Urba - São Paulo

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vida e cultura urbana

S達o Pa ul o



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Garoa

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A revista Urba entra em seu 4º ano de publicação anual, para dar continuidade aos debates, pesquisas e registros sensiveis sobre as relações entre cidade, arte, urbanismo, corporalidade, vida e cultura, dedicada a abrir frestas de interferência crítica nas atuais possibilidades de articulação sobre a vida na cidade, em busca do redesenho das suas condições participativas no processo de formulação da vida pública em que estão implicados, no atual contexto de crescente espetacularização das cidades. Expondo olhares Artístico/Científicos de diferentes contextos em cada edição – Urba visita São Paulo e observa de dentro do ambiente para construir essa edição que você lê agora a partir das impressões dos seus habitantes sobre a cidade como campo ampliado da arte, corpografias urbanas e modos de subjetivação na cidade – divulgando proposições e ideias de diversos autores a um público mais abrangente do que seus residentes. A revista arrisca-se em experimentações editoriais que traduzam ou recriem atmosferas e sensações particulares de cada cidade e sua identidade, registrando experiências metodológicas de apreensão da complexidade da cidade contemporânea, tomando a noção de experiência como desvio aos processos homogeneizadores da vida pública, promovidos pelas dinâmicas socioculturais instauradas por princípios de urbanização segregatórios e domestificadores da ação corporal de seus habitantes, incluindo às praticas de sua subjetivação e incorporação, com a participação de pesquisadores de Arquitetura e Urbanismo, Dança, Artes Visuais, Fotografia, Sociologia, Antropologia, História, Psicologia e Poesia. Nesta Edição chegamos a cidade de São Paulo, 4º maior cidade do mundo, uma das poucas no mundo que abriga descendentes de italianos, japoneses, portugueses, bolivianos, haitianos entre outras culturas, a capital tem vida e cultura própria. Um local que abriga cores e calores com uma frieza cinza. Crises de água, trânsito, criminalidade, violência, poluição, moradia, arte, beleza, corrupção, desiguladade, poesia, música, amor, alegria, garoa, vida. Apesar de tudo a enorme SP proporciona experiências impares, que trazemos para você. Como a infância de gerações atingidas pelos pisos de caquinhos na sessão MEMÓRIA as imagens criadas por artistas sobre este ambiente nos suurpreendem e encantam na sessão IMAGEM. A critica e criminalização de uma vertente da arte em DIALÉTICA e revisitada graficamente em PIXO. Descobrimos a história de VIDA de Lina Bo Bardi uma arquiteta a frente do seu tempo, a arquitetura hacker de Guto Requena em ARTETETURA, as descobertas dos Flâneurs em DERIVA, as recentes manisfestações dessa cidade rebelde em RUAS, a crise politica e urbanistica em GAROA, além do plano diretor vigente em PERSPECTIVA e a clássica coluna URBA.

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A garoa rasga a carne O desenvolvimento da arte para a capa paritu da música dos Racionais, frupo de rap paulistano que representa a cidade de são Paulo pela poética da garoa. A cidade é carinhosamente chamada pelo apelido “terra da garoa” devido as leves e continuas chuvas que caem sobre a cidade, mas em constraste a esse apelido carinhoso a imagem predominante que os habitantes tem de sua cidade é a de um ambiente inóspito, cinza, revoltante desgastante, e cruel. Tanto em termos sociais quanto ambientais.



ARTISTAS CONVIDADOS Bruna Bischoff Bernardo Borges Dio Bastoge Eddie Terzi Flavio Bassani Samuel Luis Borges ESCRITORES Marcos Grinspum Ferraz Manoel Henrique Campos Botelho Eduardo Simões Caren Rhoden João Victor Moura Rafael Balbueno Tiago Miotto FOTOGRAFOS Bruna Bischoff Eddie Terzi

Denize Roma Jair Alves Jr. Revistaovies Carta Capital Redobra Elegancia das coisas Brasileiros Vitruvius Cidades Para Quem Eliane Brum Gustavo Menon João Sette Whitaker Álvaro Rodrigues dos Santos Vladmir Safatle Leonardo Diniz DIRETOR DE REDAÇÃO Eddie Terzi (edditerzi@revistaurba.com.br) REDAÇÃO

Eddie Terzi (edditerzi@revistaurba.com.br) SUPERVISÃO DE ARTE

COLUNISTA Ricardo Luis Silva Eliane Brum

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PUBLICAÇÕES Revistaovies Carta Capital Redobra Elegancia das coisas Brasileiros Vitruvius Cidades Para Quem FUNDADORES Denize Roma Eddie Terzi Jair Alves Jr.

colaboradores

ARTE DIRETOR Eddie Terzi

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COLABORADORES Bruna Bischoff Bernardo Borges Dio Bastoge Eddie Terzi Flavio Bassani Valeria Fialho Rosana Martinez Ricardo Luis Silva

www.urba.com urba@contato.com eddieterzi@gmail.com www.eddie-art.tumblr.com Urba (ISSN 0104-0703) é uma publicação anual da Independente Ltda. Redação e Administração: Rua Plínio de carvalho, 106, São Paulo, SP, 00067-901, Caixa Postal 223, 01159-970, fone: (11) 2618-4230. E-mail: urba@revistaurba.com.br Sucursais – São Paulo. Av. Paulista, 1000, sala 560, fone: (11) 2107- 6650. Urba não se responsabiliza por conceitos emitidos nos artigos assinados. Comercialização e Distribuição: Urba Comércio de Publicações Ltda.Rua Plínio de Carvalho, 106, São Paulo - SP Todo e qualquer material enviado a Urba sem requisição expressa da redação não será devolvido. Distribuição exclusiva em domicilio para todo o Mundo Diap Ltda. Distribuidora Internacional de Publicações Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678, São Paulo - SP. Impressão D’arthy Editora e Gráfica Ltda. Rodovia Anhanguera, Km. 33 - Rua Osasco nº 1.086 - Parque Empresarial CEP 07750-000 - Cajamar/ SP


WHEREVER YOU ARE, BE ALL


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Lateral da SĂŠ 2014 Xilo (mdf) Flavio Bassani


Tetos vizinhos 2014 Desenho Eddie Terzi

Cimento 2014 Fotografia Bernardo Borges

Aquarela 2014 Fotografia Red Bischoff

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vida

Revolucionária nos projetos e engajada politicamente, ela acreditava numa arte-trabalho, distante do espetáculo, colada ao ser humano e à cultura

