Tocando a distância: Ian Curtis e Joy Division

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“Uma biografia corajosa e comovente.” NME





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PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA l


Em janeiro de 1980, eu fazia uma das minhas primeiras viagens à Londres. Estava hospedado num bairro chamado Earls Court, que na época representava um pouco do wild side londrino, onde a prostituição corria solta e os traficantes dominavam a área. Os hotéis eram baratos e mesmo correndo o risco de viver perigosamente eu circulava com tranquilidade pelo bairro. Próximo à estação de metrô ficava a loja do selo Beggars Banquet, uma das primeiras gravadoras independentes inglesas da era punk de 77, que abraçou algumas bandas como The Lurkers, Gary Numan & Tubeway Army e Bauhaus. Eu adorava passar o tempo na loja, pesquisando e comprando discos. Numa das paredes eles tinham um quadro negro, no qual anotavam os singles e álbuns independentes mais vendidos da semana. Num certo dia, eu estava lá procurando alguns compactos e me deparei com David J, baixista do Bauhaus. Vendo que eu estava interessado em alguns singles, veio puxar conversa comigo e se apresentou. Logo me ofereceu o recém lançado single do Bauhaus “Dark Entries” e, super solícito, começou a me dar algumas dicas de discos. Apontou para o quadro na parede e me chamou a atenção para o álbum mais vendido da semana: Unknown Pleasures do Joy Division. Recomendou que eu comprasse o LP e me deu o flyer de um show que eles fariam num lugar chamado The Venue. Tudo aquilo era muito novo pra mim. Na verdade, eu ainda me encantava com a vitrine da Beggars Banquet exibindo a capa do recém lançado End of the


Century dos Ramones, ou Another Kind of Blues e Crash Course do U.K. Subs. Eu estava em Londres desesperado para ver o que havia restado daquela geração punk, como o U.K. Subs e o Stiff Little Fingers, e também para realizar meu sonho de assistir The Clash ao vivo, na tour do London Calling. Mas David J foi tão gentil comigo que me convenceu a assistir ao show do Joy Division. Era muita informação: dias antes fui assistir o começo daquela onda pós-punk num show com Gang of Four, Pere Ubu e os iniciantes Simple Minds. Mesmo assim, quando fiquei cara a cara com o Joy Division, naquele lugar relativamente pequeno, me senti impressionado por aquele vocalista que se mexia como se estivesse tendo um ataque epiléptico (depois vim a saber que ele sofria de fato da doença, mas no palco era apenas uma performance que simulava alguns gestos). O repertório era basicamente o disco Unknown Pleasures. Ao vivo a banda soava com um pegada mais punk e, ao mesmo tempo, me agradava pelos elementos pós-punk — que eu adorava também no Entertainment! do Gang of Four. Voltei para o Brasil e fui digerir depois Unknown Pleasures — inclusive toquei no meu programa da Excelsior daquela época. Em abril de 1980 voltei para Londres e peguei o lançamento do single “Love Will Tear Us Apart”. Queria ver a banda novamente na Universidade de Birmingham, no começo de maio, mas não consegui. No dia 18 de maio soube da morte de Ian Curtis. Fiquei chocado. Nesse mesmo dia, fui assistir uma sessão à meia-noite de dois filmes do cineasta inglês Derek Jarman: Jubilee (1977) e Sebastiane (1976). Dois filmes emblemáticos de um cineasta que sempre admirei. No final da exibição, uma homenagem na tela do cinema, onde é projetada uma imagem da foto da capa do single “Atmosphere”, e a canção começa a soar num volume estrondoso a cada acorde. Saí do cinema extasiado e com os versos de “Atmosphere” na cabeça. No dia seguinte, passo numa banca de jornal e vejo a edição do semanário Sounds, que traz na capa uma foto dos integrantes do Joy Division entrando num dos túneis do metrô londrino, com a legenda da foto em letras garrafais: “Don’t Walk Away, in Silence” (um trecho da “Atmosphere”). Fui tomado por uma profunda tristeza, maior ainda quando em julho de 1980 vi pela primeira vez a capa de Closer, outro grande disco. Às vezes me pergunto que rumo teria tomado essa história se Ian Curtis estivesse vivo. Mas na música é sempre assim: essas pessoas aparecem, mudam o rumo da história e desaparecem sem sequer dizer adeus. “Don’t Walk Away, in Silence”.


“Don’t Walk Away, in Silence”


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PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO (1995)

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Ian Curtis era um cantor e letrista com um raro poder mediúnico: suas músicas e apresentações com o Joy Division transmitiam emoções furiosas e desesperadas por trás de uma sorumbática fachada “manchesteriana”. Havia quatro membros no Joy Division – Curtis, Bernard Sumner, Peter Hook e Stephen Morris –, mas Ian era os olhos e ouvidos da banda. Era ele quem os empurrava para territórios inexplorados – canções como “Dead Souls” que, fria como um túmulo, tem a infinitude de um inferno de Gustave Doré. Agora que Manchester é uma cidade cuja música é conhecida internacionalmente, é fácil esquecer como o Joy Division vivia isolado. Em uma época em que o principal meio de comunicação era a imprensa musical, o Joy Division evitava entrevistas. Eles sobreviviam e prosperavam com shows, buttons, discos de 7” e o boca a boca. Durante seus últimos seis meses, veio a mídia direcionada à juventude moderna: revistas de estilo, como The Face e i-D, e programas de TV com participação do público, como Something Else, em que o Joy Division surpreendeu com uma performance frenética de “She’s Lost Control”. O Joy Division não era punk mas foi diretamente inspirado por sua energia. Como o punk, eles usaram a música pop como o meio para mergulhar no inconsciente coletivo. Só que essa não era a Londres de Dickens, mas a Manchester de De Quincey – um ambiente sistematicamente degradado pela Revolução


Industrial, confinado por pântanos ameaçadores, com o esquecimento como a única saída. Manchester é uma cidade fechada, canceriana como Ian Curtis. Ele continua a ser o maior poeta musical da cidade, capturando seu espaço e sua claustrofobia em um gótico contemporâneo. Manchester também é uma grande cidade do soul – você inspira música negra norte-americana dançante com a umidade e a poluição. Quando pediram para compor uma música baseada no clássico do soul nortista “Keep On Keeping On”, de N. F. Porter, o Joy Division pegou o riff compulsivo do original e o lançou para uma outra dimensão: “Tentando achar um jeito, tentando achar um jeito de sair!”1. Apesar da letra sombria, traços da alegria e otimismo obstinados do original sobrevivem, como uma faixa-guia apagada na master final. Eu morava em Manchester na época – um londrino transplantado para o noroeste. O Joy Division me ajudava a me orientar na cidade. Eu via esse novo ambiente através de seus olhos – “Pela rua escura, as casas parecem as mesmas”2 – e o sentia através da atmosfera poderosa que eles geravam nos discos e no show. Seu primeiro álbum, Unknown Pleasures, lançado em junho de 1979, definia não apenas uma cidade, mas um momento de mudança social: segundo o escritor Chris Bohn, eles “gravaram o efeito corrosivo sobre o indivíduo de uma época espremida entre o colapso e a impotência do tradicional humanismo trabalhista e a vitória cínica do conservadorismo”. Ao vivo, o Joy Division agitava muito mesmo, mas isso não era tudo. Ian Curtis podia fazer performances tão intensas que você teria que deixar o salão. A maioria dos intérpretes escondem algo quando estão diante de uma plateia: o que chamam de encenação ou afetação é, na verdade, uma autoproteção psicológica necessária. Flanqueado por seus ansiosos cúmplices protetores – Bernard Sumner e Peter Hook – Ian Curtis se preparava, olhava ao redor e se rendia a suas visões. Isso não era feito no ambiente controlado de uma casa de shows ou estúdio, mas em minúsculas casas noturnas mal equipadas que podiam explodir na porrada a qualquer momento. Quando você é jovem, muitas vezes a morte não faz parte de seu mundo. Quando Ian Curtis cometeu suicídio, em maio de 1980, foi a primeira vez que muitos de nós tiveram que se deparar com a morte. O resultado foi um choque tão profundo que se tornou um trauma não resolvido, uma ruptura na história social de Manchester que persistiu através da promoção mundial da cidade como “Madchester” e através do contínuo sucesso do New Order, o grupo formado pelo


