A filosofia e o processo educativo – Pensar a educação e educar o pensamento

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A filosofia e o processo educativo


Coleção Caminhos da Formação Docente 1. Educando para a superação do Bullying escolar Geovanio Rossato e Solange Marques Rossato 2. Educando contra o preconceito e a discriminação racial Rosângela Rosa Praxedes e Walter Praxedes 3. Entre os fios e o manto: tecendo a inclusão escolar Ana Cristina da Costa Piletti 4. A música e o processo educativo – Atos, recortes e cenas pedagógicas Michel Vicentine Martins


Claudino Piletti

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A filosofia e o processo educativo Pensar a educação e educar o pensamento


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Piletti, Claudino A filosofia e o processo educativo : pensar a educação e educar o pensamento - 5 / Claudino Piletti. -- 1. ed. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. -- (Série caminhos da formação docente / coordenador Nelson Piletti) Bibliografia ISBN 978-85-15-04234-0 1. Educação (Filosofia) 2. Educação – Brasil 3. Educação – Filosofia 4. Filosofia – Estudo e ensino 5. Professores – Formação profissionais I. Piletti, Nelson. II. Título. III. Série. 15-00572

CDD-370.1 Índices para catálogo sistemático:

1. Educação : Filosofia   370.1 2. Filosofia e educação   370.1

Preparação: Maurício Balthazar Leal Projeto Gráfico: Viviane B. Jeronimo So Wai Tam Capa: Viviane B. Jeronimo Logotipo da Coleção: Viviane B. Jeronimo Diagramação: So Wai Tam Revisão: Renato da Rocha

Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-04234-0 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015


Apresentação

A melhoria da qualidade da educação escolar brasileira apresenta-se hoje como o principal desafio educacional do país, uma vez que o acesso das nossas crianças ao ensino fundamental está próximo da universalização, e a educação infantil e o ensino médio avançam em constante expansão. E diversos são os caminhos que podem conduzir a uma educação escolar que atenda aos anseios da população brasileira e às demandas de formação e capacitação existentes na atualidade. O imprescindível é que respeitemos o contexto em que se situa cada escola, já que multifacetadas são as formas de convivência, expressão cultural, religiosidade e condições econômicas de vida dos brasileiros. Respeitando e valorizando as diferenças entre os seres humanos que se encontram no processo educativo questionamos, ao mesmo tempo, as raízes das desigualdades sociais e políticas, visando sempre a inspirar a ação educativa nas palavras de Hermann Hesse, com quem aprendemos que cada ser humano constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Tendo como parâmetro o cotidiano escolar, refletindo sobre temas e questões da ordem do dia do trabalho docente, com uma linguagem dinâmica e atual, a série Caminhos da Formação Docente oferece subsídios para o aprimoramento da formação e da atuação do professor, buscando contribuir para a efetivação de um salto de qualidade no processo educativo. Que o estudo dos conteúdos presentes nos títulos desta coleção, ao lado de outras iniciativas, possa representar aqueles passos que, no dizer de Mário Quintana, abrem os caminhos! O coordenador



Sumário

Introdução..........................................................................................................................................................................

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Capítulo I  O processo educativo, o professor e a filosofia..................................... 1.1. Processo e processo educativo................................................................................................................. 1.2. A compreensão do processo educativo.............................................................................................. 1.3. Para além da transmissão do conhecimento. ................................................................................. 1.4. Educação e emancipação............................................................................................................................ 1.5. O processo educativo e a indústria cultural..................................................................................... 1.6. Processo educativo e realidade social.................................................................................................. 1.7. O papel do professor no processo educativo................................................................................. 1.8. Como produzir fome de saber?.............................................................................................................. 1.9. O professor-filósofo e o filósofo-professor....................................................................................... 1.10. Filosofia crítica e o processo educativo............................................................................................ 1.11. O momento positivo do processo educativo. .............................................................................. 1.12. O processo educativo e o difícil equilíbrio..................................................................................... 1.13. Experiência e conhecimento no processo educativo. .............................................................

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Capítulo II  Filosofia e filosofia da educação........................................................................... 2.1. Importância e essência da filosofia........................................................................................................ 2.2. Filosofia, reflexão, atenção e coragem. .............................................................................................. 2.3. Condições da reflexão filosófica. ............................................................................................................ 2.4. Filosofia, ciência e senso comum. .......................................................................................................... 2.5. Definições de filosofia.................................................................................................................................... 2.6. As atitudes filosóficas..................................................................................................................................... 2.7. Questões filosóficas......................................................................................................................................... 2.8. O que posso saber?......................................................................................................................................... 2.9. O que devo fazer?............................................................................................................................................ 2.10. O que me é permitido esperar?. .......................................................................................................... 2.11. O que é o homem?. ..................................................................................................................................... 2.12. Imagens/ideais de homem na época contemporânea...........................................................

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2.13. A filosofia da educação e a reunião dos conhecimentos. ................................................... 2.15. Dewey e a educação....................................................................................................................................

