estudos
Platônicos
Maurizio Migliori Linda M. Napolitano Valditara (Org.) em colaboração com Davide Del Forno
Plato ethicus A filosofia é vida
tradução
Silvana Cobucci Leite Élcio de Gusmão Verçosa Filho revisão técnica
Marcelo Perine
Título original: Plato Ethicus: La filosofia è vita © Morcelliana, Brescia 2008 Via G. Rosa 71, Brescia ISBN 978-88-372-2236-9
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Plato ethicus : a filosofia é vida / Maurizio Migliori, Linda M. Napolitano Valditara (Org.) em colaboração com Davide Del Forno ; tradução Silvana Cobucci Leite, Élcio de Gusmão Verçosa Filho ; revisão técnica Marcelo Perine. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. -- (Coleção estudos platônicos) Título original: Plato ethicus : la filosofia è vita Bibliografia. ISBN 978-85-15-04256-2 1. Filosofia antiga 2. Platão - Congressos 3. Platão - Ética I. Migliori, Maurizio. II. Napolitano Valditara, Linda M. III. Del Forno, Davide. IV. Série. 15-01014
CDD-184
Índices para catálogo sistemático: 1. Platão : Filosofia
Coleção Estudos Platônicos Diretor: Marcelo Perine (PUC-SP, Brasil) Conselho Editorial: Elisabetta Cattanei (Univ. Cagliari, Itália) José Trindade Santos (UFPB, Brasil) Marcelo P. Marques (UFMG, Brasil) Maura Iglésias (PUC-Rio, Brasil) Raúl Gutiérrez (PUC, Peru) Samuel Scolnicov (Univ. Hebraica de Jerusalém) Thomas Robinson (Univ. Toronto, Canadá) Preparação: Maurício Balthazar Leal Projeto Gráfico: Maurélio Barbosa Viviane Bueno Jeronimo Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Capa: Viviane B. Jeronimo Revisão: Renato da Rocha
Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-04256-2 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015
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SumáRio
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Introdução
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LINDA M. NAPOLITANO VALDITARA
capítulo primeiro.
Existe uma ética nas “doutrinas não escritas” de Platão?...................... 39 ENRICO BERTI
capítulo Segundo.
Qual é o significado de evpisth,mh na proposição socrática h` avreth, evpisth,mh evsti,n?................. 55 FRANCISCO BRAVO
capítulo Terceiro.
Os mitos na ética de Platão................. 71 LUC BRISSON
capítulo Quarto.
As virtudes e a virtude: os nomes e o discurso......................... 85 GIOVANNI CASERTANO
capítulo Quinto.
A virtude platônica como o[lon das Leis ao Protágoras................. 103 BRUNO CENTRONE
capítulo Sexto.
“Sócrates na caverna”......................... 121 MICHAEL ERLER
capítulo Sétimo.
Ordem do mundo e ordem da alma....... 137 FRANCO FERRARI
capítulo Oitavo.
O filósofo e o político: gêneros de vida rivais ou conciliáveis?................ 151 SILVIA GASTALDI
capítulo Nono.
A interpretação neoplatônica da ética platônica.............................. 171 LLOYD P. GERSON
capítulo Décimo.
Platão, a ética e a matemática............... 187 CHRISTOPHER GILL
capítulo Décimo Primeiro.
A beleza e a bondade da virtude.......... 201 MAURIZIO MIGLIORI
capítulo Décimo segundo.
Uma ética para a dialética platônica?...... 255 LINDA M. NAPOLITANO VALDITARA
capítulo Décimo terceiro.
A investigação ética no seu contexto...... 275 NOBURU NOTOMI
capítulo Décimo QUarto.
Fundamentos “henológicos” da ética de Platão............................. 287 GIOVANNI REALE
capítulo Décimo Quinto.
“Todos os nossos desejos são desejos do bem”.......................... 299 CHRISTOPHER ROWE
capítulo Décimo sexto.
Sobre o conceito platônico de igualdade........................ 309 MARIA ISABEL SANTA CRUZ
capítulo Décimo Sétimo.
A ética platônica da ironia................... 327 SAMUEL SCOLNICOV
capítulo Décimo Oitavo.
Ética e história no Menexeno de Platão.......................... 343 MAURO TULLI
capítulo Décimo Nono.
Antropologia da pleonexi,a em Platão.......................... 357 MARIO VEGETTI
.............................................................................. 371
Posfácio
MAURIZIO MIGLIORI
. ....................................................................... 393
Bibliografia
DAVIDE DEL FORNO, LINDA M. NAPOLITANO VALDITARA (Org.)
Índice de nomes
. .................................................................. 415
Introdução Linda M. Napolitano Valditara
“A filosofia é vida”: como falar de uma ética em Platão1 Reúnem-se aqui, em vários ensaios, os relatórios — ou pelo menos a maior parte deles — apresentados no Congresso Internacional “Plato Ethicus. A filosofia é vida”2: nele foram expostos e discutidos em torno de vinte relatórios3. Já na 1. Com o objetivo de uma organização mais eficaz do trabalho, os organizadores e o coor ganizador do livro dividiram as tarefas entre si. M. Migliori ocupou-se da redação final e da diagramação do texto, bem como da versão definitiva do “Índice de nomes”, acrescentando depois um breve “Posfácio” à edição italiana do volume. L. M. Napolitano Valditara redigiu a “Introdução” e preparou o “Índice de nomes”. D. Del Forno cuidou da uniformidade editorial e da inserção dos caracteres gregos. A “Bibliografia” foi preparada por D. Del Forno e L. M. Napolitano Valditara. 2. O Congresso foi realizado em Piacenza, no Palazzo Farnese e no Auditorium de Piacenza, entre 29 de janeiro e 1º de fevereiro de 2003, com a contribuição da Região Emilia-Romagna, da Província e da Prefeitura de Piacenza e o apoio da Fundação de Piacenza e Vigevano; foi organizado por Maurizio Migliori (Universidade de Macerata) e Linda M. Napolitano Valditara (Universidade de Trieste), em colaboração com a International Plato Society, o Instituto Italiano para os Estudos Filosóficos e o Instituto para o Vocabulário Intelectual Europeu e História das Ideias do Conselho Nacional das Pesquisas (Consiglio Nazionale delle Ricerche, CNR) — Seção Pensamento Antigo. 3. Ch. Rowe (Universidade de Durham), “Tutti i desideri sono desideri del bene”. Riflessioni su alcuni dialoghi platonici. B. Centrone (Universidade de Pisa), La virtù platonica come holon nell’etica platonica. M. Migliori (Universidade de Macerata), Il bello e il buono della virtù. F. Bravo (Universidade de Caracas), Qué significa evpisth,mh en la proposición socratica arete es evpisth,mh. N. Notomi (Universidade de Kejo, Tóquio), Ethical Examination
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Plato ethicus. a filosofia é vida
época dos trabalhos, os participantes e o público ficaram impressionados com a rica variedade das abordagens adotadas para o tema da ética platônica. Depois, no momento de reunir os respectivos ensaios para a dupla edição das Atas, que foram publicadas em inglês (M. Migliori; L. M. Napolitano Valditara; D. Del Forno, Plato Ethicus. Philosophy is Life, Sankt Augustin, Academia Verlag, 2004) e agora em italiano, essa impressão se confirma e aumenta ainda mais, tornando-se contudo um problema e até uma crux para os organizadores das próprias Atas. Sem reproduzir a ordem dos relatórios durante os trabalhos do Congresso, quais critérios deveriam ser adotados para reunir todo esse material? Com qual método organizar as contribuições e apresentá-las em um texto, em uma estratégia editorial dotada de alguma organicidade? Como ressaltar convergências e divergências de interpretação, bem como eventuais novidades e elementos atribuíveis a um precedente — admitindo-se que exista — estado da arte?4 Considerando válido o chamado critério “evolutivo” no ordenamento do corpus platônico, seria preciso organizar os relatórios de acordo com a pretensa sucessão dos diálogos? (Atentou-se para diálogos tradicionalmente socráticos — Cármides, Lísias, Protágoras, Górgias —, mas também para outros considerados mais ma duros — Fédon, Teeteto, República —, e chegou-se a buscar traços éticos no in Context: A Case Study of Charmides. E. Berti (Universidade de Pádua), C’è un’etica nelle dottrine non scritte di Platone?. M. Tulli (Universidade de Pisa), Etica e storia nel Menesseno di Platone. M. Vegetti (Universidade de Pávia), Pleonexi,a e teorie della giustizia in Platone. N. Ooms (Universidade do México), La importancia del Plato Ethicus en la hermeneutica de los diálogos. El caso del Lisis. Ch. Gill (Universidade de Exeter), Plato, Ethics and Mathematics. G. Casertano (Universidade Frederico II, Nápoles), Le virtù e la virtù: i nomi e il lo,goj. L. M. Napolitano Valditara (Universidade de Trieste), Un’etica per la dialettica platonica?. L. Brisson (Paris, CNRS), Assimilation to God or Reincarnation. Retribution in Plato’s Ethics. M. I. Santa Cruz (Universidade de Buenos Aires), Sobre el concepto de igualdad. G. Reale (Universidade S. Rafael, Milão), Fondazione henologica dell’etica platonica. F. Ferrari (Universidade de Salerno), Ordine nel mondo e ordine dell’anima. L’etica platônica è una disciplina autonoma?. M. Erler (Universidade de Würzburg), Besinge das Kind in Mann. Zur Pflege des sterblichen Selbst bei Platon. S. Scolnicov (Universidade de Jerusalém), Plato’s Ethics of Irony. S. Gastaldi (Universidade de Pavia), Il filosofo e il cittadino. Bi,oi rivali o integrazione della vita?. L. P. Gerson (Universidade de Toronto), The Neoplatonic Interpretation of Plato’s Ethics. 4. As publicações monográficas sobre a ética platônica são relativamente escassas — e isso por si só poderia significar alguma coisa: cf. Bibliografia. Os pontos de convergência, ao menos no âmbito geral, entre os ensaios aqui incluídos serão assinalados rapidamente e de maneira isolada, em nota: desse modo, pretende-se esclarecer algumas possíveis “linhas de leitura” da ética platônica, de acordo com as quais poderia ter sido organizado (de maneiras diferentes) este livro.