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Lina Bo Bardi, nascida em Roma, na Itália, em dezembro de 1914, não só escolheu o Brasil como pátria, como foi apaixonada por este país, suas paisagens e culturas. Como ela mesma escreveu: “Naturalizei-me brasileira. Quando a gente nasce, não escolhe nada, nasce por acaso. Eu não nasci aqui, escolhi este lugar para viver. Por isso, o Brasil é meu país duas vezes, e eu me sinto cidadã de todas as cidades, desde o Cariri ao Triângulo Mineiro, às cidades do interior e da fronteira”. Mas, se a arquiteta escolheu o Brasil com tamanha convicção, o Brasil não parece tê-la aceitado, ou compreendido, do mesmo modo. Hoje celebrada como um dos maiores nomes da arquitetura mundial da segunda metade do século XX, sendo tema de exposições, livros, artigos de jornais e estudos acadêmicos, Lina não teve o mesmo reconhecimento em vida. Na verdade, de 1946, quando desembarcou no Brasil, até sua morte, em 1992, a arquiteta enfrentou uma série de dificuldades na carreira, passou por longos períodos de ostracismo e deixou, ao todo, não mais de dez obras construídas. Entre elas estão algumas das mais notáveis edificações do Brasil moderno, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Sesc Pompeia (ambos na capital paulista) e o restaurado Solar do Unhão (em Salvador), mas poderia ter deixado mais. E, se é difícil explicar com precisão os motivos de tantas adversidades – que passam pelos fatos mais óbvios de ser mulher em uma sociedade machista, ser “estrangeira” em tempos de nacionalismo ou, ainda, ser casada com um sujeito polêmico, como Pietro Maria Bardi –,

há algo notável sobre a arquiteta que se relaciona à maioria de seus fracassos e sucessos: Lina não seguiu padrões, modelos prontos e modismos, nunca escolheu os caminhos fáceis e não hesitou em experimentar, subverter e ir contra os discursos hegemônicos na política ou na cultura. Sem se enquadrar – mesmo dentro do modernismo ou da esquerda –, ela fez da arquitetura sua arma para a transformação do mundo em um lugar mais igualitário e “humano”. Incomodou e por isso pagou preços, mas deixou, ao fim, um valioso legado para a arquitetura e para o País. “Hoje as pessoas veem a obra dela com certa esperança, com grande frescor, algo que não houve à época”, diz Zeuler Lima, professor da Washington University em Saint Louis (EUA) e autor de extensa pesquisa sobre Lina. “O discurso modernista também não abria espaço para certos experimentos, e acho que a obra dela foi bastante experimental, não só do ponto de vista tecnológico, prático, mas também na maneira como ela pensava.” O pesquisador costuma dizer que Lina foi uma arquiteta moderna, mas não modernista, já que não perseguia uma linguagem específica nem seguia determinadas regras formais em sua produção – ao contrário, por exemplo, de outros grandes, como Oscar Niemeyer. “A Lina constrói com tijolo, concreto, ferro, pedra, barro, palha, com qualquer tipo de coisa”, diz o arquiteto André Vainer, que trabalhou com Lina por cerca de 13 anos, entre 1977 e 1992. “Você olha a cobertura da Casa do Benin [Salvador, 1987], de barro, e compara com o Masp [São Paulo, 1957–1968], são coisas diametralmente opostas, e isso é um sinal de liberdade enorme, de abertura para projetar.” Construir sem regras técnicas e formais não era algo gratuito, mas parte de uma concepção de que o arquiteto deve entender os contextos sociais e humanos de cada local para poder projetar. Para Lina, cada caso era um caso, e a arquitetura deveria ter como protagonista o ser humano, não o espaço, como ela mesma disse certa vez. “Ela olhava o espaço não como os arquitetos geralmente definem, que é um espaço vazio cartesiano geométrico, mas como os antropólogos definem, que é o espaço vivido”, diz Lima. “Iniciava um projeto com o que ela tinha, seus princípios, mas recebia do mundo e das situações, e esse diálogo criava-se na própria obra.” Quando, num fim de semana, foi pela primeira vez à velha fabrica instalada no bairro paulistano da Pompeia – que


seria transformada em uma das sedes do Serviço Social do Comércio (Sesc) – e viu famílias comendo e conversando, com seus filhos brincando, Lina afirmou: “É essa a atmosfera que quero manter aqui”. Nesse sentido, diz Vainer, “a Lina representa um tipo de arquitetura que tem um respaldo com a realidade muito grande, o que é raro hoje. Ela sempre trabalhava a partir de ideias que não eram de arquitetura, mas de relacionamento humano, de sociedade, de justiça entre os homens e de comportamento”. Se não teve tantas obras construídas, Lina foi incansável em sua produção em diferentes áreas. Foi também designer, cenógrafa, editora de revistas, curadora de museus e exposições e até “estilista” – chegou a desenhar roupas e joias, principalmente nos primeiros anos no Brasil. Mas, na verdade, tudo para ela era arquitetura. As coisas se misturavam, de modo híbrido, e tudo estava dentro de um jeito maior de pensar a profissão, o mundo e o ser humano dentro dele. “Arquitetura, para mim, é ver um velhinho, ou uma criança, com um prato cheio de comida atravessando elegantemente o espaço do nosso restaurante à procura de um lugar para se sentar, numa mesa coletiva”, disse certa vez no Sesc Pompeia. Lina trazia de sua formação em Roma, influenciada pelo professor Gustavo Giovannoni, uma ideia do “arquiteto total”. “Para ela, o arquiteto deve vestir a ‘pele do lobo’: ser cozinheiro para projetar uma boa cozinha, ser aluno e professor para projetar uma boa escola, ser ator e espectador para projetar um bom teatro”, escreve Marcelo Ferraz, arquiteto que trabalhou por 15 anos com Lina. Para poder se propor a fazer uma arquitetura tão diversa e experimental e conseguir transitar com tamanho êxito por variados campos do conhecimento, ainda mais sendo mulher em meados do

século XX, Lina precisava de conhecimentos e ferramentas poderosos. E os tinha, como relembra Vainer: “Uma capacidade de desenho e de síntese impressionante, um entendimento da história da arquitetura, uma postura ideológica muito bem definida e construída e uma postura de liberdade”. Para entender um pouco como isso foi criado, é preciso voltar à vida de Lina desde os primeiros tempos. Os anos de infância e juventude de Achillina Bo (nome de batismo) na Itália não transcorreram em período tranquilo da história do país. Muito pelo contrário. Se a Primeira Guerra Mundial (1914–1918) acabou quando ela tinha apenas quatro anos, a ascensão do nazifascismo e a tensão do período entreguerras foram vividas de perto pela garota, que, em seus anos de formação, já demonstrava talento excepcional para a pintura e o desenho. Após se formar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, em 1939, Lina mudou-se para Milão e foi trabalhar no escritório do célebre arquiteto Gió Ponti. Enquanto aprendia com a prática diária da profissão, Lina logo teve que lidar com a eclosão da guerra, o que a marcou de modo profundo. “Entre bombas e metralhadoras, fiz um ponto da situação: importante era sobreviver, de preferência incólume. Mas como? Senti que o único caminho era o da objetividade e racionalidade, um caminho terrivelmente difícil quando a maioria opta pelo ‘desencanto literário e nostálgico’. Sentia que o mundo podia ser salvo, mudado para melhor, que essa era a única tarefa digna de ser vivida. (…) Entrei na Resistência, com o Partido Comunista clandestino.” Em período pouco propício para a arquitetura – quando prevalecia a destruição, não a construção –, Lina intensificou o trabalho como ilustradora de revistas e jornais e como editora. Foi também aí que assimilou algumas das bases do que seria sua arquitetura até o fim da vida. “Quando as bombas demoliam sem piedade a obra e a obra [sic] do homem, compreendemos que a casa deve ser para a ‘vida’ do homem, deve servir, deve consolar, e não mostrar, numa exibição teatral, as vaidades inúteis do espírito humano. A guerra destruiu os mitos dos ‘monumentos’. Também na casa. (…) Os móveis devem ‘servir’, as cadeiras para sentar, as mesas para comer, as poltronas para ler e repousar, as camas para dormir, e a casa assim não será um lar eterno e terrível, mas uma aliada do homem, ágil e serviçal, e que pode, como o homem, morrer.” Após chegar ao Rio de Janeiro, em 1946, Lina e Pietro (marchand, crítico de arte e jornalista) foram convidados por Assis Chateaubriand, magnata das comunicações, a ficar no Brasil para criar aqui um museu de arte. Encantada com o novo mundo, terra onde as coisas poderiam florescer livres das amarras do passado – feudal, monárquico, burguês ou de grandes guerras –, Lina convenceu Bardi a ficar. No Museu de Arte instalado na rua 7 de Abril, em São Paulo (sede do grupo Diários Associados, controlado por Chateaubriand), onde o excepcional acervo trazido pelo marido foi acomodado, Lina começou a desenvolver suas primeiras ideias de museu e expografia, que radicalizadas culminaram nos polêmicos cavaletes de vidro do Masp, hoje brutalmente banidos do local. O museu não deveria ser um recanto

