Prefácio Entre paredes e bacamartes, de autoria de Antonio Otaviano Vieira Júnior representa no conjunto dos estudos recentes sobre a família brasileira uma volta ao Nordeste e a retomada de uma discussão entendida como crucial na historiografia brasileira. Sendo assim, a sua leitura nos incita a decifrar os códigos e penetrar nos "mistérios" dos procedimentos de "reconstituição de alguns aspectos menos ostensivamente públicos e menos brilhantemente oficiais, nem por isso, menos sociológica e psicologicamente significativos do viver em família", já buscados por Gilberto Freyre quando escreveu em 1922, o famoso Vida social do Brasil em meados do século XIX, livro-embrião de Casa Grande e Senzala, que se tornou referência nacional e no exterior sobre a sociedade brasileira do passado. Mas, afinal, por que é importante recuperar esse viés para entender o trabalho de Antonio Otaviano Vieira Júnior, na sua proposta de analisar o cotidiano das relações familiares? Ao meu ver, sem dúvida, esse é um olhar fundamental pois indica o método de trabalho do autor e a sua inserção não apenas no debate recente instaurado sobre a família brasileira, mas, sobretudo, na forma de se fazer a própria História. Vem daí a sua preocupação com a pesquisa exaustiva nas fontes documentais da época, em sua maioria manuscritas, de difícil leitura, de modo a retomar um modelo interpretativo, originado no Nordeste açucareiro e que se generalizou para as várias regiões do Brasil em diferentes momentos cronológicos. E é a partir desse questionamento teórico que busca conduzir a
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análise que recupera nos três capítulos que compõem a primeira parte, a estrutura material e o uso social do espaço para, a seguir, tratar da relação entre cotidiano, violência e família. Como resultado, consegue um conjunto bastante complexo de informações que, vistas de forma crítica, dão a densidade e a dimensão necessárias à proposta inicial do trabalho. E é assim que volta ao Nordeste, palco inicial dos estudos pioneiros sobre a família brasileira, revendo arquétipos e estereótipos, mas, ao mesmo tempo, introduzindo elementos novos do viver em família, calcados na seca, que provocava mudanças e o semi-nomadismo. Com esse objetivo, reconstrói a história administrativa do Ceará no final do período colonial, a formação dos núcleos populacionais e a estrutura econômica na época. Domicílio e família aparecem, portanto, nesse cuidado com o ordenamento do espaço e também da casa. Testemunhos desse tempo, viajantes e memorialistas, ao lado de outros documentos históricos, integram personagens comuns e fontes oficiais numa trama que faz a conexão que é necessária entre o âmbito público e privado. Com esse procedimento analítico também o autor mostra que estabeleceu critérios próprios ao definir a sua pesquisa, dialogando com a questão do modelo patriarcal e ao mesmo tempo dando voz aos diferentes segmentos que compunham a sociedade cearense nos séculos XVIII e XIX e as formas características da sua organização doméstica. Sob a ênfase do regional, e da família, o que na verdade se reconstrói, neste livro, são os caminhos que se devem percorrer na interpretação de uma dada cultura para se chegar a uma configuração mais apropriada das sociedades em momentos históricos específicos, ou seja, a partir da sua própria perspectiva, aspectos particulares e valores. E é a partir desse ponto, que eu redimensiono, comparo e aproximo a proposta que está no bojo da formulação de Vida social do Brasil nos meados do século XIX, de Gilberto Freyre e o método de Otaviano como historiador quase um século depois. É no interesse pelas "histórias do dia-a-dia" que recolocam o particular e o específico como objeto de trabalho. É na aplicação de critérios diferentes dos convencionais para o estudo do passado, aqui entendidos como meramente cronológicos ou apenas concentrados nos fatos políticos. Por isso, Entre paredes e bacamartes é uma forma de ver e fazer a própria História, que parte de um arcabouço teórico que oferece
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aos leitores a oportunidade de interligar varandas e alpendres, com a vida íntima e o domínio do político. Uma História que, ao recriar o cotidiano de uma época através da família e da violência, polemiza com a historiografia brasileira e reacende a discussão do modelo patriarcal e da efervescência cultural que cercava Freyre e seus mestres como Franz Boas, que em seus trabalhos propunham a Nova História.