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Introdução
Timeu, nas Leis e nas “doutrinas não escritas”.)5 Dar a preferência a abordagens gerais específicas, não raro problemáticas, da ética de Platão? (aquela já própria do neoplatonismo, aquela que se concentra na metafísica “henológica”, aquela referente à relação entre ética e matemática?). Ou então organizar os textos a partir de temas isolados eticamente relevantes (a virtude, a felicidade, o bem, a assimilação a Deus, os modelos de vida filosófico e político, o papel das paixões, a igualdade, a pleonexi,a, a recompensa moral)? Ou, ainda, destacar os enfoques linguístico-formais e metodológicos gerais da ética platônica? (a necessidade de uma referência constante ao contexto dialógico, ou então às seções míticas, nas quais temas eticamente relevantes são discutidos, a característica moral própria do dialético envolvido — juntamente com outros — no debate filosófico, a ironia como eixo da comunicação moral, a relação entre a virtude — como possível inteiro — e as virtudes como caso do relacionamento um-muitos no âmbito ético?). No entanto, nenhum desses critérios, ou outros ainda igualmente possíveis, pareceu amplo o bastante para englobar todo o material reunido, ou até mesmo apenas uma parte consistente dele: independentemente do critério adotado, alguma coisa — e alguma coisa interessante — sempre ficaria de fora, escapando à tentativa de sistematização. A ética platônica não parecia disposta a se deixar restringir a nenhum dos critérios hermenêuticos usados para ler seu autor: cada um dos imaginados constituía para ela — para a maneira como ela seria apresentada neste livro — uma espécie de leito de Procusto. Por fim, essa circunstância levou a optar por não forçar a problemática variedade que emerge desse material: pareceu melhor dar amplo destaque à liberdade com que os autores dos ensaios interpretaram o tema do Plato Ethicus. Por esse motivo, no livro que reúne as Atas do Congresso de Piacenza, os ensaios figuram em ordem alfabética do sobrenome dos autores, ou seja, segundo o critério mais simples e filosoficamente menos difícil, não fornecendo ao leitor — mas tampouco impondo-lhe arbitrariamente — algum “método” preferencial de abordagem da ética de Platão. No entanto, naquele ponto o problema não pareceu simples do ponto de vista editorial: sua analogia — si parva licet componere magnis — com a própria impossibilidade platônica de escrever sobre filosofia sem restrições e nivelamentos levou a supor que poderia tratar-se de um problema mais profundo, certamente de natureza hermenêutica, se não conceitual e expressiva. 5. Sobre o critério evolutivo, cf. D. Nails, “Agora”, Academy and the Conduct of Philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1995, e a discussão sintética realizada por M. Vegetti, Quindici lezioni su Platone, Torino, Einaudi, 2003, p. 69-71.
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Plato ethicus. a filosofia é vida
Em quais condições, e antes mesmo de escrever sobre isso, pode-se efetivamente falar de uma ética em Platão? Existe um objeto — ou seja, um aspecto coerente e orgânico, diferente de outros que podem ser encontrados nos diálo gos — que se possa definir, ao menos para o modo como o compreendemos hoje, como “ética” platônica? Dizendo sem rodeios, existe uma ética em Platão? Tem sentido a operação hermenêutica para a qual o amigo Maurizio Migliori e quem escreve convocaram a reunião dos maiores platonistas do mundo? De que coisa, na verdade, se discutiu animadamente durante três dias em Piacenza e sobre qual coisa escrevem estes dezenove ensaios? Seja como for, duas opiniões nem sempre explicitadas, mas bastante aceitas, parecem surgir deles: no entanto, elas constituem opiniões meramente negativas, que visam a esclarecer não o que é a ética platônica, e sim, em qualquer caso, o que ela não é. A primeira é que não se pode atribuir a Platão uma ética considerada autônoma e distinta das outras disciplinas filosóficas, como depois ocorrerá em Aristóteles: este seria o fundador de uma ética modernamente entendida em tal sentido. Assim, é errado — por ser redutivo — procurar nos diálogos uma ética de tipo aristotélico e trabalhar neles com o único objetivo de encontrá-la. Mas, em contrapartida, é igualmente equivocado acreditar que, faltando este tipo de ética, não exista em Platão alguma ética digna de atenção; ou então que faltem nos diálogos antecipações da visão aristotélica da ética: esses traços são depois usados — de forma crítica, não menos que construtiva — pelo aluno de Platão para elaborar a sua teoria das ciências práticas. A segunda opinião é que são parciais — se não inverossímeis — os enfoques da ética platônica hoje correntes, em particular no âmbito anglo-saxão6. De fato, é errado — por ser redutivo — focalizar imediata e exclusivamente o núcleo socrático da ética de Platão, o método da e;legcoj e os “paradoxos” socráticos, ou os temas da cientificidade da virtude ou da involuntariedade do mal. E isso não tanto em relação a uma obrigação, preconceitualmente estabelecida, de ver até mesmo as implicações metafísicas da ética do Platão maduro, não mais socrático, como aquelas que, por serem mais datadas e menos facilmente defensáveis, parecem ser hoje também menos interessantes. Antes disso, efetivamente, parece imprópria uma abordagem da linguagem dos diálogos como um laboratório linguístico em que preconceitualmente foram testadas apenas pretensas coerências e falácias das proposições e argumentações éticas, sem 6. O expoente mais importante de tal abordagem é Terence Irwin.
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Introdução
nenhuma reflexão — histórica e formal — prévia sobre o estatuto linguístico, comunicativo, cognoscitivo dos próprios diálogos e sobre a efetiva possibilidade, por parte deles, de serem submetidos a tal exame. Essas duas opiniões sobre o que a ética de Platão não é servem, portanto, ao menos para encontrar novas chaves de leitura possíveis. De fato, sendo verdadeiras tais opiniões — aceitas, como dissemos, mesmo por estudiosos que depois interpretaram o desafio de um Plato Ethicus das mais diferentes formas —, os diálogos conteriam precisamente muito mais do que se pode encontrar ali pela pressuposição da existência de uma ética como disciplina ao lado de outras, ou então pelo interesse de verificar o que Platão faz o seu Sócrates dizer no âmbito ético. Por esse motivo, é preciso compreender que coisa a mais no âmbito ético, e de diferente em relação ao que até agora se mencionou, eles contêm e como a propõem. Só então, levada a termo essa operação básica de pesquisa e reconhecimento, será possível dar início a um confronto entre Platão e aquela que, depois dele, se tornou a disciplina que hoje chamamos de ética, um confronto com as problemáticas, as partes, os enfoques e normas que esta assumiu: admitindo-se, obviamente, que naquele ponto ainda pareça interessante envolver-se em um confronto desse tipo. Assim, um primeiro ponto parece ser este, semelhante àquele que muitos estudiosos de Platão hoje compartilham como abordagem não apenas de sua ética, mas de seu pensamento em geral: nós lemos diálogos e essa forma na qual a filosofia de Platão é apresentada, longe de ter valor unicamente exterior, tem um sentido filosófico e por esse motivo deve ser levada a sério, como sinal de uma problematização profunda e radical, integralmente exploratória e hipotética de tudo aquilo que seu autor — por meio de uma linguagem que com ele começa a ser filosoficamente técnica, mas que na maioria das vezes é ainda a linguagem do cotidiano — vem dizendo7. A forma dialógica, porém, não adia indefinidamente nem anula a obrigação de seu autor de encontrar soluções para os problemas discutidos: tais soluções, ainda que provisórias e parciais, estão presentes nos próprios diálogos e são fruto da própria problematização radical permitida por sua estrutura, filosófica e não apenas literária (isso é válido independentemente da amplitude e da 7. Acerca do respeito radical da forma de comunicação dialógica, cf. o que diz sinteticamente sobre isso Vegetti, Quindici lezioni su Platone, cit., Lezioni 4 e 5, com as referências bibliográficas internacionais nas p. 65 e 85. Indicações bibliográficas a esse respeito encontram-se também no endereço eletrônico da International Plato Society: <http://callimac. vjf.inserm.fr/BiblPlat/BPFrontEngl.html>.
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Plato ethicus. a filosofia é vida
força filosófica global inscritas nas soluções encontradas ou vislumbradas nos diálogos, de acordo com alguns — como os metafísicos e os esoteristas, por exemplo — muito, ou melhor, absolutamente relevantes, talvez bem menos que para outros estudiosos). Platão, portanto, fala de ética e — para nossa sorte e nosso azar — o faz nos mesmos termos dialógicos nos quais fala de qualquer outro tema. O segundo ponto, ligado a este, e que é importante esclarecer, subverte até mesmo a forma como se corria o risco de ler a multiplicidade desordenada dos enfoques aqui adotados do tema Plato Ethicus. Sua absoluta variedade significa não — como se poderia temer — a não existência de uma ética em Platão, mas, ao contrário, a ubiquidade e o poder radicais da sua problematização ética, portanto a localização desta nas próprias raízes — históricas, linguísticas, conceituais — de tudo o que o pensamento ocidental produzirá nesse campo, uma vez que precisamente a partir dali poderá delineá-lo como campo específico. Também por sua ética Platão nos impõe o esforço hermenêutico maior para o historiador da filosofia, o esforço em que o instrumental histórico permite — se bem usado — fazer até mesmo uma boa teorese. Desse modo, também e sobretudo neste caso, não devemos nos deixar arrastar pela corrente dos “modismos” interpretativos e dos modos de pensar consolidados, mas nadar para trás, rumo às origens dos termos e conceitos úteis e estabelecidos hoje para falar de ética, assim como alguns peixes de água doce, no momento da deposição dos ovos, devem trabalhosamente nadar para trás, contra a corrente, para remontar às fontes de seus rios. Platão fala de ética dialogicamente, como de qualquer outro tema, mas — uma segunda possível chave de leitura — qualquer outro tema de que ele fala parece ter como eixo a ética e ter com ela um envolvimento problemático, a ser esclarecido caso a caso. No entanto, isso não é o mesmo que diluir o tema moral em um magma indistinto, em que tudo (e portanto nada) do conteúdo dos diálogos pode ser considerado eticamente interessante. Todos os aspectos — ou seja, cada aspecto — de uma problemática filosófica ética parecem ter sido analisados por Platão, não sistematicamente, mas sempre, no diálogo, com uma urgência radical, e cada um deles tem uma ligação, que é preciso esclarecer, com as outras “partes” da filosofia platônica. Como mostram os ensaios seguintes, da linguagem para falar de ética até cada uma das virtudes, da busca da definição destas últimas às prescrições morais, da motivação para agir eticamente ao fim que justifica tal agir, do papel do desejo e das paixões à assimilação a Deus, da inclinação para a felicidade ao medo da punição, da igualdade no âmbito moral às razões de nosso sucesso ou fracasso nesse campo e da nossa inevitável oposição um ao outro,
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Introdução
