A Misericórdia – Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã

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A misericórdia

Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã



Cardeal

Walter Kasper

A misericórdia

Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã Tradutora Beatriz Luiz Gomes


Título original: Walter Kasper, Barmherzigkeit. Grundbegriff des Evangeliums – Schlüssel christlichen Lebens © 20133 Verlag Herder GmbH, Freiburg im Breisgau Hermann – Herder – Straße 4, 79104 Freiburg, Germany

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Kasper, Walter A misericórdia : condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã / Walter Kasper ; tradução Beatriz Luiz Gomes. -- São Paulo : Edições Loyola ; Portugal : Princípia Editora, 2015. Título original: Barmherzigkeit : Grundbegriff des Evangeliums Schlüssel christlichen Lebens. ISBN 978-85-15-04278-4 1. Deus - Misericórdia 2. Evangelho 3. Misericórdia 4. Religião Filosofia - Teologia 5. Vida cristã I. Título. 15-02390 CDD-230 Índices para catálogo sistemático: 1. Teologia : Cristianismo

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Capa: Viviane B. Jeronimo Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682). Detalhe da obra The Return of the Prodigal Son (entre 1667 e 1670). Óleo sobre tela (236 cm x 262 cm). National Gallery of Art, Washington D.C., Estados Unidos. <http://commons. wikimedia.org/wiki/File:Return_of_the_Prodigal_Son_ 1667-1670_Murillo.jpg> Revisão: Mônica Aparecida Guedes

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Sumário

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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I. A Misericórdia – um tema atual, mas esquecido . . . . . . 1. O clamor pela misericórdia . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. A misericórdia – um tema fundamental para o século XXI . . 3. A misericórdia – um tema imperdoavelmente esquecido . . . 4. A misericórdia sob a suspeita de ideologia . . . . . . . . . . 5. A empatia e a compaixão como novos caminhos de acesso . .

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II. Abordagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Enfoques filosóficos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. À procura dos indícios da misericórdia na história das religiões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. A regra de ouro como ponto de referência comum . . . . . .

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III. A mensagem do Antigo Testamento . . . . . . . . . . . 1. A linguagem da Bíblia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. A reação de Deus contra o caos e a catástrofe do pecado . . 3. A revelação do nome de Deus como revelação da sua misericórdia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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4. A misericórdia divina como alteridade insondável e soberana de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. A misericórdia, a santidade, a justiça e a fidelidade de Deus . 6. A opção de Deus pela vida e pelos pobres . . . . . . . . . 7. Os cânticos de louvor dos salmos . . . . . . . . . . . . . .

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IV. A mensagem messiânica da misericórdia divina . . . . . 1. Brotou uma rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. O Evangelho de Jesus sobre a compaixão do Pai . . . . . . . 3. A mensagem das parábolas sobre o Pai misericordioso . . . . 4. A pró-existência de Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5. A misericórdia de Deus: a sua justiça, a nossa vida . . . . . .

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V. Reflexões sistemáticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 1. A misericórdia como principal atributo de Deus . . . . . . . 107 2. A misericórdia como espelho da Trindade . . . . . . . . . . 117 3. A misericórdia divina: origem e meta dos caminhos de Deus . 125 4. A vontade salvífica universal de Deus . . . . . . . . . . . . 132 5. O Sagrado Coração de Jesus como revelação da misericórdia divina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 6. O Deus que, na sua misericórdia, sofre com aqueles que sofrem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150 7. A esperança na misericórdia em face do sofrimento dos inocentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 VI. Bem-aventurados os misericordiosos . . . . . . . . . . 165 1. O amor: o principal mandamento cristão . . . . . . . . . . 166 2. “Perdoai-vos uns aos outros” e o mandamento do amor aos inimigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172 3. As obras corporais e espirituais de misericórdia . . . . . . . 177 4. Nada de uma pseudomisericórdia de laissez faire ! . . . . . . 180 5. Encontrar Cristo nos pobres . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 6. A misericórdia como existência vicária dos cristãos . . . . . . 186 VII. A Igreja sujeita à medida da misericórdia . . . . . . . . 193 1. A Igreja – sacramento do amor e da misericórdia . . . . . . . 193


2. O anúncio da misericórdia divina . . . . . . . . . . . . . . 3. A penitência – sacramento da misericórdia . . . . . . . . . . 4. A prática eclesial e a cultura da misericórdia . . . . . . . . . 5. A misericórdia no direito canônico? . . . . . . . . . . . . .

