Plantas e civilização: fascinates histórias da etnobotânica

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Plantas e civilização



LUIZ MORS CABRAL

Plantas e civilização ILUSTRAÇÕES DE

CAROL ENGEL

1a edição

Rio de Janeiro 2016


© 2016 desta edição, Edições de Janeiro © 2016 Luiz Mors Cabral Editores José Luiz Alquéres Sylvia Maria Alquéres Muskardin Dênis Rubra Assistente editorial Rava Vieira Copidesque Thadeu Santos Projeto gráfico e capa Miriam Lerner Ilustrações Carol Engel Revisão Vania Santiago

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M86p Mors Cabral, Luiz, 1979 Plantas e civilização: fascinantes histórias da etnobotânica/ Luiz Mors Cabral; ilustração Carolina Engel - 1. ed. - Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016. 176 p.: il. Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-67854-90-8 1. Botânica - Brasil - Catálogos. 2. Plantas - Brasil - Catálogos. I. Engel, Carolina. II. Título. 16-30535

CDD: 581.981 CDU: 582 (81)

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora e do autor. Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

EDIÇÕES DE JANEIRO Rua da Glória, 344/ 103 20241-180 Rio de Janeiro-RJ Tel.: (21) 3988-0060 contato@edicoesdejaneiro.com.br www.edicoesdejaneiro.com.br


Para meu av么 Walter, Clara e Nuno.



Sumário Sobre o livro ............................................................................... 9 Cabaça...................................................................................... 13 Maçã......................................................................................... 19 Batata........................................................................................27 Laserpício.................................................................................35 Digitalis..................................................................................... 41 Canela......................................................................................49 Mangueira................................................................................59 Galhas..................................................................................... 69 Carvalho...................................................................................77 Seringueira...............................................................................87 Triaga Brasilica........................................................................101 Centeio.....................................................................................111 Baunilha e cacau..................................................................... 121 Cinchona................................................................................ 129 Batata-doce............................................................................. 137 Milho.......................................................................................147 Cardamomo.............................................................................157 Mandioca................................................................................ 169



Sobre o livro

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m 2006, eu fiz um doutorado sanduíche na Suíça, e morei em uma casa cheia de estudantes com uma enorme cozinha coletiva. Sempre que chegava tarde do laboratório, ou estava sem paciência para cozinhar, lançava mão da comida mais simples: um ovo e batatas cozidas, que eram preparados na mesma panela. Um dia, uma estudante holandesa viu minha aventura culinária e ficou inexplicavelmente empolgada: “Cool, food from netherlands”. Ora, ovos com batatas são alimentos universais e não há nada de exclusivamente holandês nesse prato. Além disso, eu argumentei que se alguém podia se gabar por algum daqueles ingredientes seriam os latino-americanos, uma vez que a batata tinha origem peruana. Minha colocação não podia ter sido mais mal aceita. Aparentemente, a holandesa não estava preparada para ouvir a verdade: a batata, a despeito do sucesso que faz na Holanda, é original da América do Sul. As pessoas não sabem a origem dos alimentos que consomem, e histórias tão interessantes não podem passar despercebidas. Esse livro é sobre isso: plantas e suas histórias.

Proposta: aquilo que pode ser dito, pode ser dito claramente! Tornei-me professor de bioquímica e biologia molecular na Universidade Federal Fluminense em 2009 e, a cada semestre dentro de sala de

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aula, ficava mais claro que eu estava diante de um grande problema: os alunos chegam à universidade sem saber quase nada sobre como funciona a investigação científica. A discrepância entre o que eles esperam e a realidade que encontram é motivo de muito desestímulo e, em última análise, responsável por um grande abandono das carreiras relacionadas às ciências. Se esse problema é observado entre universitários que optaram por uma carreira ligada às ciências biológicas, imagine o quanto não está presente em pessoas de outras áreas. Acredito que parte da culpa por esse processo possa ser creditada à maneira como é feita a divulgação científica. Gaston Bachelard propôs que para o ensino de ciências é necessário que se supere uma série de obstáculos epistemológicos, isto é, entraves à aprendizagem e à construção do espírito científico. A simplificação exagerada de fenômenos complexos, a utilização de metáforas, o pragmatismo aplicado a conceitos científicos são exemplos desses obstáculos. Quantas vezes ouvi os alunos dizerem: “a fotossíntese serve para purificar o ar que nós respiramos”; “os seres vivos se adaptam às mudanças para garantir sua sobrevivência” ou “o sítio ativo de uma enzima é como se fosse uma boca que vai digerir o substrato”. Ora, a fotossíntese é uma via metabólica complexa com diversas implicações para a vida dos organismos que a realizam, mas ela não serve a um fim específico, muito menos ligado ao ser humano. A adaptação ao meio também não é uma questão de escolha, os organismos não buscam a adaptação pensando em sua sobrevivência. E os sítios-ativos de enzimas não têm nada a ver com bocas. Esses são conceitos errados que minam a compreensão do que é a ciência. O filósofo da ciência Paul Feyerabend, em seus últimos trabalhos (especialmente em A conquista da abundância, de 1999) apresenta dois

