notável da China no último quarto de século e do rápido crescimento econômico da Índia desde o início da década de 1990. Os países mais pobres, marcadamente na África Subsaariana, não são mantidos na pobreza pela globalização; eles são em grande parte ignorados por ela.

De modo geral, o desenvolvimento econômico é um processo de soma positiva, significando que todos podem participar sem que ninguém saia prejudicado. Nos últimos 200 anos, o mundo como um todo obteve um aumento maciço da produção econômica, e não uma mudança da produção econômica para certas regiões à custa de outras. Sem dúvida, restrições ambientais globais já começam a se impor. À medida que os países pobres atuais se desenvolverem, o clima, as áreas de pesca e as florestas sofrerão uma pressão crescente. O crescimento econômico global é compatível com a exploração sustentável dos ecossistemas de que todos os seres humanos dependem – na verdade, a riqueza pode ser benéfica ao meio ambiente –, mas somente se as políticas públicas e tecnologias encorajarem práticas sensatas e forem feitos os investimentos necessários na sustentabilidade ambiental, metas ainda longe de ser atingidas.

As nações afluentes repetidamente pilharam e exploraram os países pobres por meio da escravidão, governo colonial e práticas comerciais injustas. No entanto, talvez seja mais exato dizer que a exploração é o resultado da pobreza (que deixa os países pobres vulneráveis ao abuso) do que sua causa. A pobreza costuma decorrer da baixa produtividade por trabalhador, que reflete a saúde ruim, falta de qualificação para o mercado de trabalho, precariedade de infraestrutura (estradas, centrais elétricas, portos etc.), subnutrição crônica e coisas semelhantes. A exploração desempenhou um papel na produção dessas condições, mas fatores mais profundos (isolamento físico, doenças, ecologia, dificuldade de produção de alimentos) tendem a ser mais importantes e difíceis de superar sem ajuda externa.

HYPERLINK

REVOLUÇÃO VERDE Processo de aumento da produtividade e das áreas produtivas de cereais como trigo, milho e arroz, desenvolvido a partir dos anos 1950 em projetos experimentais na Ásia e América Latina, com financiamento de instituições de pesquisa dos EUA.

As contribuições privadas americanas compensam os baixos níveis de ajuda oficial dos EUA? Alguns alegam que, embora o orçamento governamental americano forneça relativamente pouco auxílio aos países mais pobres, o setor privado preenche a lacuna. Na verdade, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) estimou que fundações privadas e organizações não governamentais fornecem cerca de US$ 6 bilhões por ano, ou 0,05 % do PIB dos países. Neste caso, a ajuda internacional americana total é de cerca de 0,21% do PIB – ainda uma das menores cotas proporcionais de todas as nações doadoras.

ARMADILHA DA POBREZA na educação dos filhos. Os meninos das cidades freEntão, o que essas ideias informam sobre os mais quentaram a escola numa proporção maior que seus afligidos pela pobreza hoje, os africanos? Há 50 primos do campo. E com o surgimento de sistemas anos, a África tropical era tão rica quanto a Ásia de infraestrutura urbana e saúde pública, as populatropical e subtropical. Enquanto a Ásia progrediu, a ções das cidades se tornaram menos propensas às África estagnou. Certos fatores geográficos tiveram doenças que seus colegas do campo. papel crucial. O principal é a existência do Himalaia, Os africanos não viveram uma revolução verde. que produz o clima das monções do sul da Ásia e Faltam à África tropical as abundantes planícies vastos sistemas fluviais. Terras cultiváveis supridas aluviais que facilitam a irrigação de grande escala e de água serviram de pontos de partida para a su- baixo custo encontrada na Ásia. Além disso, a chuperação da pobreza pela Ásia nas últimas cinco va é altamente instável, e os agricultores pobres décadas. A Revolução Verde das décadas de não têm condições de adquirir fertilizantes. A pes1960 e 1970 introduziu cereais de alto rendimento, quisa inicial da Revolução Verde envolveu culturas irrigação e fertilizantes, que acabaram com o ciclo de – especialmente arroz e trigo – pouco cultivadas na fome, doenças e desespero. Ela também liberou uma África (embora variedades de alto rendimento adeboa parte da mão de obra para procurar empregos quadas a esse continente já tenham sido desennas cidades. A urbanização, por sua vez, incentivou volvidas, ainda não foram suficientemente dissemio crescimento, fornecendo local para a indústria e nadas). Na verdade, a produção de alimentos vem a inovação e estimulando mais investimentos em caindo na África, a ingestão calórica por pessoa é a uma força de trabalho qualificada e saudável. Os menor do mundo e a força de trabalho está presa habitantes urbanos reduziram as taxas de fertilidade à agricultura de subsistência. e, assim, puderam gastar mais em saúde, nutrição e Além dos problemas agrícolas, a África é assola48

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EMILYH ARRISON

A pobreza é o resultado da exploração dos pobres pelos ricos?


JEN CHRISTIANSEN; FONTE: INDICADORES DE DESENVOLVIMENTO DO BANCO MUNDIAL (WWW.WORLDBANK.ORG/DATA/WDI2005/WDITEXT/SECTION1–1–1.HTM)

da por terríveis doenças tropicais. A malária se aproveita do clima e dos mosquitos endêmicos. E os altos custos do transporte isolam a África economicamente. No leste da África, por exemplo, chove mais no interior do continente, fazendo com que a maioria das pessoas viva longe dos portos e das rotas de comércio internacional. Uma situação idêntica persiste em outras partes do mundo, marcadamente os Andes, os planaltos da América Central e os países no interior da Ásia Central. Economicamente isolados, não atraem investimentos externos (exceto para extração de petróleo, gás e pedras preciosas). Os investidores tendem a ser desestimulados pelos altos custos do transporte no interior. As áreas rurais, portanto, permanecem presas num ciclo vicioso de pobreza, fome, doença e analfabetismo.

DINHEIRO BEM APLICADO A tecnologia para superar essas desvantagens e dar partida no desenvolvimento econômico existe. A malária pode ser controlada com mosquiteiros, pesticida borrifado nas casas e remédios melhores. Áreas castigadas pela seca na África, com solos pobres em nutrientes, podem se beneficiar muito da irrigação gota a gota e do maior uso de fertilizantes. Países sem acesso ao mar podem ser interligados por redes de rodovias, aeroportos e cabos de fibra óptica. Mas todos esses projetos custam dinheiro, é claro. Muitos países grandes, como a China, possuem regiões prósperas que podem ajudar a sustentar as áreas mais atrasadas. A ONU listou os investimentos necessários para ajudar as atuais regiões pobres a cobrir necessidades básicas em saúde, educação, água, saneamento, alimentos, estradas etc. Calculamos o custo do auxílio e estimamos quanto poderia ser financiado pelas próprias famílias pobres e instituições internas. O resto é a “lacuna de financiamento” que doadores externos precisam preencher. Para a África tropical, o investimento total chega a US$ 110 por pessoa por ano. Lá, a renda média hoje é de US$ 350 anuais, todos gastos apenas para sobrevivência. O custo pleno do investimento total está claramente além da possibilidade de financiamento interno desses países. Dos US$ 110, talvez US$ 40 pudessem ser financiados internamente, de modo que US$ 70 per capita seriam necessários na forma de ajuda internacional. Somando tudo, a necessidade total de ajuda ao redor do globo é de cerca de US$ 160 bilhões ao ano, o dobro dos US$ 80 bilhões do orçamento atual AULA ABERTA

CONCEITO

ELIMINAÇÃO DO PROBLEMA EM QUE PÉ ESTAMOS

GLOBALIZAÇÃO

O NÚMERO DE pessoas vivendo nos níveis mais baixos da pobreza diminuiu desde o início da década de 1980, com o fortalecimento da economia global. Mas esses ganhos se concentraram no leste da Ásia, deixando para trás mais de 1 bilhão de pessoas na África Subsaariana, Ásia Central e nas montanhas da América Central e dos Andes. Um esforço concentrado para ajudar essas populações carentes durante os próximos dez anos poderia reduzir seu número à metade. América Latina e Caribe Oriente Médio e norte da África Europa e Ásia Central

1981: 1,5 bilhão de pobres Mais da metade dos que viviam em extrema pobreza estava no leste da Ásia e mais de um quarto no sul da Ásia

Leste da Ásia e Pacífico Sul da Ásia África Subsaariana

475

164

MILHÕES

36 9 3

796

1990: 1,2 bilhão de pobres O número de pessoas vivendo na pobreza extrema no leste da Ásia diminuiu em 278 milhões. Se as taxas de pobreza não caíssem, o crescimento da população teria adicionado 285 milhões às fileiras dos gravemente pobres

227 462

2015: 0,7 bilhão de pobres Se as Metas de Desenvolvimento do Milênio forem alcançadas, em 2015 mais de 500 milhões de pessoas terão sido tirados da pobreza extrema, em comparação a 1990, e milhões de vidas terão sido salvos

6 2

472

2001: 1,1 bilhão de pobres O número de pessoas vivendo na pobreza extrema diminuiu em 129 milhões em relação a 1990, mas o número dos extremamente pobres na África Subsaariana subiu para 313 milhões — um terço do total global

49

265 milhões de pessoas a menos na pobreza extrema

313

431

50 7

394 milhões de pessoas a menos na pobreza extrema

17 271

198

90

4 49

825 milhões de pessoas a menos na pobreza extrema

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

317 49

Nova escala geográfica de relações humanas, baseada, entre outros pontos, na liberalização econômica e na livre circulação de bens, pessoas e serviços (embora muitos encontrem barreiras nas fronteiras nacionais) e nos avanços tecnológicos das comunicações e transportes.


