A Ordem Natural
Carlos Alberto Sacheri
A Ordem Natural
A Ordem Natural - Carlos Alberto Sacheri 1a edição - Dezembro de 2014 - Edições Cristo Rei Título original: El Orden Natural, Editora Cruzamante, Buenos Aires, Argentina, 1975. Os direitos desta edição pertencem a EDIÇÕES CRISTO REI Rua Costa Rica, 90/Apto 202, Bairro Sion CEP: 30320-030, Belo Horizonte, Minas Gerais E-mail: contato@edicoescristorei.com.br Editor Guilherme Ferreira Araújo
"Omnia instaurare in Christo." São Pio X
Tradutor Renato F. O. Romano Revisor Davi James Dias Projeto gráfico João Toniolo e Laura Barreto Capa e diagramação Laura Barreto Foto da capa Pavel Vakhrushev - Blue darknightskywithmany stars. Space background www.edicoescristorei.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Agradecemos aos familiares de Carlos Alberto Sacheri, na pessoa do Dr. José María Sacheri, que, com sua generosa acolhida, nos concedeu os direitos de publicação desta obra.
S UM Á R I O
PRÓ LO GO
por Mons. Adolfo Tortolo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 1. A Igreja e o social: sua obra histórica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 2. A Igreja e a questão social (o século XIX) . . . . . . . . . . . . . . . . 19 3. Por que uma Doutrina Social? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 4. A natureza do magistério . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 5. O valor das encíclicas sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 6. Como interpretar os documentos pontifícios . . . . . . . . . . . 38 7. Existe uma ordem natural? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 8. Ordem Natural e Direito Natural (I) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 9. Ordem Natural e Direito Natural (II) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 10. A pessoa humana e sua dignidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 11. Os direitos essenciais da pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 12. A Igreja diante do liberalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 13. A Igreja diante do capitalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 14. A Igreja diante do comunismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
15. A Igreja diante do nazismo e do fascismo . . . . . . . . . . . . . . . 81
35. Proletariado e promoção trabalhista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
16. A Igreja diante do socialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86
36. A moeda e o crédito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
17. Uma Igreja revolucionária? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
37. A co-gestão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191
18. A propriedade privada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
38. A economia internacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197
19. A propriedade e sua função social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101
39. O homem, ser social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
20. A difusão da propriedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
40. A sociedade política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
21. As estatizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
41. O bem comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
22. O trabalho humano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
42. Origem e função da autoridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 218
23. O salário justo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
43. Os grupos intermédios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223
24. A reciprocidade nas trocas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
44. O princípio de subsidiariedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 228
25. A empresa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
45. A função do Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
26. As associações profissionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
46. A soberania política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
27. O capital tem direitos? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142
47. Participação política e formas de governo . . . . . . . . . . . . . 243
28. A Igreja e o corporativismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
48. A democracia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 248
29. Os organismos interprofissionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
49. Resistência à autoridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
30. A organização sindical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
50. O Estado e a Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259
31. Os problemas do sindicalismo atual . . . . . . . . . . . . . . . . 162 32. O direito de greve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 33. Desemprego e pleno emprego . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 34. A seguridade social . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
PRÓL OGO
“A ordem é a unidade resultante da conveniente disposição de muitas coisas” (Contra Gentes, 111-71). É a pluralidade, reduzida à unidade mediante o ordenamento dos fins. A lei da finalidade é inseparável de tudo o que se relaciona com a ordem. Há uma ordem natural e há uma ordem sobrenatural. Ambas exaltam e revelam a íntima unidade de Deus, tanto ad intra como ad extra. É por isso que o cosmos, o universo, sente em si mesmo uma metafísica exigência de ordem e de unidade. A ordem natural não é um submundo ou uma ordem de emergência. Tampouco é obra da livre determinação humana. A ordem natural é anterior ao homem. Fundamenta-se em Deus e participa do recôndito mistério do mesmo Deus, cuja ordem divina e eterna se reflete na ordem natural. A ordem natural é uma realidade acabada em si mesma, ainda quando a revelação nos descubra a ordem sobrenatural e nos mostre a que grau de perfeição e elevação se pode levar a ordem natural informada pela graça. Por sua própria natureza, a ordem natural é inviolável. A atitude do homem deve ser de total acatamento. A vulneração desta ordem introduz um tipo de violência interior, cuja vítima imediata é o mesmo homem que vulnera a ordem. O acatamento, a fidelidade às exigências da ordem natural, em resumo, são formas de acatamento a Deus e de aceitação de sua Vontade. Acatamento que aperfeiçoa o indivíduo e o liberta de servidões.
