Uma nova história do Ceará
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Uma nova história do Ceará Organização Simone de Souza
4ª edição - Atualizada Fortaleza 2007
Copyright©2000 by Edições Demócrito Rocha
Albanisa Lúcia Dummar Pontes Editora
Deglaucy Jorge Teixeira Coordenação de Design Gráfico
George Ibiapina Projeto Gráfico
Deglaucy Jorge Teixeira / Ronaldo Almeida Capa
Sergio Sampaio / Ronaldo Almeida Editoração Eletrônica
Vessillo Monte Revisão
Rodrigo Leite Rebouças Ficha Catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
N935
Uma nova história do Ceará / organização, Simone de Sousa; Adelaide Gonçalves ... [et al] – 4. ed. rev. e atual. – Fortaleza : Edições Demócrito Rocha, 2007. 448p. : il. Apresenta ensaios de vários autores. ISBN 978-85-7529-334-8 1. História do Ceará. I. Souza, Simone de. CDU 94 (813.1)
Todos os direitos desta edição reservados à EDIÇÕES DEMÓCRITO ROCHA Av. Aguanambi, 282 - Joaquim Távora - Cep 60.055-402 - Fortaleza - Ceará - Brasil Fones: (85) 3255-6176 / (85) 3255-6256 / (85) 3255-6055 / Fax: (85) 3255.6276 FDR on-line: www.fdr.com.br/edr E-mail: edr@fdr.com.br
Sumário
Apresentação ■
Por searas diversas, os diversos cearás
Durval Muniz de Albuquerque Júnior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7
Parte I: Cultura e Poder Mundos em Confronto: povos nativos e europeus na disputa pelo território – Francisco José Pinheiro . . . . . . . . . . . . . . .17
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Entre a barbárie e a civilização: o lugar do sertão na literatura – Ivone Cordeiro Barbosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56
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A seca na história do Ceará – Frederico de Castro Neves . . . . . . .76
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Negros no Ceará – Eurípedes Antônio Funes . . . . . . . . . . . . . . . . .103
Parte II: Cidade, Cultura e Poder O Ceará na segunda metade do século XIX – Celeste Cordeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .135
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A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle – Sebastião Rogério Ponte . . . . . . . . . . . . .162
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Fortaleza: cultura e lazer (1945 - 1960) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .192
Gisafran Nazareno Mota Jucá ■
A cidade contemporânea no Ceará . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .215
José Borzacchiello da Silva
Fortaleza: os lugares de memória Ricardo Oriá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .237 ■
Parte III: Sociedade e Política Imprensa dos trabalhadores no Ceará: história e memórias – Adelaide Gonçalves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .259
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Da “Revolução de 30” ao Estado Novo – Simone de Souza . . . .287
A Legião Cearense do Trabalho Raimundo Barroso Cordeiro Jr. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .317 ■
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Juazeiro e caldeirão: espaços de sagrado e profano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .345
Francisco Régis Lopes Ramos ■
O Ceará dos “coronéis” (1945 a 1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .381
Francisco Josênio C. Parente ■
Os “Governos das Mudanças” (1987 - 1994) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .409
Linda M. P. Gondim ■
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Notas e referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .425 Os autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .446
Apresentação
Por searas diversas, os diversos cearás Durval Muniz de Albuquerque Júnior
N
o imaginário nacional o Ceará é terra difícil de regar, de condenada plantação. É seara sem fruto, onde sempre cabe perguntar se arar vale a pena, se haverá produção. Terra de versos, cantorias e aboios, mas nunca pensada como espaço diverso, plural em sua geografia, em sua história, em sua memória. As versões consagradas da identidade regional o fazem sertão: árido, violento, místico, povoado pelo bravo sertanejo, titã acobreado que reza e mata comandado pelos coronéis, espécie de barões feudais perdidos no meio do deserto, estirpe ariana e ibérica que trouxe a luz da civilização para a terra do sol. Lugar em que o romântico beijo de uma índia praieira e um branco conquistador fez germinar uma nova raça, que supera a barbárie e a debilidade física e moral das raças anteriores. Terra que estorricada por tantos verões, foi enegrecida apenas pelas secas, já que aí negro houvera pouco e quase livre. Pátria do retirante, faminto, maltrapilho, devorado pelas doenças e pela miséria, refazendo periodicamente o drama bíblico dos êxodos. Solo gretado por onde corre livre o gado e o vaqueiro e de onde brota uma vegetação mesquinha e retorcida, salpicada de cacto e bromélias, de onde se destaca apenas o mirrado algodão, planta teimo-