Eni de Mesquita Samara São Paulo, dezembro/2003
Introdução Ouviram-se gritos, berros horrorosos de medo louco, frenético, de desespero terrível. E em torno à casa, toda terror e apavoramentos, cabelos soltos, a mulher rondava com os olhos esbugalhados e gritos soturnos, roucos, os filhos pequenos, chorando enrodilhados às saias... e, logo, as paredes ruíram, os restos de telhado abateram... Foi esta a vingança dos Pataca. Gustavo Barroso, Os Cangaceiros
O episódio descrito acima ocorrera no Ceará, mais precisamente na ribeira do Jaguaribe, no início do século XIX. A vingança da família Pataca era contra a família de José Leão, que na sua residência foi encurralada e queimada viva. O pequeno trecho da obra de Gustavo Barroso concilia aspectos fundamentais que pautaram a construção do nosso trabalho de investigação. O elemento central da narrativa acima é desespero da família, que sucumbe diante das chamas. O calvário do pai, da mulher, dos filhos e de alguns agregados é o próprio domicílio, o que aumenta a ferocidade da cena descrita, haja vista que a residência deve simbolizar proteção e resguardo para o grupo familiar. O aparente lócus privilegiado da família fora invadido pelo desejo de vingança, pela violência encarniçada que se efetiva enquanto instrumento para resolução de conflitos. Ali, bem no meio
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das chamas, entre as paredes da casa e as labaredas da violência, nasce o mote desse livro. A pesquisa nasceu do esforço de tentar entender os múltiplos significados das organizações familiares cearenses a partir da investigação das relações entre família e domicílio, e família e violência. Para tanto, resumimos a análise ao período que compreende o fim da época colonial e os primórdios do Brasil Império (1780-1850). O período compreendido entre os anos de 1780-1850, em geral, foi palco de intensas transformações no Brasil. O final do século XVIII assistiu a decadência da exportação açucareira do nordeste, como também a gestação da lavoura cafeeira paulista. A vida nas áreas urbanas se intensificou havendo um significativo crescimento populacional; concomitantemente, a metrópole apostava na criação e proliferação das vilas enquanto forma de disciplinar a população e implementar estruturas administrativas e de fisco. Ao mesmo tempo surgiam movimentos de emancipação política, em cenários urbanos, questionando o domínio português. Estas transformações iriam se intensificar ao longo da primeira metade do século XIX. A vinda da família real e a abertura dos portos (1808), independência do Brasil (1822), o fim da concessão de sesmarias (1821), a implementação do sistema de votação para a Assembléia Provincial baseado na posse, e não no status social (1824), a abolição do sistema de milícias, que poderia enfraquecer a base territorial de algumas das grandes famílias (1831), fim do morgadio (1835), o declínio das associações artesanais urbanas, que utilizavam para seu ingresso critérios raciais ou outros critérios de exclusão social (1840), Lei de Terras que dificultava a aquisição de terras por pequenos proprietários (1850) foram alguns dos importantes pontos de tensões no processo de re-estruturação brasileira. Além desses pontos ocorria a explosão de uma série de rebeliões, insurreições, motins e grandes debates políticos. Como também a tentativa de centralização da estrutura administrativa nas mãos do governo imperial, e a consolidação da vida partidária enquanto poderoso viés político. O Ceará também passava por intensas e irreversíveis transformações. A partir de 1780 estava efetivada a colonização do seu território, com a pacificação das tribos indígenas e a fundação de várias vilas pelo Sertão. A pecuária, após servir enquanto esteio da ocupação do território e deixar profundas marcas nas relações sociais e materiais cearenses, conhecia a decadência na pauta de exportação, originada a partir da concorrência das charqueadas sulinas e a dizi-
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mação de boa parte do rebanho pela seca de 1791-3 - embora, mantivesse papel fundamental na subsistência da população e no comércio local. Foi nesse mesmo período que a cotonicultura emergiu enquanto atividade complementar, se fortalecendo na pauta exportadora impulsionada pela conjuntura internacional. Em 1799, o Ceará se separava de Pernambuco e ganhava autonomia no comércio com a metrópole. As atividades artesanais, comerciais, pecuaristas e algodoeiras incrementavam a vida urbana, intensificando o papel de vilas, como Fortaleza e Aracati, na circulação de capital. Associado ao crescimento da vida urbana estava o aumento da população. Rebeliões como a República do Crato (1817), Rebelião do Fidié (1823), Revolta de 1824, Pinto Madeira (1831), Levante de Sobral (1840), eclodiram em todo o Ceará e no lastro das revoltas pela independência do país, incrementaram um cenário de instabilidade política. Esses movimentos insurgentes varriam o litoral até o Sertão e deixavam um caminho aberto a tiros. A violência e a manipulação do poder instituído por abastados grupos familiares integravam de maneira contundente o cotidiano da região. A partir dos anos 40 do século XIX o Ceará passou a conhecer um novo ciclo econômico, dominado essencialmente pelo algodão. Algumas casas comerciais européias, entre elas inglesas e francesas, se estabeleceram em Fortaleza. Uma nova influência cultural impunha transformações nos hábitos e valores de parcela da população. Foi um período de preparação para a entrada definitiva de parte da Província numa então chamada Belle Epoque . Assim, entre os anos de 1780-1850, o Ceará assistiu a efetivação de sua colonização, a ascensão e decadência do ciclo pecuarista na pauta de exportação, o fortalecimento da vida urbana e o crescimento populacional, crises e guerras políticas, a confirmação de relações capitalistas que colocavam o Ceará em contato direto com a Europa e o início de um novo modelo cultural que vai ganhar destaque principalmente a partir da segunda metade do século XIX. Nosso trabalho de pesquisa busca analisar a família numa região colonizada a partir da pecuária, que mesmo após entrar em decadência enquanto atividade exportadora deixou significativas marcas nas relações sociais e econômicas da região. Ao mesmo tempo, buscamos compreender o grupo familiar num período caracterizado por profundas transformações e instabilidades. Objetivamos analisar a família num universo onde as relações