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Capítulo III  Educação e educação da filosofia...................................................................... 3.1. O papel ideológico da filosofia................................................................................................................ 3.2. Como educar a filosofia?............................................................................................................................. 3.3. O papel contraideológico da educação.............................................................................................. 3.4. Educação, idealismo e marxismo............................................................................................................ 3.5. A educação e as teorias crítico-reprodutivistas. ............................................................................ 3.6. Críticas às teorias crítico-reprodutivistas............................................................................................ 3.7. Pessimismo, otimismo, educação e filosofia................................................................................... 3.8. Viver e filosofar. ................................................................................................................................................. 3.9. O que seria do mundo sem a filosofia?. ............................................................................................ 3.10. O pensamento débil..................................................................................................................................... 3.11. As duas faces do irracional...................................................................................................................... 3.12. O que nenhum professor de filosofia deveria esconder de seus alunos.................... 3.13. O que todo professor, de filosofia ou não, deveria mostrar a seus alunos..............

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Capítulo IV  O professor e a reflexão filosófica.................................................................... 4.1. Pensamento, revolta, reflexão e ação.................................................................................................. 4.2. A integração entre reflexão, ação e vida........................................................................................... 4.3. Papel e dificuldades dos professores.................................................................................................... 4.4. O professor e a síndrome de burnout................................................................................................. 4.5. O professor, elo de união entre vida e reflexão. ........................................................................... 4.6. Para além das histórias de vida................................................................................................................ 4.7. O professor e o pensamento complexo............................................................................................. 4.8. O professor entre teorias e doutrinas.................................................................................................. 4.9. Filosofia, doutrinas e revolta...................................................................................................................... 4.10. Função terapêutica da filosofia............................................................................................................. 4.11. Afinal, para que serve a filosofia?....................................................................................................... 4.12. Papel da filosofia na integração do saber...................................................................................... 4.13. Filosofia, uma pedra no meio do caminho. ..................................................................................

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Capítulo V  Ensinar é ensinar a pensar........................................................................................... 5.1. Ensinar a pensar, tarefa difícil!................................................................................................................. 5.2. Quem deve ensinar a pensar e como?. .............................................................................................. 5.3. E nasce a curiosidade…................................................................................................................................ 5.4. Pensar é sair do caminho ou parar o tráfego................................................................................. 5.5. A questão das questões................................................................................................................................ 5.6. Importante mesmo é ensinar a pensar...............................................................................................

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2.14. Será a filosofia essencial para a educação?..................................................................................


5.7. O pensamento crítico e a constestação. ............................................................................................

5.14. Para além da lógica. .....................................................................................................................................

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Glossário. ..............................................................................................................................................................................

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Bibliografia........................................................................................................................................................................

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5.8. O papel da formação e da informação............................................................................................... 5.9. A complexidade do sujeito e do conhecimento. .......................................................................... 5.10. A perda da articulação. .............................................................................................................................. 5.11. A principal ocupação da filosofia........................................................................................................ 5.12. Do pacto de ignorância ao prazer de pensar. ............................................................................. 5.13. Conversação filosófica e pensamento lógico. .............................................................................



Introdução

“Nossa educação está em crise”: eis um mantra repetido à exaustão. Mas a crise não é privilégio de “nossa” educação. E também não é de hoje. Pode-se dizer que a crise é inerente à educação e, até certo ponto, tem sentido positivo, de modo especial quando provoca questionamentos e reflexões. Teria um sentido negativo, no entanto, se tais questionamentos e reflexões viessem só dos filósofos. Quando, porém, todos os envolvidos no processo — principalmente os professores — refletem, o sentido é positivo. Todo professor, através de sua reflexão, pode e deve tornar-se, de certa forma, um filósofo da educação. Tanto que o sociólogo, filósofo e antropólogo francês Edgar Morin observou: “Muitos professores concebem a filosofia de maneira fechada e escolar, pensando que ela se esgota em sua história. […] Na minha opinião, a filosofia deve desempenhar um grande papel e estar por tudo, mas ela deve ser aberta a todos os conhecimentos, e isso só será possível através da reflexão” (2011a, p. 40). Se há uma atitude que deve caracterizar todo professor é a reflexiva. Tal atitude implica uma constante problematização do processo educativo em todos os níveis. Não importa qual seja a filosofia de cada professor, mas que ele tenha uma e que seja fruto de seu pensamento. De acordo com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), “conquistamos o sentido da palavra ‘pensar’ quando nós mesmos pensamos. Para que um tal ensaio aconteça, devemos estar preparados a aprender a pensar” (1958, p. 151). E faz parte desse aprendizado entrar em contato com o que outros já pensaram. Trata-se de um rico patrimônio que está à nossa disposição e ao qual devemos sempre recorrer. Nosso objetivo neste livro é tentar mostrar a cada professor como essa riqueza pode ajudá-lo a refletir melhor e que é preciso estudá-la, pois é impossível refletir no vazio. Estudar e pensar são atividades que, ao invés de se excluir, se complementam. 11


Em nossa educação há, geralmente, duas linhas que parecem andar separadas como duas paralelas que nunca se encontram: a linha do estudo e a linha do pensamento. Há mais de 2.500 anos, Confúcio (551-479 a.C.), o mais célebre filósofo chinês, escreveu: “Estudo sem pensamento é trabalho perdido; pensamento sem estudo é perigoso”. Foi para expressar nossa intenção de unir estudo e pensamento que escolhemos Pensar a educação e educar o pensamento como subtítulo deste livro.