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Retrato de Lina Bo Bardi por: Bob Woldenson


Retrato de Lina Bo Bardi por: Fotografo desconhecido

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de memória, um túmulo obsoleto ou um depósito de obras humanas, dizia Lina, mas um lugar vivo e dinâmico, onde devem entrar “luz e ar puro”. Mais do que isso, o museu deveria ser popular, voltado a todos, em uma concepção que pautou todos os seus projetos para espaços coletivos até o fim da vida. “Tirar do museu o ar de igreja, tirar dos quadros a ‘aura’ para apresentar a obra de arte como um trabalho, altamente qualificado, mas trabalho; apresentá-lo de modo que possa ser compreendido pelos não iniciados”, escreveu Lina certa vez. Após a experiência no museu, para o qual também projetou uma série de móveis, e a criação da revista Habitat, Lina teve sua primeira obra construída em 1951, mesmo ano em que se naturalizou brasileira. A Casa de Vidro, erguida no bairro paulistano do Morumbi, residência construída para morar com Pietro, trazia ainda grande influência da arquitetura racionalista europeia, com a qual Lina tinha tido mais contato até ali. Após ser recusada – em concurso anulado – para dar aula na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo e com o projeto do Masp, construído na avenida Paulista, já em curso, Lina viajou para sua primeira grande estada na Bahia, o que representa talvez a grande transformação em suas ideias e obra. Convidada para dar um curso e, posteriormente, criar o Museu de Arte Moderna da Bahia, no teatro Castro Alves, a arquiteta entrou em contato com outro Brasil, com a cultura popular e com realidades que desconhecia em São Paulo e no Rio. Lá também projetou a restauração do Solar do Unhão, um importante conjunto arquitetônico de Salvador, e conheceu o cineasta Glauber Rocha, o etnólogo Pierre Verger e outros importantes intelectuais. Em 1964, de volta a São Paulo, já com as tensões geradas pelo golpe militar, Lina continuou tocando as obras do Masp, inaugurado finalmente em 1968. No entanto, mais engajada com a contracultura e com a luta contra a ditadura, Lina passou a apoiar a guerrilha nos chamados anos de chumbo, num capítulo pouco conhecido de sua vida. Sabe-se que a arquiteta sediou em sua casa reuniões da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo de Carlos Marighella, e foi perseguida pelos agentes da repressão. Com os bons contatos que tinha, principalmente o apoio do marido – homem bem relacionado e não engajado na luta política –, Lina se exilou na Itália por cerca de um ano, enquanto um processo de prisão corria na Justiça Militar brasileira. Lina voltou em 1971, quando os militares revogaram sua prisão preventiva. A posição política da arquiteta, aparentemente bastante à esquerda e engajada quando se analisam episódios como esse, é relativizada por alguns pesquisadores de sua vida, que enxergam uma série de contradições em suas posições ao longo da vida. Lina foi amiga de figuras conservadoras e trabalhou com políticos de direita em certos momentos, ao mesmo tempo em que foi próxima de artistas libertários e chegou a afirmar, mais de uma vez, ser “stalinista”. “É uma pessoa muito complexa”, diz Vainer. “Às vezes eu fico tentando enquadrá-la, mas a verdade é que não dá. Quando ela dizia que era ‘stalinista’, isso estava muito mais ligado ao papel que Stalin teve durante a Segunda Guerra Mundial, que possibilitou que os Aliados vencessem os nazifascistas, do que a qualquer outro sentido atribuído ao termo, como os relacionados a expurgos, matanças. Ela era mais ligada a uma esquerda mais moderna, desligada do ‘partidão’, da União Soviética. Era heterogênea.” O documento da revogação do pedido de prisão na época da ditadura , por exemplo, foi dado por Lina à Vainer e Ferraz nos anos 1980, em uma pastinha que continha também uma foto de Che Guevara e outra de Lenin. “Ela tinha uma vida burguesa, afinal o Bardi tinha muito dinheiro”, diz Vainer. “E por isso também fez gratuitamente os projetos do Masp e da Igreja de Uberlândia. E acho que isso é também uma espécie de distribuição de renda, uma postura socialista de certa maneira. Algo como:


‘Eu não preciso desse dinheiro, mas quero doar meu conhecimento’.” Seja como for, com suas contradições e coerências – Lina também gostava de chocar, o que deve ser levado em conta –, o fato é que sua arquitetura sempre foi de propósito social, acessível e humanizada. O Sesc Pompeia, para o qual a arquiteta foi chamada após longos anos “colocada de escanteio” pelo poder político e também pela arquitetura dominante, talvez seja a experiência mais bemsucedida de Lina no sentido de utilizar a arquitetura para criar um espaço democrático e igualitário. Nos anos seguintes, entre 1986 e 1990, já bastante madura e calejada, Lina pôde, em seu segundo período na Bahia, fazer uma série de projetos, como Casa do Benin, Casa do Olodum e Ladeira da Misericórdia – o qual viu ser abandonado e parcialmente destruído ainda em vida. Ali levou ao máximo sua experiência como arquiteta-antropóloga, se assim podemos dizer, investigando e vivenciando intensamente a cultura popular baiana e afro-brasileira. “Lina tinha um grande idealismo. E isso é diferente de utopia, pois era um idealismo de pensar não o impossível, mas o possível. Pensar um futuro melhor não abstratamente, mas no que existe, no aqui e no agora”, diz Lima. “Ela era uma pessoa extremamente generosa com a arquitetura, com a ideia de que a arquitetura tem um propósito e que ele tem que ser social, humano”, conclui. Com a visão de alguém que conviveu de perto por tanto tempo, com uma experiência não só profissional, mas afetiva e de amizade, Vainer ressalta que a generosidade ia para muito além da arquitetura. “Tanto que ela deu para mim e para o Ferraz isso tudo que temos. Ela nunca regulou conhecimento, sempre nos ensinou, exigiu que a gente tivesse uma postura em relação ao trabalho, às ideias. Quando a gente se conheceu, ela tinha 63 anos, eu 23 e o Ferraz, 22. E acho que ela pensou: ‘Vou pegar esses dois caras, porque eu preciso de alguém para fazer os desenhos e tal, mas também vou pegar para ensinar’.”

Lina Bo Bardi e Pietro M. Bardi por: Bob Woldenson

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Lina Bo Bardi por: Chico Albuquerque

vida

Em tempos de arquitetura monumental e extremamente cara, por vezes pouco conectada às realidades e contextos locais, Lina ressurge como outro modo possível de se pensar e fazer. Se isso ocorre um tanto tardiamente, o que importa é que a arquiteta é cada vez mais lembrada e difundida, especialmente no ano de seu centenário. “A obra da Lina não era como essa arquitetura ‘do espetáculo’, que é basicamente um exercício de técnica e virtuosismo, tão distante da realidade do homem”, diz Vainer, referindo-se a uma arquitetura de obras faraônicas que predominou nos anos 1990 e 2000. Na mesma linha, Lima conclui: “A arquitetura de Lina é espetacular, não é ‘do espetáculo’. É de propósito à vida”.