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VIII. Para uma cultura da misericórdia . . . . . . . . . . . 221 1. Grandeza e limites do moderno Estado Social . . . . . . . . 221 2. Desenvolvimento da doutrina social da Igreja . . . . . . . . 227 3. A dimensão política do amor e da misericórdia . . . . . . . 232 4. O amor e a misericórdia como fontes de inspiração e motivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 5. A relevância social das obras de misericórdia . . . . . . . . 240 6. A misericórdia e a pergunta sobre Deus . . . . . . . . . . . 242 IX. Maria, Mãe de Misericórdia . . . . . . . . . . . . . . . 1. O testemunho de Maria nos Evangelhos . . . . . . . . . . . 2. O testemunho na fé da Igreja . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Maria, arquétipo da misericórdia . . . . . . . . . . . . . .

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Prólogo

A presente obra baseia-se nos rascunhos que elaborei para um ciclo de palestras no âmbito dos Exercícios Espirituais. Na altura, porém, a palestra sobre a misericórdia a que se destinavam não atingiu os objetivos a que me propus. As investigações teológicas não me ajudaram a avançar. Nos anos seguintes, retomei reiteradamente este tema. A reflexão e a investigação levaram-me a questões centrais, tanto no que se refere à doutrina sobre Deus e os atributos divinos, por um lado, como no respeitante à existência cristã, por outro. Pude constatar que a misericórdia, que é tão fundamental na Bíblia, ou caiu largamente no esquecimento na teologia sistemática, ou é tratada apenas de uma forma muito pouco cuidada. Nestas questões, como em tantas outras, a espiritualidade e a mística vão muito adiante da teologia acadêmica. Assim, o presente texto propõe-se estabelecer a ligação entre a reflexão teológica e as considerações espirituais, pastorais e sociais com o intuito de propiciar uma cultura da misericórdia. Muitas ideias estão simplesmente anotadas. Atrevo-me a confiar em que quanto aqui fica dito possa servir de estímulo a uma geração de teólogos mais jovens que retomem este percurso e examinem novamente a fundo a doutrina cristã de Deus e as consequências práticas que dela resultam, desenhando desse modo contornos para uma viragem –9–


teocêntrica que é tão necessária na teologia e na vida da Igreja. Nesse percurso, a superação do distanciamento entre a teologia acadêmica e a teologia espiritual deve constituir um objetivo importante. Agradeço ao Instituto Cardeal Walter Kasper de Vallendar, ao mo Ex. Senhor Professor Dr. George Augustin, aos Ex.mos Senhores Stefan Ley e Michael Wieninger, a revisão que fizeram do rascunho do texto e as correções de estilo. Quero igualmente agradecer à Editora Herder pela boa consultoria editorial que me dispensou. Roma, Quaresma de 2012 Cardeal Walter Kasper

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I.

A misericórdia – um tema atual, mas esquecido

1. O clamor pela misericórdia O século XX que deixamos para trás foi, sob muitos pontos de vista, um século terrível; e o ainda incipiente século XXI, que com o atentado de 11 de setembro de 2001 contra o World Trade Center, em Nova Iorque, se iniciou com um ribombar de tambor de não bons augúrios, não promete, até ao momento, vir a ser melhor. O século XX conheceu dois sistemas totalitários brutais, duas guerras mundiais, das quais só uma causou entre 50 e 70 milhões de mortos, genocídios e assassinatos em massa de milhões e milhões de pes­ soas, campos de concentração e gulags. O século XXI começou marcado pela ameaça de um terrorismo sem piedade, de injustiças que bradam ao céu, de crianças vítimas de abusos e condenadas à fome e à inanição, de milhões e milhões de expatriados e refugiados, de crescentes perseguições a cristãos; a isto somam-se catástrofes naturais devastadoras sob a forma de terremotos, erupções vulcânicas, tsunamis, inundações, secas etc. Tudo isto e muitos outros fatos são “sinais dos tempos”. – 11 –