trio restante do Joy Division. Como o próprio Ian Curtis canta em “Komakino”: “sombra à margem da estrada/sempre me faz lembrar de você”3. Deborah Curtis foi a última pessoa a ver seu marido vivo. No nível mais básico, seu livro de memórias é o exorcismo da perda, culpa e confusão que se seguiram ao ato de violência dele no lar dos dois em Macclesfield. Ele nos conta, também, sobre o que foi muito especulado, mas nunca conhecido: a vida emocional desse homem extremamente reservado. Muitas das informações foram publicadas pela primeira vez aqui neste livro – um ato de revelação que mostra como é de profunda necessidade romper os laços da taciturnidade manchesteriana. Ele também nos diz algo que está sempre presente, mas é raramente discutido: o papel da mulher no mundo masculino, muitas vezes machista, do rock. Deborah Curtis é a esposa que apoiou seu marido, mas foi deixada para trás. Há uma cena arrepiante em que, grávida, Deborah vai a um show do Joy Division e simplesmente recebe uma gelada de uma pessoa associada à banda por não estar glamorosa o bastante, pois, em suas palavras: “como podemos ter um astro do rock com uma esposa com seis meses de gravidez em pé ao lado do palco?”. Assim, as crueldades começam. Há uma outra questão que este livro levanta, tão arrepiante quanto irrefutável. Deborah Curtis escreve sobre a realidade por trás da persona, o fato que Ian Curtis tinha um problema de saúde – epilepsia – que foi piorado pelas exigências das apresentações. De fato, seu estilo marcante no palco – os braços se debatendo, o olhar brilhante e a dança espasmódica e frenética – espelhavam os ataques epiléticos que ele tinha em casa, que davam calafrios em seus amigos íntimos. As pessoas admiravam Ian Curtis pelas mesmas coisas que o estavam destruindo? Eu aplaudo a coragem de Deborah Curtis em escrever este livro, e creio que ele ajudará a curar essa ferida de quinze anos. Ele também pode nos ajudar a entender a natureza da obsessão que continua a espreitar a cultura do rock: o conceito romântico do artista torturado, rápido demais para viver, jovem demais para morrer. Esse é o mito que se inicia com Thomas Chatterton e ainda prossegue através de Rodolfo Valentino, James Dean, Sid Vicious, Ian Curtis e Kurt Cobain. Tocando a distância mostra o custo humano desse mito. 1. Referência ao verso “trying to find a clue, trying to find a way to get out!” (“tentando achar uma pista, tentando achar um jeito de sair!”) de “Interzone”. 2. Referência ao verso “down the dark streets, the houses looked the same” (pelas ruas escuras, as casas pareciam as mesmas”) da mesma música. 3. Na música, os versos são “the shadow that stood by the side of the road/always reminds me of you” (“a sombra que ficava ao lado da estrada/sempre me faz lembrar de você).


Eu queria ser uma serigrafia de Warhol Pendurada na parede Ou o Little Joe ou Lou talvez Eu adoraria ser todos eles Todos os coraçþes partidos da cidade de Nova York E segredos seriam meus Eu colocaria você num rolo de filme E isso ficaria muito bem Poema do Dia dos Namorados de Ian para Debbie, 1973


Era pequeno e envolto da cabeça aos pés em trapos sujos, embrulhado como um bebê recém-nascido. Estava pendurado no poste telegráfico e tremulava com a brisa, e veio descendo, singrando gentilmente. Como uma folha de outono, pousou suavemente no riacho, e, com sua forma aerodinâmica foi rapidamente levada sobre a superfície da água, desaparecendo na distância. Contraí todo o corpo para gritar, mas, ao acordar, tudo que consegui escutar foram meus próprios soluços abafados. Minha filhinha se aconchegou mais e tentou me confortar: “Não chore, mamãezinha. Não chore”. Minha própria mãe abriu a porta e pela fresta de luz foi capaz de ver qual de nós estava chorando.


INTRODUÇÃO P

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Em 20 de novembro de 1992, uma sexta-feira, Rebecca Boulton me ligou do escritório de Rob Gretton e deixou uma mensagem com uma voz grave na minha secretária eletrônica. Derramei lágrimas quando ouvi que a Factory Communications estava abrindo falência. Para mim, Ian Curtis era a Factory, sua companhia, seu sonho. Foram lágrimas de tristeza e alívio. A empresa liquidante, Leonard Curtis and Partners, fez uma reunião com credores sem garantia ao meio-dia de 22 de fevereiro de 1993, segunda-feira. O resultado foi como esperado: credores sem garantia não receberiam nada. Os diretores da empresa eram Christopher Smith, Alan Erasmus e Anthony Wilson. Anthony Wilson, Alan Erasmus, Peter Saville e Rob Gretton eram acionistas. Nenhum deles foi à reunião. Como beneficiária de Ian, pediram que eu fosse a Londres para assinar um contrato com a London Records. Após meses de negociação, Rob Gretton teve a tarefa nada invejável de persuadir o New Order e eu a assinar na linha pontilhada, e fechar com ele como empresário novamente. Eu lhe causei uma certa consternação ao dizer que precisava ler e entender o negócio primeiro, embora não tenha causado tanta ansiedade quanto Bernard Sumner, que inicialmente se recusou a sair da cama! Em 23 de dezembro de 1992, passados 20 anos desde o dia em que Ian me convidou para sair pela primeira vez, embarquei no trem em Macclesfield. Lá


estava Rob, como sempre parecendo um urso, acenando para eu ir para a primeira classe. Quando sentei, ele explicou que a primeira classe era obrigatória caso ele quisesse fumar em paz. Procurei na minha bolsa meu remédio para asma e tentei relaxar. A conversa foi formal no início. Havíamos trocado palavras amargas no passado, mas Rob não aparenta guardar ressentimentos. Ele explicava que não tinha certeza se Bernard apareceria. Percebi que minha própria relutância em abandonar minha outras responsabilidades e subir em um trem para Londres dois dias antes do Natal era apenas uma pequena contrariedade. Rob já havia declinado de ser entrevistado para meu livro e eu não estava preparada para pressioná-lo. Apesar de termos continuado amigos, mantemos uma distância respeitosa, preferindo não conversar sobre Ian. Ainda assim, ele fala à vontade sobre os problemas que teve com o New Order. Há histórias de invejas mesquinhas, discussões que são desperdício de tempo e descontentamento. Entretanto, ele não está reclamando. Ele está sorrindo. Este homem de fala lenta e cercado de stress curte a coisa!

“De certo modo, eu me alienei dos outros membros da banda, mas acho que qualquer um que esteja junto por tanto tempo precisa, afinal, de um pouco de distância. É simplesmente natural.” Bernard Sumner Quando chegamos na Polygram, Bernard já estava lá. Ele havia voado na nossa frente e estava no escritório de Roger Ames, “dando uma bronca”. Por fim, nós nos reunimos na sala onde o contrato estava sendo minuciosamente examinado pelos advogados Iain Adam, James Harman e John Kennedy. Bernard sentou-se a meu lado, pois ele e eu éramos os não-fumantes. Isso pouco o beneficiou – os outros pitavam como se suas vidas dependessem disso. Quando ficou claro que o contrato não estava pronto, fomos para o pub com Marcus Russell, empresário do Electronic, e Tracy Bennett, sucessor de Ames. Se eu tivesse dado uma procuração a alguém, teria sido poupada da viagem, mas não estava preparada para fazer isso (o que é compreensível). Peter Hook estava supostamente em pleno voo entre LA e Londres quando uma outra pessoa assinou temporariamente por ele. Steve Morris e Gillian Gilbert foram arrancados de um bar nas Seychelles para negociações telefônicas de último minuto. Ouvindo Bernard no pub, achei que ele não assinaria de jeito nenhum.