A ordem natural é uma das leis essenciais da vida. Basta o simples exemplo do corpo humano. De sua ordem física depende a saúde, o crescimento, a perfeição física e grande parte de sua plenitude humana. Esta ordem resplandece, por fora, transformada em beleza. Assim se explica a profunda percepção da beleza da ordem natural por artistas, gênios e santos. A ordem natural, a seu modo, é uma maravilhosa epifania. Mas esta ordem natural se projeta de uma maneira múltipla: ordem moral, ordem social, ordem econômica, ordem política. Diferentes aspectos e diferentes fins de uma mesma ordem natural, com suas leis próprias. Esta ordem lamentavelmente está sempre posta em xeque. É fácil vulnerá-la, sobretudo porque na realização dela o homem intervém com tudo o que é seu. Por outro lado, a luz da razão não basta por si mesma – ou lhe é muito difícil – para abarcar toda a ordem natural e definir, concretamente, as linhas mestras desta ordem. Finalmente, a ordem natural, apesar de seu vigor intrínseco, de seu fundamento em Deus, de sua participação nas leis eternas, necessita da defesa do homem. E vice-versa. A ordem defende o homem, e o homem a ordem. O contrário dela – a desordem – é uma excrescência com raízes abismais, nunca extirpadas a fundo. Um grande Pensador e um grande Mestre, Carlos Sacheri, intuiu as profundas subjacências no pensamento e no coração do homem atual. Subjacências carregadas de erros e negadoras não somente da ordem sobrenatural, como também da ordem natural. O pensamento moderno se ocupa do homem. Mas sua concepção de homem é falsa. O homem é mitificado, aparentemente convertido no fim e no centro da História, depois manipulado como coisa.
Sacheri percebeu que o muro se estava fendendo rapidamente com a recusa da ordem sobrenatural e da ordem natural. Viu o problema da ordem natural subvertida e animada por uma técnica espantosa. E lançou-se em cheio, não a lamentar, mas a restaurar a ordem natural. Aqui está a razão do seu sangue mártir. Contribuição sua foram os artigos que Sacheri publicara com o título de A Igreja e o Social1. Ele parte da Igreja como Instituição divina e, portanto, como Mistério de Fé. O Magistério dos Papas que ele analisa e aproveita tem a mesma raiz sobrenatural. Mas em todos os seus artigos sobressai ou subjaz a realidade da ordem natural, como requisito indispensável para assentar depois a ordem sobrenatural. Este livro merecia melhor prólogo. Que o afeto supra a pobreza destas linhas. Paraná, 15 de setembro de 1975. + Mons. Adolfo Tortolo Arcebispo de Paraná
1 Aqui aparecem com o título definitivo de A Ordem Natural (nota do editor argentino).
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A O r d e m N at u r a l
1. A Igreja e o social: sua obra histórica
Desde a origem do Cristianismo, a Igreja vem desenvolvendo um constante trabalho pelo reconhecimento dos direitos humanos fundamentais, a fim de lhes assegurar a vigência prática nos países por onde tem estendido sua benéfica influência. A dimensão social de seu apostolado vem-se convertendo progressivamente em tantas iniciativas e instituições, que nenhuma outra instituição humana poderia gloriar-se de haver realizado obra semelhante. A magnitude do que foi empreendido impede qualquer enumeração exaustiva. Mas bastará uma breve consideração de certos fatos significativos para comprovar até que ponto a mensagem de salvação que o Cristianismo leva aos homens se refletiu numa obra admirável de promoção humana e social.