dos fundamentos metafísicos aos fundamentos científicos capazes de alicerçar e sustentar um discurso de ordem moral: todos esses aspectos éticos e muitos outros estão presentes e podem ser encontrados e meditados nos diálogos. Desde que o estudioso que os analisa esteja atento, e disposto a não ter facilitado a difícil tarefa, histórica e teorética, de “nadar para trás”, rumo às fontes, históricas e linguísticas, da sua forma mental consolidada, inteiramente sistemática. Vejamos agora quais são, um a um, os enfoques escolhidos pelos estudiosos que participam do Plato Ethicus. *** Para Enrico Berti (“Existe uma ética nas “doutrinas não escritas” de Platão?”), a característica ética dos a;grafa do,gmata já ecoa no testemunho de Aristoxeno sobre a aula relativa ao bem, aula com que Platão, falando de geometria, números e astronomia, chocou e desagradou os ouvintes, que haviam comparecido para ouvir falar de bens humanos. Aristóteles também confere um valor axiológico aos dois Princípios platônicos, assimilando o Uno ao Bem e a Díade Indefinida ao Mal, valor depois confirmado tanto pelos comentadores antigos, como nas Divisiones Aristotoleae: bem-mal, virtude-vício são binômios equiparados a igual-desigual, finito-infinito, harmônico-desarmônico, estável-instável, para si-para outro. No entanto, isso diz respeito apenas às bases ontológicas da ética, não à sua parte normativa, nem esclarece como e quando fundamente uma visão da virtude como justo meio entre excesso e falta, base da própria concepção aristotélica da virtude. Uma passagem da Ética a Eudemo (I, 8, 1218 a 15-21), reconhecida como fragmento aristotélico do Peri tagathou e posteriormente aceita como testemunho das doutrinas não escritas, explicita o vínculo entre Uno-Bem e bens humanos. O bem por excelência é precisamente o primeiro e dele derivam os números, que são igualmente bens por serem unidade de uma diversidade e “formas de ordem”: também bens humanos como justiça e saúde são “formas de ordem” e, portanto, números. Sua bondade, assim entendida, implica a normatividade, ou seja, eles, por serem bens — ontologicamente fundamentados —, são algo que deve ser buscado. O Uno, por sua vez, é aquilo que se mostra um bem por ser “desejado” (evfi,entai, 1218 a 26) pelos números, ou seja (segundo Teofrasto), “imitado” por eles, como os bens humanos imitariam a harmônica unidade dos próprios números. Aristóteles critica as doutrinas não escritas no método (porque não partem do mais próximo de nós para chegar ao verdadeiro em si) e no mérito (porque não explicitam o sentido daquilo que, como para os números “desejantes” do Uno, é
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Plato ethicus. a filosofia é vida
dito apenas por meio de metáfora): desse modo, é preciso evocar a característica dialética, portanto aberta e falível, das próprias doutrinas não escritas, nas quais de qualquer modo a ética, baseada em uma ontologia (ou melhor, em uma verdadeira metafísica), não tem a autonomia daquela que depois terá em Aristóteles8. Francisco Bravo (“Qual é o significado de evpisth,mh na proposição socrática h` avreth. evpisth,mh evsti,n?”) lembra que na leitura “oficial” o termo evpisth,mh, com que Sócrates se refere à virtude indicaria um raciocínio abstrato: ele, portanto, corroboraria a acusação de intelectualismo que Aristóteles (Eth. Eud. 1216 b) já lhe movera, atribuindo-lhe uma sobreposição entre o simples, teorético, conhecer a justiça e o ser, praticamente, justos. Contra essa leitura se posicionou John Gould: examinando o uso de evpisth,mh na literatura pré-platônica, ele mostra como este não alude a um conhecimento do que (x é feito assim e assim), mas do como (x é obtido deste modo), ou seja, por uma habilidade similar à dos artesãos. VEpisth,mh, portanto — como sofi,a e fro,nhsij —, teria antes de Platão sentido eminentemente prático, que — além da polissemia do termo nos diálogos socráticos — seria o sentido aqui preponderante, relacionado a uma habilidade inteligente, base da ação moral e pressupondo convicção e certeza subjetivas. G. Vlastos, por sua vez, criticou Gould, pela noção de fé subjetiva e por uma pretensa dogmaticidade da socrática evpisth,mh: no entanto, de acordo com Bravo, nos diálogos ele ignora a polissemia do termo em questão, polissemia que, ao contrário, o próprio Aristóteles reconhece, quando nota (Eth. Nic. VI, 13, 1145; VII, 2, 1146) que o autodomínio não pode faltar onde há ciência. Para o Sócrates da Apologia e do Alcibíades, o avreth, não é ciência contemplativa, teorética, mas é cuidado da alma, destinado a torná-la a melhor possível por natureza: tal cuidado é parte integrante do saber socrático da virtude, como percepção correta de si e das próprias possibilidades e como autocontrole. Não conhecimento do que, mas do como, a evpisth,mh socrática seria também consciência operativa de um quem, ou seja, de um sujeito que consegue obtê-la. No entanto, uma compreensão equivocada de tudo isso implicou uma total alteração das teses morais atribuídas a Platão9. 8. A ligação, aqui ressaltada por Berti, entre ética platônica e metafísica, posteriormente é retomada em parte por Gerson, Migliori, Rowe e Reale; também Luc Brisson, no que se refere ao sistema de recompensas e castigos e, portanto, à vida supramundana da alma, alude, relativamente às obrigações e às possibilidades éticas desta, a um contexto mais amplo que o do agir mundano. 9. O ensaio examina, portanto, a forma de saber implícita na prática da virtude: por essa característica ele demonstra convergências com as reflexões sobre a virtude realizadas por
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Introdução
Luc Brisson (“Os mitos na ética platônica”) enfatiza que na construção expressiva do discurso ético de Platão os mitos têm um valor inquestionável: de fato, eles se destinam a descrever o destino da alma depois da morte e o mecanismo de recompensas e punições que sustenta o conjunto dos comportamentos encorajados, ou rejeitados, na vida terrena, aquele dispositivo de sanção sem o qual um sistema de valores morais é desprovido de sentido. Nesse ponto Platão diverge claramente da visão homérica, que, mesmo admitindo a sobrevivência da alma à morte, lhe negava, porém, memória e pensamento, e portanto individualidade. A noção de uma alma imortal, capaz de conservar a memória e sujeita a um sistema de sanções tem origem religiosa, mas se afirma lentamente, pois implica a recusa da tradicional separação entre homem e divindade. Para Platão (Tim. 35 A-B, 41 D), essa alma é uma variável, particularizada, da alma cósmica, imortal por ser princípio de movimento. No ciclo das reencarnações, a alma perde a identidade que lhe cabia na encarnação precedente, mas conserva a memória, base de sua individualidade, de seu possível desenvolvimento ordenado entre presente, passado e futuro, e portanto da possibilidade de instituir o sistema de recompensas e castigos que lhe diz respeito. Platão é original na admissão de uma recompensa post mortem da própria alma, que é função da sua avreth, e depende de sua atividade racional, sem contradizer, porém, a ideia de que a felicidade é restituída no exercício da virtude. O próprio conceito de punição — fruto de julgamento divino — é reformulado como instrumento do cuidado da alma, não valendo mais, portanto, como simples vingança. Em síntese, só as almas dotadas de intelecto estão sujeitas à recompensa/punição que as faz subir ou descer na escala dos seres, aberta entre o limite superior dos deuses e demônios e o inferior das plantas. O homem deve assimilar-se ao divino contemplando as Formas e separando-se do corpo; é isso, porém, que assinala (sh/ ma = sinal) as diferenças entre homens e animais, uma vez que a própria atividade intelectual é limitada por aquilo que o corpo (sw/ma = tumba) lhe permite fazer. Com a metensomatose — fundamental, portanto, para a compreensão de sua ética — Platão aproxima cada vez mais esta última da física, justificando-a e conferindo-lhe sentido em um universo ordenado da melhor maneira possível pela providência divina, segundo uma visão bem diferente daquela da ética moderna10. Casertano e Centrone e com a introdução da contribuição de Notomi. Por outro lado, pela forma específica da racionalidade moral e de sua linguagem, ele pode vincular-se à linha dos ensaios de Napolitano e Scolnicov. 10. A ligação entre ética e física, ressaltada por Brisson, aproxima sua leitura de considerações em parte semelhantes de Ferrari, Gill, Migliori e Rowe. A atenção para os âmbitos
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Plato ethicus. a filosofia é vida
Giovanni Casertano (“As virtudes e a virtude: os nomes e o discurso”) faz uma comparação entre o Protágoras e as Leis acerca da relação entre a virtude e as virtudes, ou seja, entre um e muitos no que diz respeito a ideias éticas. No primeiro diálogo, o problema discutido, da possibilidade de ensinar a virtude, implica que sejam mencionadas cinco virtudes (349 B 1-6), já consideradas, porém, passíveis de ser reduzidas a uma (324 D-E e 325 A): essa característica é apresentada também em outros lugares (Teeteto, Timeu, Leis). Cada uma das virtudes pode ser também possuída separadamente: portanto, elas são partes distintas (329 D) da única virtude, mas têm — como as partes do rosto — estatutos não homologáveis (a justiça deve ser possuída por todos e a sabedoria é a mais importante). Se a participação do todo não implica a participação de todas as partes (os corajosos podem não ser sábios), então entre todo e partes há uma relação dialética: a qualificação de “virtuoso” cabe também a quem possui apenas algumas daquelas funções, ligadas a outras por relações particulares e semelhantes entre si “de certo modo” (331 D 2), não permutável pela identidade. Desse modo, o diálogo coloca o problema da predicação genética e específica, embora não esclareça se a unidade tratada é constituída por cinco partes, cada uma das quais tem um nome específico (coragem ou sabedoria) ou genérico (virtude) — solução posteriormente adotada também em outros lugares —, ou então se essa unidade é um único ente dotado de cinco nomes além do de “virtude”. O diálogo não esclarece nem sequer o que corresponde a cada nome, se um ente concreto ou uma ideia, de qualquer modo mediado pelo lo,goj, ao qual cabe estabelecer e descrever todas essas relações. O enfoque das Leis não é diferente: o nome manifesta a ambiguidade — e portanto a problematicidade — de sua capacidade de significar e sua substancial não autonomia. Assim, é preciso ascender do nome ao lo,goj, cuja complexidade semântica se completa e agudiza na união de vários nomes, união cujo mapa é delineado pela dialética. Por esse motivo, também esses diálogos indicariam — e em concordância, não obstante a distância temporal — o poder ambíguo da linguagem, destinada a servir de mediadora diante das realidades (coisas e ideias) a ela subjacentes, mas sempre exposta ao caráter aleatório da interpretação, que só a filosofia sabe explicar11. míticos, como lugar específico do discurso ético platônico, assimila essa abordagem formal linguística às de Napolitano e Scolnicov. 11. A abordagem formal-linguística do ensaio de Casertano está próxima, não apenas pelo tema, daquela de Centrone e em geral das contribuições de Napolitano e Scolnicov; no que diz respeito ao exame da unidade da virtude no Protágoras ela se aproxima das contribuições de Centrone e Migliori.