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familiares se consolidavam enquanto elemento fundamental de transmissão, administração e defesa de propriedades, na configuração de estratégias de sobrevivências diante das constantes secas, além de se estabelecerem como signo de influências políticas. Procuramos também considerar a família nas suas interseções com a dinâmica econômica da colonização e exploração da região, enfatizando a produção de sentidos e idéias associadas ao grupo familiar. No esforço de atingir os objetivos propostos pela pesquisa estruturamos a redação do livro em duas partes, divididas cada uma delas em três capítulos. A primeira parte do trabalho, Família e domicílio: estrutura material e uso social do espaço, procurou centrar o foco da discussão na relação entre representações acerca da família associadas à elaboração e negação de uma incipiente noção de domesticidade. Por sua vez, foi dividida em três grandes capítulos. O primeiro capítulo, O Ceará: entre a pecuária e a seca, basicamente foi o esforço de discutir o processo de ocupação do território cearense pelas fazendas de gado que subiram as margens do São Francisco. A consolidação desse processo de colonização com a fundação de vilas pelo Sertão e com o surgimento de um novo produto para a exportação, o algodão, também foi discutido. Ao mesmo tempo, a presença constante da Seca e da migração como estratégia de sobrevivência do sertanejo deixaram profundas marcas na relação entre família e domicílio, e por isso mereceram ser analisadas. O segundo capítulo, A estrutura material dos domicílios, procurou discutir a fundação de vilas e de fazendas. Foram escrutinadas as contradições entre o esforço das autoridades coloniais em idealizar uma edificação disciplinada dos espaços das vilas, e o estado precário das construções na maior parte dos núcleos urbanos. Quanto as fazendas, destacamos seus espaços internos, como os currais e o tamanho das casas, os materiais empregados nas suas edificações, a presença da agricultura, o valor pecuniário das residências e das terras, e as interferências do movimento migratório na composição física do domicílio. O terceiro capítulo, A casa e o uso social do espaço: representações do cotidiano familiar, procurou analisar a relação entra a estrutura material dos domicílios e o uso desses espaços pelos grupos familiares. Ainda nesse sentido, descrevemos as divisões das casas e suas funções sociais: a varanda, a sala, os quartos, a cozinha e o quintal emergiram nessa narrativa. Ao mesmo tempo foi evidenciada
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uma incipiente transformação no significado do domicílio, revelando numa nova estrutura arquitetônica, e sua interface com novos significados da família. Destacamos um conjunto de circunstancias que eivava o domicílio, ora, associando-o enquanto espaço de relações familiares, e ora, distanciando a família da casa. A segunda parte da pesquisa, A Família à luz do Bacamarte, abrangeu a relação entre a família e a violência. E também foi dividida em três capítulos. O primeiro deles, A violência e o cotidiano cearense, visou explorar a presença contundente da violência nas mais diferenciadas dimensões cotidianas. A impressão dos viajantes, a toponímia de lugares e pessoas, a relação com o sagrado e o profano, o culto às armas, a administração do poder instituído e as lutas políticas evidenciavam os assassinatos e agressões enquanto imponentes presenças e instrumentos de negociações sociais. O segundo capítulo, Os Régulos do Sertão: domínio político, rede familiar e violência, centrou o foco da análise na relação entre grupos familiares abastados e a violência. A partir da narrativa do assassinato de um Juiz Ordinário, objetivamos estudar a composição e fragmentação da rede familiar, a importância da violência na garantia da posse da terra e de cargos públicos, e a formação de exércitos particulares. Nesse sentido, a trajetória de lutas e armas tornava-se uma componente inexorável do significado da família. O último capítulo do livro, A família às avessas: violência e tensões de gênero, foi direcionado para a compreensão das organizações familiares menos abastadas. Destacamos a partir da idealização e de comportamentos de gênero as tensões que marcavam com fissuras a unidade familiar. Ao mesmo tempo, exploramos situações onde a violência reforçava a unidade da família. Masculinos e femininos emergiam em tramas cotidianas asseveradas em assassinatos e agressões, que buscavam redimensionar significados da vida em família, e garantir a sobrevivência material e moral de grupos pobres. *** Enfim, esse é um trabalho historiográfico que busca entender a família cearense entre os anos de 1780-1850, para tanto destaca duas dimensões pontuais associadas a vida familiar: domicílio e violência. È um convite para pisar nas ruas das vilas, nas estradas das fazendas, para entrar nas casas e tocar nas paredes, para se hospedar nas
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varandas ou esbarrar na singeleza da mobília. É um convite para sob ataques de bandos armados, chuvas de chumbo e facadas desfechadas com ódio, procurar entender valores e signos de famílias abastadas ou não. Esse livro é uma tentativa de entrever a família não como uma instituição pronta e acabada, mas como uma construção histórica num conjunto de circunstâncias que referendavam e negavam suas estruturas e significados.