METAS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO DA ONU: ESTADO ATUAL NA CÚPULA DO MILÊNIO da ONU, em 2000, as nações do mundo prometeram fazer os investimentos necessários para ajudar as atuais regiões pobres a melhorar o bem-estar de suas populações em áreas-chave incluindo saúde, educação, água, saneamento e produção de alimentos. A ONU especificou oito Metas de Desenvolvimento do Milênio abrangentes para reduzir substancialmente a pobreza extrema ao redor do globo até 2015. Os dados nessas duas páginas ilustram os desafios de atingir esses objetivos. As medições do progresso são baseadas em níveis estatísticos de 1990.

META 1 ERRADICAR A POBREZA EXTREMA E A FOME Objetivo: Reduzir pela metade o número de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia. Status: Entre 1990 e 2001, a fração das populações na África Subsaariana, América Latina e Caribe vivendo em pobreza extrema permaneceu estagnada e, tragicamente, aumentou na Ásia Central. A alimentação está melhorando, mas a fome ainda está espalhada por muitas regiões. Leste da Ásia Europa Oriental e Ásia Central

América Latina/ Caribe

Oriente Médio e Norte da África 400

Sul da Ásia

Sul da Ásia

Leste da Ásia

África Subsaariana 0

1984

1990

Status: Educação é provavelmente a melhor maneira de fomentar a igualdade entre os sexos. Os maiores desafios estão na África Subsaariana, onde a taxa geral de escolaridade completa tem beirado os 50%. Meninas e mulheres estão ainda piores, como mostra abaixo a razão entre mulheres e homens alfabetizados no continente africano.

África Subsaariana Oriente Médio/ Norte da África

América Latina e Caribe

800

1996

500 2001

1.500 2.500 3.500

Consumo médio de calorias diárias (quilocalorias per capita)

Ano

META 4 REDUZIR MORTALIDADE INFANTIL Objetivo: Reduzir em dois terços a taxa de mortes entre crianças menores de 5 anos Status: A mortalidade infantil caiu em todas as regiões, com exceção das ex-repúblicas soviéticas da CEI (Comunidade dos Estados Independentes), mas continua alta na África Subsaariana e no Sul da Ásia. Para comparação, a taxa de mortalidade infantil em países de alta renda em 2000 era de 6 por 1.000 nascimentos.

Causas de mortes entre crianças menores de 5 anos, de 2000 a 2003 Outras

13% 3% Sarampo 4% Aids

Malária

Causas neonatais

Mais de metade associada à subnutrição

MILLENNIUM SPREAD TK 8%

Diarreia (pós-neonatal)

Mortes de crianças menores de 5 anos por cada mil partos bem-sucedidos

37%

17%

19%

META 3 PROMOVER IGUALDADE ENTRE OS SEXOS E DAR PODER ÀS MULHERES Objetivo: Eliminar disparidade entre os sexos na educação primária, secundária e superior até 2015.

1997–1999 2015 2030

1.200

Objetivo: Garantir que em 2015 todas as crianças completem um curso de educação primária.

Infecções respiratórias agudas

Proporção entre números de mulheres e homens alfabetizados abaixo de 15 anos na África

Extremamente pobres (milhões)

1.600

META 2 ATINGIR A EDUCAÇÃO PRIMÁRIA UNIVERSAL

1,0

0,6 0,4

Progresso até agora 1990

1990 / 2002

META 5 MELHORAR SAÚDE MATERNA

Mortes de mães para cada 100 mil recém-nascidos vivos

450

Sudeste asiático

120

Oeste da Ásia

80

América Latina e Caribe Norte da África

40 0

Norte África Sul da América Leste Sudeste Oeste Oceania da Ásia Latina/ da Ásia asiático da Ásia SubÁfrica saariana Caribe

CEI

2015

Objetivo: Reduzir em 75% a taxa de mortes por parto até 2015. Status: Índices de mortalidade materna por parto continuam muito altos em todas as regiões em desenvolvimento do mundo. Aumentar a proporção de partos assistidos por trabalhadores de saúde qualificados será fundamental para aliviar o problema.

Sul da Ásia 160

2000

Ano

África Subsaariana

200

Taxa de progresso necessária para atingir a meta

0,8

Leste da Ásia Todas as regiões em desenvolvimento

920 540 210 190 190 130 55 450

Partos assistidos por trabalhadores de saúde qualificados 1990 2003

40% 28%

41% 37%

34%

64%

61%

62%

74%

86%

41%

76%

51% 41%

82% 57%

SARA BEARDSLEY (compilação de dados); JEN CHRISTIANSEN (ilustrações); FONTES: META 1: WWW.WORLDBANK.ORG/DATA/WDI2005/WDITEXT/SECTION1–1–1.HTM (gráfico); WWW.FAO.ORG/DOCREP/007/Y5650E/Y5650E04.HTM (quadro de barras); METAS 2 E 3: ACHIEVING THE MILLENNIUM DEVELOPMENT GOALS IN AFRICA, JUNHO 2002 (gráfico); META 4: THE MDG REPORT 2005 (gráfico circular); HTTP://UNSTATS.UN.ORG/UNSD/MI/MI–COVERFINAL.HTM (gráfico de linhas); META 5: THE MDG REPORT 2005 (quadro de barras)

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8

6

2,0

HIV na África Subsaariana

1,5 Mortes por aids na África Subsaariana HIV em todas as regiões em desenvolvimento

4

2

1,0

4

Redes de mosquito vendidas ou distribuídas na África Subsaariana (milhões)

Objetivos: Deter e começar a reverter a disseminação da aids. Reduzir a dispersão da malária e outras doenças. Status: O HIV, hoje infectando cerca de 40 milhões de pessoas, domina partes da África Subsaariana e representa uma ameaça séria para outras regiões em desenvolvimento. Enquanto isso, a malária mata 3 milhões de pessoas por ano, a maioria na África, sendo a vasta maioria crianças. Nos últimos anos, distribuição de redes contra mosquitos se expandiu, mas centenas de milhões de pessoas em regiões endêmicas ainda precisam delas.

1,5 Percentagem de adultos com HIV Mortes por aids

Número anual de mortes por aids (milhões)

10

Adultos entre 19 e 45 anos com HIV (em %)

META 6 COMBATE À AIDS, MALÁRIA E OUTRAS DOENÇAS

0,5

0

0,0 1990

1994

1998

2002

Leste da África Oeste da África Sul da África África Central

3

2

1

0 1999 2000 2001 2002 2003

Ano

Ano

META 7 GARANTIR SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL Objetivo: Reduzir pela metade, até 2015, a proporção de pessoas sem acesso à água potável segura e saneamento básico. Status: Com exceção da África Subsaariana, o acesso à água limpa em áreas urbanas é relativamente alto, apesar de o acesso no meio rural continuar limitado. A baixa disponibilidade de serviços de saneamento na África Subsaariana e no sul da Ásia contribui para espalhar a diarreia. 90

Projeção da tendência Meta para 2015 Saneamento Ritmo atual Projeção da tendência Meta para 2015

População sem acesso à água encanada e melhorias sanitárias

Água Ritmo atual

90

África Subsaariana

Sul da Ásia

90

60

60

60

30

30

30

0

90

0

0

1990 1995 2000 2005 2010 2015

1990 1995 2000 2005 2010 2015

Ano

Ano 90

América Latina e Caribe

60

60

30

30

0

Ano

Europa e Ásia Central

Oriente Médio e Norte da África

60 Dados sobre água indisponíveis

30 0

1990 1995 2000 2005 2010 2015

1990 1995 2000 2005 2010 2015

Ano

Ano

Crescimento percentual anual médio do PIB (quanto menor, menos corrupção) per capita, 1980-2000 Ranking de níveis de corrupção percebidos

África Subsaariana

Objetivo: Atender às necessidades especiais das nações menos desenvolvidas (incluindo assistência mais generosa). Status: Países ricos prometeram repetidas vezes doar 0,7% de sua renda nacional para ajuda externa. Contudo, 17 dos 22 doadores não atingiram a meta. Apesar disso, alguns progressos ocorreram: países da União Europeia se comprometeram com a meta dos 0,7% para 2015. Enquanto isso, outros doadores alegam que os países pobres são corruptos demais para atingir o crescimento econômico. A tabela à direita ajuda a afastar esse mito; na verdade, muitas economias em alto crescimento na Ásia têm níveis maiores de corrupção percebida do que alguns países africanos de crescimento lento.