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A filosofia e o processo educativo


Capítulo I

O processo educativo, o professor e a filosofia

u 1.1. Processo e processo educativo

A palavra processo vem da química, onde “designa uma sucessão de fenômenos inseparáveis, como no caso de uma série de reações que transforma uma substância pela intervenção de um catalisador. Por analogia utiliza-se a palavra para designar uma sequência de eventos organizada, que aparece com certa regularidade, tendo um início e um fim comparáveis” (Gresle 1990, p. 267-268). A sequência de eventos relacionados com educação constitui o processo educativo. O processo é sempre um fenômeno ativo. E no caso do processo educativo é interativo, pois seus elementos fundamentais são, de um lado, “um ser imaturo e não evoluído — a criança — e, de outro, certos fins, ideias e valores sociais representados pela experiência amadurecida do adulto. O processo educativo consiste na adequada interação desses elementos” (Dewey apud Piletti, Piletti 2012, p. 132). O processo educativo, como o da alimentação, é um processo distributivo que se refere ao indivíduo orgânico (educando) e não a coletivos. A legislação de instituições públicas, por exemplo, se refere a coletivos. Todo educando tem sua estrutura psicossomática e também sua capacidade e sua necessidade de se aperfeiçoar. Esse aperfeiçoamento se processa mediante a assimilação de bens culturais no sentido mais amplo desta palavra. Todos nós, queiramos ou não, nascemos dentro de um processo educativo. Na gestação já estamos nele. De modo algum conseguiríamos fazer as coisas orientados apenas pelo código genético. Precisamos da aprendizagem que nos é transmitida pelo processo educativo. É universalmente admitido que só através da aprendizagem cada indivíduo alcança a condição humana, e que na aprendizagem há a interação do biológico e do cultural.

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A interação do biológico e do cultural Toda criança normal possui ao nascer a capacidade de crescer não importa em que comunidade, de falar não importa que língua, de adotar não importa que religião, não importa que convenção social. O que parece mais verossímil é que o programa genético torna presente aquilo que se pode chamar de estruturas de acolhimento que permitem à criança reagir aos estímulos vindos do meio, procurar e descobrir regularidades, memorizar e depois recolocar os elementos em novas combinações. Com a aprendizagem se afinam e se elaboram suas estruturas nervosas. É através de uma interação constante do biológico e do cultural durante o desenvolvimento da criança que podem amadurecer e organizar-se as estruturas nervosas que sustentam as performances mentais. Nessas condições, atribuir uma fração de organização final à hereditariedade e o resto ao meio não tem sentido. Assim como não tem sentido indagar se a atração de Romeu por Julieta é de origem genética ou cultural. Como todo organismo vivo, o ser humano é geneticamente programado, mas ele é programado para aprender. Todo um leque de possibilidades é oferecido pela natureza no momento do nascimento. O que é atualizado constrói-se pouco a pouco durante a vida pela interação com o meio (Jacob 1981, p. 126).

u 1.2. A compreensão do processo educativo

A compreensão do processo educativo envolve dois elementos: — O positivo: que tem a ver com o papel das ciências para o conhecimento da realidade. É o momento de construção. — O negativo: que consiste em desmascarar as artimanhas do discurso. É o momento da crítica. Ninguém hoje duvida da importância do conhecimento. Ao contrário, estamos, sim, na sociedade do conhecimento. Em nossos dias o conhecimento é considerado a prioridade radical. O ser humano, graças ao conhecimento que vai adquirindo, pode revisar constantemente sua existência. E pode também alcançar sua independência e sua autonomia. As próprias desigualdades humanas, em nossas sociedades, nada mais seriam do que desigualdades de conhecimento. É principalmente através do processo educativo que são realizadas a transmissão e a aquisição do conhecimento. Mas, para além dessa constatação óbvia, a filosofia da educação deve preocupar-se com a relação entre o conhecimento e a vida humana, ou seja, com o valor do conhecimento para orientar e dar sentido à vida das pessoas. Em nossos dias o “conhecimento” está constituído principalmente pela ciência e pela tecnologia. Isso faz que, por exemplo, se reduza a “vida” à sua dimensão biológica, à satisfação das necessidades, sempre incrementadas pela lógica do consumo. Assim, quando se afirma que a educação deve preparar “para a vida” quer-se dizer que deve preparar para “se ganhar a vida” e para sobreviver da melhor forma possível num meio cada vez mais complexo. Nessas condições, a mediação entre o conhecimento e a vida tende a reduzir-se à apropriação utilitária do conhecimento, 14