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Casa de Vidro por: Fotografo desconhecido

Sesc Pompéia em contrução © Carlos Alberto Cerqueira Lemos

Masp em construção por: Hans Günter Flieg


Vandalismo, transgressão, crime ambiental, dano à propriedade e ao patrimônio, alvo de ações policiais, objeto de indagações sobre como salvar uma juventude transviada que automaticamente flerta com o mundo das gangues, do crime e das drogas: dentre todos os espaços de discussão nos quais circula a pixação, cada vez mais um outro, que antes o ignorava, abrese às suas possibilidades: o da arte. Na linha de frente deste debate acirrado, galgando à arte dos pixadores o reconhecimento da arte já institucionalizada e reconhecida como tal, está o paulistano Djan Ivson Silva, o Cripta Djan. Ele notabilizou-se nacional e internacionalmente como figura pública deste movimento que, com tintas, grafias e atitude libertária, toma as ruas das cidades do país e do mundo, propondo na prática uma ressignificação dos espaços públicos urbanos, das formas de expressão e do próprio conceito de arte. Além de pixador com extenso e reconhecido “currículo” nas ruas da terra da garoa, pela abrangência e dificuldade dos locais atingidos por seus traços, Djan Ivson (o Cripta, agregado ao seu nome, é a denominação da crew de pixadores de que faz parte desde 1996) é vídeo-documentarista e um dos idealizadores dos ataques realizados por pixadores na 28ª e na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, que obtiveram grande repercussão e trouxeram a pixação, como arte e como conceito, ao centro das atenções. Como documentarista, Djan foi pioneiro na produção de vídeos que retratam as práticas e a cultura da pixação em todo o país, dentre os quais destacam-se os vídeos “100Comédia” e “Escrita Urbana” (disponíveis aqui). Ao mesmo tempo em que os registros avançavam, a conflituosa interlocução entre a pixação e o campo institucional das artes também dava seus passos – foi o caso da invasão da Faculdade de Belas-Artes,


versos lugares do Brasil – como foi o caso de sua passagem por Santa Maria, onde participou de debates e da exibição de seus documentários durante a Semana Acadêmica das Artes Visuais, promovido pelo Diretório Acadêmico do curso na Universidade Federal de Santa Maria, ocasião em que concedeu a entrevista à revista o Viés que segue abaixo. Também já deu entrevistas para grandes jornais e programas de tevê, já discutiu com curadores de Bienais no Brasil e fora dele e desafiou todos os limites que o meio da arte contemporânea quis impor em seus espaços. Na Bienal de Berlim, chegou a jogar tinta no curador da mostra, que – depois de ter percebido que havia perdido o controle de uma oficina que Djan e outros brasileiros haviam sido convidados a dar por lá – jogou água suja em Djan dizendo “agora eu também te pixei”. E não parou aí, o curador Artur Zmijewski ainda teria revidado também com tinta contra Djan que, sem se abalar, respondeu: “é guerra? então segura!”. O que já era um tanto de paredes pixadas dentro da igreja onde a oficina aconteceria, virou um muro daqueles da São Paulo de Djan e seus parceiros. Ao fim, polícia e um pouco mais de confusão para que Djan e os outros três brasileiros fossem liberados. Tudo isso em uma Bienal com o tema “Forget Fear” (Esqueça o Medo, em português)!

Urba: Para começar, nós gostaríamos que você contasse um pouco do seu trabalho e da sua trajetória. Cripta: Tá. Meu nome é Djan Ibson, e eu sou conhecido como Cripta Djan nesse universo da pixação. Cripta é o nome da turma da qual eu faço parte, da gangue que eu faço parte, e eu sou pixador há dezesseis anos. De alguns anos pra cá, eu comecei a documentar em vídeo a cena do pixo, até para se criar essa memória, porque o pixo é uma interven

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em 2008, que culminou na expulsão do pixador e até então aluno Rafael Pixobomb; da invasão da Galeria Choque Cultural; ou da invasão da 28ª Bienal de São Paulo, também em 2008, que culminou na prisão de uma jovem quando os pixadores sentiram-se convidados a deixar sua marca no espaço dedicado a “intervenções urbanas”. Esta ação culminou em uma retratação da organização da bienal e no convite para Cripta Djan participar da edição seguinte, na 29ª Bienal, quando novamente gerou polêmica ao pixar as paredes da instalação “Bandeira Branca”, de Nuno Ramos, com a frase “Liberte os urubu” (referência tanto à também polêmica obra de Ramos quanto a uma turma de pixadores

presos por formação de quadrilha em Minas Gerais). Por que pixar uma obra, se já havia espaço para o pixo? “Dar espaço é limitar o espaço ao mesmo tempo”, diz Djan, e essa máxima reflete-se nas ruas. Mas é preciso discutir se pixação embeleza ou polui os centros urbanos? Na arte gosto não se discute, diria Djan. Por mais que haja muito o que se discutir, ou melhor, debater. Será a autorização dos donos dos muros da cidade que fazem algo aceitável ou não? Ou será que o fato de grandes empresas e grifes internacionais “pixarem” seus produtos, ou seja, utilizarem a estética do pixo por conta própria e com fins comerciais, faz do pixo algo aceitável e, ainda mais, vendável? Por trás destas e de outras perguntas está um debate mais amplo, o debate do espaço público versus espaço privado que precisa cada vez mais ser encarado. E é isso que Djan encara. Como figura pública do movimento, Djan já viajou dando oficinas em di-

São estas e outras ações que credenciaram Djan a ter voz ativa dentro do movimento onde o que conta são histórias e trajetórias de corres e tretas. Os pixadores, com X e não com CH, são muito mais do que o senso comum possa repassar. São “rebeldes”, “revolucionários”, como diz Djan, que fazem do muro e da cidade suas telas e seus ateliês querendo ser lembrados assim, como participantes da história, e não como meros espectadores. Não por acaso essa luta é até na grafia do termo. Se nos dicionários “pichação” se escreve com C-H, para os pixadores ela se escreve com X. O termo “existencial” não aparece repetidas vezes durante a entrevista por acaso. A transgressão do pixo é mais que rebeldia, ela é “um corre existencial”, como nos disse Djan. E essa questão nunca foi mais importante. Se, aos poucos, a arte contemporânea abre espaço para a pixação e para os pixadores, é preciso aceitar este espaço com cuidado. Pixo é estética, estilo, mas é muito mais. E as investidas do mercado da arte, de grifes e corporações podem trazer um perigo em si: o pixo se tornar estilo, ser mera estética artística, esvaziado de rebeldia e de transgressão. Por isso, a cruzada de Djan pelo reconhecimento do pixo como arte não é despreocupada: “se tiverem que reconhecer o artista, que reconheçam os legítimos, aqueles que estão realmente legitimando sua arte na rua, porque esse é o espaço de legitimação do pixador”, afirma. “E não é só estar na rua, é estar na rua de uma forma libertária”. Enquanto alguns insistem em enquadrar a “pichação” em velhas categorias e questionam-se sobre como barrá-la, a novidade cheira a tinta, rompe o silêncio da noite com o som do spray, toma os muros da cidade e também – por que não? – as galerias. “O momento pelo qual a obra de arte transcende a realidade é, com efeito,inseparável do estilo, mas não consiste na harmonia realizada,na problemática unidade de forma e conteúdo,interno e externo, indivíduo e sociedade,mas sim nos traços em que afIora a discrepância nafalência necessária da apaixonada tensãopara com a identidade” Theodor Adorno e Max Horkheimer,“A indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas”,In: Dialética do Esclarecimento – Fragmentos Filosóficos,1944/47.