O Cristianismo primitivo A mensagem de caridade evangélica revela sua dimensão social já nas primeiras Epístolas de São Paulo. Quando o Apóstolo se dirige ao escravo, recorda-lhe os direitos bem como as obrigações para com o seu senhor,
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e, dessa maneira, tão simples e silenciosa, a difusão da fé cristã foi transformando radicalmente a antiga instituição da escravidão. O testemunho imparcial dos historiadores da Antiguidade põe em relevo a eficácia do trabalho desenvolvido nesse sentido pelas primeiras comunidades cristãs constituídas ao longo de todo o Império Romano. O sinal característico da vida evangélica é aquele “Vede como se amam!” dos Atos dos Apóstolos, com que os pagãos reconheciam as conseqüências práticas da nova religião. Milhares de mártires, vítimas de cruéis perseguições, testemunharam com a sua própria vida a vocação de paz que os inspirava. Durante o século II até o século V, os Santos Padres da Igreja, tanto latina quanto grega, desenvolveram em seus escritos um pensamento profundo em matéria social, e até econômica, assentando assim as bases da elaboração teológico-moral dos séculos seguintes.
A cristandade medieval A crise do Império pagão transformou rapidamente a Europa num mosaico de povos e nações que se invadiam e dominavam uns aos outros. A força das comunidades cristãs existentes e o espírito abnegado dos missionários foram assentando as bases da pacificação social. Uma nova Europa surgiu paulatinamente, unificada pela comum adesão aos mesmos valores religiosos e morais. As congregações religiosas recém-formadas criaram as primeiras escolas para a instrução elementar do povo. O rico tesouro da literatura grega e latina foi conservado pelos monges, mediante o árduo procedimento de cópia dos manuscritos resgatados da destruição e do saque vândalo. Graças ao esforço deles, a cultura ocidental logrou subsistir no essencial; obra tanto mais meritória, quanto se considera
A Igreja e o social: sua obra histórica
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o lastro de imoralidade que empanava os valores de muitas criações da Antiguidade. No campo social, as realizações do Cristianismo medieval foram múltiplas. A primazia dos valores religiosos não só inspirou numerosas iniciativas assistenciais, como a criação de hospitais (“casas de Deus”) e dispensários, asilos de idosos e orfanatos, etc., mas também presidiu, em matéria econômica, à organização de oficinas e dos primeiros grêmios profissionais, instituições que organizavam as atividades econômicas de cada ofício ou artesanato e, ao mesmo tempo, assumiam a defesa dos interesses comuns em face da nobreza e do monarca. Caberia assinalar igualmente a notável descentralização das comunas e municípios na ordem política, com o reconhecimento de suas autonomias por meio da legislação foral e dos privilégios de que gozavam muitas cidades. Quanto à política “internacional”, a autoridade religiosa desempenhou, durante séculos, a função de árbitro supremo, ao dirimir os conflitos de monarcas em litígio, assegurando assim a paz entre os povos. Por outro lado, não se deve esquecer que a moral cristã criou uma série de instituições e usos, como a “trégua de Deus”, a “paz de Deus”, a proibição do uso de certas armas, a inviolabilidade de certos recintos, etc., cujo respeito assegurava a diminuição da crueldade e da destruição, próprias de qualquer conflito. O recente caso de Biafra mostra o nível de degradação coletiva alcançado pelas nações modernas. A Alta Idade Média testemunhou eloqüentemente o valor que a Igreja sempre atribuiu ao cultivo das ciências e das artes. Aí surgiram as primeiras Universidades (Paris, Oxford, Bolonha), com o esplendor da elaboração filosófica e teológica (Santo Tomás, São Boaventura) e o cultivo das ciências experimentais (Santo Alberto Magno, Roger Bacon). As letras e as artes alcançaram perfeição incomparável com as catedrais góticas, as obras de Dante e os afrescos e quadros de Giotto e Fra Angélico.