Perante esta situação, parece a muitos difícil falar de um Deus todo-poderoso e ao mesmo tempo justo e misericordioso. Onde estava e onde está Ele enquanto tudo isto acontecia e acontece? Por que o permite, por que não intervém? Todo este sofrimento injusto – perguntam alguns – não constitui o argumento mais sério contra um Deus que é todo-poderoso e misericordioso?1 Na verdade, o sofrimento dos inocentes converteu-se durante a Era Moderna na “rocha do ateísmo” (Georg Büchner); chegou-se a afirmar que a única desculpa para Deus é que Deus não existe (Stendhal). Devido à verdadeiramente diabólica irrupção do mal, continua por vezes a ser colocada a pergunta deste modo: não será necessário negar Deus para maior glória de Deus (Odo Marquard)?2 Torna-se, com bastante frequência, difícil falar de Deus, mesmo para aqueles que creem n’Ele; também esses se encontram, frequentemente, no meio de uma noite obscura da fé, em que, perante o mal imenso e o sofrimento injusto existentes no mundo, perante os duros golpes do destino e as enfermidades dolorosas incuráveis, bem como o horror associado às guerras e à violência, ficam sem palavras. Fiódor Mijailovitch Dostoiévski, que experimentou um grande sofrimento, tanto na sua própria vida como na vida de outros, escreve na sua obra Os Irmãos Karamazov – ao descrever a cena em que o proprietário de uma quinta ordena a uma matilha dos seus cães que despedace uma criança sob o olhar da mãe desse menino –, que semelhante injustiça clamorosa e o sofrimento do menino, que em si encerra, não podem ser contrabalanceados por nenhuma harmonia futura. Por isso, Dostoiévski afirma que deseja devolver o seu bilhete de entrada no céu3. Romano Guardini, um homem profundamente crente, mas também profundamente predisposto à melancolia, escreveu, quando a sombra da morte pairava já sobre ele, que no Juízo Final não permitiria que só fosse interrogado – ele próprio também iria formular algumas perguntas. Esperava

Para um tratamento pormenorizado da questão da teodiceia, veja-se a seção 7 do Capítulo 5. 2 O. Marquard, “Der angeklagte und der entlastete Mensch in der Philosophie des 18. Jahrhunderts”, in Abschied von Prinzipiellen, Stuttgart, 1981, 39-66. 3 F. M. Dostoiévski, Die Brüder Karamazoff, Munique, 1977, 394-399. 1

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obter então uma resposta “à pergunta a que nenhum livro, nem sequer as Escrituras, nem nenhum dogma ou magistério podia responder: por quê, oh Deus, os terríveis desvios até à salvação, por que o sofrimento dos inocentes, por que a culpa?”4. O sofrimento no mundo é, provavelmente, o argumento de maior peso do ateísmo moderno. A ele acrescem outros argumentos, como, por exemplo, a incompatibilidade da imagem tradicional cristã do mundo com a imagem científica atual do mesmo, que, determinada pela teoria da evolução e pela neurociência mais recente, apresenta um caráter naturalista5. Todos estes argumentos tiveram repercussão. Fizeram com que, na atualidade, para muitos, Deus não exista; pelo menos, são muitas as pessoas que vivem como se Deus não existisse. A maioria parece inclusivamente poder viver muito bem sem Ele, ou pelo menos não pior do que muitos dos cristãos. Esta circunstância transformou a índole da pergunta sobre Deus. Pois se Deus não existe, ou se Deus passou a ser irrelevante para muitos, então protestar contra Deus já não faz sentido nenhum. As perguntas “por que todo este sofrimento?” e “por que tenho eu de sofrer?” fazem-nos antes calar e ficar sem palavras. A pergunta sobre um Deus misericordioso, que tanto inquietava o jovem Martinho Lutero, nem sequer se coloca hoje a muitos – deixa-os indiferentes e frios. A resignação perante a pergunta sobre o sentido e o derrotismo que lhe está intimamente ligado não ocorre unicamente em pessoas que, com excessiva precipitação, desdenhamos como sendo superficiais; atualmente ela também se encontra – como demonstrou Jürgen Habermas – ao nível do pensamento filosófico profundamente consciente6. No entanto, nos homens da reflexão fica a sensação do que ainda falta7. Deste modo, juntamente com as diversas aflições Cit. por E. Biser, Interpretation und Veränderung, Paderborn, 1979, 132 s. Para a antiga problemática do ateísmo, cf. W. Kasper, Der Gott Jesu Christi (1982) (WKGS), Friburgo, 2008, 63-108; para o denominado “novo ateísmo”, M. Striet (ed.) Wiederkehr des Atheismus. Fluch oder Segen für die Theologie?, Friburgo, 2008; G. M. Hoff, Die neuen Atheismus. Eine notwendige Provokation, Kevelaer, 2009. 6 Cf. J. Habermas, Glauben und Wissen, Frankfurt, 2001, 27 s. 7 J. Habermas, “Ein Bewusstsein von dem, was fehlt”, in M. Reder/J. Schmidt, Ein Bewusstsein vom dem, was fehlt, Frankfurt, 2008, 26-36. 4