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ção muito efêmera. Foi uma forma que eu encontrei de eternizar essa passagem por aqui. Também venho representando o pixo em meio à arte contemporânea, com bastante integridade, colocando uma discussão horizontal, frente a frente, com esse pessoal da arte contemporânea. Urba: E como foi que começou essa sua trajetória? Cripta: Olha, eu comecei a pixar com doze anos, aquela coisa dentro da escola mesmo, você já começa a ver as inscrições na escola e tal, mas eu virei pixador pra valer quando eu peguei uma tinta e sai pra pixar. Por coincidência aí eu já fui pego, sofri uma repressão e tomei um banho de tinta, cheguei em casa todo pintado, e aquilo ali já me acorrentou ao pixo. Mas o que atrai o cara a pixar normalmente são

jovens que buscam sempre viver de uma forma transgressiva, a galera do pixo é sempre aquela molecada mais bagunceira da escola, que tá sempre transgredindo de alguma forma, e eu era assim quando era moleque. Então quando eu encontrei o pixo, foi a maneira mais efetiva de se aventurar pela cidade, e criar um status por isso, uma notoriedade. A gente começa a descobrir que tem vários caras que são super idolatrados na rua pela sua história de transgressão pela cidade, e isso que acaba acorrentando a galera ao pixo. Todo mundo também quer criar a sua memória ali e se eternizar na cidade. E é por isso que muitos jovens vão buscando o pixo como uma forma de afirmação existencial mesmo. De criar uma história através das paredes da cidade, e também de interagir com a cidade, fazer uso dela. O pixador acaba desfrutando muito mais da cidade do que os outros cidadãos. A gente anda observando toda a estrutura da cidade, para identificar novas inscrições, lugares que a gente vai se apropriar. É uma atividade que é muito interessante, ela acorrenta mesmo os jovens a isso, e desde que eu comecei eu nunca mais consegui perder o vínculo com a pixação. Urba: A principal polêmica, digamos assim, que se coloca é a relação entre intervenção artística e propriedade privada. Como que tu vê essa relação? Cripta: Eu acho que o pixador tá se apropriando da cidade, reivindicando um direito de intervenção que muitas vezes foi negado a ele, e que outros “departamentos”, digamos assim, da sociedade têm. Têm livre acesso para fazer intervenções permanentes na cidade, como prédios, muros, shoppings, e a própria sociedade não se dá conta de que não tem uma participação na construção da cidade. E o pixador tá reivindicando isso. Urba: E essa relação com a arte contemporânea, qual é a tua posição? Cripta: O pixo é um objeto artístico, e o pixador é um artista. Mas ele não tem a pretensão de ser porque, hoje em dia, o conceito de arte anda tão degradado, que o pixador é aquele artista tão genuíno que nem sabe que é um artista, porque o conceito de artista anda degradado. O artista se transformou no objeto, no instrumento de decoração do Estado, o mercado também cooptou o artista. Então eu acho que o pixador é o artista que resgata a subversão do artista. E o papel de ser livre também, e é justamente a questão da liberdade que cria esse conflito com a sociedade

e com a propriedade privada. Porque tudo é cada vez mais privado na cidade, o pixador se pedisse para fazer a intervenção dele, ninguém iria deixar. Tudo que você tenta mobilizar, você depende de alvará, de Prefeitura, de aval dos donos, e é ai que entra o ódio. Só que a sociedade não entende que o pixador, a intenção dele, na realidade, é artística, ele não tá se apropriando daquela parede para destruí-la. Aquilo é o suporte dele. O pixador é o artista que transcendeu a tela e o ateliê. O ateliê e a tela dele é a cidade. E é isso que as pessoas não entendem. Urba: Pode ser entendido como uma reinvenção da forma artística? Cripta: Acho que é mais um resgate mesmo do real conceito de artista. O pixador sustenta a arte dele. E os artistas, hoje em dia, já se preparam para o mercado, já nascem se preparando para o mercado, pensando no

final que é vender a obra dele. O pixador não. Ele sofre a repressão por fazer a sua intervenção e cada pixo equivale a uma obra. Ele não tem apego à obra dele, porque ele espalha pela cidade, e tem a questão da contestação do espaço público. Urba: Você falou que você está tentando documentar as pixações pelas cidades. Aqui em Santa Maria, tivemos a Operação Cidade Limpa. Um cara que tinha vários arquivos teve seu computador apreendido, e um arquivo importante foi por água abaixo. Um trabalho de muitos anos acabou se perdendo, e, consequentemente, se perdeu um pouco da memória da pixação na cidade – tanto da pixação quanto do grafite. Então a questão é se, dessas documentações, você já produziu documentários ou se repassa as filmagens para algum arquivo para possíveis documentários, e quão seguro está esse seu arquivo. Cripta: Eu comecei a fazer essa documentação direcionada para a galera do pixo. Eu fazia esses vídeos porque os pixadores não tem nenhum tipo de mídia. A tradição do pixo era colecionar recortes de jornal, porque era a única forma que a gente acabava tendo de sair na mídia impressa e tal. E eu comecei com esse foco. Mas depois eu me preocupei com a importância de mostrar isso pra sociedade. Às vezes uma imagem vale mais do que mil palavras e eu vi muitas pessoas mudarem de opinião depois de assistir um documentário, um vídeo ou uma ação, que o cara vê o pixador colocando a vida dele no limite para fazer a intervenção. Tudo aquilo que o cara achava que era importante, a propriedade dele, ele acaba vendo que é uma grande besteira, que ali uma vida está em risco só pra deixar uma expressão. Então, isso acaba tendo essa grandeza, essa potência. Também a gente colabora muito com outras mídias, com a imprensa e tal. Eu já dei entrevista e já ajudei a produzir grandes matérias, como pro SBT repórter, o [Roberto] Cabrini fez um especial de pixação e eu estava envolvido, cedi o material. A abordagem nunca vai ser das melhores, mas essa recusa ao pixo também ajuda a projetar. E o pixador se ele tá conseguindo uma mídia

pela transgressão – mesmo que seja negativa – pra ele é positivo, porque justamente os valores dos pixadores são invertidos. O cara ser chamado de vagabundo, de marginal, até de vândalo, às vezes é um elogio. Os pixadores tem isso como uma coisa positiva, então até essas recusas que rolam, essas operações, repressões, só acabam por projetar mais o pixo. E às vezes a gente consegue o nosso resultado, que era sair na mídia, ser visto. Porque o pixo é um “corre” existencial, por isso que o pixo se apropria de patrimônios da cidade. Esses patrimônios querem criar uma memória, querem


repressão, isso influencia na identidade, na percepção de si mesmo, do pixador? E, complementando, a situação que se criou acabou te expondo bastante, te conhecem nos lugares que você vai e, afinal de contas, a pixação é crime, então não acontece uma repressão maior ainda? Um policial já chegou a te reconhecer?