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Introdução
Bruno Centrone (“A virtude platônica como o[lon. Das Leis ao Protágoras”) propõe um itinerário particular para resolver o problema da unidade platônica da virtude: esta é pensada nos termos de um e[n&o[lon, ou seja, de uma totalidade orgânica, constituída por partes diferentes, embora não reduzida à sua soma ou justaposição. Esta noção é proposta no Teeteto (205 A) e no Parmênides (137 C): o o[lon é aquilo a que não falta nenhuma das partes de que é constituído, ou seja, é algo completo dotado precisamente de partes. A noção é encontrada nas Leis (XII, 965 D-E) como uma das alternativas para compreender aquilo que existe de idêntico em virtudes diferentes e que é considerado globalmente avreth,. Esta pode ser uma unidade (e[n), uma totalidade (o[lon, precisamente), ou então ambas as coisas. O ponto remete ao Protágoras (329 C-D): aqui as virtudes individuais — longe de ser apenas nomes de uma única coisa (tese nominalista ou da identidade estrita) — são ou partes diferentes de uma única virtude, que é possível possuir separadamente, ou então partes diferentes do mesmo todo, que não podem ser possuídas isoladamente, como nos célebres exemplos das partes do ouro e das partes do rosto. A tese da identidade estrita, atribuível talvez a membros da escola de Megara, não é defendida por Sócrates, mas tampouco a imagem das partes do ouro expressaria seu pensamento: de fato, as partes do ouro diferem apenas pelo tamanho, e uma parte não pode ter — como ocorre no caso de cada uma das virtudes — função diferente da de outra, nem ser ligada a ela por uma relação de coimplicação. A imagem do rosto — proposta inicialmente por Sócrates, adotada por Protágoras e depois refutada — parece mais adequada para expressar a ligação das virtudes em um e[n&o[lon. As virtudes isoladamente — cada uma das quais têm função própria e é diferente das outras — são partes da virtude unitária e todas identificadas pela referência ao todo: assim, cada parte do rosto, diferente de qualquer uma das outras por função, contém, porém, na própria definição o ser precisamente parte do rosto. As virtudes isoladas, portanto, se coimplicam, uma vez que, em condições normais, não se possui um nariz sem possuir as outras partes do rosto. A analogia com as partes do rosto resolve, portanto, mais problemas que os suscitados: a referência a uma unidade da virtude em termos de e[n&o[lon resolve também outras aparentes contradições da relação parte-todo referente à virtude, assinalando o contexto dialético no qual — sem absolutizar suas articulações internas — Platão discute tais problemas12. 12. Cf. a nota precedente para as convergências entre as contribuições de Casertano e Centrone: o primeiro, porém, busca e assinala uma origem mais geral da unidade das vir-
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Michael Erler (“Sócrates na caverna.” As argumentações como terapia das paixões no Górgias e no Fédon) analisa a relação que Platão estabelece, no âmbito moral, entre sentimentos e razão. Várias passagens, particularmente do Górgias e do Fédon, mostram que para os interlocutores de Sócrates é difícil deixar-se guiar pelos resultados de raciocínios, ainda que inteiramente convincentes, quando estes conflitam com seus modos de sentir consolidados: é Sócrates, no caso, quem se propõe como modelo da disposição — não apenas intelectual — a seguir os argumentos racionais, a aceitá-los e a fazer deles norteadores da própria conduta. Se a “vergonha” — ou seja, o medo de parecer em conflito com o sentimento comum — impede Górgias e Polo de aceitar, no Górgias, os argumentos de Sócrates, Cálicles, ao contrário, parece disposto a aceitar uma tese socrática oposta, aquela de que é pior cometer injustiça do que sofrê-la. No entanto, uma espécie de outro eu (um Cálicles “dentro” de Cálicles) também o induz a não contrariar as opiniões difundidas, totalmente opostas, segundo as quais seria pior, ao contrário, sofrer a injustiça. Assim, o diálogo propõe, por imagens, o que é elaborado a seguir, ou seja, que pode ocorrer uma oposição interna à argumentação racional, mesmo que esta seja convincente, e tal oposição pode ser atribuída a uma “instância” psíquica diferente da razão. O tema é desenvolvido no Fédon em relação a uma paixão intensa e fun damental como o medo da morte: ele impede Críton de levar em conta os argumentos socráticos sobre a imortalidade da alma e faz que continue a se desesperar com a separação do mestre e a se preocupar com o sepultamento de seu corpo; isso impele Cebes e Símias, como “crianças” (Phaed. 77 D-E), a temer, com a morte, uma destruição total. A conhecida imagem da criança dentro de nós, assustada com a morte, que deve “exorcizar” tudo o que teme, está ligada a práticas educativas comuns no mundo grego, onde o medo de monstros fantásticos destinava-se a incutir nas crianças o comportamento correto. Sócrates subverte essa prática pedagógica, uma vez que o “exorcismo” que ele realiza nessa criança assustada não visa a incutir-lhe medo, mas a libertá-la dele, por meio de um argumento racional dotado de valor terapêutico. Apesar dos problemas suscitados pela relação ainda não inteiramente definida, no Fédon, entre alma e corpo, entre argumentos racionais e origens do sentimento, começa a se delinear nele a visão da filosofia como cuidado da alma e de suas paixões: essa praeparatio contextual do coração para a aceitação dos argumentos tudes no contexto da linguagem, ao passo que o segundo indica (no conceito de o[lon) uma modalidade mais específica de unificação e articulação. Casertano e Centrone, além disso, examinam o Protágoras, assim como Migliori.
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racionais (desenvolvida posteriormente na República, nas Leis e no Timeu) é aquela que se consolidará, na era republicana e imperial, até o final da antiguidade13. Franco Ferrari (“Ordem do mundo e ordem da alma. O Timeu e a dessocratização da ética socrática”) recorda a classificação antiga dos diálogos, que atribui ao Timeu um caráter “físico” e não “ético”: mas os teoremas éticos do diálogo não escaparam à atenção dos estudiosos. Eles remontam à ética socrática, embora sejam inseridos aqui em um contexto até oposto: sua retomada, portanto, parece possível graças a uma mudança radical do quadro teórico, uma espécie de “dessocratização”. No Timeu, a alma tem uma parte superior e racional considerada imortal e divina, portanto similar — como no Fédon — ao mundo das ideias: assimilada a um daimon, ela é o verdadeiro eu individual e, sujeita ao ciclo das reencarnações, volta ao próprio lugar originário somente depois de uma existência justa e sensata. O Timeu lhe atribui as três partes atribuídas a ela na República e no Fedro (razão, impulso volitivo, desejo físico) e indica sua colocação em regiões específicas do corpo (cabeça, tórax, abdome), representando em termos físico-espaciais as alianças — entre razão e impulso volitivo — que permitem o uso correto das paixões. É igualmente socrático o princípio de que o mal derivaria não da escolha e portanto da vontade, mas de uma má condição somática. O te,loj da vida humana, a euvdaimoni,a, seria fruto da capacidade de assimilar os movimentos da alma aos do céu, capacidade que evoca a assimilação, “o mais possível”, a Deus do Teeteto (176 A-D), e a obrigação dirigida aos verdadeiros filósofos, na República (500 B-D), de contemplar objetos “ordenados e sempre idênticos”. O quadro cosmológico e epistemológico é, contudo, diferente: a contemplação das harmonias e dos movimentos do universo — finalidade para a qual Deus nos deu a visão — deve fornecer-nos, de fato, um modelo para ordenar os movimentos de nossa própria alma; estes, semelhantes às órbitas celestes e, portanto, aos movimentos da alma cósmica (ou seja, ao próprio mundo das ideias em seu aspecto dinâmico e ativo), estão sujeitos, contudo, à instabilidade e à desordem. Esse é o núcleo da ética proposta no Timeu. O movimento circular é assimilado à atividade intelectual (Leg. X, 893 B-894 C), que caracteriza a alma do mundo: a alma individual também é capaz de atividade intelectual, caso se subtraia aos movimentos retilíneos típicos das sensações, impondo a estas o domínio do intelecto. A racionalidade presente nas próprias origens do cosmo, expressando-se 13. O ensaio focaliza um dos temas de estudo ainda mais necessitados de pesquisa na antropologia e na ética platônicas, o da relação razão-paixão, analisado em parte no ensaio de Migliori, nos parágrafos finais do ensaio de Napolitano, no que se refere à eu;noia, bem como na contribuição de Vegetti, no que se refere ao instinto pleonéctico.
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nos movimentos circulares e ordenados dos astros, motivaria, portanto, com força a valorização da própria racionalidade por parte da alma individual, como te,loj fundamental da sua euvdaimoni,a: a alma-daimon individual, de resto, não é mais do que tudo diferente e alheia ao mundo e necessitada, portanto, de “fugir” dele, mas de reencontrar as próprias raízes autênticas, as mesmas do próprio mundo14. De acordo com Silvia Gastaldi (“O filósofo e o político: gêneros de vida rivais ou conciliáveis?”), o projeto político da República é inovador sobretudo na “terceira onda”, que prevê a conjugação de vida política e vida filosófica: no entanto, estes são dois modelos tradicionalmente opostos, porque na po,lij da época a política exclui e restringe o papel do verdadeiro filósofo, que, por sua vez, foge da vida política. Assim, deve-se antes de tudo estabelecer quem ele é, operação que Platão realiza nos livros V e VI da República, atribuindo ao filósofo prerrogativas de ordem cognoscitiva e comportamental. Na imagem corrente, ele parece contudo uma pessoa extravagante, quando não alguém ruim, e a filosofi,a é apenas um elemento do currículo ministrado aos jovens, modalidade praticada na própria escola de Isócrates. Sócrates corrobora essa opinio communis sobre o filósofo com a imagem da cidade como navio, do povo como comandante de grande compleição e força física, mas surdo e de vista curta (Resp. V, 488 A ss.), rodeado de muitos aspirantes ao leme da embarcação: só o verdadeiro filósofo tem — mas não lhe é reconhecida — a competência prático-teórica para dirigir o navio. A natureza filosófica é rara e pode ser corrompida por uma educação de má qualidade, como mostram o caso de Alcibíades e a animosidade ruidosa difundida nos órgãos públicos da cidade: os filósofos “espontâneos”, por conseguinte, só podem ser pessoas isoladas e rejeitar qualquer compromisso político. Já no Górgias testemunha-se a oposição entre o filósofo e a cidade, com as duas figuras de Sócrates, amante da filosofia, e de Cálicles, amante da política: se para este último o filósofo é uma eterna criança, um irrealista incapaz de defender a si próprio, para Sócrates o político é escravo de todos os que deve satisfazer para continuar no poder. Aristipo e Antístenes, por posições e motivos diferentes, compartilham a abstenção socrática da política, reafirmada também no Teeteto, onde o filósofo usa o próprio tempo, livre de ônus políticos e como no Fédon, para ir em busca da verdade, ao passo que o político está sempre empenhado em servir o dh/moj. A República pretende resolver o conflito entre os dois modelos de vida: o filósofo “espontâneo” pode fazer pouco e sucumbe se desprovido de companheiros, a 14. O ensaio, como ressaltado acima (nota 10) para a ligação ética-física, tem um enfoque semelhante ao de Brisson, Gill e Rowe.