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corporais, já de si suficientemente difíceis de suportar, existem também a aflição espiritual, a desorientação e as experiências de falta de sentido. “Quando secam os oásis utópicos, abre-se um deserto de banalidade e indefinição.”8 Portanto, abandonar as respostas antigas não significa que se tenha encontrado já outras respostas novas e mais convenientes. O que surge é um vazio. Muitos poderão aguentar e suportar com valentia esta situação. Merecem todo o nosso respeito. Outros, ao invés, veem-se empurrados para o desespero. Perante um mundo considerado absurdo, perguntam-se: não seria melhor não ter nascido? Para Albert Camus, o suicídio era o único problema filosófico que merecia ser levado a sério9. Mas, com isto, o ser humano não só nega Deus, mas também, ao negar Deus, nega-se a si mesmo. Para outros, o lugar dos deuses e do medo do Deus-juiz é ocupado pelos medos perante fantasmas anônimos, sempre novos e diferentes10. Muitos dos que se dedicam à reflexão percebem a gravidade da situação e retomam a procura. Há mais pessoas à procura e mais peregrinos anônimos do desconhecido do que habitualmente supomos. Estão conscientes de que deixar de colocar a pergunta sobre o sentido equivale, em última instância, a abdicar do ser humano enquanto tal, à perda da sua verdadeira dignidade. Sem a pergunta sobre o sentido e sem esperança, degeneramos num animal engenhoso, que só é capaz de se alegrar com as coisas materiais. Mas então tudo se torna monótono e banal. Deixar de colocar a pergunta sobre o sentido significa renunciar à esperança de que algum dia reinará a justiça. Seriam, então, os homens da violência que, no final, teriam razão, e os assassinos quem triunfaria sobre as suas vítimas inocentes. Por essa razão é que nem só os cristãos crentes, mas também muitos pensadores atentos com outras convicções reconhecem que a mensagem da morte de Deus, muito ao contrário do que esperava

J. Habermas, Zeitdiagnosen, Frankfurt, 2003, 47. A. Camus, Der Mythos von Sisyphos. Ein Versuch über das Absurde, Düsseldorf, 1960, 9. 10 R. Safranski, Romantik. Eine deutsche Affäre, Munique, 2007. 8 9