sa, democrática, se constituindo em refrigério passageiro para uma população sedenta de água, justiça e salvação. Este livro que o leitor tem nas mãos significa, de várias maneiras, um questionamento a esta identidade cearense, a esta maneira de ver e dizer a terra "alencarina". Ele demonstra que o Ceará, pelo menos no que tange à seara dos historiadores e a outras afins, é hoje terra produtiva, solo fértil de onde vem brotando inúmeros frutos valiosos e suculentos, seja do ponto de vista das temáticas abordadas, seja do ponto de vista das opções teórico-metodológicas que os fundamentam. O Ceará surge, nas páginas deste livro, diverso, plural, atravessado por distintas historicidades, por múltiplas temporalidades, constituído por distintos estratos de memórias, habitado e produzido por diferentes sujeitos, por variados discursos, por inúmeras práticas. Este livro vem reafirmar que a história é um campo em que – se arado – haverá sempre colheita de fruto novo, que vem questionar e rediscutir a versão do passado já consagrada, a identidade, seja individual, seja coletiva, já estabelecida, já monumentalizada. Fazer história é, hoje, fazer molecagem com a vetusta e solene memória oficial, aquela elaborada pelos vencedores de todos os tempos, aquela que produz silêncios significativos sobre eventos, personagens, idéias, sentimentos, projetos outros que habitaram e habitam o passado, mas que não foram ou são registrados, afirmados, inscritos, memorizados. Textos escritos de um outro lugar institucional, – Universidade – que obedecem, portanto, a regras de produção distintas daquelas que regularam a produção dos textos clássicos que forjaram as versões oficiais da história cearense, sendo, portanto, leituras diferenciadas, com um olhar instrumentalizado por outros critérios e outras informações, formas de ver e dizer educadas por uma outra economia discursiva, por outra formação acadêmica e subjetiva, vazadas numa linguagem diferenciada. 8
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Embora sejam bastante diversos, tanto quanto aos temas, como quanto às abordagens, os textos que compõe o livro formam um conjunto inteligível e ordenado, por guardarem, entre si, algumas similitudes que gostaria de ressaltar. Nelas, estão muitos dos méritos que esta obra possui e algumas das contribuições que tornam este livro leitura obrigatória para todos aqueles interessados em conhecer outras possíveis histórias do Ceará, que não aquela já transformada em estereotipia, em sensocomum, pela reiterada repetição das mesmas falas e das mesmas imagens, pela veiculação acrítica através dos meios de comunicação e da reafirmação louvaminheira feita nas efemérides estaduais. Neste livro, a história do Ceará ganha novos personagens: o índio, o negro, o migrante, o operário, o boêmio, a prostituta, o louco comparecem fazendo parte da história cearense, que não é mais contada como se apenas se passasse nos palácios, nos casarões, nas fazendas, nas sacristias, nos salões aristocráticos; como se fosse apenas constituída por fatos e pessoas extraordinárias. A história vista de baixo, por olhares educados pelo materialismo histórico, pela nova história social ou pelo olhar antropológico da história cultural, consegue produzir perfis de sujeitos antes não descritos pela historiografia oficial, consegue trazer para o centro da cena histórica outros atores, antes esquecidos, censurados ou inviabilizados. Ainda que outros personagens tenham ficado sem referência mais efetiva, como as mulheres, os homossexuais, os presidiários, os camponeses, os pescadores, e que não se tenha escapado de abordar os clássicos personagens da história cearense, o livro abre o caminho para novos trabalhos que venham pluralizar ainda mais o rosto dos cearenses, fragmentar esta identidade, inclusive física e corporal (o mito do cabeçachata, por exemplo), que teima em se reproduzir nas escolas, nas universidades e fora delas. Apresentação
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Os textos trazem novas maneiras de abordar temas já muito trabalhados pela historiografia local, produzem novas versões, novas leituras de eventos que têm sua construção, há muito tempo, cristalizada. A história do sertão, das secas, dos movimentos messiânicos e do coronelismo surge reficcionado a partir das novas formas de dizer e ver o passado que a formação do historiador hoje permite. O sertão deixa de ser realidade dura, de pedra e espinho, para ser também construção literária, conceito forjado no mundo dos sonhos e do imaginário; o sertão deixa de ser destino, para ser desejo e poesia, onde concreto e abstrato não se separam, onde não se sabe onde começa a verdade e onde termina a invenção; sertão como espaço forjado pelo homem, na ação e na palavra. As secas já não são apenas um problema natural ou social, são um problema histórico, são as experiências múltiplas do seco, do árido, do vazio, da miséria, da dor, da desesperança mas também as experiências multiplicadas da resistência, da solidariedade, da fuga, da luta, da sobrevivência, da esperança, aprendizado político através dos inúmeros estios que pontilham a vida de muitos cearenses. Os movimentos messiânicos já não se classificam como embustes, manifestações de fanatismo ou atavismo, de loucura coletiva, já não são vistos como ações alienadas e inconscientes, reações pré-políticas de homens famintos dirigidos por maquiavélicas figuras interessadas apenas em poder e dinheiro. E há quem tenha coragem de afirmar que no Ceará não houve coronelismo típico, que aí os coronéis sempre foram fracos e nunca conseguiram estruturar um sistema oligárquico duradouro e, também, duvidar do corte abrupto que teria ocorrido na história da terra nos últimos decênios. Este livro introduz a cidade, a temática urbana na história cearense, rompendo com o estereótipo de que o Ceará, como o Nordeste, é uma realidade rural, é uma grande fazenda cercada de pequenas vilas adormecidas e 10