preservar uma memória. E quando um pixador se apropria de uma estátua ele também está querendo se preservar junto com aquela memória criando a memória dele, atual, é isso que as pessoas não entendem. Então eu já colaborei com todo tipo de mídia, até pra difundir a discussão mesmo. Se a gente ficasse fechado a gente só iria tomar paulada, entende? Por isso eu comecei a me preparar para discutir e representar o pixo, por que eu sentia falta de argumentos da galera. E não tem como culpar os caras por causa disso, muitas vezes eles foram abandonados pelo Estado. Às vezes o cara é a potência em pessoa. Às vezes o cara não tem instrução, não tem um discurso político, mas já tem a atitude política. Então o que falta mesmo é a galera se articular um pouco mais para saber argumentar. Porque às vezes você chega pra conversar com um cara que pixa e pergunta por que ele pixa e ele não vai saber nem falar por quê. É uma coisa tão instintiva que ele tem dentro dele que ele não sabe te explicar. Ele já vem com aquela sina traçada, por que eu vejo como uma sina. Eu nunca pensei que eu ia ser um pixador e que eu ia fazer tantas coisas assim na cidade, me aventurar tanto. Escalar prédio de trinta andares… eu nunca pensei. Quando eu comecei a pixar eu tinha até medo de subir nos lugares, ficava preocupado se eu ia conseguir subir, como que era isso. E isso que é legal da pixação. Urba: Você perder muito material… Cripta: …Só perdi uma filmagem uma vez. A gente foi pego, todo mundo, aí era prova do crime e ficou apreendido lá, e como eu tinha passagem [policial] por pixação eu assinei como conivente. Então, quando eu tô registrando, eu procuro sempre tá fugindo quando chega a polícia. Procuro também registrar de um lugar específico, porque também é a prova do crime, né? … Pra eles. Urba: E essa relação direta com a

Cripta: Eu não tenho esse problema porque eu cresci pixando de cara limpa, encarando juiz, promotor, polícia. E como a minha família não tem preconceito com isso – nem eu tenho preconceito com isso – eu achei que era hora do pixador sair do anonimato e dar a cara. Tomar um posicionamento de que nós somos artistas, somos artistas rebeldes mesmo, revolucionários, que tão representando a arte em outro sentido, num sentido libertário mesmo. Então por isso eu não tenho problema nenhum de dar a cara. Hoje em dia eu não tenho mais vida pessoal, eu sou um pixador exposto. Eu já fui em programas de TV como Altas Horas, Fantástico. Essa vez do Fantástico meus parentes do Paraná, que não sabiam, descobriram. Fazer o quê? É isso mesmo, eu já sou um pai de família, eu tenho minha dignidade então eu não tenho problema com isso. Mas não é todo mundo que pode se expor, tem pessoas que não tem uma família como a minha, e aí a família não apoia. Eu entendo quem fica no anonimato, mas eu dou a cara pra defender todos por que eu tive essa oportunidade, de ter uma estrutura familiar boa, com a cabeça aberta, que sempre recebeu meus amigos, os mais marginais possíveis. Caras mal vestidos, de má aparência, sempre foram super bem tratados pela minha família e isso me ajudou a ser um representante do pixo na mídia, me expor. Urba: Mas e a repressão a tua figura, que é pública, nunca aconteceu de “esse aqui é prêmio”? Criptat.: Por incrível que pareça até agora eu não passei por isso. Porque eu sempre fujo também, né? Tô sempre fugindo, procuro não ser pego. Mas isso me preocupa às vezes, principalmente quando a gente tá fazendo algumas intervenções de grande repercussão na mídia, alguns protestos. A gente já sofreu repressão pesada lá em São Paulo depois que a gente invadiu a Bienal e a Carol ficou presa lá [Caroline Pivetta da Mota, presa ao participar da intervenção dos pixadores na 28ª Bienal da Ante Contemporânea, em São Paulo], a pedido do governador. Ela é de Santa Maria, inclusive. Aí a gente teve a dimensão que a gente tava numa briga política. Teve que vir ministro da Cultura ajudar

a gente, pra soltar a menina. Criou um embate político, tipo: “Ministro pede a Serra que liberte pixadora”, essas coisas. Mas eu fico preocupado, uma vez eu tava como “procurado” e fui preso. E eu sabia que eu não tava devendo nada. Aí todo mundo ficou preocupado. Os advogados que defendem a gente acharam que era golpe político pra nos ferrar, que era coisa de prefeito. Eu tinha acabado de fazer um protesto grande… Mas era um grande equívoco, porque não tinham dado baixa nos meus processos… Mesmo assim, eu tenho essa preocupação sim. Por que é foda, né? Eu sou uma espécie de inimigo público para esses caras. Mas eu não vou me oprimir, eu aprendi uma coisa: os pixadores são a resistência das ruas. Os meninos

lá em Belo Horizonte ficaram quatro meses presos por formação de quadrilha de pixadores e saíram da cadeia piores do que eram. Tão pixando tudo, mais ainda. Então é isso, a gente não vai se oprimir. Urba: E isso tem a ver com a própria repressão, a repressão, ao invés de diminuir, fortalece. Como que você enxerga isso? Cripta: Eu sou a prova viva disso, o que me acorrentou no pixo foi meu primeiro rolê. Eu fui pego e tomei uma surra, fui todo pintado e cheguei todo pintado em casa. Eu era uma criança de doze anos e o cara fez a gente lamber tinta, fez miséria com a gente. E o cara era um morador, ainda, um covarde. E isso me acorrentou. Toda repressão que a gente sofre, quando a gente apanha, a gente só guarda e transforma em gás pra mais disposição. E é o que acontece também com a criminalidade, o sistema não recupera ninguém. O cara entra lá um ladrão de bolacha e sai um assaltante de banco, porque o sistema primeiro abandona e depois vem com a sua mão opressiva querendo cobrar ainda, querendo punir aqueles que eles não deram instrução alguma. Então isso só alimenta, é um combustível, que dá disposição pra bater de frente com esses caras. Urba: Nessa questão da Bienal parece que as pessoas têm diferentes formas de compreender o pixo. Tem a pessoa que é totalmente contra, tem pessoa que acha que “ah, na rua é legal, mas num espaço de arte?”. Por que num espaço de arte? Fala um pouco mais sobre isso. Cripta: Sabe por que a gente invadiu a Bienal? O curador declarou publicamente que a Bienal daquele ano tinha um andar vazio e que estaria aberto a intervenções urbanas. Então pronto, a gente se sentiu convidado. Aí a gente fez a nossa intervenção e fomos repreendidos; podia qualquer tipo de intervenção urbana, menos a pixação. Então, a própria instituição já caiu em contradição, os curadores. Aí a Bienal, tentando limpar a barra deles, acabou convidan