Na hora em que realmente assinamos, dava para fatiar a fumaça junto com a atmosfera no escritório e dar um pedaço para cada um levar para casa. Se alguma vez eu pensei que assinar um contrato com uma grande gravadora fosse empolgante, eu estava errada. Não havia nenhuma euforia autêntica de nenhuma das partes interessadas e não consegui evitar de me sentir como se tivesse sido deixada para trás, na detenção. Permaneci no frio congelante do lado de fora enquanto Rob polidamente tentava localizar Roger Ames para agradecê-lo e despedir-se, mas Roger havia desaparecido. Havia o medo da existência de bombas por toda Londres, e pouco tempo até o último trem de volta a Manchester. Fomos evacuados da Estação de Euston devido a mais um alerta. Então, o trem foi desviado e ficou tão atrasado que a British Rail se sentiu obrigada a nos oferecer uma bebida forte. Quando Ian e seus amigos eram jovens, todos eles conversavam sobre como iriam se mudar para Londres. A maioria deles se mudou. Tony Nuttall leciona design gráfico, Oliver Cleaver é um poderoso executivo de publicidade e Helen Atkinson Wood é uma atriz de sucesso. Ironicamente, de um jeito ou de outro, Ian tinha “ido a Londres” também. Depois de abraçar Rob, saí do trem em Macclesfield. Estava muito tarde e extremamente frio. Por um momento, me senti só, como se eu tivesse deixado alguém ou algo para trás – a viúva de novo. E embora às vezes não consiga evitar de virar o pescoço para olhar para trás e me lembrar de quando éramos jovens, em meu coração sei que a única direção de verdade é para frente. A assinatura do contrato com a London Records me libertou de meu passado. Finalmente me senti justificada em completar minha história e permitir que Ian descansasse.


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capítulo um SONO

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Ian Kevin Curtis nasceu no Memorial Hospital, em Old Trafford, Manchester, no Dia de São Swithin, 15 de julho de 1956, embora na época seus pais, Kevin e Doreen Curtis, morassem em Hurdsfield, na periferia de Macclesfield. Eles estavam casados há quatro anos e Kevin era um investigador da Polícia de Transporte Britânica. A pequena família era unida, e Ian e sua irmã mais nova, Carole, passaram muito de sua infância visitando parentes em Manchester. Ian tinha ternas lembranças de infância das horas em que passava com seus avós maternos, e muitas vezes falava de parentes mais distantes que moravam em Canvey Island, em Essex. Ainda em idade pré-escolar, Ian mostrava amor pelos livros e sagacidade para aprender. Suas histórias favoritas estavam na sua estimada coleção de livros de história da Ladybird. Ele gostava particularmente de desenhar soldados romanos e gladiadores, e assim que ficou mais velho, começou a se interessar por filmes como El Cid e Jasão e os Argonautas. Quando criança, ele frequentou a Trinity Square Primary School, em Macclesfield, onde era considerado um menino encantador de se ensinar. Em seguida, ele foi para a Hurdsfield Junior School. A família Curtis ficou muito amiga dos Nuttall, que moravam cinco casas acima da deles, na Balmoral Crescent. As duas mães eram companheiras constantes e, como consequência, o amigo mais próximo de Ian pelos dezesseis anos


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seguintes foi Tony Nuttall. Tony era magro e forte, e dois anos e meio mais novo que Ian - e foram apelidados de Batman e Robin. Apesar de estarem em séries diferentes na escola primária, sempre se encontravam no portão e corriam para casa para jantar juntos. Divertindo-se com todas as costumeiras brincadeiras de rua, eles brincavam de polícia-e-ladrão e tentavam ficar bem com os garotos grandes, escolhendo gostar de The Who e The Rolling Stones, o que era considerado mais viril do que curtir The Beatles. Ian herdou do pai o amor pela escrita e fases de temperamento silencioso. Kevin Curtis escrevera várias peças, mas elas nunca haviam sido publicadas. Um dos parentes favoritos de Ian era a irmã de seu pai, Tia Nell, uma mulher grande, dominadora, com uma determinação enorme em conseguir o que queria da vida. Confiante e generosa, Tia Nell despejava brinquedos em cima de Ian e deixava-o sem ar com histórias de sua juventude e de sua antiga carreira de modelo. Ela fazia a sua vida parecer muito excitante e despertava nele uma grande convicção de que havia mais para se viver do que trabalhar das nove às cinco e compartilhar uma existência idêntica a de seus vizinhos. Suas personalidades eram admiravelmente parecidas pois ambos eram seguros de si e determinados, se bem que às vezes parecia que, na verdade, Nell emprestava um pouco de sua confiança a Ian – ele era visivelmente mais expansivo na companhia dela. Como ela mesma não tinha nenhum filho, tendia um pouco a mimá-lo, e muitas vezes o relacionamento deles parecia ligeiramente conspiratório. Dava a impressão de que, se Ian fosse confiar em alguém, seria na Tia Nell. O pai dela, Avô Curtis, é lembrado pela família como um “velho maravilhoso” que morreu quase sem nenhuma moeda no bolso, mas Ian romanceava e descrevia um irlandês que mudava de religião a cada dia e fazia piada com a situação política da Irlanda. Avô Curtis veio de Port Arlington, que agora fica no Condado de Kildare, a 27 milhas de Dublin. Em 1900, ele e seu irmão se alistaram no exército e foram para a Índia, onde ficaram por doze anos. O avô de Ian amava a Índia e a vida militar, então não é de se surpreender que, embora ele tenha dado baixa conforme a Primeira Guerra Mundial estava começando, ele se realistou imediatamente e juntou-se à Artilharia Montada Real na França. Apesar de ter sido ferido, ele sobreviveu à guerra e retornou não à Irlanda, mas à Inglaterra, onde seus pais haviam se estabelecido. Ávido leitor de não-ficção, seu insaciável interesse pelo mundo a seu redor e seu estilo de vida emocionante faziam dele


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um companheiro cativante para Ian. Os dois passavam um tempão juntos, conversando, e a morte do avô quando Ian tinha apenas 7 anos de idade deixou um enorme buraco na vida do garotinho. Ian muitas vezes falava do vovô brincalhão que era um perdedor nas cartas, mas tinha a aparência charmosa de Errol Flynn. Ian foi um performer desde uma idade bem tenra e parecia sempre estar levando suas fantasias ao extremo. Uma vez, quando decidira ser um dublê, ele persuadiu Tony a ajudá-lo a improvisar uma plataforma de aterrissagem com um trenó de madeira. Após convocar as crianças locais para assistir, ele vestiu um capacete de proteção e pulou do telhado de uma garagem. O trenó se espatifou em todas as direções e o artista saiu andando de sua primeira proeza. Ian nunca fazia nada pela metade; qualquer interesse se tornava uma vocação. O piloto de motociclismo da categoria speedway Ivan Majors1 era o herói de Ian, e ele traçava paralelos entre si mesmo e o arrojado campeão mundial, apelidando seu amigo Tony como um novo Chris Pusey, um piloto com barba por fazer, menos glamoroso, famoso pelos desastres. Quando os garotos estavam no início da adolescência, economizaram dez libras e compraram uma velha motocicleta BSA Bantam. Eles não conheciam nada sobre motores e, depois de empurrar a moto para casa por cinco milhas, eles comemoraram ao conseguir usar a segunda marcha na terra. Ian não tinha cabeça para mecânica, nem muita inclinação para deixar as mãos sujas. Ele sempre teve uma fascinação pela fama e pelo lado glamoroso da vida, mas não atinava com as considerações práticas que vêm com ela. Quando ficou mais velho, falava sobre ter um carro de prestígio; ainda assim, evitava aprender a dirigir. Ian levava seus hobbies muito a sério. Em vez de apenas bater uma bola pelo campo com alguns amigos, ele organizou um time de futebol chamado The Spartans – sua admiração de infância pelos gregos antigos o auxiliou na escolha do nome. Ele arranjava competições anunciando numa revista. Seu método era sempre decidir como conseguir alguma coisa da melhor maneira; fracasso não era uma opção. Ian parecia conseguir o que queria e Tony Nuttall nunca conseguia dizer se Ian era mimado ou era capaz de fazer as coisas acontecerem por pura determinação. De um jeito ou de outro, ele sempre conseguia encontrar iniciativa quando queria muito alguma coisa. A primeira banda que Ian formou foi com Tony Nuttall, Peter Johnson e Brian McFaddian. Peter usava os óculos na ponta do nariz e era considerado respeitável