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Os tempos modernos Durante o Renascimento, a Igreja presidiu ao desenvolvimento das letras e das artes, com Papas como Júlio II. Ao mesmo tempo, inspirou sentido missionário aos descobrimentos e à colonização de novas regiões. Os teólogos espanhóis do século XVI firmaram as bases dos direitos humanos com precisão tal que nada tem que invejar à Declaração da ONU de 1948. Ao mesmo tempo, elaboraram os princípios do direito internacional moderno e assumiram a defesa dos direitos dos indígenas. Em nosso país ainda existem vestígios da admirável obra de promoção cultural e social das missões jesuíticas, franciscanas, etc. Diante do capitalismo em formação, a Igreja reiterou incansavelmente a proibição da usura, com documentos como a Bula Detestabilis de Sisto V (21/10/1586) e a Bula Vix Pervenit de Bento XIV (1º/11/1745); denunciou energicamente a supressão dos direitos de reunião e de associação, e a dissolução das organizações gremiais existentes, por imposição da lei Le Chapelier, promulgada pelos revolucionários franceses. A “questão social” acabava de nascer. As nefastas conseqüências do liberalismo econômico e político viriam ensombrar o surgimento do romântico século XIX com a miséria de centenas de milhares de lares operários e o empobrecimento das classes médias, em benefício de uma burguesia próspera que conseguiu assenhorear-se do poder político, destronando reis em nome do “povo soberano”. Por sua parte, a Igreja, defensora da ordem natural e dos direitos humanos, preparou-se para combater, com novas armas, os inimigos da Fé e da civilização.
2. A Igreja e a questão social (O século XIX)
O processo revolucionário Como têm reiterado incansavelmente os Pontífices, sobretudo a partir de Pio IX, os grandes males da civilização moderna provêm das errôneas ideologias que se difundiram nas nações ocidentais. A crise intelectual abriu caminho para a corrupção dos costumes, que originou uma série – ainda hoje inacabada – de crises políticas e sociais, de guerras civis e internacionais, cuja etapa mais recente estaria configurada pela guerra subversiva. O diagnóstico dos Papas é unânime a esse respeito; para comprová-lo, basta reler documentos tão significativos como o Syllabus de Pio IX e a Immortale Dei de Leão XIII, e confrontá-los com a encíclica Ad Petri Cathedram de João XXIII e inumeráveis alocuções de Paulo VI. As falsas ideologias levam à corrupção moral, e esta desemboca na subversão social. O surgimento e a evolução da chamada “questão social” nos séculos XIX e XX constituem uma prova eloqüente disso.
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As crises sociais A queda do ancien régime das monarquias européias, como conseqüência da Revolução Francesa, perturbou profundamente a ordem social, somando às conseqüências desastrosas do liberalismo capitalista a instabilidade dos regimes políticos. A profunda transformação tecnológica que ocorrera principalmente ao longo do século XVIII, conhecida pelo nome de “revolução industrial”, contribuiu singularmente para aumentar os desequilíbrios sociais existentes no absolutismo monárquico. A aplicação sistemática da maquinaria de recente invenção no processo da produção industrial coincidiu historicamente com o auge do Enciclopedismo ou Iluminismo, e com a formulação do liberalismo econômico e político. Aquilo que viria acelerar o progresso econômico da humanidade se viu, portanto, desvirtuado pelo influxo das ideologias. O avanço tecnológico permitiu que a nova burguesia industrial aumentasse constantemente o seu poder econômico, em detrimento da classe operária, da classe média e até da própria nobreza. Surge assim um fenômeno social outrora desconhecido: o proletariado. O auge industrial fomentou a deserção rural e, ao mesmo tempo, favoreceu a concentração urbana da população. As famílias emigradas não conseguiam trabalhar senão em condições misérrimas, carentes de toda e qualquer proteção e estabilidade. Os diversos abusos e o pauperismo crescente de enormes massas populacionais terminaram por fazer tomar consciência da necessidade de unir-se para defender-se. Assim surgem, por um lado, as correntes socialistas e, por outro, os primeiros esboços de organização sindical.