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do a gente na edição seguinte, porque a gente conseguiu mobilizar um reconhecimento existencial dentro desse campo também. Sem querer usar a bienal como um pedestal, mas é hipocrisia eles ignorarem a existência do pixo. Eles dizem prezar pela arte. Se eles prezam pela arte mesmo, como vão reduzir a pixação ao vandalismo? Era o que esse circuito simplesmente fazia: ignorava a existência do pixo como se fosse uma coisa, uma sujeira da cidade. O pixo vai mais além de muita obra que está lá dentro. Urba: A pixação é explicitamente uma arte de intervenção urbana. Quando a pixação ganha os holofotes, como algumas em especial já ganharam, quando ela vai pra dentro das galerias, deixa de ser pixação? Cripta: O que acontece é um deslocamento de contexto que vira uma representação estética e um reconhecimento existencial. Então, o pixador tem que ter noção de que é só isso que a gente vai alcançar, e acho que é íntegro também o reconhecimento estético do pixo. Lógico que uma reprodução estética dentro de um espaço desses perde sua potência, mas também tem que entender que tipo de reconhecimento que ela está tendo. Tem como entrar em uma galeria com integridade, o pixador demonstrar o trabalho dele, por que não? Eu acho um papo muito classista os artistas mesmo da arte contemporânea falarem “os caras querem entrar pro circuito, eles tem é de ficar na transgressão, no rolê deles”, mas a gente não pode ter um reconhecimento? Temos que ficar à margem sempre? Por que se o corre do pixador é existencial, e se essas instituições começam a reconhecer e valorizar, eu acho digno, íntegro esse reconhecimento. O único problema que pode acontecer é ser como é o caso do grafite. O problema do grafite não foi ele entrar na galeria, não foi esse reconhecimento da estética no meio da arte contemporânea. O problema foi quando o grafite passou a ser usado como instrumento do Estado, tipo como uma vassoura do Estado. O grafite começou a virar propaganda do Estado, e perdeu a sua liberdade. O lugar que legitima essas intervenções

é a rua, então, se o cara não está nem mais fazendo o ofício dele, como ele vai ter integridade para ter o reconhecimento? Imagina, se eu fosse um pixador que corresse por prefeitura fazendo painéis de pixo autorizado, como é que eu ia ter credibilidade com a galera do movimento, até mesmo pra ser reconhecido por um circuito, porque o que a gente frisa é que esse reconhecimento seja pelo que o pixo é na sua essência. Tem as duas vertentes do pixo a serem exploradas, que é essa questão estética do pixo – existe um processo criativo, um processo artístico pra se desenvolver essas letras e a tipografia está dentro das artes visuais, o que já torna a pixação objeto artístico -, e também o ato do pixador, que é o ato libertário do artista de ir contra o que está estabelecido pelo poder. Urba: Hoje a gente vê que o grafite, além da aceitação das instituições da arte, teve também a aceitação do mercado, quer dizer, a gente vê marcas de roupa utilizando a estética do grafite, a gente vê a televisão usando a estética do grafite. Essas duas questões que tu colocou, da ação e da estética, no pixo elas são indissociáveis? Cripta: Não. Pixo já vem sendo absorvido. A FOX fez um seriado que era com letras de pixo a logo, a Nike já usou letra de pixo nas roupas deles, a Black Sheep; muitos artistas plásticos vêm se apropriando da estética do pixo, designers… Então acho que chegou o momento do pixador desfrutar desse reconhecimento estético, por isso a gente começou a se manifestar nesse campo da arte, até porque estavam se apropriando da nossa estética e outras pessoas estavam levando os louros por isso. Os caras que estão ali se dedicando,

dando o sangue na rua, continuam à margem enquanto a sua estética é absorvida, ainda mais por outras pessoas. A aceitação estética, então, é válida; é contraditória, sim, pra sociedade, porque o pixo é tão odiado e de repente começa a ser valorizado na arte. Quem sabe daqui uns tempos as pessoas vão até querer que sua parede seja pixada, quando os pixadores estiverem vendendo suas assinaturas por milhões em galerias pode começar a inverter esses valores, como foi com o Banksy, com os Gêmeos. Hoje em dia, as pessoas até arrancam muros desses caras pra vender no mercado negro. Ou o Basquiat também, foi ser muito mais valorizado depois, apesar de ter desfrutado um pouco na época dele, participou de exposições importantes na Europa.v Urba: A pixação seria fruto de várias coisas, inclusive da falta de espaço pra se expressar. Dar espaço mudaria algo?

E até quando vai existir a pixação? Cripta: Olha, acho que dar espaço não é o caminho, porque dar espaço é limitar o espaço ao mesmo tempo. Isso que os grafiteiros não percebem. Eles falam de ser uma conquista a prefeitura estar apoiando, não é. Esses caras combatem o que eles não querem e autorizam o que querem, então começam a manipular. Dar espaço é uma coisa que pixador não precisa, é por isso que o pixo nunca vai acabar porque sempre vão vir pessoas fazendo; alguns pixadores podem até ser cooptados, mas eles vão perder a credibilidade, e é um ciclo que se renova sempre, e o desenvolvimento expressivo, a escrita, é do ser humano há muito tempo; isso nunca vai acabar, pode se transformar mas sempre vai existir de alguma forma. Urba: Queria que tu falasse um pouco sobre as origens dessa questão da estética do pixo, mesmo, porque o pixo reto tem muito a ver com a própria cidade, a arquitetura da cidade… Cripta: O que eu notei viajando pelo Brasil e registrando os pixadores é que as pixações tendem a seguir a estética da cidade. O pixo paulista é mais reto porque a cidade é mais reta, cheia de muros, esquinas, prédios. Você vai no Rio, o pixo é mais enroladinho porque a cidade é de corcovado, é mais redonda. Você vai em Salvador, os pixos têm umas ondas que seguem as curvas da cidade. Em Minas também, os pixos são esticados como as montanhas de Belo Horizonte. Então, é muito interessante, o pixo segue as linhas guias da cidade e ele se desenvolve através da estética da cidade e cria sua identidade própria, cada estado tem sua própria identidade, por mais que o pixo paulista, que é o pixo reto, e o pixo carioca, que é o xarpi, que é mais rubrica, sejam as duas grandes referências. Você vai no Nordeste e é mais xarpi, a galera de Fortaleza segue muito a tradição, a estética, do pixo carioca. Já no Sul e Sudeste você encontra mais pixo reto, seguindo a tradição paulista, mas mesmo assim cada estado tem esse poder de desenvolver sua estética própria. Porto Alegre o pixo é reto, Curitiba também, mas cada cidade conseguiu ter sua característica própria. Eu já consigo notar o pixo curitibano, o pixo portoalegrense, por mais que seja pixo reto. Belo Horizonte já sofreu uma influência mútua, dupla. Nos anos noventa era mais influenciado pelo xarpi carioca, os pixos eram mais rubricas, assinaturas, e na década de 2000 começou a ser influenciado pelo pixo reto paulista, isso acabou criando a identidade própria da pixação mineira, a fusão desses dois


estilos. Então isso é muito interessante. E o pixo reto tá chegando no nordeste. Em Pernambuco eu tava notando que era bem a estética do pixo carioca, de rubricas, aquela coisa mais cifrada na assinatura. E agora já tem gente pixando reto nesse lugares também, entendeu? E acaba desenvolvendo o pixo reto deles lá, e isso é muito interessante na pixação. Urba: E, sobre a reação negativa, como você falou, da abordagem policial e dessa reação ao título de pixador como vândalo. Isso é uma maneira de discutir, de botar em pauta na sociedade, de fazer circular a questão do pixo. mesmo como algo negativo? Cripta: É, então, eu acho que a sociedade cria segregação através desses rótulos e o pixador já foi rotulado como um criminoso, como um vândalo. Mas é de se discutir essa questão, porque o pixo não destrói nada, pixação é tinta na parede. E gosto não se discute. Entre o grafite e a pixação a diferença é apenas estética, porque os dois são tinta na parede e são intervenções estéticas, só que como grafite é mais colorido e começou a atender mais a demanda da sociedade, ele tem mais aceitação, mas isso é questão de gosto, é isso que as pessoas não se tocam, que gosto não se discute nesse mundo da arte, uma coisa pode ser feia para você e bonita para mim. E também tem essa questão de que o pixo não inutiliza nada e uma parede pixada vai continuar apta a cumprir a função dela de parede, a gente não tá jogando um míssil ali, não vai ser destruído aquele lugar, a gente só tá usando aquilo como suporte. A polêmica mesmo, todo o preconceito tá nessa apropriação, e aí o pixador acaba sendo englobado naquela fala do crime, que ajuda a alimentar toda essa segregação. E o pixador acaba entrando nesse rótulo de que “ah, é pixador, é pobre, é ladrão, é vândalo”. Você vê que eles costumam associar quando quebram orelhão, tipo “ah, os pixadores, os vândalos”, e na real pixador nem são vândalos, são artistas mesmo, e estão reivindicando o espaço na cidade atra-