A filosofia e o processo educativo


ou seja, a relacioná-lo apenas com as necessidades da vida ou, em outras palavras, com as necessidades da vida do mercado e os objetivos do Estado. O problema central que envolve o momento crítico do processo educativo é o da distribuição desigual do conhecimento. Na sociedade global do conhecimento, pior do que a divisão entre exploradores e explorados é a divisão entre incluídos e excluídos. Atualmente, a inclusão só se consegue com o conhecimento. A desigualdade humana é sempre, no fundo, uma desigualdade de conhecimento. Não podemos, no entanto, reduzir o processo educativo à transmissão do conhecimento. Junto com o conhecimento, a educação deve transmitir uma determinada relação com o saber. E tal relação pode ser de aceitação pura e simples ou de questionamento. Isso depende, principalmente, da atitude do professor em relação ao conhecimento. Ele pode questionar o saber recebido, interrogando seus pressupostos, despojando-o de sua arrogância e sua segurança, ou simplesmente transmiti-lo. u 1.3. Para além da transmissão do conhecimento

Após as conquistas da filosofia moderna, seria um tanto anacrônica a atitude pedagógica de limitar-se à transmissão do conhecimento. Isto porque com a razão moderna configurou-se “a ideia da autonomia humana, a ideia de que os indivíduos humanos, as sociedades humanas podem e devem ser os protagonistas de seu próprio devir. […] E, em função dessa ideia, a modernidade se desenvolve como um processo constante de tomada de consciência das insuficiências, limitações e, em alguns casos, perversões dos próprios projetos que produz. Pela primeira vez, portanto, o saber se torna inseparável do questionamento do saber e a crítica dos saberes recebidos (tradicionais) se converte em tradição” (Larrosa 1997, p. 48). No contexto dessa nova tradição, o processo educativo, para ser realmente educativo, precisa desenvolver a autonomia dos indivíduos e das sociedades humanas. Em outras palavras, precisa ser um processo emancipatório do ser humano. Isso nos leva, no contexto da nova tradição, à famosa Escola de Frankfurt. Trata-se de um grupo de pesquisadores em ciências humanas que trabalharam juntos no Instituto de Frankfurt. Os principais autores da Escola — Adorno, Horkheimer, Benjamin, Marcuse, Fromm e Habermas — se destacaram com obras que apresentam, ao mesmo tempo, um julgamento crítico sobre a civilização moderna e os modos filosóficos e sociológicos de interpretá-la. Inspiram-se mais em Karl Marx (1818-1883). Procuram, no entanto, superá-lo, mas mantendo sempre sua crítica ao capitalismo moderno. Levam também em consideração Freud e sua teoria da psicanálise. u 1.4. Educação e emancipação

Adorno, coerente com o pensamento da Escola de Frankfurt, afirma que a educação só tem sentido se seu objetivo é a emancipação. “Concebo como sendo educação”, diz ele, “não a assim chamada moldagem de seres humanos, porque não temos direito algum de moldar pessoas a partir do exterior; mas também não a mera transO processo educativo, o professor e a filosofia

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missão do saber, cuja característica de coisa morta, reificada, já foi suficientemente explicitada; e sim a produção de uma consciência verdadeira. […] Esta teria simultaneamente grande significado político; podemos dizer que sua ideia é politicamente impositiva. Isto é: uma democracia que não se propõe a apenas funcionar, mas a proceder de acordo com seu conceito, exige homens emancipados. Uma democracia realizada só pode ser concebida como sociedade de quem é emancipado” (apud Pucci 1995, p. 61). As pessoas, no entanto, não se emancipam só por reflexão, esclarecendo-se pela via racional, do conhecimento, ou pelo autoaperfeiçoamento, pela consciência de si, ou seja, pela educação. E também não só a partir das condições efetivas e objetivas propícias. A emancipação surge principalmente a partir da convivência emancipada. Por isso, segundo Adorno, “quem numa democracia difunde ideais educacionais contrários à emancipação, que se oponham à tomada de decisão autônoma e consciente de qualquer homem em particular, é antidemocrático, mesmo que propague suas idealizações no próprio plano formal da democracia. As tendências a apresentar ideais externos, que não se desenvolvam a partir da própria consciência emancipada ou, melhor ainda, que não se justifiquem perante a mesma, estas tendências ainda permanecem coletivistas e reacionárias. Remetem a uma esfera a que deveríamos nos contrapor, não apenas de modo político externo, mas também em planos muito mais profundos” (apud Pucci 1995, p. 61-62). Que planos seriam esses? Segundo Adorno, trata-se dos planos da formação cultural. Não da cultura como mera necessidade “intelectual”, mas como uma necessidade “material”. Hoje, no entanto, a maioria das pessoas está imersa nas ondas da semiformação cultural domesticada, pois os valores mais aceitos são os transmitidos pela indústria cultural. É ela que alimenta suas representações conceituais. u 1.5. O processo educativo e a indústria cultural

Na perspectiva da Escola de Frankfurt, o conceito de indústria cultural diz respeito ao processo de mercantilização da cultura na sociedade capitalista, em que industrialismo e racionalidade da produção padronizam o processo de criação da cultura. Daí, em vez de uma cultura de “massa”, resulta uma cultura com as marcas da realidade técnica. Algumas dessas marcas são a estratificação dos produtos culturais, sua estandardização, a depreciação estética e a representação falseada da cultura erudita e da cultura popular. Além dessas marcas há outras: as que dão prestígio aos calçados, às roupas, aos carros, enfim, a tudo o que as pessoas usam. Como observa Eduardo Galeano, “nas mais diversas cidades, nos mais distantes lugares do mundo, os filhos do privilégio se parecem entre si, nos costumes e tendências, como entre si se parecem os ­shoppings centers e os aeroportos, que estão fora do tempo e do espaço. Educados na realidade virtual, deseducam-se da realidade real, que ignoram ou que tão só existe para ser temida ou ser comprada” (1999, p. 12-13).