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conceitos interessantes: a pliabilidade e a resistência. A pliabilidade diz que o mundo pode ser descrito por uma infinidade de sistemas conceituais, sendo que nenhum deles possui, a priori, vantagem sobre qualquer outro. Já a tese da resistência diz que a pliabilidade do mundo é limitada, ou seja, nem todos os sistemas conceituais que tentam explicá-lo têm o mesmo sucesso: o mundo oferece resistência a algumas tentativas de explicação. Isso significa que, apesar do status que alcançou no mundo moderno, a ciência não é a única capaz de descrevê-lo, e não é necessariamente a melhor em todos os momentos. Neste livro, proponho uma divulgação científica que evite os obstáculos epistemológicos e que tenha equilíbrio entre o peso da ciência e de outros sistemas conceituais. O estilo de conto, com a maior parte das referências inseridas no texto (e não separadas no rodapé ou agrupadas ao final de cada capítulo), torna o texto mais fluído. As referências são informadas de maneira diferente. O nome do trabalho é suficiente para que ele seja facilmente encontrado na internet. Além disso, o estilo de conto permite que não apenas conceitos estritamente científicos sejam contextualizados, mas também que outros sistemas conceituais sejam apresentados com o mesmo peso das ciências biológicas: assim aparecem a história, a geografia, a política, o folclore, a ficção... desse modo, é possível trazer a atividade científica para a vida do “não cientista” de forma mais leve, embora respeitando a complexidade dos temas. Apresentar conceitos complexos de maneira clara, mas sem ceder à simplificação: esse é o desafio!

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Cabaça Lagenaria siceraria, uma planta formidável e seu uso mais curioso

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m 2006, morava em uma casa de estudantes em Zurique, Suíça. Certa noite, já de madrugada, sou acordado pelo toque distante do telefone. Esperei, porque meu quarto era bem afastado da sala. Alguém mais próximo haveria de atender. Mas o toque continuava. Quem estaria ligando àquela hora? Levantei calmamente e caminhei até a sala. Do outro lado, a voz nervosa em um inglês atropelado. Era Florian, um alemão que morava na casa. Ele ficou muito aliviado quando viu que eu havia atendido. Nós nos dávamos muito bem, conversávamos bastante e inclusive já havíamos feito uma breve viagem juntos para a Bavária. Ele estava ligando da delegacia e precisava que alguém fosse buscá-lo lá. Havia sido detido por participar de um pega de bicicleta e, embora já estivesse liberado, a bicicleta ficaria retida até o pagamento de alguma multa no dia seguinte. Como os ônibus em Zurique não circulam de madrugada, não tinha como voltar pra casa. Pensei nas duas únicas pessoas que tinham carro na casa: Jesus e Peter. Jesus era mais próximo de mim e não se recusaria a ajudar