90

CORRUPÇÃO E CRESCIMENTO ECONÔMICO

Leste da Ásia

META 8 PRODUZIR UMA PARCERIA GLOBAL PARA O DESENVOLVIMENTO

1990 1995 2000 2005 2010 2015

Ano

0 1990 1995 2000 2005 2010 2015

Leste da Ásia e Pacífico

Gana Senegal Mali Malauí Índia Paquistão Indonésia Bangladesh

70 76 78 83 83 92 122 133

0,3 0,5 –0,5 0,2 3,5 2,4 3,5 2,0

META 6: THE MDG REPORT 2005 (gráficos); META 7: GLOBAL MONITORING REPORT 2005: MDG: FROM CONSENSUS TO MOMENTUM (dados); META 8: RELATÓRIO DA CORRUPÇÃO GLOBAL, POR TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2004 (tabela)

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AJUDA EXTERNA: COMO O DINHEIRO DEVE SER GASTO? Listamos aqui os investimentos necessários a três típicos países africanos de baixa renda para que atinjam as Metas de Desenvolvimento do Milênio. Para todas as nações que receberem ajuda, a assistência total anual média por pessoa seria de cerca de US$ 110. Esses investimentos seriam financiados tanto por estrangeiros quanto pelos próprios países.

Área de investimento

Média por ano entre 2005 e 2015 (dólares per capita) Gana

Fome Educação Igualdade entre os sexos Saúde Água e saneamento Melhorias em favelas Energia Estradas Outros Total

7 19 3 25 8 2 15 10 10 100

Tanzânia Uganda 8 14 3 35 7 3 16 22 10 117

6 15 3 34 5 2 12 20 10 106

Calculado com dados de Investing in Development (Projeto do Milênio-ONU, Earthscan Calculad Publications, 2005). A soma não confere com o total porque os números estão arredondados Publicat

ÃO DE SUGEST S

DE ATIVIDÁA G. 62 NA P

PARA CONHECER MAIS Investing in development: a practical plan to achieve the millennium development goals. United Nations Millennium Project, Nova York, 2005. www.unmillenniumproject.org The end of poverty: economic possibilities for our time. Jeffrey D. Sachs. Penguin Press, 2005. www.earth.columbia.edu/endofpoverty The development challenge. Jeffrey D. Sachs, em Foreign affairs, vol. 84, no 2, págs. 78-90, março/abril de 2005. www. sachs.earth.columbia.edu Ending Africa’s poverty trap. Jeffrey D. Sachs, J. W. McArthur, G. SchmidtTraub, M. Kruk, C. Bahadur, M. Faye e G. McCord, em Brookings Papers on Economic Activity, vol. 1, págs. 117-216, 2004. www.sachs.earth.columbia.edu Institutions matter, but not for everything. Jeffrey D. Sachs, em IMF Finance and Development, vol. 40, no 2, págs. 38-41, junho de 2003. www.sachs. earth.columbia.edu

de ajuda dos países ricos. Esta cifra representa cerca de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) combinado das nações doadoras afluentes. Ela não inclui outros projetos humanitários, como a reconstrução do Iraque pós-guerra ou a ajuda às vítimas do tsunami no oceano Índico. Para atender também a essas necessidades, uma cifra razoável seria 0,7 % do PIB, aquela que países doadores há muito prometem sem cumprir. Outros organismos, inclusive o FMI, o Banco Mundial e o governo britânico, chegaram mais ou menos à mesma conclusão. Acreditamos que esses investimentos permitiriam reduzir a pobreza pela metade nos países em maior apuro, até 2015 e, caso prossigam, a eliminá-la totalmente até 2025. Não se trataria de “esmolas” dos ricos aos pobres, mas de algo bem mais importante e durável. Famílias vivendo mais, acima do limite de sobrevivência, poderiam poupar para o futuro; elas poderiam aderir ao círculo virtuoso de rendas crescentes, poupança e influxos tecnológicos. Estaríamos ensinando bilhões de pessoas a pescar, em vez de dar o peixe. Se as nações ricas deixarem de fazer esses investimentos, receberão pedidos de ajuda de emergência praticamente para sempre. Elas enfrentarão a fome, epidemias, conflitos regionais e a disseminação de refúgios terroristas. E não apenas os países pobres, mas também elas próprias estarão sendo condenadas à instabilidade política crônica, emergências humanitárias e riscos à segurança. O debate está agora passando do diagnóstico 52

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básico da pobreza extrema e dos cálculos das necessidades financeiras para a questão prática de como prestar melhor o auxílio. Muitos acreditam que as tentativas de ajuda falharam no passado e que é preciso cuidado para evitar a repetição dos erros. Algumas preocupações são fundamentadas, mas outras são alimentadas por mal-entendidos. Quando as pesquisas de opinião pública perguntam aos americanos quanta ajuda eles acham que os EUA fornecem, estes superestimam muito o montante – em até 30 vezes. Acreditando que tanto dinheiro foi doado e tão pouco foi aproveitado, o público conclui que esses programas “falharam”. A realidade é bem diferente. A ajuda oficial americana à África Subsaariana vem oscilando entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões ao ano, ou cerca de US$ 3 a US$ 6 para cada africano. A maior parte da ajuda tem sido na forma de “cooperação técnica” (que vai para os bolsos de consultores), alimentos de emergência para vítimas da fome e cancelamento de dívidas vencidas. Pouco dessa ajuda tem vindo de uma forma que possa ser investida em sistemas capazes de melhorar a saúde, nutrição, produção de alimentos e transporte. Devíamos dar à ajuda externa uma chance antes de decidirmos se funciona ou não. Um segundo engano comum diz respeito ao grau em que a corrupção tende a dilapidar o dinheiro doado. Parte da ajuda externa já foi mesmo parar em bancos suíços. Isto aconteceu quando os recursos foram cedidos por razões geopolíticas, e não de desenvolvimento. Um bom exemplo foi o apoio americano ao regime corrupto de Mobutu Sese Seko, do Zaire (atual República Democrática do Congo), na época da Guerra Fria. Quando a ajuda é voltada ao desenvolvimento, os resultados têm sido altamente favoráveis, variando da Revolução Verde à erradicação da varíola. A sociedade ocidental tende a pensar na ajuda externa como um dinheiro jogado fora. Mas, se fornecido de forma apropriada, é um investimento que um dia trará retornos enormes, à semelhança da ajuda americana à Europa ocidental e leste da Ásia após a Segunda Guerra Mundial. Ao prosperarem, os atuais países pobres não dependerão mais da eterna caridade. Eles contribuirão para o avanço internacional da ciência, tecnologia e comércio. Eles escaparão da instabilidade política, que os deixa vulneráveis à violência, tráfico de drogas, guerra civil e até à tomada do poder por terroristas. A segurança dos países ricos também aumentará. Como escreveu o ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan: “Não haverá desenvolvimento sem segurança, e não haverá segurança sem desenvolvimento”. AULA ABERTA


Por Marcelo Vettori

56 QUÍMICA A reinvenção da folha vegetal Por Rodrigo M. Liegel

58 MATEMÁTICA O lúdico na teoria dos jogos Por Walter Spinelli

60 BIOLOGIA A vida dupla do ATP Por Danielle Macêdo

62 GEOGRAFIA O fim da miséria Por Roberto Giansanti AULA ABERTA

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professor

para o 54 FÍSICA Lixo nuclear bem reciclado


FÍSICA Lixo nuclear bem reciclado COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM • Associar intervenções que resultam em degradação ou conservação ambiental a processos produtivos e sociais e a instrumentos ou ações científico-tecnológicos. Apropriar-se de conhecimentos da física para, em situações-problema, interpretar, avaliar ou planejar intervenções científico-tecnológicas. • Identificar etapas em processos de obtenção, transformação, utilização ou reciclagem de recursos naturais, energéticos ou matérias-primas, considerando processos biológicos, químicos ou físicos neles envolvidos. • Compreender fenômenos decorrentes da interação entre a radiação e a matéria em suas manifestações em processos naturais ou tecnológicos, ou em suas implicações biológicas, sociais, econômicas ou ambientais. • Avaliar possibilidades de geração, uso ou transformação de energia em ambientes específicos, considerando implicações éticas, ambientais, sociais e/ou econômicas.