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A filosofia e o processo educativo


Em seguida, Galeano narra o seguinte:

Mundo infantil É preciso ter muito cuidado ao atravessar a rua, explicava o educador colombiano Gustavo Wilches a um grupo de meninos. – Ainda que abra o verde, jamais atravessem sem olhar para os dois lados. Wilches contou aos meninos que certa vez um automóvel o atropelara e o deixara caído no meio da rua. Recordando o acidente que quase lhe custara a vida, Wilches franziu o cenho. Mas os meninos perguntaram: – De que marca era o carro? Tinha ar-condicionado? Teto solar elétrico? Tinha faróis de neblina? De quantos cilindros era o carro? (1999, p. 12).

u 1.6. Processo educativo e realidade social

É claro que nem todas as crianças são ricas e privilegiadas. Na América Latina, onde crianças e adolescentes representam quase a metade da população local, “a metade dessa metade vive na miséria. Sobreviventes: na América Latina, a cada hora cem crianças morrem de fome ou doença curável, mas há cada vez mais crianças pobres em ruas e campos dessa região que fabrica pobres e proíbe a pobreza. […] E entre todos os reféns do sistema são elas que vivem em pior condição” (Galeano 1999, p. 14). No final do livro do qual constam esses dados, Galeano escreve a seguinte nota: “O autor terminou de escrever este livro em meados de 1998. Se você quer saber como continua, ouça ou leia as notícias do dia a dia” (Galeano 1999, p. 347). Uma das tarefas do processo educativo é fazer que o aluno — geralmente alienado — ouça e leia as notícias. Compete aos professores das diferentes disciplinas motivá-lo para isso e, ao mesmo tempo, fornecer-lhe elementos de reflexão. O primeiro elemento de reflexão seria pensar por que, nessa era da informação, países pobres e os pobres de cada país recebem, geralmente, pouca atenção. Parece que “os meios massivos de comunicação só se dignam a lhes dar atenção quando são personagens de alguma desgraça espetacular que possa ter sucesso de mercado. […] O mundo tende a se transformar no cenário de um gigantesco reality show. Os pobres, os desaparecidos de sempre só aparecem na tevê como objeto de zombaria da câmera oculta ou como atores de suas próprias turbulências. O desconhecido precisa ser reconhecido, o invisível quer tornar-se visível, procura a raiz o desenraizado. O que não existe na televisão existe na realidade?” (Galeano 1999, p. 269). Com os professores talvez ocorra o mesmo: eles só passam a existir quando fazem greve. E a educação passa a existir nas campanhas eleitorais quando os candidatos prometem mundos e fundos para melhorá-la. Ela passa a existir, também, quando é mal avaliada por algum desses órgãos internacionais de avaliação da educação nos diversos países do mundo. O processo educativo, o professor e a filosofia

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u 1.7. O papel do professor no processo educativo

Para que o professor passe a existir de forma permanente e não só nas greves, para que a educação passe a existir para além das campanhas eleitorais e da avaliação educacional, é preciso que a sociedade como um todo entenda a verdadeira natureza e a importância do processo educativo: “A educação, como a alimentação, é um processo indispensável. Tanto que ela, ou processos análogos, tem lugar já nos primatas e é universalmente admitido que os homens só através da aprendizagem alcançam a sua condição humana (por exemplo, através da linguagem). A possibilidade de um desenvolvimento espontâneo do indivíduo humano […] é uma fantasia” (Bueno 1995, p. 50-51). Tal fantasia pode ser comparada àquela que considerasse possível a um indivíduo desenvolver-se sem a alimentação. Aliás, de acordo com o dicionário Littré, “educação é uma palavra recente, outrora dizia-se alimento”. E a palavra aluno (alummus em latim) deriva de alere (alimentar) e aplica-se primariamente a quem é nutrido, embora se possa aplicar, secundariamente, a quem o nutre. A palavra professor, no entanto, de acordo com o filósofo francês Pascal Quig­ nard, tem uma origem menos nobre. Ele conta que outrora os patrícios romanos, a quem toda retribuição salarial estava proibida, não tinham outra ambição do que sentar no Senado ao lado dos Pais da pátria para defender o bem público. Um tal Rubellius Bandus, porém, foi o primeiro patrício que decidiu cobrar. Ele abriu uma escola de retórica e passou a receber pagamento para falar. Ele é considerado o ancestral dos professores. A palavra professae existia no latim antigo. Designava as prostitutas daquele tempo (Quignard, 2002, p. 274). Essa origem da palavra professor talvez ainda persista no inconsciente coletivo. O professor, porém, não tem vida fácil. E nem as profissionais da profissão mais antiga do mundo a têm, apesar de, erradamente, serem denominadas “mulheres de vida fácil”. O professor não tem vida fácil porque, mais do que saber, precisa produzir fome de saber. Com sua maneira de ensinar, ele precisa despertar no aluno a fome do saber. u 1.8. Como produzir fome de saber?