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Florian, mesmo sendo tão tarde. Fui acordá-lo, mas seu carro estava quebrado. Sem outra alternativa, fui até o quarto do Peter. Ele atendeu como um sonâmbulo. Demorou para entender o que estava acontecendo, mas se solidarizou com a situação do Florian. Entrei no quarto enquanto ele buscava seus documentos. Era um quarto exatamente igual ao meu, mas ele claramente era uma pessoa muito mais conectada que eu. Tinha um Mac Mini e um laptop da Apple em cima da mesa. Ipad, uma televisão com tela gigantesca e equipamento de som. Tudo grande e novo. Aquilo justificava o fato dele estar sempre ausente das áreas comuns da casa de estudantes. Vivia no quarto, onde tinha uma infraestrutura enorme, muito diferente da minha e da maioria dos outros moradores. Ao lado da cama, um item destoava completamente do entorno: uma koteka. A koteka é uma cabaça usada pelos homens de alguns grupos étnicos da Nova Guiné para cobrir o pênis. É o uso mais curioso de uma das plantas mais incríveis que conheço, a Lagenaria siceraria. Ela é uma cucurbitácea, da família do pepino, melão e abóbora, e está presente em praticamente qualquer país de clima tropical. O receptáculo das sementes é uma enorme cabaça, e isso permitiu que as sementes chegassem a partir da África até a Ásia, Oceania e América do Sul simplesmente flutuando através do oceano. Alcançando esses continentes há cerca de 15 mil anos, foram domesticadas de forma independente pelas populações locais e, possivelmente, foi a primeira planta domesticada das Américas. Os frutos jovens podem ser fervidos e consumidos como legumes e os maduros são utilizados como recipientes para água e alimentos, instrumentos musicais como tambores e flautas, boias de pesca e também como kotekas. Nesse caso, uma pedra ou algum outro peso é amarrado no fruto durante seu desenvolvimento, de forma a fazer com que fique alongado.

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Depois é coletado, limpo e queimado. Cera de abelha é frequentemente passada na parte de dentro, e a cabaça recebe dois cordões que ajudam na fixação: um pequeno, que vai ser amarrado em volta dos testítculos do indivíduo, e outro maior, que dará sustentação na altura da cintura ou do peito. É uma utilização realmente inusitada de um fruto que é provavelmente o mais importante para as migrações do homem ao redor do planeta. Em um tempo anterior ao surgimento da cerâmica, era um pote natural, dado pela natureza e melhorado através da domesticação, que tornava possível transportar água. Uma planta absolutamente formidável! No caminho até a delegacia, no carro, perguntei a Peter sobre aquele item tão interessante, que se destacava dos outros pertences que ele tinha no quarto. A história é a seguinte: Peter vinha de uma família extremamente religiosa, de pastores batistas, daquela região dos Estados Unidos conhecida como “Cinturão da Bíblia”. Na década de 1960, seu pai, então um jovem pastor, atendeu a uma convocação dos altos escalões da sua igreja e rumou para o remoto vale de Irian Jaya, na Nova Guiné. O governo da Guiné tinha planos de

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modernizar o país. Ao perceber que lidar com as tribos mais remotas seria difícil, abriu o território a evangelizadores para ajudá-lo na tarefa. E o pai do Peter foi um dos primeiros que se volutariou. Passou três anos entre os Dani, um dos grupos étnicos que habitavam Iran Jaya. Ali teria encontrado um povo rudimentar, ainda na idade da pedra, sem língua escrita, completamente pagão, e teria ajudado os Dani a descobrir o evangelho. Abriu ele mesmo as primeiras 18 igrejas da região e batizou centenas de pessoas. Peter falava disso com extremo orgulho. Todos os habitantes da ilha andavam praticamente pelados, a não ser pela koteka que os homens usavam, e seu pai foi implacável em relação a essa estranha peça de vestuário. Foi voz ativa junto ao governo, convencendo-o do quão inadequadas eram as kotekas, símbolo do atraso e da condição tribal da Papua Nova Guiné. Devido a essa influência decisiva, o governo deu início a um programa de distribuição de roupas para as tribos de Iran Jaya, coordenado pelo pai do Peter. Essa e outras histórias, dizia Peter, estão descritas no livro que seu pai escreveu contando suas aventuras nas tribos da Nova Guiné.1 À medida que avançava na história ficava claro que entre todas as pessoas que moravam na casa de estudantes, Peter era o mais distante de mim. O orgulho que sentia pelo papel doutrinador desempenhado por seu pai era a coisa mais absurda que eu já tinha ouvido. A koteka no quarto do Peter era para mim um símbolo da importância das plantas para o homem, da relação intrincada e linda entre a humanidade e as plantas, da criatividade e da beleza que existe na domesticação. Uma lembrança de como homens e plantas evoluem juntos! Para Peter e sua família, no entanto, as kotekas eram um símbolo do atraso, do tribalis-

1. NEELY, Lois; DEKKER, John. Torches of Joy: a stone age’s tribe encounter with the gospel. YWAM Publishing, 2002.

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