A Igreja e a questão social (O século xix)
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A questão social: suas etapas Podemos caracterizar a “questão social” como a questão das deficiências da ordem social de uma sociedade para a realização do bem comum. Supõe sua solução a análise das causas e dos meios para superá-las. Como toda realidade histórica, a questão social evolucionou sensivelmente até os nossos dias. Podemos distinguir três etapas principais nessa transformação. Em sua fase inicial, o problema social concentrou-se no pauperismo do proletariado industrial: é a “questão operária”. Em uma segunda etapa, os efeitos perniciosos do capitalismo liberal estenderam-se a todos os setores da população, ajuntando-se à questão operária o problema do artesão, o da população rural, o das classes médias e a crise familiar. Todas as estruturas comunitárias foram desaparecendo, atomizando a sociedade num conglomerado de indivíduos, inermes diante da opressão dos poderosos e da indiferença dos Estados. Por volta de 1930, a questão social toma novo aspecto e internacionaliza-se. A crise financeira se estende a quase todo o mundo, a Segunda Guerra mergulha os povos na inquietude e na instabilidade. Numerosas nações tomam consciência do desequilíbrio entre as nações industrializadas e aquelas que ainda não saíram de uma economia rudimentar de tipo agropecuário. O crescimento demográfico agrava o panorama já sombrio. É a “questão do subdesenvolvimento”, tratada por João XXIII na Mater et Magistra e por Paulo VI na Populorum Progressio.
A obra da Igreja À medida que as nações ocidentais iam-se afastando progressivamente das convicções religiosas e das práticas morais do catolicismo, a Igreja foi diagnosticando de
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modo certeiro a raiz dos males e determinou os princípios permanentes de uma autêntica organização social. Sua obra desenvolveu-se por dois meios principais: um teórico, outro prático. O instrumento teórico foi constituído pela chamada “Doutrina Social da Igreja”; o instrumento prático se deu pela multiplicidade de iniciativas de todo tipo, mediante as quais aquela doutrina foi aplicada concretamente às diferentes situações e problemas. A doutrina social da Igreja existiu desde sempre. Podemos dizer que começa com o evangélico “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. A Patrística, a teologia medieval, a escolástica do século XVI marcam sua elaboração histórica. Mas é a partir do Papa Bento XV que a doutrina é formulada de maneira sistemática, metódica, através das encíclicas papais. Uma plêiade de grandes Papas fez uma síntese coerente e completa acerca de todos os problemas da ordem social contemporânea, à luz dos eternos princípios do direito natural e do Evangelho. No plano das realizações concretas, surgiram, por toda a parte, as primeiras medidas práticas para superar a questão social. Em todos os países católicos se organizaram centros de estudos sociais, que levaram a cabo as primeiras ações concretas. O círculo vienense de Vogelsang, o centro de estudos sociais de Malinas, fundado pelo Cardeal Mercier, os centros alemães animados por Dom Ketteler, os grupos franceses inspirados por Ozanam e por Frédéric Le Play, Albert de Mun e La Tour du Pin são outros muitos exemplos de militância concreta no campo social. Deveu-se a esses grupos a criação do salário-família, a organização dos sindicatos católicos, a constituição das primeiras mutuais e associações de seguros sociais (acidentes de trabalho, pensões, etc.) para os mineiros austríacos, oficinas de capacitação operária e tantas outras
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iniciativas admiráveis realizadas por homens como León Harmel, modelo de empresário católico. Nosso país recebeu o influxo dessas iniciativas por meio dos grupos do Padre Grote, da Juventude Operária Católica (JOC), dos círculos católicos de operários, das mutuais, etc., cuja admirável história ainda está para ser escrita.