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cuja formação visava, talvez, a instituição da Academia. Ao filósofo, porém — para o qual a contemplação do mundo ideal constituiria uma vocação exclusiva —, o governo deve ser imposto como um dever, como coroação e em troca da educação ministrada a ele pelo Estado. Também a ciência do “homem régio” do Político é ao mesmo tempo cognoscitiva e diretiva, capaz de transferir para o mundo humano e para a comunidade política a ordem divina do cosmos. Assim, nos diálogos, a relação entre filósofo e político assume configurações diferentes: Aristóteles observará (em Pol. VII, 2) o verossímil desaparecimento do ideal de uma conjunção entre eles, evocando os críticos do bi,oj politiko,j (como o Sócrates do Górgias, Aristipo e Antístenes) e a pureza do bi,oj qewrhtiko,j do Teeteto platônico, surgido no último livro de sua própria Ética a Nicômaco15. Lloyd P. Gerson (“A interpretação neoplatônica da ética platônica”) faz uma retomada crítica das leituras anglo-saxãs correntes da ética de Platão, que se concentram exclusivamente em seu núcleo socrático e em questões de ordem lógico-argumentativa. Contudo, elas não se aventuram nas bases metafísicas e epistemológicas que fundamentam tal “material” socrático nos diálogos: distante dele — e portanto interessante — é o enfoque que os neoplatônicos fazem de tais temas. Eles tomam como base a passagem do Teeteto (176 C) em que os objetivos da vida humana são a fuga do mundo e a assimilação a Deus. A passagem, porém, suscita dois problemas: a assimilação a Deus permitiria adquirir contextualmente justiça e santidade e, portanto, tornar-se virtuosos no mínimo em relação ao que é válido em uma ética mundana; além disso, parece configurar o Deus a que é preciso se tornar semelhante como o primeiro a ser dotado de tais virtudes. No Timeu (90 B-D) recomenda-se uma assimilação dos movimentos da própria mente aos movimentos celestes dos planetas, assimilação que igualmente permite que a alma “se torne imortal”, e já no Fédon (65 C-67 C) apontava-se a filosofia como separação entre a alma e o corpo e preparação para a morte, uma autotransformação radical, não apenas uma reforma do comportamento. A aquisição da imortalidade, a assimilação a Deus — Plotino esclarece no tratado Sobre as virtudes (Enn. I, 2) — consistem, portanto, em identificar-se com a parte racional do eu e em considerar bem apenas aquilo que esta indique, recusando-se a desejar a direção da ação: portanto, nem Deus é virtuoso da forma como o são os homens, nem a assimilação deles a Deus pode reduzir-se à aquisição de virtudes “mundanas”. Na República (518 E), a virtude da inteligência, 15. Totalmente “clássica” em seu estilo, a referência que ele faz ao contexto político e às obrigações do filósofo representa uma modalidade profícua de abordagem da ética platônica, evocada parcialmente nas contribuições de Santa Cruz e Vegetti.
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própria do filósofo, é oposta às virtudes populares e comuns do bom cidadão: elas certamente contribuem para a aquisição da virtude superior, a purificação, mas esta sem dúvida não se reduz às primeiras. Os motivos e finalidades do autêntico virtuoso, que se tornou semelhante a Deus, são totalmente diferentes daqueles do homem comum, mesmo que este controle os próprios desejos: como esclarece Porfírio (nas Sententiae ad intelligibilia ducentes), ele possui todas as virtudes, organizadas em vários níveis e de acordo com a continuidade, as éticas, as catárticas — que significam precisamente purificação — e as intelectuais, em que a purificação é prelúdio da atividade intelectual, a única que nos torna semelhantes a Deus e não se reduz apenas à moderação das paixões. A leitura neoplatônica da ética de Platão não apenas se opõe às leituras atuais, mas as supera pelo alcance, justamente pela atenção que, diferentemente daquelas, dedica à metafísica e à epistemologia dos diálogos16. Para Christopher Gill (“Platão, a ética e a matemática”), a relação entre ética platônica e matemática pode ser interpretada de acordo com duas versões, uma minimalista — em que as ideias matemáticas (um-muitos, proporção, relação) seriam um instrumento conceitual para compreender as ideias éticas, não obstante permanecessem distintas delas — e uma maximalista — em que, ao contrário, ideias matemáticas e éticas seriam uma só coisa. Ele discute aqui uma tese maximalista, mas não na versão difundida entre os esoteristas, que assimila Bem e Uno em Platão, e sim na versão proposta recentemente por M. Burnyeat. De acordo com essa tese, a razão por que Platão teria obrigado os futuros filósofos-reis a se dedicar às ciências matemáticas é que as estruturas estudadas de forma abstrata por tais disciplinas (sobretudo pela música) são as mesmas que eles devem depois reproduzir no Estado, imitando a proporção matemática de acordo com a qual o Demiurgo “criou” o mundo e o assimilou à própria perfeição. Assim, em Platão, física, ética e metafísica estariam ligadas precisamente pela matemática. Essa leitura, contudo, está sujeita a alguns riscos: o primeiro é que as ideias matemáticas se integram pouco às éticas, o bastante para ser aplicadas indiferentemente a toda teoria ética; de fato, todas as teorias éticas arquitetônicas (do utilitarismo à deontologia) poderiam fundamentar-se na tese de que o valor moral supremo é uno, e até mesmo as teorias imoralistas (como as que admitem o genocídio ou a tirania) poderiam fazê-lo. Ou então as ideias matemáticas e éticas poderiam ser totalmente integradas (de fato, a ideia de harmonia teria origem no 16. Ao apontar os limites da corrente leitura anglo-saxã da ética platônica, o autor reflete a posição de Brisson; pela atenção geral ao vínculo em Platão entre ética e metafísica, aproximase — como já assinalado acima (nota 8) — da posição de Berti, Migliori e Reale.
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contexto da República), a ponto, porém, de tornar difícil reconhecer as primeiras como ideias de tipo matemático. Mas a ideia de unidade tem um papel substancial na distinção entre uma teoria ética e outra: a alma justa e o Estado justo representam a unidade como nenhuma das almas e cidades degeneradas de Resp. VIII e IX pode representar; aliás, a harmonização da alma no processo educativo deve conduzir ao Bem, condição não satisfeita por qualquer conteúdo moral. Mais uma vez, porém, deve-se especificar a competência moral que reserva um papel específico à matemática, explicando o motivo por que tal competência explica a realidade de modo objetivo e por que a própria realidade se fundamenta em uma ideia matemática, como a de unidade, por exemplo. Esse é o tipo de interação que se estabelece entre lógica, física e ética no âmbito estoico (que, no entanto, não valoriza um conhecimento matemático) e que o próprio Platão de algum modo antecipa na passagem da República ao Timeu. O autor, por fim, corrobora a hipótese, já mencionada, de que esse vínculo entre matemática e ética também atenta para as opiniões éticas alimentadas pelos filósofos-reis: a obrigação dada a eles de manter a unidade, a ordem e a harmonia no Estado implica, de fato, interação e harmonização entre as três classes e exclui a sujeição de uma por parte da outra. No quadro da harmonia cósmica que só eles sabem reconhecer, os filósofos-reis poderiam até admitir que têm obrigações morais para com qualquer outro ser humano17. Maurizio Migliori (“O belo e o bom da virtude”) parte de duas “estranhezas” no texto platônico: a valorização, como tolerável pelo homem, da vida melhorada por um cálculo correto dos prazeres (Leg. V, 733 A) — valorização contrária ao tradicional anti-hedonismo atribuído a Platão — e a avaliação, como vida mais prazerosa, daquela que une em harmonia todas as virtudes do corpo e da alma. Para explicá-las, parte-se de uma ampla análise da relação entre as virtudes: a complexidade que deve ser pressuposta em tal relação não apenas leva em conta a visão dinâmica da virtude proposta na República (I, 353 B) como interpreta tal dinâmica em relação ao vínculo unidade-multiplicidade que Platão julga estrutural e criador de todos os níveis do real. Por isso a dialética e o método diairético são importantes, como procedimentos capazes de acompanhar a trama de relações entre “partes” mantidas juntas não como simples peças misturadas a esmo em função 17. A abordagem geral (ou seja, a atenção ao peso ético das ideias matemáticas) aproximaria a análise de Gill daquela de Berti (temas da unidade e do número nas doutrinas não escritas): mas o próprio autor rejeita de antemão o paralelo com os a;grafa do,gmata e adota uma outra perspectiva. Sua análise, pela ligação entre ética e física, está mais próxima, enfim, da de Ferrari, Migliori e Rowe.
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de um inteiro. A dialética descreve estruturas unificadas por relações complexas e diversificadas, cujos critérios fundamentais estão indicados no Sofista (253 B-C) e configuram toda realidade como unitária e como múltipla ao mesmo tempo. A unidade das virtudes é debatida no Protágoras: no entanto, o diálogo não descreve essa unidade nem nos termos da relação entre pares e indiferentes que a assimila à unidade de pedaços de ouro, nem segundo a referência a uma função própria de cada “parte” dentro de um todo, que assimilaria essa unidade mais àquela existente entre as partes do rosto. Sabedoria, temperança, coragem, justiça, santidade estão ligadas por uma trama complexa, que de algum modo as considera semelhantes. A referência problemática a uma similaridade no ser ciência exclui uma identificação entre estas virtudes e o saber (todas as virtudes são ciência, mas nem toda ciência é virtude) e suscita o problema de identificar a virtude superior que, como forma de saber, acompanha todas elas. Esta, por sua vez, está ligada à capacidade de avaliar corretamente os prazeres e sofrimentos implícitos em toda ação e à arte da medida necessária para realizar essa avaliação. A arte da medida, que permite fazer a mediação entre virtudes e inclinações diferentes e opostas e que no Protágoras é indicada como critério para a própria salvação da vida (357 A-B), remete ainda aos fundamentos do real. É preciso apreender a dimensão ontológico-axiológica de uma das artes da medida descritas no Político (283 D), a que compara os termos medidos não de modo mecanicamente quantitativo um em relação ao outro, mas ambos em relação ao conveniente e ao oportuno e em relação ao próprio modo da geração natural de toda coisa. É o próprio Bem, portanto, que se põe como medida por excelência, como Aristóteles testemunha em uma passagem de Siriano, e como Platão parece efetivamente admitir no Filebo (61 A-65 A). O próprio cosmo, caracterizado pela desordem, exige uma constante referência à medida, de acordo com as bem conhecidas indicações do Político e do Timeu, reafirmadas, no plano ontológico, no Parmênides (158 D). Um único princípio de ordem manifesta-se, portanto, em todas as realidades e na própria vida moral. Por esse motivo, a insistência de Platão no autodomínio não reside em uma rejeição do mundo, nem configura a tradicional posição ascética: a virtude não é senão a realização da medida no nível do eu, em um mundo em que, não obstante a presença da desordem, são dados os parâmetros para a realização da ordem e da própria medida18. 18. A contribuição de Migliori cruza com as de Casertano e Centrone no que diz respeito à análise do Protágoras (com resultados interpretativos diferentes); no que se refere
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Linda M. Napolitano Valditara (“Uma ética para a dialética platônica?”) examina pressupostos e recorrências da dialética no âmbito moral, procedimento essencial da pesquisa filosófica de Platão, estudado agora em várias ocasiões e esclarecido em seus traços metodológicos. No Timeu (29 B-C) aponta-se um parentesco (sugge,neia) entre discursos e coisas indicadas por eles, pelo qual pode ser atribuída aos primeiros uma capacidade e uma irrefutabilidade proporcionais à estabilidade no ser das segundas. O Fédon (115 E) também estabelece uma relação, mas entre os discursos e quem os pronuncia: a incorreção dos primeiros teria efeitos danosos sobre a alma do falante e, portanto, sobre sua conduta. Essa relação parece poder ser não apenas, como aqui, unidirecional (do discurso à alma de quem o faz), mas biunívoca (o próprio estado da alma e da conduta condiciona o dos discursos feitos), caso se considere a visão da comunicação já difundida na cultura pré-platônica. Da poesia arcaica aos sofistas, da tragédia aos procedimentos retóricos e argumentativos da linguagem política, os gregos efetivamente admitem uma implicação moral originária no próprio uso da palavra, acerca do qual posteriormente Aristóteles reflete na Política (1253 a 9-18): não se vê por que tal aspecto não deva estar presente também em Platão. Entre os dotes que ele atribui ao dialético na República (487 A), figura o ser sociável, urbano, cortês (h[meroj). Isso se especifica em muitos outros lugares (identificados por uma pesquisa lexical) como prao,tej( fili,a( eu;noia ou euvme,neia. Esse traço, longe de representar um requisito meramente exterior ligado a uma etiqueta formal, tem, ao contrário, uma caracterização metodologicamente precisa, identificada a partir de trechos do Protágoras (337 A-C) e do Mênon (75 D). O traço benévolo, não agressivo na discussão — fruto da consciência socrática de não saber e, portanto, da falta de um desejo preconceitual de prevalecer no debate — é fundamental para o sucesso deste: isso vale tanto, pedagogicamente, para todos os que assistem a ele como espectadores desejosos de aprender quanto para os dialogantes, em relação a suas possibilidades heurísticas. Um célebre trecho da Carta sétima (344 B), concentrando-se na ausência de inveja (fqo,noj) por parte do dialético e na necessidade que ele tem, para conhecer a verdade, de usar “confutações benévolas”, parece esclarecê-lo sem possibilidades de dúvidas. A própria “debilidade” ou “indistinção” da eu;noia, virtude necessária ao dialético, implica, em cada passagem da discussão, ser dotada de sentido e se traduz em cada caso em à valorização das paixões (prazer e dor) no âmbito moral, com as de Erler e Napolitano; quanto à atenção à arte da medida, com a de Santa Cruz. A fundamentação da ética na física é semelhante à de Brisson e Ferrari, ao passo que a referência à metafísica a aproxima de Berti, Gerson e Reale.