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e estudioso. Ele tocava piano de um modo radical, tangendo as cordas com um lápis. Mais tarde, ele foi para The King’s School com Ian, onde ficou interessado por música clássica. Brian era um guitarrista que Ian e Tony conheceram quando foram trabalhar por uns trocados como caddies [carregador da bolsa com os tacos do golfista] no clube de golfe de Prestbury. Ian escolheu tocar baixo e Tony comprou uma bateria. Muito jovem e obviamente à frente de seu tempo, a primeira banda de Ian teve uma morte aparentemente indolor pouco tempo depois. No final dos anos 1960, a grande comunidade de casas geminadas com parede de fundo compartilhada, atrás da estação ferroviária de Macclesfield, foi demolida para dar lugar a um novo complexo de apartamentos do governo. Cada bloco era idêntico ao seguinte. Com suas longas sacadas em comum e escadas ermas, estavam destinados a se tornar mais insalubres do que as moradias que substituíram. Sem saber de seu destino iminente, a família Curtis ficou satisfeita em ser alocada em um apartamento que dava para o campo de futebol. Com a vista agradável e bem próximo do centro da cidade de Macclesfield, o novo apartamento parecia ideal. Eles deixaram a confortável casa com jardim e vizinhos amigos, e se mudaram para mais perto do centro da cidade. Uma nova fase na vida de Ian começou quando ele passou no exame para o estudo secundário e foi admitido na The King’s School, em Macclesfield. Ela era e ainda é uma escola com uma boa reputação, apesar de inteligência não ser mais o único requisito para o ingresso, e o custo hoje em dia seria proibitivo para uma típica família da classe trabalhadora. Ian estava compreensivelmente apreensivo a respeito do tipo de gente que frequentava tal escola. Socialmente, era um caminho longo desde suas origens em Victoria Park. Apesar disso, ele logo fez uma turma de amigos bastante mesclada. O primeiro foi Kelvin Briggs, que ele reconheceu de uma de suas partidas de futebol contra um time de Adlington. Alguns de seus novos amigos eram, até certo ponto, mais mauricinhos, mas Ian permaneceu despretensioso e não quis tentar se misturar com eles. Ele deixou o cabelo crescer e ficar mais comprido do que o dos outros, para que o seu rosto ficasse difícil de ser visto. Essa deve ter sido a intenção, já que na época o rosto dele ainda era gordinho e sua aparência bochechuda tinha lhe dado o apelido de “Hammy”2. Ele também era bastante alto e seus membros eram ubíquos e desajeitados, como se não soubesse muito bem o que fazer com eles. Ainda assim, quando canalizava sua energia na direção certa, ele era um competitivo jogador de


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rugby e curtia treinar corrida de velocidade. É claro que isso não o prevenia de cabular aulas para fumar um cigarro, totalmente essencial. As pessoas se sentiam atraídas ou rejeitadas por Ian, dependendo de como elas interpretavam sua conduta. Mike Kelly, um conhecido de infância que morava por perto, descreve-o como um sujeito que fazia as pessoas atravessarem a rua para evitá-lo simplesmente porque os olhos dele diziam: “Fiquem longe”. Oliver Cleaver achava Ian intrigante, em parte por seu background e sua imagem, mas também porque eles dividiam o mesmo ponto de vista sobre o sistema educacional na King’s. Parte da rebeldia de Oliver envolvia a amizade com Ian. Os dois desafiavam a vida ritualística da escola sempre que possível. Os pais de Oliver eram professores e a irmã estudava russo na universidade. O fato de conhecer Ian Curtis deve ter parecido uma oportunidade ideal para Oliver escapar de sua vida regrada e relativamente segura. Contudo, Ian sempre era muito bem comportado quando apresentado aos pais de alguém e era bem recebido como um rapaz sério e quieto. Sua desobediência podia ser bem escondida quando necessário. O principal amor da vida de Ian foi a música e muitas horas de almoço foram passadas no apartamento de Victoria Park ao som de MC5, Roxy Music e The Velvet Underground. Seu fanatismo por David Bowie, em particular “My Death”, sua versão para a canção de Jacques Brel, foi considerado, na época, uma paixão de momento e meramente o reconhecimento, por parte de Ian, da mímica de Lindsay Kemp nos shows de Bowie. O fato de que a maioria dos heróis de Ian estavam mortos, perto da morte ou obcecados por ela não era algo raro e é uma moda passageira comum na adolescência. Ian parecia levar o crescimento mais a sério do que os outros, como se opor-se a ele pudesse prolongar sua juventude. Ele comprou uma jaqueta vermelha parecida com a que James Dean vestia em Juventude Transviada. Ele queria ser aquele rebelde, mas, como seu herói, também não tinha uma causa. Na maioria das vezes, sua revolta tomava a forma de objeção verbal ao modo de vida de qualquer outra pessoa e, se ele achasse apropriado, uma expressão desinteressada ou mal-humorada. Por ele ser diferente, as pessoas queriam ser incluídas em seu círculo de amigos. Ele conseguia atrair pessoas com seu carisma enigmático, o que já era evidente naquela época. Era impossível Ian ter dinheiro para comprar os álbuns que queria, assim como cigarros e bebida, então não demorou muito até ele resolver ir ao mercado em Macclesfield vestindo um casacão. Discos roubados sob o casaco numa semana era re-

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vendidos à mesma banca na semana seguinte. Ian e seus amigos de escola muitas vezes visitavam a loja autorizada a vender bebidas alcoólicas, malocando garrafinhas de destilados nos suéteres antes da senhorinha aparecer para lhes vender uma barra de chocolate Mars. As ações de Ian sempre eram pensadas, ele nunca se arriscava de verdade, enquanto que Oliver achava que, se ele se metesse numa encrenca séria, a família dele estaria lá para lhe dar apoio. Ian era menos blasé, possivelmente porque seu pai era um policial, mas curtia folgar com autoridades. Ele gostava de escolher roupas escandalosas, talvez vestindo algo de gosto horrível e com maquiagem nos olhos para chamar atenção. Ele e Tony iam ao pub The Bate Hall, em Macclesfield, para consumir bebidas alcoólicas porque o pessoal do Departamento de Investigação Criminal local bebia lá. Às vezes, durante o horário de almoço da escola, Ian visitava o pub The Bull, perto dos apartamentos de Victoria Park, com seus amigos da King’s School. Eles tiravam as gravatas da escola e passavam cantadas nas garotas, achando serem homens vividos com suas canecas de cerveja lager. Kelvin se recorda de ter sido pego num pub, o que resultou em uma semana de suspensão da escola, mas, felizmente, ele foi capaz de interceptar a carta que a escola havia escrito a seus pais. Ian e seus contemporâneos eram capazes de fumar maconha, inalar solventes e ainda deixar tempo para os estudos. Embora fosse óbvio para os amigos que Ian era esperto, parecia que ele nunca fazia trabalho algum. Seus estudos podem ter sido sofríveis, mas ele ainda conseguiu passar nos exames finais normais3 de Língua Inglesa, Literatura Inglesa, Ensino Religioso, História, Latim, Francês e Matemática. Ele recebeu até prêmios em suas matérias favoritas – História e Teologia. Ironicamente, apesar de sua admiração pela pompa e poder da Alemanha, ele não passou no exame final normal de Alemão. Ele nunca falou sobre continuar seus estudos ou em qual universidade gostaria de estudar. Embora raramente discutidos, os outros rapazes tinham planos realistas para uma futura profissão, mas Ian sempre falava de uma carreira na indústria da música. Ele e Oliver discutiam sobre quem seria o vocalista da banda, mas Oliver nunca levava as conversas a sério. Era claro, para Oliver, que grupos como The Beatles ficaram famosos na indústria da música por praticar laboriosamente. Ninguém nunca viu Ian aprendendo a tocar guitarra e ele nunca tomava a iniciativa de cantar. Suas extravagâncias de atitude no quarto eram tomadas como parte da brincadeira e não um compromisso sério com o estrelato.