De acordo com Rubem Alves, “toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva. É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do latim afetare, quer dizer ‘ir atrás’. É o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado” (2002, p. 6). Só o professor-filósofo consegue despertar essa fome, esse Eros platônico, pois tal despertar denomina-se filosofia. A filosofia não é “sabedoria” nem “verdade” num sentido abstrato. É, antes, philos, isto é, amor. Filosofia é, assim, amor à sabedoria ou, em outras palavras, fome de saber. 18

A filosofia e o processo educativo


Fome de saber Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: “Não quero faca nem queijo; quero é fome”. O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo. Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo eu dou um jeito de arranjar queijo. Sugeri, faz muitos anos, que para se entrar numa escola alunos e professores deveriam passar por uma cozinha. Os cozinheiros bem que podem dar lições aos professores (Alves 2002, p. 6).

u 1.9. O professor-filósofo e o filósofo-professor

Ser professor-filósofo é diferente de ser filósofo-professor. Professor-filósofo é o professor de qualquer disciplina, exceto de filosofia, que recorre à filosofia como subsídio para o seu trabalho docente. O filósofo-professor é aquele que leciona filosofia. Para o professor-filósofo, a filosofia não é algo que pode ser perseguido, projetado ou cultivado por si mesmo. Isso seria considerar a filosofia como atividade de primeiro grau, que é atribuição de um filósofo-professor. Para o professor-filósofo, porém, “‘a filosofia’ não tem conteúdo suscetível de ser explorado ou descoberto em si mesmo e por si mesmo, nem sequer de ser ‘criado’, por analogia ao que se conhece como ‘criação musical’: a filosofia está só em função das realidades do presente, é atividade de ‘segundo grau’ e não tem maior sentido, portanto, buscar uma ‘filosofia autêntica’ como se fosse possível encontrá-la em algum lugar determinado” (Bueno 1995, p. 46). Tal concepção da filosofia, no entanto, que reclama sua imersão imprescindível no presente, não pode voltar as costas à filosofia do passado, pois o passado é parte do presente. Por isso, “as obras de Platão ou de Aristóteles figuram nas prateleiras ao lado das obras de Darwin ou de Einstein, da mesma maneira que as ruínas do fórum romano são tão atuais, pelo menos enquanto ruínas, como a cúpula de São Pedro” (Bueno 1995, p. 47). u 1.10. Filosofia crítica e o processo educativo

Sem desmerecer as filosofias do passado, a filosofia como saber de segundo grau deve ser, acima de tudo, uma filosofia crítica. Por isso, ela não pode ser um campo categorial fechado, como o das matemáticas ou o da física. Ao contrário, compete a ela criticar as construções científicas categoriais, que são construções fechadas dentro de sua categoria. Como saber de segundo grau, o campo da filosofia crítica está dado em função dos outros campos, de suas analogias ou de suas contradições. E, por proceder do presente, onde não figuram só as ciências positivas, mas também instituições religiosas, políticas e educacionais, a filosofia crítica deve voltar incessantemente ao presente. Então, “a questão é a de que grau de trituração do presente pode exigir-se de uma filosofia para que possa ser considerada como crítica O processo educativo, o professor e a filosofia

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e não como uma mera ideologia*1 de ‘reconciliação’ com o presente ou de ‘condenação’ (apocalíptica ou ética*) do presente” (Bueno 1995, p. 48). E qual é o lugar da filosofia crítica no processo educativo? Vimos no início do capítulo que o processo educativo envolve dois momentos: o positivo (momento de construção) e o negativo (momento da crítica). É claro que a filosofia crítica situa-se no momento negativo, ou seja, o da crítica. Trata-se, certamente, de um momento delicado que envolve alguns problemas. E o problema fundamental é, certamente, “o da determinação dos conteúdos doutrinais que deverão ser associados necessariamente a uma filosofia crítica, posto que uma filosofia crítica, entendida à margem de qualquer conteúdo doutrinal, é uma filosofia vazia: é o ‘filosofar’ erístico* entendido em sua mais radical redução psicológica. Porque a crítica só tem sentido efetivo desde algum critério mais ou menos definido, não é mero negativismo movido por um afã discutidor (chamado às vezes polêmico). Haverá uma crítica materialista (desde o presente) à filosofia teológica, porém também haverá uma crítica ontoteológica* (desde o presente) ao materialismo*. Haverá uma crítica cética ou agnóstica* ao materialismo e ao espiritualismo*” (Bueno 1995, p. 71-72). u 1.11. O momento positivo do processo educativo