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pachorrentas. Embora reduza, excessivamente, esta espacialidade urbana a Fortaleza, cidade que concentra, verdadeiramente, muito da vida econômica, política e cultural do Estado, inclusive grande parte da produção historiográfica do Estado, fica o mérito de ter indicado mais um novo caminho a ser seguido pela historiografia brasileira, a abordagem do fenômeno urbano, em seus múltiplos aspectos, inclusive o fenômeno da metropolização e da favelização, tão específicos dos países latinoamericanos e do terceiro mundo. As histórias do cotidiano, dos costumes, das sensibilidades, são novas formas de abordar o espaço da cidade e a vida de seus habitantes ao longo do tempo, investigando o processo de disciplinarização das massas urbanas, suas específicas formas de sociabilidade, suas formas de organização, suas atividades de lazer e de trabalho, a produção cultural por ela elaborada, a produção literária, artística e os projetos políticos de que são personagens, agentes e destinatárias. A cidade emerge, neste livro, como um lugar privilegiado da construção da memória, locus onde ela se espacializa, ganha contornos de monumentos mas também como lugar de luta em torno dela, de disputas entre diferentes grupos sociais pelo direito de construir e transmitir o seu patrimônio histórico, suas versões sobre os fatos e os feitos. A temática da luta de classes, nuclear para a história social, organiza a maioria dos textos, com diferentes elaborações e graus distintos de sofisticação, mas está longe de ser utilizada a partir dos maniqueísmos e simplificações que caracterizaram muitos dos trabalhos historiográficos de décadas anteriores. O determinismo econômico e o messianismo político, que marcaram a produção acadêmica de muitos historiadores, não se fazem presentes neste livro, apesar de uma ou outra escorregadela, embora, não deixe de ser uma produção que busque a inteligibilidade do passado e o posicionamento político no presente. As opções políticas dos autores se revelam na Apresentação
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própria escolha e elaboração dos temas, nos conceitos e personagens que elegem, na escolha da bibliografia com quem dialogam, na perspectiva com que olham o passado e na articulação deste com o presente, que insinuam. São textos que guardam também uma certa proximidade na articulação narrativa do passado, estamos longe daqueles textos áridos e maçantes que caracterizou um dado momento da produção historiográfica brasileira. Há diferenças de estilo, uns mais saborosos e prazerosos que outros, como há distintas posturas políticas e teóricas, mas é isto que faz, acima de tudo, este livro recomendável e obrigatório para quem quer conhecer a nova historiografia cearense e brasileira; ele é uma pequena amostra do que de melhor vem sendo produzido nesta área, ele mostra, acima de tudo, que o local ou o regional não são o ponto de chegada, mas sim o ponto de partida para qualquer historiografia que se quer universal. Ele mostra que o local não pode ser limite, mas porta aberta para o extrapolar fronteiras e o subverter lugares. Entre a aridez do local ou do regional, este livro optou por simplesmente fazer história, regando nossa seara com novas preocupações ou com novas elaborações teóricas e metodológicas, colhendo em novas fontes outras alternativas para a organização do passado, usando novas ferramentas de pesquisa, semeando a possibilidade de cultivar outras maneiras de produzir a história do Ceará, retirando-a da repetição mecânica dos estereótipos e das cristalizações identitárias, rompendo a casca endurecida das versões que, muitas vezes, apenas repetem, com o sinal trocado, as mesmas verdades produzidas pelas centrais de distribuição de sentido e pelos intelectuais a soldo dos governos e dos que querem nos governar os corpos e os espíritos. No Ceará agora tem disso: historiografia com preocupações comuns aos pares em todo mundo e cuja qualidade não deixa nada a dever aos pretensos centros de 12
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produção da história nacional, historiadores que perderam o complexo de inferioridade e que já não se escondem sob a trincheira e a desculpa do local e do regional, para justificar a mediocridade, o servilismo e a falta de imaginação. Na nossa seara, também, o Ceará se mostra fértil e produtivo, ou seria este livro apenas uma molecagem coletiva?! Durval Muniz de Albuquerque Júnior é doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), pós-doutor em Educação pela Universidade de Barcelona.
Apresentação
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Trabalho de fôlego incomum, este volume reúne ensaios assinados por 15 dos mais expressivos historiadores cearenses da atualidade. Obra crítica, desconstrói verdades estabelecidas, põe certezas em xeque. Do confronto entre os povos nativos e os colonizadores europeus até o auto-intitulado “Governo das Mudanças”, o livro propõe uma reflexão rigorosa e contundente em torno da história cearense. Uma nova história do Ceará é, desde já, uma obra indispensável. Um caso raro daqueles livros que, nem bem são lançados, já se tornam um clássico.