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“Era um grande salto, para mim, pensar em ser mais do que um fã de música e querer emular o estilo de vida dos artistas. O tipo de músicos que gostávamos estava às margens da vida normal.” Oliver Cleaver Quando “All the Young Dudes” (do Mott the Hoople) atingiu as paradas, Ian começou a usar a letra dela como seu credo. Ele escolhia certas canções e versos como “Speed child4, don’t wanna stay alive when you’re twenty-five” (em português, “Criança da velocidade, não queira estar viva quando tiver 25 anos”) ou “Rock’n’Roll Suicide”, de David Bowie, e era arrebatado pela magia romântica de uma morte precoce. Ele idolatrava pessoas como Jim Morrison, que morreram no ápice de suas vidas. Esta foi a primeira indicação que alguém teve que ele estava se tornando fascinado com a ideia de não viver além de seus 20 e poucos anos, e o início da fase de glamour e brilho de sua vida. Por volta de 1972, tomar drogas domésticas facilmente disponíveis tornou-se um passatempo garantido para Ian. Tony Nuttall muitas vezes era incluído nessas escapulidas, mas não conseguia se dar bem com alguns novos amigos de Ian. Apesar de serem amigos há tanto tempo, começaram a se distanciar. Isso foi exacerbado pelo fato de Tony não ter passado no exame para o estudo secundário e frequentar uma secondary modern school5 no outro lado da cidade. Era um costume na King’s School que alguns rapazes fizessem “serviços sociais” nas tardes de quarta-feira. Isso envolvia desde jogar bingo com pessoas de idade em casas de repouso a visitar os senhores mais ágeis em suas próprias casas ou asilos onde alguns deles viviam. Enquanto jogavam bingo, Ian e seus amigos cheiravam seus lenços encharcados em solventes de limpeza, em uma tentativa de tornar a tarde mais agradável. Os idosos achavam os garotos bem divertidos já que eles ficavam agitados e riam muito. Visitar os lares dos aposentados que moravam sozinhos era bem mais lucrativo. Um garoto ficava conversando com o idoso e o outro fingia usar o banheiro para roubar qualquer droga guardada no armarinho do banheiro. Em uma ocasião particular, Ian e Oliver conseguiram obter um pouco de cloridrato de clorpromazina (nome comercial: Amplictil), que era consideravelmente mais perigoso do que o que tinham roubado anteriormente. Sem o conhecimento deles, isso é prescrito para a esquizofrenia e psicoses relacionadas a ela, e para o controle de distúrbios

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de comportamentos em casos de emergência. Seus efeitos colaterais incluem sonolência, apatia, depressão, agitação e visão turva. Na quinta-feira seguinte, incapaz de encarar duas aulas seguidas de história, cada um tomou três comprimidos. Essa era a dose normal de comprimidos que tomavam habitualmente, mas o Amplictil era mais forte e algo que eles nunca tinham experimentado antes. O professor os acordou e eles saíram separados para as aulas. A aula seguinte de Oliver era Teatro, mas ele foi enviado para casa porque seu professor pensou que ele estivesse bêbado. Ian também foi enviado para casa e lá ele deu um par de comprimidos para Tony. Quando Kevin Curtis retornou ao apartamento, ele se aproximou do quarto de seu filho, e não conseguiu escutar nada além do som de um vinil pulando no no toca-discos. Ele bateu na porta para acordá-los. Tony estava em um estado mental confuso; mesmo assim, depois de tentar vestir ainda mais roupas por cima de sua jaqueta, ele conseguiu caminhar para sua casa em Hurdsfield. Ian foi levado para fazer uma lavagem estomacal. Ao deixar o hospital, Ian encontrou Oliver, que estava justamente acabando de entrar. Ele tinha ido direto para cama quando chegou em casa, mas sua mãe estava preocupada. Ela chamou um médico que disse que não sabia o que havia de errado com Oliver. Por volta da meia-noite, quando ela teve problemas para encontrar seu pulso, chamou uma ambulância. Ian disse que ele tinha tomado os comprimidos por diversão, para ver o que aconteceria. A explicação de Oliver foi mais dramática e, com a língua firmemente alojada na bochecha, disse, de modo petulante, que estava tentando se matar. Desafortunadamente, o bem-estar de Ian foi esquecido e seu amigo mais bem-humorado passou toda quarta-feira dos seis meses seguintes tendo aconselhamento. Houve repercussões na escola, claro. Ambos foram suspensos; Ian, por mais tempo do que Oliver, por alguma razão. Deve ter sido a mentira de Oliver que preveniu que os garotos fossem expulsos. No final das contas, foi Stephen Morris, um ano abaixo de Ian e Oliver, quem foi expulso, por tomar vidros de xarope para tosse. O incidente da lavagem estomacal não dissuadiu Ian. Muitas outras horas de almoço foram passadas no Sparrow Park – um oásis de paz do lado oposto do alvoroço do que costumava ser uma feira livre, atrás da igreja de São Miguel, no centro da cidade de Macclesfield – inalando fluido para lavagem a seco ou tomando pílulas em relativa reclusão.


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Às vezes, quando Ian levava seus amigos ao apartamento dos pais, fazia mímicas com seu violão sobre seus discos. Ele tinha feito uma breve tentativa de aprender a tocar, com pouco sucesso. As drogas que eles tomavam entorpeciam os sentidos e Ian frequentemente infligia dor a si mesmo para ver quanto ele conseguia aguentar nesse estado anestesiado. Ele usava cigarros para queimar a pele e batia na perna com os cravos do tênis de corrida. Seus colegas riam do sangue mas nunca ficavam inspirados em imitá-lo. Mesmo assim, a violência de Ian não era direcionada para mais ninguém. Os amigos o achavam extremamente leal. Ele decidia a que pessoas ele “faria o bem” e se apegava a elas. Sua veia teimosa dava a entender que ele raramente mudava de opinião a respeito de alguém. Eu era seis meses mais nova do que Ian e frequentava a Macclesfield High School for Girls, que era considerada uma instituição irmã da King’s School. Nasci em Liverpool, mas meus pais deixaram a cidade quando eu tinha 3 anos para criar minha irmã mais nova e a mim num ambiente menos tenso e mais rural. Após passarmos alguns anos em Wiltshire e Essex, finalmente nos estabelecemos em Macclesfield, Cheshire. Os apartamentos de Victoria Park situavam-se no meio do caminho entre a Macclesfield High School e a estação rodoviária, então tornou-se um hábito para mim e minhas amigas parar no centro de aconselhamento familiar antes de pegarmos o ônibus para casa. O centro e o clube de jovens eram geridos como uma joint venture e proviam auxílio e suporte aos residentes dos apartamentos do governo. Uma variedade ímpar de pessoas passava o tempo lá.