CONTEÚDOS • Fissão nuclear • Usinas e reatores nucleares • Desintegração radioativa

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PROPOSTAS PEDAGÓGICAS Para a leitura do texto A energia nuclear sempre foi apontada como alternativa diante da futura escassez de recursos naturais para a obtenção de energia elétrica. Outras alternativas, como as energias eólica e solar, se destacam por não oferecerem os riscos e impactos ambientais atribuídos a usinas nucleares. O último caso, decorrente do tsunami que atingiu a usina nuclear de Fukushima, Japão, em março de 2011. E quando se trata de energia nuclear, é comum lembrarmos de dois outros acidentes, de naturezas distintas, mas ambos de graves proporções: a explosão da usina de Chernobyl (1986) e a contaminação com o Césio 137 em Goiânia (1987). O caso de Goiânia é um exemplo da falta de cuidado com o armazenamento de material radioativo. Encontrada por catadores de sucata nas instalações de um hospital abandonado, a cápsula de césio foi aberta para o reaproveitamento do chumbo que a envolvia, provocando a contaminação de centenas de pessoas de forma direta e indireta. Em Chernobyl, por outro lado, a catástrofe foi provocada durante o teste de um mecanismo de segurança que garantiria a produção de energia em caso de acidentes. Na época, a construção da usina estava incompleta e, provavelmente devido a uma combinação de erros humanos e à instabilidade do reator, ela explodiu. Nos dois casos é importante refletir com os estudantes que o erro humano esteve sempre presente e que, atualmente, a tecnologia empregada na geração de energia por reatores nucleares está significativamente mais avançada. Além disso é preciso questionar: por que a maioria das usinas nucleares no mundo não apresentou problemas desde sua criação até hoje? Essas usinas têm muitas vantagens em relação às usinas termoelétricas que utilizam combustível fóssil e às hidrelétricas que necessitam do alagamento de milhares de hectares de terra, como o que se fez para a construção da usina de Itaipu, que eliminou boa parte da fauna e da flora local. É importante ressaltar que uma das questões centrais do uso da energia nuclear é que da fissão dos átomos resulta o lixo nuclear, o qual, quando mal armazenado, contamina a natureza. Muitos argumentam que os locais para o armazenamento não são apropriados, mas esses resíduos podem ser reaproveitados para gerar mais energia. O artigo aborda as técnicas de reaproveitamento do lixo nuclear de forma sustentável para gerar mais energia sem esgotar as fontes de urânio.

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Matriz de Referência de Ciências da Natureza e suas Tecnologias

Proposta de atividades Antes de tratar do assunto com os estudantes convém dialogar com eles e ouvir o que sabem sobre a matéria a ser explorada. É possível elaborar uma sequência de atividades capaz de encaminhar os estudantes aos novos saberes. Organize-as de acordo com as competências e habilidades descritas pela matriz de referência dos campos do conhecimento a serem trabalhados. 1. Depois que os alunos expuserem seus conceitos sobre a energia e o lixo nucleares, será bastante motivadora a apresentação de um vídeo, seguindo a ordem apresentada no final desta proposta. Se a escola não tiver acesso à internet, é possível gravá-los (CDROM, DVD ou pen drive). Esses vídeos referem-se ao acidente de Chernobyl, à segurança da usina nuclear de Angra dos Reis e ao depoimento de uma professora da Universidade Federal de Sergipe sobre a energia nuclear. 2. Os alunos deverão ler o artigo em duplas, assinalando os aspectos que acharem relevantes para serem discutidos nas atividades posteriores.

© SERGEJ KHAKIMULLIN/SHUTTERSTOCK

3. Após a leitura, peça que os alunos redijam um pequeno texto com base nos vídeos apresentados e, principalmente, no artigo lido. Sugira que façam uma reflexão sobre as fantasias e os excessos de cuidados com a energia nuclear. Discuta com os estudantes: Por que a energia nuclear é vista como vilã pela opinião pública?

grupo apresente prós e contras em relação aos ciclos do urânio. Estimule as equipes a elaborar novos argumentos em torno do assunto. É interessante que os estudantes elaborem painéis ou cartazes para apresentação ao público. Essa atividade pode servir para uma mostra científica na escola.

4. O artigo aborda a questão do enriquecimento de urânio 235, processo que pode permitir a fabricação de bombas nucleares. Existe uma alternativa ao reprocessamento que não envolve o plutônio em nenhuma etapa. Examine com a turma como se faz esse enriquecimento e proponha que pesquisem os países que já dominam esse processo. O que essas nações estão fazendo (ou não) para aderir à produção de energia nuclear sustentável, necessária ao planeta? 5. Divida a turma em três grupos. O objetivo desta atividade é que cada

SUGESTÃO DE VÍDEOS http://www.youtube.com/watch?v=wHUChyztI5M&NR=1 http://www.youtube.com/watch?v=fNavNLqdLNQ http://www.youtube.com/watch?v=qBXE_jcA2-Q&feature=related

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6. As redes sociais, que permitem a formação de fóruns e comunidades, podem ser um aliado valoroso na realização de pesquisas. Sugira aos três grupos que cada um disponibilize um tópico/enquete em uma comunidade criada pela turma sobre as vantagens e desvantagens da utilização da energia nuclear em comparação com as demais fontes de energia utilizadas no Brasil. Os resultados obtidos podem servir para a realização da atividade seguinte. 7. Com base no artigo oriente os alunos a elaborar um documentário apresentando as principais ideias, ali expostas, a respeito do lixo nuclear e as diferentes formas de obtenção de energia.

Roteiro elaborado por MARCELO VETTORI, professor de física dos colégios Anchieta e Província de São Pedro (Porto Alegre, RS).

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QUÍMICA A reinvenção da folha vegetal COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM • Avaliar propostas de intervenção no ambiente, considerando a qualidade da vida humana ou medidas de conservação, recuperação ou utilização sustentável da biodiversidade. • Identificar etapas em processos de obtenção, transformação, utilização ou reciclagem de recursos naturais, energéticos ou matérias-primas, considerando processos biológicos, químicos ou físicos neles envolvidos. • Avaliar métodos, processos ou procedimentos das ciências naturais que contribuam para diagnosticar ou solucionar problemas de ordem social, econômica ou ambiental. • Avaliar possibilidades de geração, uso ou transformação de energia em ambientes específicos, considerando implicações éticas, ambientais, sociais e/ou econômicas.

CONTEÚDOS • Reações de oxirredução • Fontes de energia limpa • Termoquímica • Catalisadores • Células a combustível

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CONTEXTUALIZAÇÃO O artigo apresenta os avanços e desafios encontrados no desenvolvimento de dispositivos capazes de utilizar a energia solar na produção de combustíveis. Esse processo é conhecido como fotossíntese artificial, pois, como ocorre nas plantas, substâncias de alto conteúdo energético são sintetizadas da energia solar e de reagentes de menor teor de energia. A expectativa é que essa fonte de combustível seja uma alternativa viável e limpa em comparação com os combustíveis fósseis. Para que isso ocorra, é necessário baratear as células fotovoltaicas e o catalisador que possibilita obter, da água, o gás hidrogênio.

Proposta de atividades A leitura do artigo proporciona uma ótima oportunidade para que os alunos relacionem conceitos básicos da química com o desenvolvimento de uma tecnologia de ponta para a produção de energia limpa. A atividade sugerida pressupõe que eles já conheçam os conceitos de reações exotérmica e endotérmica e que consigam reconhecer e compreender uma reação de oxirredução.

Peça que todos leiam individualmente o texto e respondam em grupo à seguinte pergunta: Quais os principais desafios, levantados pelo artigo, para que a fotossíntese artificial seja aplicada em larga escala para a obtenção de combustível? Compare os processos da fotossíntese natural e da fotossíntese artificial. Sugira que os alunos equacionem os processos, analisem em termos do tipo de reação e do envolvimento da energia e confronte também o uso (aplicação) dos produtos formados em cada etapa. Promova um debate em que um grupo apresenta sua resposta e os demais

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comentam e complementam. O artigo faz um paralelo entre os dois processos, a fotossíntese e a folha artificial, principalmente o quadro da pág. 27. Entretanto, utilizando conceito de oxirredução e reações endotérmicas e exotérmicas, é possível aprofundar essa comparação, além de generalizar os processos biológicos e químicos utilizados para a geração de energia. A reação de decomposição da água que ocorre na folha artificial é endotérmica, ou seja, absorve energia, suprida pela radiação solar (fótons), que a a célula fotovoltaica absorve e transforma em energia AULA ABERTA


química com auxílio do catalisador, segundo a equação: H2O(l) J H2(g) + 1/2 O2(g) ΔH = 286 kJ/ mol de H2 produzido A variação de entalpia do sistema pode ser também representada no diagrama de energia seguinte: H (kJ) H2(g) + 1/2 O2(g)