O momento positivo do processo educativo, isto é, o da construção, surge a partir do momento em que, unindo a filosofia e as ciências, procuramos explicar e compreender os fenômenos humanos. Enquanto as ciências explicam, a filosofia procura compreender. Há uma relação dialética entre explicação e compreensão. Tal dialética, no entanto, é dificilmente identificável em nossa conversação, em que explicação e compreensão tendem a sobrepor-se. Atribui-se à explicação, porém, uma tendência mais analítica, que consiste em desdobrar as partes constituintes, e à compreensão uma vocação mais sintética, que consiste em apreender as partes como um todo. A oposição entre explicação e compreensão constitui um dos temas fundamentais do pensamento contemporâneo. E à luz desse pensamento “explicação” e “compreensão” nada mais seriam do que expressões do conflito epistemológico entre as ciências tecnonaturais e as ciências humanas. De um ponto de vista epistemológico, a vida não pode constituir um objeto comparável aos objetos da natureza. A vida, em sua peculiaridade, é entendida através de categorias que são estranhas ao conhecimento da natureza. Desde que se formulou a oposição entre ciências da natureza e ciências humanas, a distinção metafórica entre os dois tipos de ciências foi sempre marcada pelas palavras “explicar” e “compreender”. De acordo com a célebre fórmula do filósofo alemão Dilthey, “explicamos a natureza, compreendemos o psiquismo”. Enquanto

1. O significado das palavras com asterisco consta do Glossário no final do livro.

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explicar significa a regressão causal de um fenômeno natural às leis gerais, compreender significa uma apreensão de sentido que ultrapassa qualquer explicação causal. A compreensão, que é um modo de conhecimento intuitivo e sintético, proporciona a apreensão global de sentido de um objeto. Apesar do conflito, porém, há uma reciprocidade entre explicação e compreensão. Tal reciprocidade deriva diretamente da relação entre objetivação e reflexão. Objetivação que tem a ver com a exigência de adaptação e reflexão, com a exigência de desadaptação. Daí o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) ter afirmado que “a educação, no sentido mais forte da expressão, não é talvez senão o justo mas difícil equilíbrio entre a exigência de objetivação — isto é, de adaptação — e a exigência de reflexão e de desadaptação; é o tenso equilíbrio que mantém de pé o homem” (1968, p. 219). O texto que se segue fala da relação entre compreender e educar.

Compreender e educar Hoje, gostaria de — brevemente — indicar a relação entre educar e “compreender”. Aliás, tudo o que se espera do preparo de um autêntico educador pode resumir-se nesta única palavra: “compreender”. Tenho consciência de que essa afirmação soa como uma enormidade de exagero, pois a palavra “compreender” parece, à primeira vista, indicar algo simples e quotidiano, sem maior transcendência. “Compreendemos” as instruções de um manual sobre o funcionamento de um eletrodoméstico; “compreendemos” esta ou aquela língua estrangeira etc. Mas em todos estes casos trata-se de usos impróprios do verbo “compreender”. Compreender, quando aplicado a seu sentido próprio, específico e genuíno, aponta para dimensões mais profundas da realidade humana. […] “Compreender”, em sentido rigoroso, supõe algo mais que o entendimento de uma fria mensagem: envolve, de algum modo, a captação de um alguém, um alguém vivo e concreto que expressou aquela mensagem. Em que pensa uma pessoa quando diz que não lhe basta o bem-estar, mas deseja compreensão, ou quando se queixa de ser […] incompreendida? (é claro que nestes contextos “compreender” não se deixa substituir por entender, conhecer etc.). Porque pode acontecer que a comunicação de alguém seja recebida e registrada, e até entendida, mas sem que tenhamos compreendido o que foi falado nem a pessoa que falou. Para isto, é necessário voltar-se para o interlocutor em seu ser pessoal, abrir-se a tudo o que ele quis expressar com aquele som, gesto ou texto. Captando o que realmente ele imprimiu de si naquela comunicação. Só tenho compreendido — assim diz Hegel — aquilo que me toca mais no íntimo. E Goethe afirma que compreender significa desenvolver de dentro de si o que o outro externou. Quem considera assim o significado do termo repara imediatamente que “compreender” não é tarefa fácil, especialmente num tempo como o nosso, que convida à incompreensão… Pois opõem-se à atitude de quem busca “compreender”, isto é abrir-se ao outro e captá-lo tal como ele realmente é, em primeiro lugar os bairrismos, que levam O processo educativo, o professor e a filosofia

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a, por princípio, opor-se ao “outro”, seja por estar fora de nossas fronteiras, ou por anteceder-nos no tempo, ou por estar para além do estreito campo de visão imposto pelas viseiras ideológicas; o que — como todo mundo sabe —, pode ser feito também sob máscara de “democracia” e “pluralismo”. Mas há ainda outro inimigo do “compreender”. Refiro-me (e estou citando Marcel) “à incapacidade de prestar atenção ao apelo dirigido ao mais profundo de nosso ser; uma desatenção que a vida moderna tende a intensificar, quase a impor, na medida em que desumaniza o homem, em que o desarraiga de seu centro”. Este é o momento de considerar a etimologia alemã (e também a inglesa). A nossa etimologia latina aponta para a captação; já em alemão “compreender” se diz verstehen: ver-stehen (onde o prefixo ver indica um processo — como o nosso prefixo “em” nas expressões “envelhecer”, “emagrecer”, “empilhar” etc. E stehen, stand, estar de pé, deter-se). Verstehen, compreender, é também a atitude de quem sabe deter-se e, com vagar, abrir-se ao outro e apreendê-lo. Claro que não se trata só nem principalmente de uma tarefa intelectual, de algo operacional ou operacionalizável… Pois todo mundo tem a experiência: só compreendemos o que alguém diz quando estamos em sintonia com esse alguém, quando o amamos! (Lauand 1988, p. 51-53).