Por que uma Doutrina Social?
3. Por que uma Doutrina Social?
Muitas pessoas se surpreendem ao constatar que a Igreja Católica freqüentemente intervém no campo dos problemas econômicos, sociais, políticos e culturais, mediante uma série de documentos do Magistério, alocuções, encíclicas, etc. O Concílio Vaticano II reiterou essa atitude permanente da Igreja. Isso as preocupa porque nem sempre percebem claramente as razões de tal intervenção em terrenos alheios ao propriamente religioso. Por outro lado, observa-se que esta atitude da Igreja de formular uma “doutrina social” constitui uma verdadeira exceção em relação às demais confissões religiosas, as quais raramente se pronunciam sobre semelhantes temas. Não haverá, pois, uma extrapolação por parte da Igreja? E, se não há, a que se deve tal intervenção e que alcance tem?
Razões de uma intervenção Boa parte destas inquietações é resultado do espírito laicista que imperou durante todo o século XIX e, entre nós, durante grande parte do presente século. O laicismo, característico de liberais e de socialistas, relegava a Igreja “à sacristia” e não admitia a menor vinculação entre religião e
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ordem social. Quando eles não eram abertamente hostis ao religioso, sustentavam, como postura mais benigna, a total independência entre a fé e a vida cotidiana. A posição da Igreja Católica nesta matéria é completamente diferente da do laicismo. Formula-a com precisão o Vaticano II: "A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja não é de ordem política, econômica ou social. O fim que lhe atribuiu é de ordem religiosa". Mas é precisamente dessa mesma missão religiosa que derivam funções, luzes e energias que podem servir para estabelecer e consolidar a comunidade humana segundo a lei divina [...] A energia que a Igreja pode comunicar à sociedade humana atual radica nessa fé e nessa caridade, aplicadas à vida prática, e não no pleno domínio exterior exercido com meios puramente humanos"(Gaudium et Spes, n. 42). Pio XII já havia formulado a mesma distinção com respeito ao fim próprio da Igreja: “Jesus Cristo, seu divino fundador, não lhe deu nenhum mandato nem lhe fixou nenhum fim de ordem cultural. O fim que Cristo lhe assinalou é estritamente religioso [...] A Igreja não pode jamais perder de vista esse fim estritamente religioso, sobrenatural. O sentido de todas as suas atividades, até o último cânon do seu Código, não pode ser outro senão o de procurá-lo direta ou indiretamente”(9/5/1956). Em outras palavras, a Igreja tem por missão conduzir os homens a Deus. Mas os homens alcançam o seu destino eterno conforme respeitem ou não o desígnio providencial de Deus, durante a vida na terra. Daí a doutrina cristã ter sempre afirmado a vinculação íntima que existe entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, entre a natureza e a Graça, entre a vida terrena e a bem-aventurança eterna. Um princípio teológico fundamental afirma: “A Graça supõe a natureza; não a destrói, mas a aperfeiçoa.”
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Na ordem moral, por exemplo, não há perfeição cristã real que não implique a retidão moral natural. As virtudes teologais da fé, da esperança e da caridade supõem a prática da temperança, da fortaleza, da justiça e da prudência, que são virtudes humanas. O sobrenatural acresce, decerto, maiores exigências ao meramente humano, em razão da maior perfeição do fim a ser alcançado; mas sempre supõe o respeito absoluto de todos os valores humanos. Do mesmo modo, existe uma profunda correspondência das verdades naturais, que estão ao alcance da razão, com as verdades sobrenaturais contidas na Revelação divina. Assim como a caridade pressupõe a justiça, assim também a Fé pressupõe a razão. Chesterton expressava-o de modo pitoresco, ao dizer: “O que a Igreja pede ao homem, para que nela entre, não é que tire a cabeça, mas tão somente que tire o chapéu”. Em razão de sua missão sobrenatural, a Igreja deve velar por todos os valores e atividades que possam afetar direta ou indiretamente o progresso religioso dos homens. Seu campo específico de ação é o que se relaciona diretamente com a Fé e a moral. Cabe perguntar se essas normas morais podem vigorar, sensatamente, para o simples indivíduo, ou se, pelo contrário, devem abarcar também as atividades sociais da pessoa. Evidentemente, a moral inclui ambas as dimensões: o pessoal e o social. “Da forma dada à sociedade, em harmonia ou não com as leis divinas, depende o bem ou o mal para as almas" (Pio XII, 1º/6/1941).