água é, simultaneamente, o redutor e o oxidante do processo. Como está representado no quadro Como funciona, a reação ocorre em duas etapas simultâneas no dispositivo. As duas etapas podem ser representadas pelas semirreações: H2O(l) J 2 H+(aq) + 1/2 O2(g) + 2 eoxidação 2 H+(aq) + 2 e-J H2(g) redução

Δ H = 286 kJ/mol H2O(l)

A análise da equação e do diagrama evidencia que os produtos oxigênio e hidrogênio apresentam mais energia do que a água. A fonte (externa ao sistema) que fornece a energia necessária para a transformação é a luz solar – o dispositivo formado pelos nanofios de silício e pelos catalisadores é o responsável pela transferência da energia. O gás hidrogênio produzido poderá ser utilizado como combustível, gerando água, em processo que libera energia (exotérmico):

Já na combustão do gás hidrogênio, o hidrogênio é o agente redutor (oxidado) e o gás oxigênio, o agente oxidante. A fotossíntese também envolve uma reação endotérmica, a transformação de dióxido de carbono (CO2) e água em glicose e gás oxigênio: 6 CO2(g) + 6 H2O(l) J C6H12O6(s) + 6O2(g) ΔH = 2800 kJ/ mol de glicose formada A entalpia de reagentes e produtos pode ser representada pelo diagrama a seguir: H (kJ)

C6H12O6(s) + 6 O2(g)

Δ H = 2800 kJ/mol

H2(g) + 1/2 O2(g) J H2O(l) ΔH = - 286 kJ/ mol de H2 consumido 6 CO2(g) + 6 H2O(l)

É importante ressaltar o custo ambiental do processo. As reações em questão são classificadas como de oxirredução, pois envolvem transferência de elétrons. A decomposição da água é uma auto-oxirredução em que a AULA ABERTA

Como em toda reação endotérmica, os reagentes apresentam menor energia do que os produtos, e novamente é a energia solar captada pelo sistema fotossintético que irá possibilitar

a transformação. Ocorre uma transformação de energia luminosa (fótons) e energia potencial química, que fica armazenada nas moléculas de glicose. Essa transferência se faz graças à captação do sistema fotossintético (clorofila e outros corantes) modulada pelas enzimas responsáveis pela transferência dos elétrons entre as espécies, o que se dá em diversas etapas. A fotossíntese e a respiração celular também são processos de oxirredução, em que há transferências de elétrons, mediadas por complexos enzimáticos, sem contato direto entre os reagentes. O quadro Como Funciona esquematiza as etapas de oxidação e redução que acontecem na fotossíntese. A energia solar captada pela clorofila e demais corantes é transferida para a água, oxidando-a e gerando gás oxigênio e cátions H+ (fase clara da fotossíntese). Os cátions H+ se combinam com o dióxido de carbono na fase escura para gerar o carboidrato, em um processo de redução do CO2. Vale a pena pedir que os alunos identifiquem os agentes oxidante e redutor na reação de fotossíntese com base na análise do número de oxidação médio (Nox) dos elementos em cada substância. Identifica-se, assim, que o CO2 é o agente oxidante, com o C passando de Nox +4 para Nox 0 na glicose, ou seja, sofrendo redução. Já a água é oxidada a O2, de forma análoga ao processo da folha artificial. Roteiro sugerido por RODRIGO M. LIEGEL, professor do Colégio Santa Cruz e do Colégio Móbile (São Paulo, SP).

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MATEMÁTICA O lúdico na teoria dos jogos COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM • Compreender o caráter aleatório e não determinístico dos fenômenos naturais e sociais e utilizar instrumentos adequados para medidas, determinação de amostras e cálculos de probabilidade para interpretar informações de variáveis apresentadas em uma distribuição estatística. • Interpretar informações de natureza científica e social obtidas da leitura de gráficos e tabelas, realizando previsão de tendência, extrapolação, interpolação e interpretação. • Resolver situação-problema que envolva conhecimentos de estatística e probabilidade. • Calcular o número de agrupamentos distintos de n elementos quando se dispõe de p elementos, sendo n ≤ p. • Resolver problema com dados apresentados em tabelas ou gráficos. • Analisar informações expressas em gráficos ou tabelas como recurso para a construção de argumentos.

CONTEÚDOS • Análise combinatória: Cálculo do número de combinações simples • Probabilidades: Probabilidade da reunião de dois ou mais eventos

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CONTEXTUALIZAÇÃO O cálculo de probabilidades, em seus primórdios associado apenas aos jogos de azar, ganhou no final do século 19 uma nova dimensão, por causa, principalmente, das descobertas da física no campo da mecânica quântica. Nesse mundo, do muito pequeno, as variáveis que caracterizam o movimento e a posição dos corpos vêm acompanhadas de cálculos estatísticos, ou seja, exigem o conhecimento das probabilidades. A estatística e a probabilidade, antes restritas ao campo de estudo da física, hoje são necessárias na economia, psicologia, moda, gastronomia, medicina, isto é, em praticamente todas as áreas do conhecimento. Os jogos lotéricos constituem um bom contexto para a apresentação e a aplicação de alguns dos principais conceitos associados aos cálculos combinatórios e às probabilidades. O texto oferece uma série de elementos para serem abordados em sala de aula, como o cálculo das combinações simples e o cálculo da probabilidade da reunião de eventos. Vale ainda considerar especialmente duas questões de natureza social associadas aos jogos lotéricos, que o professor poderá introduzir a partir da leitura do texto. A primeira questão diz respeito à destinação dos recursos arrecadados a cada sorteio, uma vez que boa parte deles, cerca de 50%, não chega até os ganhadores, sendo revertida para obras sociais que nem sempre são discriminadas com clareza. A segunda questão está relacionada com o estímulo, que os concursos com prêmios tão elevados fornecem à concentração da renda já tão mal distribuída em nosso país.

Proposta de atividades Jogar ou não jogar na loteria nos remete à diferença entre o “praticamente” e o “exatamente”. Quer dizer, se quando jogamos nossa chance de sucesso é “praticamente” nula, quando não jogamos ela é “exatamente” nula. Sonhar, portanto, é a atividade humana que nos aproxima do cálculo probabilístico, pois dimensiona a passagem do “nunca” para o “quase nunca”. Não é à toa que o homem sempre jogou e apostou. Duas são as vertentes a ser consideradas pelo professor em seu trabalho de apresentação do cálculo teórico de alguma probabilidade. No primeiro caso, que deve ser, de fato, o primeiro a ser apresentado aos alunos, os problemas não envolvem cálculos combinatórios, reduzindo-se, dessa

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forma, à identificação da “parte” e do “todo”, de maneira que a probabilidade resulta da divisão entre as quantidades de elementos dessas duas partes. Isto feito, está preparado o terreno para a introdução do segundo caso, ou seja, aquele em que os problemas exigem a aplicação de raciocínio combinatório, como ocorre, por exemplo, com o cálculo associado à chance de sucesso no jogo da Super Sena. Entre um e outro caso existe um salto considerável de abstração que não pode ser evitado. Por isso, há no texto publicado o seguinte trecho que merece destaque: Como sorteamos seis elementos e só temos cinco possíveis fica claro que pelo menos uma dezena aparecerá mais de uma vez! Aplicando a fórmula de combinações com repetição determinamos que temos apenas 210 resultados possíveis. O cálculo dos 210 resultados possíveis, acima citados, precisa ser compreendido pelos alunos e o professor poderá incentivá-los nessa tarefa, sem necessidade de recorrer ao cálculo de combinações com repetição. Para tanto, poderá considerar 5 elementos denominados pelas letras A, B, C, D e E, e avaliar junto com os alunos a possibilidade de tomar 6 desses elementos. Nessa situação, poderão ocorrer os seguintes casos, dos quais alguns são apresentados com as respectivas resoluções: 1. 1 par e outros 4 elementos diferentes Temos 5 possibilidades, uma para cada par (AA, BB, CC, DD ou EE) 2. 2 pares e outros 2 elementos diferentes (por exemplo, AABBCD ou AULA ABERTA

AACCBD ou AADDCB etc.) Temos 10 possibilidades para a formação dos 2 pares, resultante da operação ,5_4-2. = ,__-5,2.. Além disso, precisamos considerar ainda mais dois elementos dentre os outros 3 que não formaram par. Isto pode ser indicado da seguinte forma: ,__-3,2. = 3. Portanto, teremos 10x3 = 30 grupos possíveis formados por 2 pares e outros dois elementos diferentes. 3. 1 trinca e outros 3 elementos diferentes (por exemplo, AAABCD ou BBBACD ou CCCABD etc.) Podemos formar 5 trincas diferentes. Além disso, cada trinca deverá ser seguida de outros 3 elementos tomados dentre 4 disponíveis. Isto nos leva a ,__-4,3. = 4. Assim, o total de grupos neste caso é igual a 5x4 = 20. 4. 1 quadra e outros dois elementos diferentes (por exemplo, AAAABC ou AAAABD ou BBBBCD etc.) São 5 quadras possíveis que devem compor o grupo com outros 2 elementos escolhidos dentre 4. Assim, podemos calcular o número total de grupos pelo produto 5_,__-4,2. = 5_6 = 30 5. 1 quina e mais um elemento diferente = 20 casos 6. 1 sena = 5 casos 7. 1 trinca, um par e outro elemento diferente (por exemplo, AAABBC ou AAACCD ou BBBCCD) Neste caso teremos 5 trincas possíveis seguidas de 4 pares possíveis e, por fim, 3 elementos únicos. Podemos traduzir o cálculo desta maneira: ,__-5,1._,__-4,1._,__-3,1. = 60 casos 8. 2 trincas diferentes = 20 casos 9. 1 quadra e um par diferente da trinca = 20 casos