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Nietzsche, não representa sequer a libertação do ser humano11. Aí, onde a fé em Deus se volatiliza, permanecem – como bem sabia o próprio Nietzsche – um vazio e um frio atrozes12. Sem Deus ficamos completamente sem saída, à mercê dos destinos e dos azares do mundo e das tribulações da história. Sem Deus não existe instância alguma à qual possamos apelar, não existe qualquer esperança num último sentido e numa justiça definitiva. Isto mostra que a morte de Deus nas almas de muitas pessoas (Friedrich Nietzsche), “a ausência de Deus” (Martin Heidegger)13, o “eclipse de Deus” (Martin Buber)14 é a verdadeira e mais profunda aflição. Pertence aos “sinais dos tempos” e aos “fatos mais graves do nosso tempo”15. É bem conhecida a frase de Max Horkheimer: “A intenção de salvar um sentido incondicional à margem de Deus é vã”16. Theodor W. Adorno fala da “incompreensibilidade do desespero”17 e escreve: “A filosofia, na única forma em que é responsável levá-la a cabo quando nos vemos confrontados com o desespero, seria a intenção de considerar todas as coisas tal como se apresentam sob o ponto de vista da salvação. O conhecimento não tem mais luz do que aquela que a salvação faz resplandecer sobre o mundo: tudo o mais se esgota em construções a posteriori e não é mais do que um fragmento da técnica”18. No sentido de Kant, cabe falar de um postulado que afirma que a dignidade absoluta do ser humano só é possível se existir Deus, e se Ele for um Deus da misericórdia e da graça19.

F. Nietzsche, Die fröhliche Wissenschaft (WW II, ed. Schlechta), 126128.205 s. 12 Ibid., 127. 13 M. Heidegger, Erläuterungen zu Hölderlins Dichtung, Frankfurt, 1951, 27. 14 M. Buber, Gottesfinsternis, Betrachtungen über die Beziehungen zwischen Religion und Philosophie (WW I), Munique, 1962, 503-603. 15 Cf. GS 19. 16 M. Horkheimer, Die Sehnsucht nach dem ganz Anderen. Ein Interview mit Kommentar von H. Gumnior, Hamburgo, 1970, 69. 17 T. W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt, 1966, 376. 18 T. W. Adorno, Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschädigten Leben, Frankfurt, 1970, 333. 19 Cf., a este respeito, o Capítulo II.1. infra. 11

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Tal como Kant o entendia, um tal postulado não era uma prova da existência de Deus. O postulado de Kant baseia-se no pressuposto de que a vida humana deve frutificar. A renúncia a este pressuposto pode resultar no niilismo e, a partir daí, num abrir e fechar de olhos, no cinismo do assassinato e do homicídio. Deste modo, o postulado de Kant não é uma prova da existência de Deus, mas sim um claro indício de que a pergunta sobre Deus não se tornou, pelo menos, supérflua. Com ela decide-se o sentido, ou o sem-sentido, da condição humana. É esta a razão pela qual o rumor de Deus se mantém tenazmente perante todos os argumentos demonstrados e pseudodemonstrados20. Não é a fé em Deus que fica em evidência, mas sim as teorias sobre ela que profetizavam uma irreprimível e progressiva secularização e uma extinção gradual da religião, e que acreditavam que seriam até capazes de fazer dobrar os sinos pela morte da fé em Deus21. Não há razão para nos erguermos como defensores da tese problemática de uma renovação da religião; também assistimos a um reinício/uma renovação do ateísmo22. Mas é legítimo que se convide a que se reflita de novo sobre Deus. Nesse esforço de reflexão, não se trata tanto da pergunta “Deus existe?”, por muito mais importante que essa interrogação possa ser. Trata-se antes da pergunta sobre o Deus misericordioso, o Deus “rico em misericórdia” (Ef 2,4), que nos consola a fim de que nós, pela nossa parte, nos consolemos uns aos outros (cf. 2Cor 1,3 s.). Porque, aos olhos do círculo vicioso do mal, só pode haver esperança num novo começo se for possível confiar num Deus tão clemente e tão misericordioso quanto todo-poderoso, o único capaz de construir um novo começo e de nos dar coragem para esperar contra toda a esperança e força para o tentar outra vez. Trata-se, pois, do Deus vivo que chama os mortos à vida e que, no final, enxuga todas as lágrimas e tudo renova (cf. Ap 21,4 s.).