“Costumávamos entrar e sair sem cerimônia de diferentes grupos de amigos. Dentro de cada grupo, havia um modo particular de se comportar. Houve só uma vez em que o vi num estado extremo de ansiedade. Numa tarde, eu, Colin Hyde e Ian tínhamos tomado um monte de sulfato de anfetamina, que eleva o nível de ansiedade e dá uma prelibação trêmula. Permanecendo juntos, como um grupo, era ótimo. Ouvíamos discos e tudo o mais, mas então eu e Colin tínhamos que ir até Hurdsfield e deixamos Ian sozinho. Quando estávamos caminhando de volta pelo corredor da Park View, pudemos ver Ian marchando para lá e para cá de um jeito maníaco, e estava com a mangueira de um aspirador de pó enrolada nele. Jorrava ansiedade

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dele. Sua mãe tinha voltado e ele não podia ficar em casa. Ficava enrolando aquilo em torno de si de um modo moroso e trêmulo – a princípio, pensamos que fosse uma cobra – e ele estava com aquele olhar vazio que às vezes tinha. Era um olhar particular, chapado, pálido. Essa possivelmente tenha sido a primeira vez que eu o vi com aquela expressão.” Tony Nuttall Às vezes, o centro de aconselhamento familiar servia de esconderijo para matar aula. Se ele não existisse, as crianças locais continuariam nas ruas, e suponho que ele dava a elas um abrigo sem questionamento ou interferência. Às vezes, isso dava terrivelmente errado. Numa ocasião, um grupo de jovens se escondeu num armário de mantimentos para cheirar gás de botijão de acampamento. Quando o ar ficou insuportável, Colin Hyde pulou para fora e então tentou empurrar a porta, fechando os outros. Ian se debateu e conseguiu sair, seguido por Tony Nuttall. No entanto, Colin acendeu um fósforo e o jogou dentro do armário antes que alguém mais pudesse sair. Os três jovens restantes tiveram a sorte de escapar com bolhas na cara e nos braços, e o cabelo chamuscado. Naquele verão, depois de Ian ter passado por sua primeira overdose, conheci Tony Nuttall no clube de jovens. Com sua roupa surrada, cabelo desarrumado e nariz comprido, ele se assemelhava a um cruzamento entre um jovem Rod Stewart e Cat Weasel6, mas o senso de humor e um sorriso largo davam a ele um encanto próprio. Ele falou sobre seu amigo Ian e ficou tão entusiasmado com a ideia de me apresentar a ele que, numa noite, concordei em sair do clube de jovens com ele. Ian morava na Park View, número 11, com seus pais e sua irmã. Assim que caminhamos em direção ao fim do patamar das escadas e viramos a esquina, vi uma figura alta na sacada, olhando fixo para o outro lado do campo de futebol. Fiquei intrigada com ele, embora não atraída. Seu cabelo era bem comprido, e ele estava usando maquiagem com sombra para os olhos e o curto casaco de pele sintética rosa de sua irmã. Ele acenou para mim com a cabeça educadamente, mas não pareceu particularmente interessado na nova namorada de Tony. Eu me senti como se estivesse numa audição ou esperando uma audiência ser concedida. Conheci Tony através do clube, mas apesar do fato de ele e Ian serem amigos tão íntimos, nunca vi Ian lá.


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Durante os meses seguintes, passei a maior parte do meu tempo de sobra com Tony e Ian. Nosso local de encontro usual era o apartamento do senhor e da senhora Curtis. Embora os outros cômodos fossem aconchegantes, o quarto de Ian parecia uma cela e refletia sua atitude minimalista em relação à decoração. Havia duas camas de solteiro – presumivelmente para quando Tony passasse a noite lá – e uma cômoda. A coleção de discos de Ian era mantida organizada numa caixa pequena e, embora seu gosto pudesse ser variado, ele tinha o hábito de substituir seus discos em vez de aumentar sua coleção. Seus outros bens estimados – em outras palavras, seus exemplares da revista Oz e sua coleção de jornais musicais – ficavam na última gaveta da cômoda. O mais notável de tudo era uma pasta registradora com papel pautado e cartões de arquivo de papelão. Cada cartão era etiquetado: “Romance”, “Poemas” ou “Canções”. Eu o considerava meio ambicioso, mas ele não mostrava nenhum sinal de embaraço quanto a isso. Tony e eu raramente estávamos sozinhos, como casal. Quando ficava frio e chuvoso, nós três ouvíamos discos no quarto de dormir de Ian, e quando Tony e eu queríamos dar uns amassos, Ian se sentava para fumar. Eu não notava Ian prestando nenhuma atenção especial em mim e muitas vezes eu me perguntava por que ele não achava uma garota para si para que pudéssemos formar uma dupla de casais, mas ele parecia satisfeito em se deitar com seus cigarros e ouvir músicas. Meu gosto musical incluía The Beatles, Creedence Clearwater Revival, T Rex e The Love Affair (principalmente por causa de minha paixão pelo vocalista principal, Steve Ellis). O de Ian era mais diverso e excitante, e bem diferente da música do estilo da Motown, mais para o pop, que meus amigos estavam ouvindo. Aqueles tempos foram os melhores, já que Tony e Ian não tomavam drogas se eles fossem passar o dia comigo, mas muitas vezes eles cabulavam aula juntos e me encontravam após a escola. Às vezes, eles tomavam Valium furtado dos pais de alguém ou inalavam qualquer substância tóxica que conseguissem arrumar. Os rostos de ambos ficavam frios e pálidos, e a respiração deles ficava pesada com os vapores de tetracloreto de carbono.

“Tomar Valium era uma diversão. Nunca havia nada de sinistro nisso, mas ficou fora de controle. Isso teve muito a ver com uma imagem romântica. Tomar drogas parecia uma boa representação disso. Quando me disseram que ele tinha se matado, meu primeiro

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pensamento foi: ‘Que filho da mãe exagerado ele é!’. Não havia nenhuma necessidade de fazer isso. O que ele realmente queria fazer é tocar rock’n’roll. Acho que ele estava fazendo o que queria fazer. O modo teatral como ele o fazia sugere (…) Ele realmente curtia o teatro e suas encenações tocando outras pessoas. Acho que isso era importante para ele. Vestir-se e sair para passear não era o bastante; ele tinha que beber e agitar as pessoas. Todos nós achávamos divertido e era divertido até certo ponto. No entanto, era uma perdição – só dava para sair ileso daquilo por um certo período.” Tony Nuttall Às vezes, Ian dizia que ele sofria “flashbacks”. Ele descrevia situações em que tinha uma sensação de estar flutuando, como se ele tivesse tomado drogas, quando, de fato, não tinha. Isso era sempre interpretado como um efeito colateral de qualquer coisa que ele tivesse tomado na semana anterior. Ninguém pensava que eles pudessem ser ataques epilépticos precoces. De qualquer modo, ele não teria contado isso aos pais dele. Eventos como esses eram muito facilmente considerados efeitos do abuso de drogas. Nós fomos a um showzinho montado num barracão ao lado da biblioteca pública na Park Green, em Macclesfield. A banda que tocava usou uma luz estroboscópica enquanto estava no palco e, depois de assistir ao show por um tempo, Ian caiu desmaiado no chão. Ele foi puxado dali pelos braços, sem cerimônia, os calcanhares arrastando, e deixado numa outra sala para se recuperar. Finalmente, Tony e eu nos separamos. Na época, fiquei sem entender. Não houve nenhum grande bate-boca, nenhuma confrontação, nada. Num dia, eu era a bola da vez. No dia seguinte, eu não tinha nada para fazer. Com sorte, consegui retomar as amizades que tinha interrompido. Eu me lembro do verão de 1972 como longo, quente e agradável. Todo meu dinheirinho foi gasto com calças boca de sino, colares de miçangas e incensos. A The King’s School tinha um professor de teatro muito inovador chamado Graham Wilson. Quando estava montando The Real Inspector Hound, uma peça de Tom Stoppard, ele decidiu perguntar se algumas das moças da Macclesfield High School estariam interessadas em participar do projeto. Como essas duas escolas eram as grammar schools7 de Macclesfield, era simplesmente natural que


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elas devessem tentar algumas atividades em conjunto. Foi durante os ensaios da peça que Oliver Cleaver encontrou pela primeira vez Helen Atkinson Wood, que era aluna monitora na nossa escola. Como a mim, disseram-lhe que ela simplesmente tinha que conhecer esse rapaz chamado Ian Curtis, que usava esmalte preto nas unhas. Ian e Helen tinham backgrounds que ficavam em pólos opostos, mas desenvolveram uma estreita amizade. Quando o rapaz magricela e desajeitado do apartamento do governo conheceu a loira pequena e efervescente, houve um interesse mútuo.