A adição dos resultados (de 1 a 9) produz o total citado no texto, de 210 casos possíveis. Os alunos poderão ainda ser estimulados a perceber que os casos elencados anteriormente possuem “pesos” diferentes, conforme destacado na tabela 2 do artigo. Por exemplo, o caso 1, com um único par, pode ter seu “peso” assim calculado: Para um par da dezena D0, com 9 elementos, seguida de elementos de outras 3 dezenas com 10 elementos cada e por mais um elemento da dezena D4 que possui 9 elementos: ,__-9,2._,__-10,1._,__-10,1._,__-10,1._,__-9,1. = 324.000 Para um par das dezenas D1, D2 ou D3, com 10 elementos cada, seguido de dois elementos de dezenas com 10 elementos e por mais dois elementos de dezenas com 9 elementos cada: ,__-10,2._,__-10,1._,__-10,1._,__-9,1._,__-9,1. = 364.500 As quantidades de combinações, expressas na tabela 2, são, dessa forma, fundamentais para que se compreendam os valores das probabilidades expressos na mesma tabela e também nas próximas. Em resumo, para que nossos alunos, no futuro, tomem a decisão de tentar ou não a sorte em jogos lotéricos, conhecendo os cálculos dos valores das probabilidades envolvidas, será necessário que dominem, e bem, o raciocínio combinatório.

Roteiro elaborado por WALTER SPINELLI, autor de livros didáticos e professor do Colégio Móbile (São Paulo, SP).

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BIOLOGIA A vida dupla do ATP COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM • Compreender as ciências naturais e as tecnologias a elas associadas como construções humanas, percebendo seus papéis nos processos de produção e no desenvolvimento econômico e social da humanidade. • Compreender interações entre organismos e ambiente, relacionando conhecimentos científicos, aspectos culturais e características individuais. • Entender métodos e procedimentos próprios das ciências naturais e aplicálos em diferentes contextos. • Associar a solução de problemas de comunicação, transporte, saúde ou outro com o desenvolvimento científico e tecnológico. • Identificar padrões em fenômenos e processos vitais dos organismos. • Interpretar modelos e experimentos para explicar fenômenos ou processos biológicos em qualquer nível de organização dos sistemas biológicos. • Compreender o papel da evolução na produção de padrões, processos biológicos ou na organização taxonômica dos seres vivos. • Relacionar propriedades físicas, químicas ou biológicas de produtos, sistemas ou procedimentos tecnológicos às finalidades a que se destinam.

CONTEÚDOS • Moléculas, células e tecidos • Bioenergética; sistema nervoso • Fisiologia humana

CONTEXTUALIZAÇÃO O conteúdo abordado no presente artigo provoca a curiosidade do leitor desde o título até sua conclusão. Ao propormos esta leitura aos alunos, devemos reforçar antecipadamente alguns conceitos básicos para uma melhor interpretação e entendimento. Podemos iniciar com a questão: “Como se explica que a mesma molécula carreadora de energia possa desenvolver tantas atividades biológicas específicas, inclusive com potencial aplicação no tratamento de doenças?”. Contextualizar com situações reais um conteúdo tão complexo vai gerar interesse e questionamentos, assim como vem ocorrendo entre cientistas de diversas áreas da medicina, ressaltando que este artigo tem estado na pauta de discussões em congressos importantes. O professor terá a oportunidade de reforçar o que é o método científico, as fases de uma pesquisa para aplicação humana, os cuidados para aceitação pelo mercado, entre outras competências. A discussão das funções do ATP, especialmente aquelas que abordam tecido nervoso e transmissões neuronais, trará ao aluno um conteúdo novo e instigante, motivando inclusive na escolha profissional.

Proposta de atividades 1. É importante relembrar com os alunos a história de descobertas científicas que culminaram nos conhecimentos mais atuais sobre o ATP. Sugira que eles desenhem uma linha do tempo e insiram dados não apresentados no artigo, além de aplicações hipotéticas dos novos medicamentos ou dados de interesse, permitindo que eles se coloquem no lugar de um pesquisador. O produto dessas pesquisas pode gerar boas discussões após ser socializado com a turma em momento oportuno. 2. Explore o papel tradicionalmente

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conhecido da molécula de ATP. O que é essa molécula e sua estrutura, como é gerada nas células e quais as suas principais funções. A realização de um préteste contendo questões atuais sobre o ATP na bioenergética lhe permitirá progredir nas discussões do artigo com mais segurança. 3. Será bastante enriquecedora a reprodução de algum vídeo com imagens sobre o processo de coagulação sanguínea, sugerido no quadro no final desta proposta. Ao apresentá-lo à classe, relembre conceitos básicos essenciais como a trombose. Posteriormente,

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© SEBASTIAN KAULITZKI/SHUTTERSTOCK (COÁGULO SANGUÍNEO), © CHEPKO DANIL VITALEVICH/SHUTTERSTOCK (CAFEÍNA)

provoque a turma: ao bloquear os receptores P2Y12 nas plaquetas, qual seria a provável ação do medicamento Clopidogrel nos pacientes com essa doença? Quais seriam os efeitos adversos em caso de uma hipotética não especificidade?

4. A turma pode ser dividida em cinco equipes, cada uma responsável pelo trabalho com um dos sentidos humanos (visão, olfato, tato, paladar, audição). A tarefa deve culminar com uma apresentação sobre a importância do ATP no desenvolvimento dos sentidos e na sua homeostase, reforçando conteúdos de fisiologia e embriologia humanas, o que ampliará o significado das discussões.

5. A cafeína é a substância estimulante de maior consumo em todo o mundo e está presente no café, chá, chocolates, refrigerantes à base de cola ou medicamentos. Segundo dados divulgados, podemos afirmar que cerca de 80% da população geral faz uso dessa substância diariamente. Baseado nisso, levante uma discussão acerca do consumo desses produtos entre os alunos e encomende uma pesquisa mais detalhada sobre a ação fisiológica do neurotransmissor adenosina (derivado do ATP) em contraste com a ação estimulante da cafeína. 6. Mutações no DNA mitocondrial podem conduzir à síntese insuficiente de ATP, resultando em um grupo de distúrbios multissistêmicos denominado doenças mitocondriais. Organize com os alunos seminários de curta duração que esclareçam o papel do ATP nessas doenças.

Questões do Enem Ao beber uma solução de glicose (C6H12O6), um cortador de cana ingere uma substância

SUGESTÃO DE VÍDEO Sobre coagulação sanguínea: http://www.youtube.com/watch?v=MvgCgP3rTpk

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a) que, ao ser degradada pelo organismo, produz energia que pode ser usada para movimentar o corpo. b) inflamável que, queimada pelo organismo, produz água para manter a hidratação das células. c) que eleva a taxa de açúcar no sangue e é armazenada na célula, o que restabelece o teor de oxigênio no organismo. d) insolúvel em água, o que aumenta a retenção de líquidos pelo organismo. e) de sabor adocicado que, utilizada na respiração celular, fornece CO2 para manter estável a taxa de carbono na atmosfera. Resposta: alternativa a

Roteiro sugerido pela biomédica e professora doutora DANIELLE MACÊDO, do Colégio Damas (Recife, PE).

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GEOGRAFIA O fim da miséria COMPETÊNCIAS E HABILIDADES SEGUNDO A MATRIZ DE REFERÊNCIA DO ENEM • Analisar diferentes processos de produção ou circulação de riquezas e suas implicações socioespaciais. • Analisar a ação dos Estados nacionais em relação ao enfrentamento de problemas de ordem econômico-social. • Identificar os significados históricogeográficos das relações de poder entre as nações. • Ler e interpretar diferentes representações gráficas e cartográficas para compreender fenômenos geográficos. • Com base em indicadores sociais e econômicos, avaliar aspectos do desenvolvimento de diferentes países. • Compreender processos de constituição da globalização como nova etapa do sistema econômico e nova escala de relações humanas. • Selecionar argumentos favoráveis ou contrários às modificações impostas pelas mudanças econômicas e as novas tecnologias à vida social e ao mundo do trabalho. • Avaliar propostas de alcance social que visam ao combate ou erradicação da miséria e das desigualdades sociais em diferentes países e regiões.