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um movimento dialeticamente eficaz. A benevolência impele a investigar e exclui o desejo de vitória na discussão, faz interrogar e responder corretamente, leva a esclarecer o sentido dos termos usados, faz produzir e aceitar hipóteses de resposta, incita a um uso correto e a uma aceitação da confutação, implica o acordo necessário em cada passo da própria discussão e ao final dela. Assim, não existe discussão dialética cognoscitivamente proveitosa sem o traço moral da benevolência. Tudo isso mostra quanto é complexa, não redutível a uma nítida oposição ou a uma hierarquia rígida, a relação que Platão estabelece entre aspectos intelectuais e emocionais no comportamento humano. Além disso, essa característica parece atual, diante da tarefa que hoje costuma ser atribuída à ética, como simples busca de uma metodologia para a resolução de conflitos alternativa ao uso da força19. Noburu Notomi (“A investigação ética no seu contexto. A crítica a Crítias no Cármides de Platão”) retoma a discussão, não sistemática, das virtudes nos diálogos “socráticos”. É possível que a data dramática e a ambientação, a situação e os personagens sejam funcionais à discussão dos temas morais abordados em cada caso e que cada diálogo seja, portanto, subordinado à ética. Mas isso também pode criar um problema não irrelevante em ética: até a descrição vívida que Platão fornece dos interlocutores de Sócrates e de suas opiniões (às vezes excêntricas e radicais), até a cuidadosa origem histórica de personagens desafortunados e violentos, como Nícias, Polemarco, Crítias, parecem efetivamente comprometer a obtenção de conclusões universais no âmbito moral. A menos que, invertendo o enfoque tradicional desse status particular das obras de Platão, se admita que ele deliberadamente enfrenta os problemas morais por meio da discussão da vida e das opiniões de personagens históricos: o contexto do diálogo não é a simples roupagem externa, mas a modalidade própria que seu autor escolhe para falar de ética. O autor assinala e analisa um exemplo importante dessa práxis — que configura a ética de Platão mais como histórica que como sistemática —, ou seja, a discussão da sabedoria no Cármides. As definições de swfrosu,nh fornecidas por Cármides e por Crítias não são típicas de um diálogo “socrático” e não reproduzem o sentido corrente no século V de tal virtude como autocontrole, sentido que se evidencia, ao contrário, no Górgias e no Protágoras. Esta “estranheza” deve ser lida não em referência, como até agora se fez, à evolução filosófica de Platão, mas à sua vontade de examinar a figura histórica — aristocrática e inte19. O ensaio, pela atenção à “linguagem” da ética platônica, está próximo das análises de Casertano, Centrone e Scolnicov; pela atenção à importância ética do dado emocional (no específico, da eu;noia), aproxima-se da linha dos ensaios de Erler, Migliori e Vegetti (cf. acima notas 13 e 18; abaixo, nota 26).
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lectualista — de Crítias e o “erro” contido em sua noção de swfrosu,nh, causa de seu insucesso político. Crítias considera a swfrosu,nh um conhecimento especial, reservado aos poucos aristocratas capazes, em virtude dela, de governar a cidade. Mas ele não sabe explicar esse pretenso “conhecimento de si e de outros conhecimentos” e, portanto, na verdade se mostra desprovido dele. Com isso, Platão pretende também dissociar Crítias de Sócrates, seu pretenso mestre e “corruptor”, mostrando que todas as definições de sabedoria fornecidas pelo primeiro (“fazer as próprias coisas”, “conhecer a si mesmo”, “conhecimento de ignorância”) são, apesar da aparência de fidelidade, distorções do pensamento moral do segundo, que é bem diferente20. Para Giovanni Reale (“Fundamentos ‘henológicos’ da ética de Platão”), o fundamento “henológico”, eixo da leitura de Platão para os “esoteristas”, é básico para a compreensão não apenas da metafísica platônica, mas também da política e da ética. Com base precisamente nas “doutrinas não escritas” e em uma leitura particular da passagem da República sobre a colocação do Uno “além do ser”, ele considera que o pensamento de Platão gira em torno da relação Uno-muitos: estes seriam os conceitos primeiros e supremos, ao passo que o Ser seria um conceito não definitivo, derivado daqueles primeiros. A compreensão desse paradigma “henológico” fundamental teria sido comprometida, porém, pela substituição deste por um novo paradigma “ontológico”: uma passagem da Metafísica aristotélica (IV, 2, 1003, b 21-32) assinalaria essa substituição por meio da redução e da identificação do Uno ao Ser; esta tese teria sido adotada pela maioria dos pensadores e intérpretes posteriores. Essa substituição e a situação metafísica diferente do platonismo originário são apontadas, ao contrário, por Plotino (Enn. VI, 9, 2, 16-29), que critica a identificação aristotélica de Uno e Ser, reiterando a diversidade e a colocação e a hierarquia ontológica diferentes dos dois conceitos. No Filebo (15 A-17 A) Platão reapresentaria a mesma tese, quando ele nega que o ser seja um conceito originário, por ser sempre fruto da mescla entre limite (ligado ao uno) e ilimite (ligado aos muitos). Mais adiante (64 A-65 A) o diálogo reafirmaria seu vínculo com as “doutrinas não escritas”, em que o Uno é considerado medida suprema de todas as coisas: falando da “coisa de maior valor”, o Bem, o Filebo afirma que ele deve ser apreendido “como um uno” e como “causa da mistura” que cria o ser. Esses critérios fundamentariam também a política e a ética platônicas: algumas passagens da República (IV, 422 E-423 A; V, 462 A-B) apontam a negatividade da 20. A atenção às virtudes específicas aproxima o ensaio de Notomi dos de Casertano e Centrone; a atenção ao contexto específico e até histórico do diálogo coloca-o lado a lado com algumas considerações de Tulli.
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cidade que em seu próprio interior seria “muitas” e a exigência, como seu maior bem, de torná-la una. A República (IV, 443 C-444 A) ainda indica a própria necessidade como essencial para o homem (“tornar um de muitos”), em particular a metáfora psíquica do livro IX (588 B-590 A): também a alma deve unificar as três diferentes instâncias que a constituem: a racional (o homem “interior”), a irascível (o leão) e a concupiscível (o monstro de muitas cabeças). O “fazer-se um de muitos” é modelo da harmonia da alma e da saúde do corpo; a própria ética da assimilação ao divino se esclarece como prescrição de uma unificação harmonizadora, se Deus é medida suprema de todas as coisas (Leg. IV, 716 C-D) e se tem, ele em primeiro lugar, o poder de misturar muitas coisas em uma unidade (Tim. 68 D)21. Christopher Rowe (“‘Todos os nossos desejos são desejos do bem.’ Reflexões em torno de alguns diálogos platônicos cruciais”) propõe uma sutil mediação entre as abordagens tradicionais do corpus dos diálogos, conduzidos até agora respectivamente em uma perspectiva “evolucionista” (retomada também recentemente por C. H. Kahn) ou então “unitarista” (supondo, com médio e neoplatônicos, que nos diálogos se proponha um sistema unitário de ideias). De fato, um desenvolvimento, ou melhor, uma mudança deve ser observada nos diálogos para a articulação da alma do livro IV da República: pode-se igualmente identificar nos diálogos uma constante típica e “unificadora”, ou seja, a consideração de que todos os desejos são desejos do bem, e, antes disso, de que o universo, incluindo a humanidade, está unido pelo próprio bem. Essa característica — que diferencia Platão de Aristóteles, ligando estreitamente em seu pensamento as esferas da ética, da física e da metafísica — é proposta de forma temática e articulada em “grandes” diálogos, como República, Filebo e Timeu, mas está presente como pano de fundo também em diálogos “menores”, como Górgias, Eutidemo, Banquete e, sobretudo, Lísias. A tese de que o bem seja o princípio organizador não apenas no campo ético, mas também no âmbito cósmico é explicitada no Fédon (99 C), onde se diz que é precisamente o bem que mantém unido o conjunto da existência: a tese é mencionada, contudo, também em alguns dos diálogos “menores” aqui citados. Na República, além disso, o Bem que se encontra “além do ser por dignidade e potência” deve ser sem ambiguidade “aquilo em vista do que fazemos todas as coisas” (Resp. VI, 509 B; cf. 505 D-E). 21. O ensaio faz que a ética platônica dependa totalmente da metafísica, que constituiria seu modelo e fundamento: abordagem análoga, mas menos forte, em Berti e Gerson (cf. acima nota 8). É interessante, pelo enfoque do tema do Uno, da medida e da proporção, uma comparação com os ensaios de Gill e Migliori. Uma analogia com Gerson encontra-se também na utilidade de uma referência esclarecedora a leituras neoplatônicas de conceitos platônicos.