u 1.12. O processo educativo e o difícil equilíbrio

O processo educativo visa à aprendizagem do “justo mas difícil equilíbrio” do qual fala Ricoeur. E aprender esse equilíbrio significa aprender a viver. No Emílio, de Rousseau, o educador diz de seu aluno: “Eu quero ensinar-lhe a viver”. De acordo com Edgar Morin, “a formula é excessiva, porque só se pode ajudar a aprender a viver. Viver se aprende por suas próprias experiências, com a ajuda de outro, principalmente pais e educadores, mas também os livros, a poesia. Viver é viver enquanto indivíduo afrontando os problemas de sua vida pessoal, é viver enquanto cidadão de sua nação, é viver também na sua pertença ao humano” (2011b, p. 152). O estudo de diferentes disciplinas, tais como matemática, ciências, história, geografia, literatura etc., contribui para a inserção na vida social, e seus ensinamentos são necessários à vida profissional. É através da filosofia, no entanto, que o processo educativo pode capacitar o indivíduo para afrontar os problemas fundamentais e globais. “Esses problemas necessitam, para ser considerados, da possibilidade de reunir numerosos conhecimentos separados em disciplinas. Eles pedem uma maneira mais complexa de conhecer, uma maneira mais complexa de pensar. […] Enquanto não ligarmos os conhecimentos segundo os princípios do conhecimento complexo, permaneceremos incapazes de conhecer o tecido comum das coisas: só veremos fios separados de uma tapeçaria. Identificar os fios individualmente jamais permite conhecer o delineamento do conjunto da tapeçaria” (Morin 2011b, p. 152).

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1.13 Experiência e conhecimento no processo educativo

Nosso conhecimento nasce das experiências que vamos acumulando no dia a dia. São experiências de nossa relação com as pessoas, com a natureza e com as leituras de livros e artigos de jornais, revistas, internet etc. e também com programas televisivos. Nessas experiências ocorrem, basicamente, dois tipos de conhecimento: o sensível (sentir) e o intelectual (pensar). Mas entre esses dois tipos de conhecimento não pode haver aquela confrontação que a educação e a própria sociedade geralmente têm gerado. Trata-se de duas formas de compreender a realidade que, no processo educativo, devem funcionar de forma integrada, abrindo espaço aos conceitos e metáforas, à memória e à imaginação, aos sentimentos e argumentos etc. Em síntese, abre-se espaço à razão sensível. A razão sensível tem dois polos: o racional e o sensível. O racional organiza a complexidade dos fenômenos, dando-lhe organicidade, unicidade, unidade e coerência a partir da multiplicidade. Para tanto, precisa recorrer às diferentes lógicas. O sensível configura a experiência estética, suas imagens e seus símbolos, na busca de constituir um sentido para a existência. A razão sensível é fundamental para o processo educativo. É graças a ela, por exemplo, que o processo educativo não se reduz a um conjunto teórico de reflexões. Esse conjunto é necessário, mas deve ser ultrapassado. É no exercício da razão sensível que se articulam imaginação e memória. Tal articulação é de grande importância, pois é através dela que a liberdade de criação consegue atualizar os sonhos e angústias da memória humana. Percebemos através dessa articulação que, ao contrário do que tem ensinado a pedagogia da demonstração, o conceito é apenas um rascunho da realidade. Por isso, o processo educativo demanda, além de uma pedagogia da demonstração, uma pedagogia da mostração e da audição, o que exige que o professor seja adulto e criança ao mesmo tempo, como “O homem da orelha verde”, imaginado por Gianni Rodari:

O homem da orelha verde Um dia num campo de ovelhas Vi um homem de verdes orelhas Ele era bem velho, bastante idade tinha Só sua orelha ficara verdinha Sentei-me então ao seu lado A fim de ver melhor, com cuidado Senhor, desculpe minha ousadia, mas na sua idade de uma orelha tão verde qual a utilidade? Ele me disse, já sou velho, mas veja que coisa linda De um menino tenho a orelha ainda É uma orelha-criança que me ajuda a compreender O que os grandes não querem mais entender O processo educativo, o professor e a filosofia

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Ouรงo a voz de pedras e passarinhos Nuvens passando, cascatas, riachinhos Das conversas de crianรงas, obscuras ao adulto, Compreendo sem dificuldades o sentido oculto Foi o que o homem de verdes orelhas Me disse no campo de ovelhas (Gianni Rodari, apud Tonucci 2008, p. 13).

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