CONTEÚDOS • Riqueza e pobreza • Indicadores econômicos e sociais • Globalização, redes e tecnologias • Geografia econômica do mundo • Ajuda externa

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CONTEXTUALIZAÇÃO O artigo de Jeffrey Sachs traz uma ambiciosa e louvável proposta de erradicação da pobreza no mundo, referenciada nas Metas de Desenvolvimento do Milênio estabelecidas pela ONU. Apresenta uma radiografia das condições sociais e econômicas em diferentes países, identificando os principais bolsões de pobreza e discutindo os termos da ajuda externa (leia-se: dos países desenvolvidos) para combatê-la. O tema é de interesse da geografia econômica e da geopolítica contemporâneas, voltadas a estudantes do ensino médio. O tema em questão cria também a oportunidade para que a turma possa dissecar termos, conceitos e processos associados ao advento da globalização – e as eventuais repercussões do seu advento no campo das melhorias sociais.

Proposta de atividades 1. Para iniciar a sequência de aulas, apresente algumas questões para os estudantes: O que entendem por globalização? Como ela vem se constituindo? Qual sua relação com mecanismos de ajuda externa e combate à pobreza? O que podem fazer os países ricos ou “afluentes” e também os eventuais países beneficiários nesse quadro? Considere que a globalização, baseada no neoliberalismo, está associada à liberalização de mercados e fronteiras, à livre circulação de bens, pessoas e serviços (nem tão livre assim para imigrantes do mundo pobre). Além disso, baseia-se nos extraordinários avanços tecnológicos dos meios de comunicação e informação, permitindo múltiplas conexões a distância para quem dispõe desses recursos. Cada vez mais, grandes corporações e o sistema financeiro desenvolvem suas atividades em redes globais. Ouça as respostas de todos e exponha as ideias centrais defendidas por Sachs no artigo, sugerindo sua leitura. 2. É recomendável que os estudantes, organizados em pequenos grupos, recolham as informações disponíveis no texto sobre os principais bolsões de pobreza (África Subsaariana, Ásia central, parcelas da América Central e do Sul) e dados dos gráficos e mapas com indicadores sociais e econômicos. Poderão também levantar novos dados e informações sobre essas áreas, considerando o crescimento econômico de países pobres, mas grandes produtores de petróleo como Angola e Sudão (apesar dos conflitos de Darfur), entre os maiores do continente africano. Além disso, destacar a escala de investimentos externos – em especial, da China – ocorrida nos últimos anos em solo africano.

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3. Esclareça que o tema da ajuda externa está presente em diversos fóruns internacionais. É o caso das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”, das cúpulas do meio ambiente ou das propostas de taxação de atividades do setor financeiro (tanto de organizações sociais globais como do FMI) e de ninguém menos que Barack Obama – neste caso, criando impostos para instituições financeiras responsáveis pela forte crise de 20082009. Convém que os alunos conheçam também experiências de distribuição de renda e combate à pobreza, como as de Bangladesh, com o Graemen Bank, ou do Bolsa Família no Brasil. 4. Discuta os termos da ajuda externa que constam da proposta defendida por Sachs, a fim de que a turma avalie o montante previsto – em torno de US$ 160 bilhões ao ano – e as condições político-econômicas para sua viabilização. Os estudantes poderão comparar os valores com o PIB das nações mais desenvolvidas do planeta – EUA, China e Japão – o primeiro na casa dos US$ 15 trilhões e os outros dois no patamar dos US$ 4,5 trilhões a US$ 5 trilhões. Os dados apresentados auxiliam a identificar também áreas prioritárias para investimentos, como combate à fome, redução da mortalidade infantil e melhorias na saúde e educação. A turma deverá considerar as diversas situações em que o aparelho do Estado e os sistemas de governo precisam AULA ABERTA

ser construídos ou reconstruídos em muitos países, não raro assolados por guerras civis e conflitos internos – caso de países africanos como Guiné Bissau, Serra Leoa e Sudão, ou de asiáticos como o Afeganistão. No continente americano, é preocupante a situação do Haiti, que, além da pobreza de sua população, ainda não se recuperou do forte terremoto ocorrido no início de 2010. Como o texto aponta, está em jogo o modo como esses espaços são produzidos e apropriados, tanto no uso dos recursos naturais como na criação de objetos geográficos (infraestruturas, redes de comunicação e transportes, escolas, sistemas de saúde etc.), portanto, envolvendo a ação dos Estados. 5. Os resultados dos levantamentos, debates e estudos comparativos poderão compor uma dissertação sobre o tema, em que os alunos irão abordar a viabilidade da ampliação da ajuda externa como medida de combate à fome e à pobreza no mundo – o que envolve a disposição política dos atores mais poderosos e a preparação das condições políticas, econômicas e culturais para receber e efetivar a ajuda externa por aqueles que mais necessitam dela. Para tanto, sugere-se que todos assistam ao documentário “Encontro com Milton Santos – ou o Mundo Global visto do lado de cá” (2006, Caliban Produções, direção de Silvio Tendler, 89 minutos). O grande geógrafo, falecido em 2001,

ficou conhecido por suas críticas ao modo como a globalização atual se constitui, de modo “perverso”, baseada na “tirania do dinheiro e da informação” e na imposição de padrões tecnológicos, não acessíveis a todos. De outro lado, ele defendia que “outra globalização é possível”, mediante a valorização dos lugares, novos usos para as técnicas e a criação de uma cidadania planetária, uma “consciência de ser mundo”.

Questão do Enem 2010 Os meios de comunicação funcionam como um elo entre os diferentes segmentos de uma sociedade. Nas últimas décadas, acompanhamos a inserção de um novo meio de comunicação que supera em muito outros já existentes, visto que pode contribuir para a democratização da vida social e política da sociedade à medida que possibilita a instituição de mecanismos eletrônicos para a efetiva participação política e disseminação de informações. Constitui o exemplo mais expressivo desse novo conjunto de redes informacionais a (A) internet. (B) fibra óptica. (C) TV digital. (D) telefonia móvel. (E) portabilidade telefônica. Resposta: alternativa a. Roteiro elaborado por ROBERTO GIANSANTI, geógrafo, autor de livros didáticos para o ensino fundamental e médio e para a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

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LIVROSLIVROSLIVR ALEX NO PAÍS DOS NÚMEROS Alex Bellos. Companhia das Letras, 490 págs., 2011, R$ 44,00

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subtítulo (Uma viagem ao mundo maravilhoso da matemática) já dá uma ideia do que o jornalista e escritor inglês Alex Bellos, ex-correspondente do jornal The Guardian no Brasil, tem a dizer a respeito desse tema que assusta tanta gente. Graduado em matemática e filosofia, ele surpreende ao assinalar que nossa noção de escala numérica não é universal. Para todos, o 5 vem depois do 4, que vem depois do 3 e assim sucessivamente até o 1. Para representar esses números em uma reta, parece que instintivamente os dispomos com espaçamentos iguais entre um número e seu antecessor. Mas isso não é intuitivo. Bellos observou que entre os índios mundurucus, uma etnia amazônica, essa distância na reta numérica não é a mesma para todos os números e seus sucessores (aliás, os mundurucus só contam até 5). Nessa representação na reta, os números grandes estão mais próximos entre si que os números pequenos, o que sugere que sejam percebidos segundo uma escala logarítmica. A razão de tal representação, segundo o autor, está vinculada à nossa visão em perspectiva,

que nos apresenta os objetos mais longe de nós como se estivessem mais próximos um do outro do que aqueles que estão menos afastados. Esse distanciamento entre a aritmética e a realidade que o mundo nos apresenta explicaria em parte a dificuldade que muitos têm para lidar com a matemática. Sem perder o rigor que o tema exige, Bello nos oferece de forma leve e divertida uma jornada ilustrada sem limites geográficos ou temporais. Vai dos sumérios aos dias atuais, com incursões à teoria dos conjuntos e à informática. Ele aborda os conceitos de cardinalidade e ordinalidade, que nos são ensinados na escola e através dos quais transitamos com facilidade, façanha que não ocorre com os chimpanzés, por exemplo. Sim, nessa viagem, o autor nos revela como a percepção das quantidades é importante também para os animais: “Um chimpanzé corre menos risco de ficar com fome se conseguir olhar para uma árvore e quantificar o número de frutas maduras que vai comer no almoço”. E aponta pesquisas que levam a crer que “os leões usam uma noção numérica ao decidir se atacam ou não outros leões”.