R. Spaemann, Das unsterbliche Gottesgerücht. Die Frage nach Gott und die Täuschung der Moderne, Stuttgart, 2007. 21 Para o tema complexo da secularização, ver a obra modelar de C. Taylor, A Secular Age, Cambridge (Mass.), Londres, 2007. 22 Cf., a este respeito, W. Kasper, Der Gott Jesu Christi (cf. supra, nota 5), 20-22. 20

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Santo Agostinho, o grande doutor da Igreja do Ocidente, experimentou, segundo o seu próprio testemunho, a misericórdia e a proximidade de Deus na sua vida precisamente quando mais afastado se sentia d’Ele. Nas suas Confissões, escreve: “A Ti o louvor e a glória, oh Deus, fonte de misericórdia! Cada vez me tornava mais miserável e Tu cada vez me tornavas mais próximo”23. E acrescenta: “Emudeça no seu louvor a Deus quem primeiro não tenha contemplado as provas da misericórdia divina”24. Com efeito, se não somos capazes de anunciar de uma forma nova a mensagem da misericórdia divina às pessoas que padecem de aflição corporal e espiritual, deveríamos calar-nos sobre Deus. Depois das terríveis experiências vividas no século XX e no ainda incipiente século XXI, a questão sobre a compaixão de Deus e sobre as pessoas compassivas é hoje mais urgente do que nunca.

2. A misericórdia – um tema fundamental para o século XXI Dois Papas da segunda metade do século XX reconheceram com toda a clareza os “sinais dos tempos” e exortaram a que se voltasse a situar a questão da misericórdia no centro do anúncio e da prática eclesiais. João XXIII, o Papa Buono, como lhe chamavam carinhosamente os italianos, foi o primeiro a lançar esse desafio. Já no seu diário espiritual se encontram inúmeras e profundas considerações sobre a misericórdia divina. Para ele, a misericórdia é o mais belo nome de Deus, a forma mais bela de nos dirigirmos a Ele; além disso, as nossas misérias são o trono da misericórdia divina25. E cita o Salmo 89,2: “Misericordias Domini in aeternum cantabo” – “hei de cantar para sempre o amor do Senhor”26. Por isso, João XXIII ter afirmado, no seu discurso de abertura do Concílio Vaticano II, proferido no dia 11 de outubro de 1962, com

Augustinus, Confessiones, VI, 16, 26. Ibid., 149. 25 Cf. João XXIII, Il Giornale dell’Anima e Altri Scritti di Pietà, L. F. Capovilla (org.), Cinisello Bálsamo, Milão, 1989, 452. 26 Ibid., 149. 23 24

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o qual traçou o caminho do próprio concílio, que o concílio não se podia limitar a repetir a doutrina tradicional da Igreja correspondia a uma convicção interior amadurecida há muito e a um profundo desejo pessoal. A doutrina da Igreja, assegura o Papa, é conhecida e já está estabelecida. A Igreja “resistiu aos erros de todas as épocas; amiúde também os condenou, em certas ocasiões até com bastante severidade. Hoje, pelo contrário, a esposa de Jesus Cristo prefere empregar a medicina da misericórdia antes de empunhar a arma da severidade”27. Foi assim adotado um novo tom que animou muitos a parar e escutar. O novo tom surtiu o seu efeito no decurso dos tempos posteriores ao concílio. Na verdade, os 16 documentos do concílio não quiseram, nem tampouco o quis o Papa, renunciar ou modificar em absoluto qualquer característica da doutrina tradicional da Igreja. Mas adotaram um novo tom e propuseram um novo estilo no anúncio e na vida da Igreja. Tal como o Papa, esses documentos aperceberam-se do vínculo existente entre a misericórdia e a verdade28. João XXIII caracterizou esse novo estilo sublinhando a intenção pastoral do concílio. Inúmeros debates, e também alguns mal-entendidos, se desenvolveram em torno do conceito de “pastoral”, tanto durante o concílio como depois dele, no pós-concílio29. Sem pretender entrar aqui numa discussão técnica, cabe afirmar que o novo estilo pastoral a que se referia João XXIII teve muito que ver com aquilo que João XXIII havia referido no discurso de abertura do concílio com a expressão “medicina da misericórdia”. Desde então, o tema da misericórdia tornou-se fundamental, não só para o concílio, mas também para toda a prática pastoral da Igreja pós-conciliar. O Papa João Paulo II desenvolveu e aprofundou o que foi sugerido por João XXIII. O tema da misericórdia não surgiu no pensamento de João Paulo II quando ele estava sentado à secretária do