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Os mesmos princípios, portanto, atuam no âmbito cósmico e no âmbito ético — cada qual com competências específicas em qualquer âmbito —, e é a ordenada harmonia presente no universo que justifica e recomenda a aquisição de uma harmonia homóloga em nossas almas. No entanto, a ordem não é suficiente para dotar a alma de excelência moral, porque ela poderia perseguir de forma ordenada e harmônica também escolhas equivocadas. Por outro lado, a alma articulada em partes (racional, corajosa, apetitiva) funcionará de modo ordenado e correto se — tendo em vista sua natureza fundamentalmente racional — souber fazer escolhas racionais. São precisamente os diálogos “menores” que realizam uma análise sobre o que é racional, mais que do que é irracional, escolher, procurando definir alguns critérios de escolha entre bens reais e aparentes. Essa análise corrobora e completa com detalhes sutis aquela conduta no contexto cósmico mais amplo: é justamente essa complementaridade entre diálogos “maiores” e “menores” que permite uma abordagem que se poderia denominar “sinótico-unitária” de tais diálogos22. María Isabel Santa Cruz (“Sobre o conceito platônico de igualdade”) reflete sobre a igualdade em Platão, não em perspectiva gnosiológica ou metafísica, mas no âmbito moral e político. O ponto de partida é a distinção entre dois tipos de igualdade proposta nas Leis (757 A-758 A): um primeiro tipo baseia-se em simples invariantes quantitativas (medida, peso e número) para dividir honras e cargos que depois são atribuídos por sorteio; um segundo tipo de igualdade — considerada a “mais verdadeira e ótima” — é aquela que destina mais a quem vale mais e menos a quem vale menos, dividindo honras e cargos em função da natureza (qualitativa mente determinada) de cada destinatário. Os dois tipos de igualdade representam a aplicação política dos tipos de proporção reconhecidos por Arquitas (DK 47 B 2), e a segunda antecipa a “igualdade geométrica” de que falará Aristóteles, em termos semelhantes, na Política e na Ética a Nicômaco. Isso implica uma crítica radical à democracia, que, garantindo direitos iguais a todos, não respeitaria o mérito ou o valor de cada um e, portanto, violaria a igualdade natural. Um ponto vinculado a isso, não relacionado com a igualdade, mas com o conceito de me,trion (igualmente considerado fundamental para a vida da cidade em seus vários aspectos) figura no Político (283 D-E). Aqui se distinguem dois tipos de arte da medida: uma se limita a medir os termos em jogo um em relação ao outro e de acordo com critérios quantitativos, ao passo que a segunda 22. Nas conclusões a que chega (vínculo entre física e ética), o ensaio parece próximo de considerações de Ferrari e Gill; pelo mencionado vínculo entre ética e metafísica, aproximase das reflexões de Berti, Brisson, Migliori e Reale.
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os avalia em relação ao “justo meio”, ou seja, em cada caso, qualitativamente e em relação ao que é conveniente e oportuno. Esta segunda metrética, válida para todas as realidades geradas e sobretudo para as produzidas pelo homem, é essencial para toda arte e, portanto, também para a política. Uma análise, não preconceitualmente orientada para problemáticas posteriores, da “primeira onda” do livro V da República mostra, por fim, como a proposta revolucionária de Platão sobre uma educação paritária de homens e mulheres para um emprego nas mesmas tarefas representa uma aplicação ante litteram do conceito de igualdade proporcional. Esse conceito, já evidente nos próprios fundamentos da cidade platônica (onde cada um faz apenas aquilo a que por natureza melhor se adapta), prevê a “paridade” de homens e mulheres não em vista da proteção dos direitos de cada um deles, mas para a otimização das atividades e dos objetivos da comunidade política em seu todo23. O ponto de partida de Samuel Scolnicov (“A ética platônica da ironia”) também é a aparente impossibilidade de extrair indicações morais universais de raciocínios conduzidos dentro de confrontos dialógicos contingentes. Platão e o seu Sócrates se serviriam da ironia para fugir dos limites impostos pela natureza do diálogo, sem renunciar ao seu caráter pessoal, mas insistindo nele. A ironia leva à incomunicabilidade: Sócrates e seus interlocutores atribuem significados diferentes e opostos aos termos (morais) que vão empregando. Sócrates, em especial, usa o significado inédito por ele conferido àqueles termos para fazer que seus interlocutores caiam em contradição, mostrando que são incapazes de explicar o significado que dão àqueles termos (demonstram-no exemplos do Lísias, do Eutífron e do Críton). A ironia mostra que as coisas não são como pretende quem responde a Sócrates, embora não mostre, depois, como as coisas são ou deveriam ser. O nível do discurso dialógico e da ironia nele possível não é, de fato, o da oposição lógica abstrata entre um único verdadeiro e um único falso. Ao contrário, a verdade no diálogo depende totalmente do contexto e, portanto, da maneira como ela é sustentada por quem responde. A ironia apenas se aproveita dessa característica para desmascarar a consequente ambiguidade entre aquilo que pretende quem fala e aquilo que compreende quem escuta. Com a ironia Sócrates tenta induzir o interlocutor a superar a dependência intrínseca do contexto de todo discurso, a entrar em si, para procurar a forma mais 23. A atenção a dados político-sociais aproxima a contribuição de Santa Cruz da análise de Gastaldi e Vegetti (cf. o que já se observou acima na nota 15). As considerações sobre a igualdade geométrica e sobre o me,trion assinalam pontos de convergência com problemáticas analisadas por Gill, Migliori e Reale.
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verdadeira da própria alma, que não deve ser entendida como forma da própria subjetividade existencial, mas, à maneira grega, como retorno ao lo,goj comum. Mesmo nos primeiros diálogos de Sócrates está presente o apelo de Sócrates à necessidade de buscar a verdade “por si sós”, respondendo em conformidade com as próprias convicções mais profundas (Lach. 178 A-B; 186 E; 196 C; 198 B; 198 C; 200 B; Crit. 49 C-D; Hipp. min. 365 C-D; Men. 71 D). Ele visa a fazer que seus interlocutores se tornem conscientes da necessidade fundamental (moral e normativa) de explicar as próprias opiniões e os próprios comportamentos. Essa consciência não pode ser transmitida como um conteúdo qualquer, nem se possui como uma opinião ao lado das outras; não pode fundamentar-se em uma teoria metafísica, nem reduzir-se ao treinamento para controlar as próprias emoções. A normatividade ética da razão não pode ser experimentada, e para obtê-la é preciso sair do âmbito da linguagem, remontando a suas condições pragmáticas. Platão o faz expondo-se ao choque emocional do próprio fato da morte de Sócrates, evento externo aos diálogos destinado a nos convencer da necessidade de examinar nossa vida deixando-nos guiar por uma razão não redutível à compreensão de um assunto, por situar-se aquém de qualquer linguagem e qualquer contexto. Denunciando os limites de um e de outro, apenas a ironia pode nos levar a obter a consciência24. Mauro Tulli (“Ética e história no Menexeno de Platão”) considera alguns trechos do Menexeno (244 D-246 A). Nesse diálogo, Platão reconstitui um evento da Guerra de Corinto (392), ligado a uma tentativa de aliança entre Corinto e Esparta e ao controle do porto de Lequeu. Ele dá ao episódio — secundário para Xenofonte e Diodoro — uma importância exagerada, não compreensível no plano da factualidade histórica. Não apenas se demora no caso, mas o “carrega” de um sentido particular, subordinando-o a uma longa celebração do valor de Atenas contra os persas e seus próprios inimigos gregos e concentrando-o no gesto árduo e difícil, para um programa de liberdade. Atenas, antes da Paz de Antálcidas (386), teria combatido sozinha, em total isolamento, para servir ao fraco e proteger contra os persas a liberdade das colônias da Ásia. Segue o mesmo sentido a comparação entre o Estado de Atenas após a Guerra de Corinto e o Estado de Atenas depois da Guerra do Peloponeso. É evidente, portanto, que Platão fala não da Atenas histórica — a Atenas imperialista descrita por Xenofonte — mas daquela que pode colocar-se como paradigma para a ética e para a política, a cidade ideal. 24. A introdução de Scolnicov, com o exame das consequências morais da estrutura dialógica, aproxima o seu enfoque do de Notomi; o enfoque geral, ou seja, a atenção à trama linguística do discurso ético, torna a sua abordagem semelhante à de Casertano e Napolitano.
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É o que confirma a reflexão sobre o epitáfio que Sócrates conduz com Menexeno, evocando um epitáfio atribuído a Aspásia: o epitáfio destina-se a preencher o campo do não real, criando um passado ideal e transcendendo a perspectiva “objetivista” dos grandes historiadores, para ligar-se a uma perspectiva filosófica. É essa perspectiva que transparece do epitáfio pelos mortos do primeiro ano da Guerra do Peloponeso, que Tucídides colocou nos lábios de Péricles (II, 40, 1 ss.), e é a mesma sobre a qual Aristóteles refletirá na Poética (1451 a 36-b 23). Tratase de obter dos eventos particulares um ensinamento universal, construindo um relato passível de ser empregado para uma pedagogia da virtude. Essas passagens do Menexeno estão ligadas ao quadro histórico em que é construído o Timeu (19 B-20 C), quando ele “põe em movimento” a cidade ideal construída com palavras no dia anterior, evocando a antiga Atenas, aquela em que o “justo”, o “belo” e o “bom” se encarnaram a ponto de lhe permitir se sobrepor à força de Atlântida. Também aqui Sócrates deseja um relato que tenha a característica do encômio e que rejeite a mi,mhsij, a não ser que esta seja, precisamente, mi,mhsij do universal25. Para Mario Vegetti (“Antropologias da pleonexi,a em Platão”) não existe uma ética platônica independente da ontologia e da epistemologia, mas é igualmente forçado desvincular essa ética da política. O estatuto expressivo dos diálogos exige, além disso, que se acredite que na formação das teses políticas platônicas cooperaram teorias propostas nos diálogos por personagens diferentes de Sócrates, teorias que este é obrigado a levar em conta. Examina-se aqui a antropologia da pleonexi,a difundida na Atenas da época. A posição de Cálicles, testemunha forte de vida, fraca no âmbito histórico — de acordo com o qual cabe aos mais fortes, aos homens “leoninos”, ter mais do que os outros e comandar —, reflete nostalgias da oligarquia ateniense, humilhada pelo igualitarismo da nova democracia. Mas o oligarca celebrado por Cálicles não pode entender as normas igualitárias “inaturais” impostas pelos democratas e é derrotado por elas. Quando muito, é no plano da argumentação que Cálicles leva a melhor sobre Sócrates, quando deixa de dialogar com ele, obrigando-o, ao final do Górgias, a refletir sozinho sobre as recompensas e os castigos que, no além, restabelecerão o equilíbrio da pleonexi,a. O problema moral não se resolve com o recurso aos deuses, se — como dizem os poetas — estes são corruptíveis pelos sacrifícios que o opressor pode fazer com as riquezas acumuladas precisamente com sua conduta. 25. Como já mencionado (acima, nota 20), a atenção ao uso platônico particular de dados históricos liga esse ensaio à parte inicial do ensaio de Notomi.