vés da arte, da expressão artística, por mais que nem ele tenha noção disso. Urba: E mesmo quando esse espaço esteja ocupado, por exemplo há relatos de grafites atropelados por pixo, por exemplo, ou como aconteceu aqui em Santa Maria com um mural e que gerou uma discussão… Cripta: Essa questão entra porque assim, o único parâmetro de respeito que existe na rua é a transgressão, porque um pixador não pode atropelar o pixo do outro? Porque todo mundo tá se arriscando pra fazer, então ali a disputa é igual, aquela disputa por apropriação da cidade é igual. O grafite também tinha essa mesma essência, e aí o grafite começou a ser usado como antídoto da pixação e começou a ser privado. Então é aí que entra essa relação de conflito, porque grafite ilegal não é atropelado, pode ver. Se o cara chegou ali e fez o bomb dele, que é o verdadeiro grafite, não vai ser atropelado. Agora, quantas agendas de pixo não sumiram para entrar o grafite privado? E os grafiteiros moralistas ainda acham que não podem ser atropelados porque eles conquistaram aquele espaço. Mas com o dono da casa? Então isso passa a se tornar uma propaganda qualquer, tipo uma publicidade. E a pixação não respeita nada que é privado. A partir do momento em que o grafite virou privado, é espaço pra nós, nós não temos mais a obrigação de respeitar o grafite.

Urba: Pra finalizar, apesar da aceitação que a pixação vai tendo em outros meios, o espaço de legitimação dele continua sendo a rua? Cripta: Continua e vai ser sempre na rua. Acho que o importante, eu friso muito, se tiverem que reconhecer o artista, que reconheçam os legítimos, aqueles que estão realmente legitimando sua arte na rua, porque esse é o espaço de legitimação do pixador. E não é só estar na rua, é estar na rua de uma forma libertária e isso vale frisar também. Tem muito grafiteiro que fala “Ah, tô na rua, cresci na rua”. Cresceu na rua pedindo autorização, participando de projetos, fazendo propaganda pro Estado, entendeu? Então o importante não é só estar na rua, é a postura que ele tem na rua, é a atitude dele. É isso que legitima a caminhada do pixador. Não é só ter uma

letrinha bonita, saber pixar… Se ele não tiver uma caminhada de transgressão na rua, ele não vai ter a legitimidade dele, já começando dentro do movimento. No pixo tem uma frase que é muito dita: “quem não é visto não é lembrado”. Então não adianta, o cara não tem o poder de reivindicar nada se não é visto. Numa discussão de pixo a primeira coisa que o cara pergunta é ‘Cê pixa o quê?’. Se o cara não tem pixo já fala “Então cê tá reivindicando o quê aqui? Não tem currículo para estar debatendo aqui”, então acho que esse é o caminho, é manter a liberdade e a transgressão.

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Foi na década de 40/50 do século passado. Voltemos a esse tempo. A cidade de São Paulo era servida por duas indústrias cerâmicas principais. Um dos produtos dessas cerâmicas era um tipo de lajota cerâmica quadrada (algo como 20x20cm) composta por quatro quadrados iguais. Essas lajotas eram produzidas nas cores vermelha (a mais comum e mais barata), amarela e preta. Era usada para piso de residências de classe média ou comércio. No processo industrial da época, sem maiores preocupações com qualidade, aconteciam muitas quebras e esse material quebrado sem interesse econômico era enterrado em grandes buracos. Nessa época os chamados lotes operários na Grande São Paulo eram de 10x30m ou no mínimo 8 x 25m, ou seja, eram lotes com área para jardim e quintal, jardins e quintais revestidos até então com cimentado, com sua monótona cor cinza. Mas os operários não tinham dinheiro para comprar lajotas cerâmicas que eles mesmo produziam e com isso cimentar era a regra. Certo dia, um dos empregados de uma das cerâmicas e que estava terminando sua casa não tinha dinheiro para comprar o cimento para cimentar todo o seu terreno e lembrou do refugo da fábrica, caminhões e caminhões por dia que levavam esse refugo para ser enterrado num terreno abandonado perto da fábrica. O empregado pediu que ele pudesse recolher parte do refugo e usar na pavimentação do terreno de sua nova casa. Claro que a cerâmica topou na hora e ainda deu o transporte de graça pois com o uso do refugo deixava de gastar dinheiro com a disposição. Agora a história começa a mudar por uma coisa linda que se chama arte. A maior parte do refugo recebida pelo empregado era de cacos cerâmicos vermelhos mas havia cacos amarelos e pretos também. O operário ao assentar os cacos cerâmicos fez inserir aqui e ali cacos pretos e amarelos quebrando a monotonia do vermelho contínuo. É, a entrada da casa do simples operário ficou bonitinha e gerou comentários dos vizinhos também trabalhadores da fábrica. Ai o assunto pegou fogo e todos começa-

ram a pedir caquinhos o que a cerâmica adorou pois parte, pequena é verdade, do seu refugo começou a ter uso e sua disposição ser menos onerosa. Mas o belo é contagiante e a solução começou a virar moda em geral e até jornais noticiavam a nova mania paulistana. A classe média adotou a solução do caquinho cerâmico vermelho com inclusões pretas e amarelas. Como a procura começou a crescer a diretoria comercial de uma das cerâmicas descobriu ali uma fonte de renda e passou a vender, a preços módicos é claro pois refugo é refugo, os cacos cerâmicos. O preço do metro quadrado do caquinho cerâmico era da ordem de 30% do caco integro (caco de boa família). Até aqui esta historieta é racional e lógica pois refugo é refugo e material principal é material principal. Mas não contaram isso para os paulistanos e a onda do caquinho cerâmico cresceu e cresceu e cresceu e , acreditem quem quiser, começou a faltar caquinho cerâmico que começou a ser tão valioso como a peça integra e impoluta. Ah o mercado com suas leis ilógicas mas implacáveis. Aconteceu o inacreditável. Na falta de caco as peças inteiras começaram a ser quebradas pela própria cerâmica. E é claro que os caquinhos subiram de preço ou seja o metro quadrado do refugo era mais caro que o metro quadrado da peça inteira… A desculpa para o irracional (!) era o custo industrial da operação de quebra, embora ninguém tenha descontado desse custo a perda industrial que gerara o problema ou melhor que gerara a febre do caquinho cerâmico. De um produto economicamente negativo passou a um produto sem valor comercial a um produto com algum valor comercial até ao refugo valer mais que o produto original de boa família… A história termina nos anos sessenta com o surgimento dos prédios em condomínio e a classe média que usava esse caquinho foi para esses prédios e a classe mais simples ou passou a ter lotes menores (4 x15m) ou foram morar em favelas. São histórias da vida que precisam ser contadas para no mínimo se saber que um dia a peça quebrada valeu mais que a peça inteira…

memória

Pode algo quebrado valer mais que a peça inteira?

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