Uma doutrina O ensinamento pontifício em matéria social constitui uma doutrina. Esta apresenta três características principais: 1) uma síntese especulativa; 2) de alcance prático, e 3) moralmente obrigatória.
Por que uma Doutrina Social?
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Implica uma síntese teórica porque contém e ordena, num todo harmonioso, um conjunto de princípios que envolvem todos os aspectos fundamentais da ordem temporal, tanto no âmbito nacional, como no internacional. Ora, essa teoria da reta ordem humana de convivência está destinada a iluminar a ação, tem um alcance prático. “Um princípio de doutrina social deve não apenas ser exposto, mas também há de ser posto em prática"(Mater et Magistra, n. 226). Por último, a doutrina apresenta um caráter de obrigatoriedade moral, já que obriga em consciência os cristãos a viver e atuar em conformidade com os enunciados dela: “Esta doutrina é clara em cada uma de suas partes. É obrigatória. Ninguém pode apartar-se dela sem perigo para a fé e para a ordem moral" (Pio XII, 29/4/1945).
Uma doutrina social O ponto de partida ou a fonte desta doutrina é duplo: a Revelação e a lei natural. Sobre esse duplo fundamento a Igreja formula os princípios arquitetônicos de toda reta ordem social, isto é, de todo ordenamento humano. A necessidade dessa formulação, principalmente no último século e meio, torna-se manifesta quando se considera o que dissemos sobre a natureza e a evolução da questão social. A crise da humanidade foi-se agravando mais e mais, abarcando todas as atividades e instituições humanas: crise dos direitos humanos, crise das famílias, crise das relações trabalhistas, das empresas e das profissões, crise das comunidades nacionais, crise da ordem internacional. “Tais são os males que o mundo padece na atualidade”, assinalava Pio XI em 1922 (Ubi Arcano Dei).
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Uma doutrina social cristã O caráter “católico” desta doutrina social tem dois aspectos básicos. É católica, primeiramente, porque é formulada à luz dos princípios eternos do Evangelho e vincula constantemente a ordem social às exigências da moral cristã; mas é-o também por uma razão circunstancial: só a Igreja Católica tem empreendido a árdua tarefa de criticar todas as desordens atuais e formular os princípios para a solução delas.
4. A natureza do magistério
Necessidade do Magistério: sua origem histórica Na concepção cristã, a verdadeira Igreja de Jesus Cristo é una. Assim professa o Credo, ou Símbolo da Fé: Creio na Igreja, una... Esta unidade é a Igreja; como sociedade de todos os fiéis, consiste essencialmente em uma unidade de fé, porque a virtude sobrenatural da fé é o primeiro dos vínculos que unem o homem ao Criador: “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo”1. O Papa Leão XIII, na encíclica Satis Cognitum sobre a unidade da Igreja, expõe amplamente a necessidade de um magistério que mantenha vigente a mensagem que Cristo trouxe para a humanidade. O mandato evangélico, precisamente, dá prioridade à difusão da doutrina: “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra. Ide, pois, ensinai todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-as a observar todas as coisas que vos mandei"(Mt. 28, 18-20). Se a base do catolicismo é a comunhão dos fiéis numa mesma doutrina, faz-se absolutamente indispensável assegurar, 1 Para as citações bíblicas usamos a tradução do Pe. Matos Soares (Bíblia Sagrada, 21ª edição, Edições Paulinas, 1965).