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Em contrapartida, Trasímaco parte de uma primeira tese, inovadora, segundo a qual as normas de justiça são estabelecidas por lei: a fonte das normas de lei é o poder constituído (seja qual for sua forma institucional), que de qualquer modo legisla em benefício próprio (Resp. 338 D-E; cf. Leg. IV, 714 C-D). Em seguida, ele acrescenta uma segunda tese, a de que a justiça é sempre “um bem de outros”, ou seja, de que, independentemente da forma do poder que exerce, é sempre um tirano e um opressor (Resp. 344 C). Glauco propõe uma genealogia da moral: não valeria a tese de Cálicles sobre a existência de um mais forte por natureza, uma vez que todos os homens, igualmente, seriam fracos diante da impossibilidade de fazer injustiça sem sofrer as consequências: é essa impossibilidade que os leva a um pacto de justiça, no compromisso comum de não usar de violência e respeitar as leis. Mas esse é um compromisso apenas externo, porque nesse caso a pulsão à pleonexi,a escolhe o caminho do complô, que evoca teorias de Antifonte. No Górgias, assim como na República, Sócrates é impotente para enfrentar tais teorias: o paradigma das técnicas que ele opõe a Trasímaco e a Glauco não é suficiente para refutar a ligação que eles fazem entre força, poder e lei. Sócrates deve deslocar o problema do plano individual para o político, substituindo a antropologia pleonéctica por uma antropologia colaborativa, fundamentando na necessidade comum o impulso dos homens a se associar. Diante da recusa de Glauco a uma vida tão primitiva, porém, ele propõe a longa construção de uma estrutura social hierarquizada e governada por um poder racional, que exorcize o conflito pleonéctico, ao menos no âmbito político. Este, contudo, reaparece (Resp. IV) no plano da psicologia individual. A tripartição da alma é fruto de uma descrição empírica da realidade psíquica, ao passo que a homóloga tripartição do corpo social é, antes, um modelo normativo: a antropologia da pleonexi,a resultante da descrição da alma é, portanto, uma realidade psicológica controlável, mas não suprimível, por meio de um esforço educativo individual e público. A própria história, com a progressiva degeneração da kalli,polij em tirania, mostrará como essa tendência era apenas silenciosa, uma vez que o homem não é, como pretenderá Aristóteles, um animal político, mas é, fundamentalmente, pleonéctico26. 26. A discussão da pleonexi,a em Cálicles, Trasímaco e Glauco e em suas concepções da justiça confere ao ensaio um cunho semelhante aos de Gastaldi e Santa Cruz (acima, notas 15 e 23); o estudo do instinto pleonéctico como dado psicológico individual, por outro lado, aproxima-o dos ensaios de Erler, Migliori e Napolitano (cf. notas 13, 18 e 19).
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Os ensaios, portanto, permitem prever que todo diálogo de Platão pode ser lido em perspectiva ética: cada “parte” de seu pensamento estabelece relações profundas e complexas com a filosofia que ele pretende dever ser ética, uma vez que — como dizia também o subtítulo de nosso Congresso — deve ser uma prática de vida, ou melhor, deve coincidir com a vida. Cada “parte” da filosofia tem um papel preciso ao dar corpo aos já citados múltiplos aspectos do discurso moral: a ontologia motiva com força sua própria legitimidade; a teologia fornece um paradigma e uma finalidade ao agir do homem; a física insere essa ação em um contexto cósmico de ordenada harmonia; a matemática oferece os critérios para imaginar e enunciar tal harmonia cósmica, mas também para diversificar a “medida” qualitativa particular válida no âmbito moral; a política institucionaliza as relações interpessoais no contexto da cidade; a psicologia descreve as diversas competências individuais (e os obstáculos) para o uso da razão normativa e para a prática do agir; a semântica caracteriza a linguagem do discurso moral. Tudo isso, contudo, de uma forma não sistemática. Platão organiza o sutil reticulado dos diálogos dinamicamente, para explorar todos os aspectos possíveis do discurso moral, ligando-os — a cada vez de uma maneira diferente — a todos os aspectos possíveis de um discurso filosófico mais amplo. Talvez seja esta mesma permeabilidade — essa complexidade dinâmica da ética platônica — que torna difícil desatar cada um dos diversos nós que unem uma à outra as partes dessa ética e esta última em seu todo às outras “partes” da filosofia: até porque — como dissemos — a determinação precisa de todas essas “partes” está conceitual e terminologicamente além de nosso autor. Por outro lado, Platão, como não distingue os “objetos” do discurso ético e filosófico, não distingue sequer métodos específicos para discutir uma “parte” da ética e da filosofia em vez de outra: a prática dialógica, com a metodologia dialética, é por sua vez difusa — com a problemática exceção das seções míticas dos diálogos — e os personagens a empregam para discutir sobre Deus, bem como sobre a ordem do mundo, sobre a relação entre prazer e bem, assim como sobre a estrutura da cidade. Diante de tal permeabilidade da ética e da própria metodologia dialética — pensou-se —, é grande o risco de indistinção e grande a impressão, ao menos no âmbito moral, de genericidade. Essa permeabilidade e indistinção de objetos e métodos filosóficos levou a procurar e a apontar uma única chave de leitura, capaz de explicar transversalmente todas as “partes” do pensamento platônico, como uma única chave mestra capaz de abrir todas as portas. Para a ética — além do já mencionado enfoque socrático-logicista da crítica anglo-saxã contemporânea —, a chave mestra tradi-
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cional foi aquela que, negando corretamente em Platão a especificidade disciplinar da ética, terminava contudo por submetê-la totalmente, intelectualisticamente à gnosiologia e à ontologia, com consequências ascéticas e rigoristas. De acordo com Platão, quem é capaz de ação moral correta, de se assimilar a Deus e de governar a cidade é o filósofo, o dialético, aquele que usa a razão. Portanto, afirmou-se, a própria razão que lhe permite conhecer as ideias também lhe permite agir de forma moralmente correta: essa razão é necessária para a ação correta de uma forma e a tal ponto que, afirmou-se, também é suficiente para realizá-la. O filósofo platônico que ao final da investigação dialética “vê” a ideia de justiça seria, por isso mesmo, justo: ele não teria necessidade, para sê-lo, nem de outras competências cognoscitivas menos elevadas da ciência (por exemplo, da opinião correta, também indicada no Mênon como eficaz para a ação não menos que a evpisth,mh), nem de envolver na ação moral sentimentos “educados” e, portanto, capazes de cooperar com a razão (embora na República se afirme que o filósofo vive a vida “mais doce” [IX, 581 C 10], por ser especialista nos prazeres derivados da satisfação adequada de todas as partes de sua alma, não apenas da racional). Se a razão é necessária e até é suficiente para a ação moral, afirmou-se em contrapartida, tudo aquilo que interfere com aquela razão deve ser, para Platão, reprimido e eliminado: o filósofo platônico, para conhecer as ideias e uma vez que as conheceu, deve exercitar-se para morrer, no sentido de praticar apenas a fro,nhsij e de “reprimir” as partes irracionais de sua alma. A valorização da gnosiologia das ideias como chave unívoca de abordagem da ética dos diálogos produziu, portanto, no âmbito moral, um Platão tradicionalmente intelectualista e ascético. Mas, com uma leitura atenta da própria linguagem dos diálogos e como muitas das contribuições deste livro demonstram, ele fornece as chaves para realizar as devidas distinções e, sobretudo, para evitar esse enfoque unívoco e parcial com que seu pensamento ético foi lido (e provavelmente qualquer outra leitura unívoca e definitiva que se possa, analogamente, tentar dar a ele). A fro,nhsij e a evpisth,mh que ele considera envolvidas no âmbito moral não são formas de saber exclusivamente teórico, porque antes dele são conotadas com força em sentido prático de forma semelhante ao saber dos artesãos. Além disso, o saber das ideias e do cosmo sem dúvida é necessário para a ação moral plenamente desenvolvida e constante, mas de modo algum é também suficiente para ela; o filósofo platônico não se exercita apenas para morrer e para reprimir os próprios desejos, em vista da contemplação exclusiva do Belo-Bem, mas sabe explicar correta e harmoniosamente — de uma forma capaz ainda de esclarecer
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e de aprofundar — “todos” os seus desejos. Ele sabe fazer isso com o objetivo, é claro, de fazer a sua alma não cair do voo pré-natal hiperurânico: mas, caso isso ocorra e sua alma se encontre em um corpo, ele sabe fazer isso também para viver, aqui e agora, “a mais doce” (Resp. IX, 581 C 10) das vidas possíveis ao homem, feliz “neste mundo” (Resp. X, 621 D 2), não menos que no milenar caminho que, como se diz, espera a nossa alma. Se isso, ao menos em parte, é o que se depreende dos ensaios do Plato Ethicus, é preciso respeitar a forma particular como Platão falou de ética, mantendo — como se encontram — em tensão constante e problemática as várias “partes” de sua filosofia em relação àquela que poderíamos, retrospectivamente, chamar de ética. Desse modo, aquilo que parecia difícil e até impossível de dizer, e ainda mais de escrever em um “livro”, mostra-se, afinal, bastante difícil, sem dúvida, mas pode de algum modo ser dito: há um caminho transitável para falar de ética em Platão, e esse caminho é o do pleno respeito ao caráter penetrante que ele deu ao seu estudo dos problemas morais e da forma expressiva do diálogo. Mas para continuar por esse caminho é preciso ainda muito trabalho: pelo próprio fato de que no diálogo platônico “a filosofia é vida” e portanto é, ela mesma, intrinsecamente ética, nosso trabalho aqui está apenas começando.
Agradecimentos. Sem a ajuda de alguns atentos, pacientes e perseverantes colaboradores este livro jamais teria visto a luz. Além de todos os tradutores originários, italianos e estrangeiros, indicados sempre em cada um deles, agradeço vivamente, pelas preciosas e pacientes consultas bibliográficas, à doutora Maria Cristina Dalfino, da redação da revista Elenchos e do Instituto para o Vocabulário Intelectual Europeu e História das Ideias do CNR — Seção Pensamento Antigo; agradeço à diretora da Seção Pensamento Antigo, professora Vincenza Celluprica, também coorganizadora do Congresso, por ter permitido a colaboração; agradeço ao doutor Alexander Bygate, revisor em língua nativa de toda a nossa versão em inglês, e ao doutor Davide Del Forno, “demiurgo” do grego de ambas as versões e incansável caçador de todo erro possível.
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