Herr Korr, 17 (1962/1963), 87. Cf. João XXIII, Il Giornale dell’Anima (e nota 25, supra), 465. 29 Cf., a este respeito, W. Kasper, Katholische Kirche. Wesen – Wirklichkeit – Sendung, Friburgo, 2011, 32.39-41.453 s. 27 28

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seu gabinete. Este Papa conheceu como nenhum outro, e padeceu na sua própria carne, a história do sofrimento da sua época. Cresceu nas proximidades de Auschwitz; na juventude, nos seus primeiros anos de sacerdote e na época em que foi bispo de Cracóvia, viveu os horrores das duas guerras mundiais e de brutais sistemas totalitários e experimentou muitas tribulações no seu povo e na sua própria vida. O seu pontificado ficou marcado pelas consequências de um atentado e, nos últimos anos de vida, pelo sofrimento pessoal. O testemunho do seu sofrimento foi uma homilia mais eloquente do que muitas das homilias que proferiu e do que os inúmeros documentos que escreveu. Desse modo, fez da misericórdia o tema condutor do seu longo pontificado. E engrandeceu com força a Igreja do século XXI30. Na segunda encíclica do seu pontificado, Dives in Misericordia (1980), João Paulo II ocupou-se do tema da misericórdia. O subtítulo dado à edição alemã da encíclica foi “O ser humano ameaçado e a força da compaixão” (“Der bedrohte Mensch und die Kraft des Erbarmens”)31. Nesta encíclica, o Papa recorda que a justiça por si só não basta, pois a summa iustitia também pode ser summa iniustitia. A primeira canonização do terceiro milênio, que teve lugar no dia 30 de abril de 2000, foi deliberada e programaticamente consagrada ao tema da misericórdia. Nesse dia foi canonizada a religiosa mística polonesa Faustina Kowalska (1938), até então pouco conhecida entre nós. Esta simples religiosa, nas suas notas sobre a teologia neoescolástica e a sua doutrina em grande medida abstrata e metafísica, parte dos atributos divinos e, em plena consonância com a Bíblia, caracteriza a misericórdia como o maior e mais elevado atributo de Deus,

Para uma boa compilação dos textos, ver João Paulo II, Barmherzigkeit Gottes – Quelle der Hoffnung, com seleção e introdução de E. Olk, Einsiedeln, 2011. Existem várias publicações sobre os contributos de João Paulo II para o tema da misericórdia. Limitamo-nos aqui a mencionar duas: Ch. Schönborn, Wir haben Barmherzigkeit gefunden. Das Geheimnis göttlichen Erbarmens, Friburgo, 2009; e E. Olk, Die Barmherzigkeit Gottes – zentrale Quelle des christlichen Lebens, St. Ottilien, 2011 (onde nos é oferecida uma exaustiva perspectiva de conjunto de outros contributos). 31 Cf. a tradução alemã: João Paulo II, Dives in Misericordia (1980), com comentário de K. Lehmann, Friburgo, 1981. 30