“Sempre havia algo sobre conhecer Ian que dava uma sensação bem ruim (…) Ele não precisava, na verdade, conversar a respeito disso porque ele tinha aquela parte autodestrutiva de sua personalidade, mas você nem mesmo precisava ficar conversando sobre coisas perigosas, pois você sabe que se alguém realmente está fazendo aquilo a si mesmo, então está buscando uma jornada diferente do que talvez aquela que você esteja buscando ou talvez a que qualquer um que você conheça esteja”. Helen Atkinson Wood O interesse de Ian em Helen não derivou do status dela como monitora nem de seu abastado background. Ele era fascinado pelo fato de ela ter fraturado o crânio com 16 anos, quando caiu de seu cavalo. Helen ficou inconsciente por três dias e levou dois semestres letivos para se recuperar. A ideia de alguém aprender a falar, ler, ganhar a memória e andar, quanto mais voltar a andar a cavalo, deixou Helen ainda mais atraente para Ian. Ele enfeitava a história dela e a recontava diversas vezes, o que me deixou uma imagem de Helen como a de Clara, a amiga de Heidi8. Helen atribui isso à fascinação de Ian pelo drama, mas, apesar disso, sua admiração pela evidente coragem da menina foi fundamental para a amizade deles. Helen tinha certeza de que o ordinário não guardava nenhuma mágica para Ian, e, embora na realidade ele nunca tenha dito isso abertamente, ela suspeitava que ele achava a ideia de morrer jovem mágica por si só e não ficou surpresa quando ele a levou adiante. Em 23 de dezembro de 1972, quatro amigos meus – Gillian, Anne, Dek e Pat – decidiram alugar o Scout Hut na Fence Avenue e fazer uma dupla festa de noi-

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vado. Pat se recorda de Ian como uma pessoa risonha e espirituosa, para quem a música era a única coisa que importava. Ian raramente apresentava os amigos à família dele. Ele corria escada abaixo, empurrava os amigos para dentro do quarto, trancava a porta e ligava a música. Ian chegou na festa de Pat num estupor e me confidenciou que tinha apostado com seus amigos que conseguiria beijar mais meninas do que qualquer um deles naquela noite. Consequentemente, passei o resto da noite o apresentando a todas minhas colegas de escola. Elas acharam bem divertido, e todas consentiram. Antes de irmos embora, Ian me pediu para sair com ele e me convidou para um show de David Bowie no Hard Rock, em Manchester. O que me entusiasmou não foi particularmente a oportunidade de sair com Ian, mas mais a chance de sair de Macclesfield e fazer parte de um grupo de pessoas que fazia mais do que pegar o trem para Stockport para uma viagem semanal de compras. Eu esperava ver Tony de novo, embora eu nunca conseguisse a chance de lhe perguntar por que se livrou de mim tão sem cerimônias pela distância que mantinha. Ian era um grande fã de Bowie e já tinha conseguido passar um tempo no camarim dele num show. Ele tinha os autógrafos de David Bowie, Trevor Boulder9 e Mick Ronson, uma das baquetas quebradas de Woody e uma corda de guitarra sobressalente deles. Bowie tocaria por duas noites e, como Ian e Tony tinham ingressos para ambas as noites, Ian articulou para que seus amigos me pegassem e me levassem para encontrá-lo para o segundo show. Essa foi a primeira vez que fui a um show propriamente dito. Eu estava animada até mesmo com a banda de abertura, Fumble. Eu amava a versão deles de “Johnny B. Goode”, sem imaginar que toda banda de rock faz cover dessa música. Quando Bowie apareceu vestindo um traje estampado de peça única que lembrava um body infantil sem pernas, todos olhamos pasmos, em completa adoração. O palco era tão pequeno que ele ficava extremamente perto da plateia. Ainda assim, ninguém ousava tocar nas suas pernas, magras como a de um menino. Ian havia tido apenas uma namorada séria antes de mim; Bev Clayton era alta e esbelta, com olhos grandes e cabelo dourado-avermelhado até a cintura. Já a partir daquela noite, eu era a namorada de Ian e até parei de olhar para outros rapazes. Eu me senti honrada de fazer parte daquele pequeno grupo. Por um tempo, eu não me relacionei com Ian como um indivíduo, mas sim como um grupo de pessoas que eram divertidas e excitantes, e conheciam mais do que eu


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sobre a vida em si. Eu não imaginava que os colegas de Ian da King’s School também estavam tendo seu primeiro contato com David Bowie, Lou Reed e talvez o lado mais sórdido do mundo etéreo de Ian. Eu havia frequentado a escola primária na vila de Sutton, nas colinas de Macclesfield. Eu havia passado os fins de semana de minha infância procurando ninhos de pássaros, construindo diques no Rio Bollin e alimentando cordeiros órfãos. Na época em que conheci Ian, eu havia abandonado minha bicicleta e parado de frequentar o clube de jovens da igreja, mas ainda levava uma existência pacata. De repente, a vida pareceu uma longa rodada de festas, shows e maratonas de bares. Era uma cena totalmente nova para mim e, como Ian, gradualmente comecei a me afastar de meu antigo circuito. Através dele, comecei a ficar sabendo sobre James Dean, Jim Morrison e Janis Joplin. Qualquer um que tivesse se envolvido no ambiente jovem e com pretensões artísticas de alguma forma do show business e tivesse uma morte prematura era de interesse para ele. Quando ele me disse que não tinha nenhuma intenção de viver além de seus vinte e poucos anos, aceitei isso com certo ceticismo, presumi que fosse uma fase e que ele a deixaria para trás. Ele parecia terrivelmente jovem para já ter tomado a decisão de que a vida não valia ser vivida. Eu achei que, conforme ele amadurecesse, com certeza a vida seria tão boa que ele não iria querer deixar tudo para trás. Gradualmente, passamos a ver Tony Nuttall muito pouco. Um dia, Ian admitiu que Tony havia concordado em deixá-lo namorar comigo com a condição que ele cuidasse de mim. Embora eu me sentisse como um bicho de estimação com um novo dono, minha vida era mais interessante e, de certa forma, mais sofisticada com Ian. Assim, me apeguei a ele. Ocasionalmente, nós nos inscrevíamos na escala de serviços de baby sitting e cuidávamos de crianças que moravam em apartamentos do Victoria Park enquanto seus pais estavam fora. Esse não era de maneira nenhuma um trabalho mundano. Uma vez, tomamos conta de dois garotinhos cujos pais tinham acabado de se estabelecer por lá, após trabalhar num circo. Havia pôsteres de circo nas paredes e as crianças saltavam de um móvel para outro como macacos que tivessem sido libertados de sua jaula. Uma outra vez, uma garotinha escalou a perna de Ian até o joelho e perguntou a ele se ele iria dormir com a mamãezinha dela e se ele era seu papaizinho.

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De alguma modo, Ian conseguiu equilibrar sua vida entre seus amigos do conjunto habitacional e seus pares mais opulentos da King’s School. Eu também tentei manter meus amigos antigos, mas sem tanto sucesso, principalmente porque Ian tinha fortes objeções a eles. Sem eu me dar conta, ele começou a assumir o controle da minha vida bem cedo em nosso relacionamento. Minha amiga Elaine e eu trabalhávamos aos sábados num estande de queijos e bacon no mercado no centro da cidade de Macclesfield. Ian sempre queria que eu andasse até o apartamento dele na hora do almoço para que sua mãe pudesse me fazer um sanduíche. Em vez de protestar, eu me deixava ser a vítima tanto da gentileza inapropriada de Doreen quanto da determinação de Ian em ficar de olho em mim. Ele sempre se encontrava comigo e me acompanhava na ida e na vinda do estande. Considerando o tempo que eu passava no apartamento, raramente via Carole, irmã de Ian. Ela tinha as mesmas feições dele, mas sempre estava pronta para dar um sorriso tímido. Ela não tinha passado no exame para o estudo secundário para ir para uma grammar school local, assim imaginei que ela não era tão dotada academicamente quanto Ian. Embora ela tivesse apenas cerca de 13 anos na época, uma vez sugeri a Ian que seria legal quando Carole começasse a sair com rapazes para que nós pudéssemos formar uma dupla de casais. Ian respondeu: “Minha irmã nunca vai sair com rapazes!”. Muitas vezes, Ian estragava uma noite agradável ao ter inexplicáveis ataques de raiva. Quando nós e mais quatro amigos visitamos a casa de um outro amigo, um de nós parabenizou o pai dele por sua casa. Envergonhado, o pai corou e gaguejou antes de dizer de uma maneira tímida: “É melhor do que morar em Moss Side”. Ian imediatamente subiu nas tamancas e disse: “O que há de errado com Moss Side?”. Enquanto o pobre homem lutava para se explicar, Ian o acusou de ser racista, deu um soco em um outro convidado e acabou agachado atrás do sofá. Eu me lembro de me ajoelhar e tentar convencê-lo a sair de lá, mas ele estava irredutível como sempre. Muito provavelmente foi Oliver Cleaver quem, no fim, o persuadiu a ir para casa. No verão de 1973, os pais de Oliver saíram de férias, deixando-o ficar na casa de um amigo. Ele fez com que voltássemos à casa dos pais dele e fizemos uma festa pequena mas fora de controle, que acabou abruptamente quando Ian arrebentou o punho com um soco que atravessou o vidro da porta da frente. Ninguém sabia por que ele estava tão irado, mas o ferimento não deve ter sido tão profundo já que conseguimos ir andando ao pronto-socorro.