ECONOMIA E ECOLOGIA Franck-Dominique Vivien. Editora Senac, 152 págs., 2011, R$ 30,00

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rofessor de ciências econômicas da Universidade de Reims-Champagne-Ardenne, Franck-Dominique junta a este outros títulos, já publicados, em que aborda os problemas do desenvolvimento sustentável nas economias da atualidade. Neste livro, ele faz um balanço das relações entre economia e ecologia, que se estende pelo menos até 200 anos atrás. Depois de um período em que a economia política estava aberta para a história natural e economistas renomados se ocupavam com as consequências ecológicas da Revolução Industrial, seguiu-se uma fase de ruptura entre 64

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ambas. Hoje, elas tentam retomar a mútua abertura, mas falam sozinhas na maioria das vezes: de um lado estão as concepções tradicionais de economia ambiental e de recursos naturais confiantes nos “mecanismos” de mercado; de outro lado, levantam-se as ideias da nova ecologia, desenvolvida pelos engenheiros, a ecoenergética, que busca submeter o conflito economia/ecologia à arbitragem de uma lógica única. Há uma terceira corrente, no entanto, ainda em gestação, que se volta para a elaboração de uma síntese desses dois monólogos, criando a economia ecológica, cujos princípios incluem visão naturalista, ecologia global e concepção crítica dos fenômenos ecológicos. AULA ABERTA


ROSLIVROSLIVROSL O GÊNIO EM TODOS NÓS David Shenk. Zahar, 358 págs., 2011, R$ 44,00

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ias atrás, quando entrei no estacionamento que uso diariamente, não consegui enxergar meu carro, de tão lotado que estava o local. Enquanto aguardava ser atendido, pensei nas mil manobras que seriam necessárias para abrir espaço na garagem e permitir a saída dos veículos. Um verdadeiro quebracabeça para mim, mas o manobrista, com muita eficiência, achou a solução (que jamais me passaria pela mente) num piscar de olhos: bastou deslocar dois automóveis e pronto: lá estava aberta a passagem para a saída. Refleti a respeito dessa habilidade dele, que tantos outros não têm. Seria ele um manobrista inato? Diante de um puzzle, ele certamente se sairia melhor do que eu. Fatos semelhantes ocorrem sempre e em todo lugar. Sem pecar por exagero, podemos estender essa comparação às habilidades de craques do futebol ou mesmo de pintores, músicos, escritores e cientistas consagrados. O que torna essas pessoas diferentes das demais? Será que elas nasceram com dons específicos? São eles fruto de características genéticas? Durante muito tempo, fomos levados a acreditar que sim, são dons inatos, e, ainda hoje, no imaginário popular vigora bastante a ideia de que a genialidade e algumas habilidades excepcionais estão restritas a poucos privilegiados, enquanto a maioria, incapaz de tê-las, sobrevive num patamar de mediocridade. Em O gênio em todos nós, David Shenk, jornalista e autor de best-sellers como O jogo imortal (Zahar), aborda esse mito das genialidades congênitas, baseado em estudos recentes das diversas áreas de pesquisa da inteligência humana. A ciência mostra que a verdade é mais interessante, rica, e oferece oportunidades muito mais amplas que a crença nos leva a supor – somos sobretudo o que construímos em nosso processo de desenvolvimento, embora não possamos controlá-lo completamente. Um processo, aliás, que nos acompanha ao longo de toda a vida. Claro, ao avançarmos na idade, nossas capacidades diminuem, mas não há limites impostos pelo nosso DNA. Os genes não são entidades programadas que nos determinam o AULA ABERTA

caminho. Eles interagem com o ambiente, e dessa constante interação resulta o que somos. Shenk, entretanto, não deixa de considerar a importância das particularidades genéticas no desenvolvimento de habilidades. “Seria tolice dizer que todos podem literalmente ser ou se tornar qualquer coisa. Mas a ciência moderna nos mostra que, da mesma forma, é tolo pensar que a mediocridade está embutida na maioria de nós ou que somos capazes de estabelecer nossos limites enquanto não aplicarmos o máximo de nossos recursos e investirmos muito tempo para determiná-los”, assinala o autor. O livro é dividido em duas partes: “O mito do dom” e “Cultivando a grandeza”. Na primeira, Shenk começa explicando o funcionamento dos genes e como eles interagem com todo o seu entorno para depois mostrar que os talentos não são inatos, embora todos nasçam com diferenças e alguns até com vantagens para a execução de determinadas tarefas. Trata também da questão das diferenças entre gêmeos idênticos, que comprovam o equívoco de pensar que as características genéticas são determinantes para o desenvolvimento de aptidões. Um dos capítulos dessa parte é dedicado a examinar as habilidades em faixas etárias distintas, evidenciando que talentos precoces nem sempre resultam em adultos que se destacam, mas que determinada habilidade pode se revelar em fases mais avançadas da vida. O último capítulo dessa parte é dedicado à relação entre etnia, genes, cultura e sucesso, em que o autor aborda sobretudo a crença de que determinados grupos étnicos têm vantagens sobre os demais em algumas práticas esportivas. Na segunda parte, Shenk discute o potencial de todos nós. Que erros podemos evitar a fim de que nossos filhos sejam bem-sucedidos? Qual a influência da sociedade nessa tarefa? E termina com uma afirmação intrigante: nossa herança genética pode ser mudada pelo estilo de vida que temos. Uma leitura agradável e de linguagem acessível. (LCPM) SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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Acesso limitado ENSAIO

Com desigualdades econômicas tão profundas no país, o ensino médio de qualidade e universalizado ainda é um sonho Por Lúcia Bruno m visita recente ao Brasil, o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, ao afirmar que nosso país precisava expandir o acesso dos jovens ao ensino médio, mencionou um problema nevrálgico da educação brasileira que se arrasta há décadas sem solução efetiva. Segundo dados da Pnad publicados em 2008, a média da escolaridade dos jovens entre 15 e 29 anos, no Brasil, atingia 8,8 anos. Para ter uma ideia das disparidades regionais, abaixo dessa média estavam o Norte do país (8,1 anos) e o Nordeste (7,7 anos), enquanto o Sudeste (9,5 anos), o Sul (9,4 anos) e o Centro-Oeste (9,1 anos) situavam-se em patamar superior. Essa mesma pesquisa mostrou que, em 2008, quase 1,5 milhão de jovens entre 15 e 17 anos não frequentava a escola; na faixa etária de 18 a 24, mais de 15,6 milhões estavam sem estudar e, entre 25 e 29 anos, eram 13,5 milhões. No Sudeste, Sul e Centro-Oeste, o percentual de jovens que encerraram o estudo no ensino médio ou o abandonaram era de 36,26%, 31,29% e 31,04%, respectivamente, estatística preocupante para regiões consideradas as mais dinâmicas e produtivas do país. Os dados da Pnad de 2009 mostram algumas variações nesse quadro, sem contudo indicar tendências de mudanças substantivas. Se em 2008 84% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos frequentavam a escola, em 2009, esse índice subiu para 90,6%. Entre a faixa dos 18 aos 24 anos, em 2008, eram 34% dos jovens e, em 2009, 38,5%. Cabe ressaltar que, apesar do crescimento observado, permanece a redução significativa do percentual de jovens que deixam a escola na passagem de uma faixa etária para outra e de um nível de ensino para o seguinte. Além disso, temos de considerar que muitos jovens

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matriculados nas escolas estão em séries inadequadas para a idade, em decorrência da entrada tardia no sistema educacional ou da repetência ou, ainda, da evasão, o que significa que muitos nem sequer chegam a frequentar o ensino médio, embora tenham idade para tal. Se considerarmos que em 2009 o Brasil ainda apresentava uma taxa de analfabetismo em torno de 14 milhões de pessoas, ou seja, 9,7% da população com 15 anos ou mais, e que a taxa de analfabetismo funcional (pessoas de 15 anos ou mais de idade com menos de quatro anos de escolaridade) era de 20,3%, vemos quão ineficazes são as políticas educacionais em vigor para cumprir um dever do Estado que é prover educação básica para todos. Se cruzarmos esses dados com a renda segundo dados da Pnad, veremos que a relação entre pobreza e escolaridade ainda é um fator determinante, ou seja, quanto menor a renda das famílias menor a taxa de escolaridade de seus filhos, obrigados a se inserir precocemente no mercado de trabalho para complementar a renda familiar. De acordo com dados do Inep em 2008, cerca de 2,8 milhões de alunos do ensino médio trabalhavam, buscando conciliar atividade remunerada e educação. No mercado de trabalho, os jovens com baixa escolaridade só são capazes de desenvolver tarefas simples, mal remuneradas e precárias, alimentando o círculo de pobreza e sofrendo as consequências do desemprego, especialmente os situados na faixa etária entre 18 e 24 anos. No quadro de desigualdades econômicas profundas e tão arraigadas como as existentes no Brasil, ensino médio com qualidade para todos os jovens ainda é um sonho de uma noite de verão. Lúcia Bruno é professora livre-docente da Faculdade de Educação da USP. AULA ABERTA



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