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O outono chegou e a vida corria o risco de se tornar chata de novo. Porém, enquanto Oliver bebia na Park Tavern, ele iniciou uma amizade com Robert, do Copperfield Antiques, e John Talbot, que acompanhava as feiras de antiguidades. Eles tinham o hábito de dar festas mais do que qualquer um que conhecíamos e a atmosfera daquelas noites permanecerá comigo para sempre. Seguiu-se uma das épocas mais felizes da minha vida. Impressionável, com 16 anos de idade e com “The Eve of St. Agnes” do Keats badalando nos meus ouvidos, eu fantasiava que um dia todos poderíamos retornar aos dias de magos e cavaleiros com armaduras brilhantes. A loja de antiguidades ficava quase fora do centro da cidade de Macclesfield. Toda vez que íamos a uma festa lá, Ian batia na porta, e somente uma fresta se abria. Por alguma razão, eu sempre esperava a rejeição, mas nunca recusaram nossa entrada. Havia fogo de carvão crepitando na lareira, a luz das chamas lambendo as pedras das paredes e do antigo piso, música afetada, e frequentemente havia algo para comer. A comida era elaboradamente disposta como num banquete, com uma enorme poncheira em que todo mundo despejava qualquer coisa que tivesse trazido. Enquanto a noite passava, os convidados se despiam e se enfiavam juntos no chuveiro. Ian era relutante em se juntar a tais excentricidades – era mais provável que ele fosse encontrado fumando num canto. Numa noite, uma moça jovem deslizou nua entre nós enquanto estávamos numa das camas de dossel. Ian ficou horrorizado e a enxotou de lá. Ainda assim, Ian nem sempre se opunha à presença de outras mulheres. Quando ele desapareceu por um longo tempo numa noite, pedi a Kelvin que o achasse para mim. Quando Kelvin também desapareceu, eu mesma comecei a procurar pela casa e achei ambos, num quarto que eu nunca tinha visto antes, com Hillary, uma loira cuja beleza só era frustrada por seus olhos, que olhavam em direções opostas. Numa ocasião, em vez de percorrermos o longo caminho para casa, resolvemos dormir lá. As paredes do quarto não tinham reboco e um “lustre” de madeira com velas se pendurava do teto. Cinco de nós tentamos nos espremer na cama, mas, no fim, Oliver foi despachado para dormir numa poltrona chaise longue. Ian insistiu que eu me deitasse de lado, de frente para a parede e de alguma forma ele conseguiu se deitar de costas. Ele não permitia que eu dormisse ao lado de John porque ele não queria que nós nos tocássemos e também não queria virar

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as costas para John. Eu me deitei e observei a água escorrendo pela parede de pedra – foi uma noite bem longa. Na manhã seguinte, John saltou da cama primeiro, besuntou o rosto com Óleo de Olay (produto com óleo de linhaça), e fez café para nos aquecer. Os pugs dele, Oscar e Bertie, foram soltos da cozinha e nos sentamos tiritando de frio; o carvão da lareira, apagado há muito tempo, e as farras da festa, uma lembrança aprazível. A atmosfera era bem “Noel Coward” – havia um certo orgulho em seu elitismo. Numa noite, alguns baderneiros de Macclesfield tiveram a entrada barrada. Quando perguntaram por que, John respondeu: “Porque vocês são repulsivos!”. Às vezes, insistiam que todos os convidados usassem chapéus ou um determinado tipo de roupa. Os garotos posavam no Macclesfield Arms10 vestindo fraques, indiferentes e desinteressados no resto das pessoas. Todos aqueles rapazes bonitos e elegantes e a maioria deles de olho um no outro! John Talbot considerava Ian bastante comum, e ele era em comparação a alguns dos excêntricos do mundo das antiguidades. Ian mantinha uma comedida satisfação com essas amizades e ninguém pareceu ligar quando perceberam que ele não era gay. Embora Ian usasse mesmo maquiagem (era moda na época), ele não se destacava como sendo extremamente exagerado nas roupas ou nos modos. Para John Talbot, era a personalidade forte de Ian que se projetava e era claro que ninguém o influenciava a não ser seus próprios ídolos. Os pais de Oliver Cleaver o proibiram de visitar John na loja – na opinião desse último, sem compreender que Ian Curtis tinha uma influência muito maior sobre o filho deles. Ao mesmo tempo, os pais de Ian passaram a culpar Oliver pelo estilo de vida de Ian. Era bem sabido que, depois da música, o segundo amor de Ian era suas roupas. Ele ansiava ser notado e acentuava sua imagem imponente sempre que podia e com pouca dificuldade. Pouco antes do Natal de 1973, Ian pôs os olhos em um cachecol de estampa tigrada na vitrine de uma loja de roupas masculinas em Macclesfield. Ele sabia que não teria nenhum dinheiro de sobra até quase o Natal, então ficava voltando à vitrine para conferir se o cachecol ainda estava lá. Entrei na loja um dia e o comprei para um presente-surpresa de Natal. Meu prazer foi estragado por conta da aflição que isso causou a Ian quando ele pensou que Oliver havia estado na loja e o conseguido antes dele! As pessoas que conheceram Ian naquela época lembram-se dele por sua gentileza e zelosa sinceridade. Posses nunca significaram grande coisa para ele, e,


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embora sua paixão fosse comprar discos, uma vez que o brilho tivesse se perdido, ele ficava condescendente em emprestá-los ou dá-los de presente. Ele era demasiado generoso e isso parecia dar-lhe muito prazer. Sobre a morte de Ian, John Talbot disse: “Fiquei confuso, porque tudo que eu lia a respeito dele sugeria que ele era um profeta de desgraças, e não me lembro dele assim. A música realmente propaga mitos e as pessoas tentaram tornar esse mito maior do que era”.

1. 2. 3.

Mauger é o nome correto do piloto neozelandês. “Presuntinho”. Exames de O-level (Ordinary Level) – em português, “nível O (Nível Ordinário)” –, primeira qualificação acadêmica, obtida por 25% dos melhores alunos, para a obtenção do GSE (General Certification of Education) – “(Certificado Geral de Educação)” – no final do ensino secundário. 4. “Speed jive” aparece na letra original e quer dizer “conversa fiada sob efeito de anfetamina”. 5. Uma secondary modern school é uma escola de ensino secundário estabelecida a partir de 1944 para acolher os alunos que não obtinham qualificação para ingressar em uma grammar school. 6. Catweazle, protagonista de uma antiga série de TV inglesa de mesmo nome. 7. Grammar School era uma escola de ensino secundário que recebia os alunos com melhores notas do exame do fim da educação primária na Inglaterra. 8. Protagonista do romance infantil homônimo, da escritora suíça Johanna Spyri. 9. Bolder é a grafia correta do sobrenome do baixista da banda The Spiders from Mars. 10. Antigo hotel de Macclesfield.

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