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destacando-a como a perfeição divina por antonomásia32. Deste modo situa-se dentro de uma grande tradição de mística feminina. Basta recordar aqui Santa Catarina de Siena e Santa Teresa de Lisieux. Durante uma visita a Lagievniki, o subúrbio de Cracóvia onde viveu a irmã Faustina, o Papa disse, no dia 7 de junho de 1997, que a história tinha inscrito o tema da misericórdia na trágica experiência da Segunda Guerra Mundial como uma ajuda especial e uma inesgotável fonte de esperança. Essa mensagem assinalou, sem qualquer dúvida, a imagem do seu pontificado. Na homilia que proferiu por ocasião da canonização da irmã Faustina, o Papa disse que esta mensagem devia ser como um raio de luz para o caminho do ser humano no terceiro milênio. Durante a sua última visita à pátria polonesa, no dia 17 de agosto de 2002, João Paulo II consagrou solenemente em Lagievniki o mundo à divina misericórdia. Nessa ocasião, encarregou a Igreja de transmitir ao mundo o fogo da compaixão. Seguindo uma sugestão da irmã Faustina, o Papa proclamou o Segundo Domingo da Páscoa, o chamado “Domingo in Albis”, como o Domingo da Divina Misericórdia. Muitos viram um sinal da Divina Providência no chamamento deste Papa à casa do Pai na véspera do Domingo da Divina Misericórdia, no dia 2 de abril de 2005. O Papa Bento XVI assumiu esta interpretação na beatificação do Papa João Paulo II, no dia 1º de maio de 2011, Domingo da Divina Misericórdia. Mesmo durante as exéquias de João Paulo II, celebradas no dia 8 de abril de 2005 na Praça de São Pedro, em Roma, o então cardeal Ratzinger, na sua qualidade de decano do Colégio Cardinalício, tinha sublinhado a misericórdia como a ideia-diretriz do seu predecessor, assumindo-a ele igualmente como um dever pastoral. Disse o seguinte: “Ele [o Papa João Paulo II] mostrou-nos o mistério pascal como o mistério da misericórdia divina. No seu último livro escreveu: o limite imposto ao mal é, em última análise, a misericórdia divina”. Trata-se de uma citação literal do livro de João Paulo II que tinha sido publicado poucos meses antes da sua morte sob o título

Cf. a tradução alemã Tagebuch der Schwester Maria Faustina Kowalska, Hauteville, 1993. E também, a este respeito, H. Buob, Die Barmherzigkeit Gottes und der Menschen. Heilmittel für Seele und Leib nach dem Tagebuch der Schwester Faustina, Hochaltingen, 2007. 32

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Memória e Identidade, um livro que tece uma vez mais, à guisa de síntese, o principal fio condutor do seu pensamento33. E, na celebração eucarística com que iniciou o conclave no dia 18 de abril de 2005, o cardeal Ratzinger disse ainda: “Ouvimos, com alegria, o anúncio do ano de misericórdia: a misericórdia divina põe um limite ao mal, disse-nos o Santo Padre. Jesus Cristo é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus. O mandato de Cristo tornou-se nosso mandato através da unção sacramental; somos chamados a promulgar não só com palavras mas com a vida, e com os sinais eficazes dos sacramentos […]”NE. Não admira, portanto, que já na sua primeira encíclica Deus Caritas Est (Deus é Amor, 2006) o Papa Bento XVI tenha prosseguido na linha seguida pelo seu predecessor, aprofundada teologicamente naquela. Na sua encíclica social Caritas in Veritate (Caridade na Verdade, 2009) concretizou este tema à luz dos novos desafios. A diferença em relação às encíclicas sociais de Papas anteriores é que não parte já da justiça, mas sim do amor como princípio fundamental da doutrina social cristã. Deste modo, opta por um novo enfoque da doutrina social da Igreja e põe novas tônicas, que retomam uma vez mais a grande meta da misericórdia num contexto mais amplo. Assim, houve três Papas da segunda metade do século XX e do início do século XXI que nos propuseram o tema da misericórdia. Verdadeiramente, não se trata de um tema secundário, mas sim de um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento, de um tema fundamental para o século XXI, em resposta aos “sinais dos tempos”.

3. A misericórdia – um tema imperdoavelmente esquecido Sublinhar a misericórdia como tema central da teologia do século XXI, isto é, para o discurso sobre Deus que oferece justificação

Cf. João Paulo II, Erinnerung und Identität, Augsburgo, 2005, 75. Todas as citações de documentos publicados pelo Vaticano foram confrontadas com as versões dos mesmos constantes da respectiva página na Internet (www.vatican.va), consultada em março de 2014. 33

NE

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racional para a fé em Deus, importa questionar de um modo novo a importância central da mensagem da misericórdia divina no testemunho do Antigo e do Novo Testamento34. Ao tentar levar a cabo esta pesquisa, chega-se à assombrosa, mas também alarmante, constatação de que este tema, fundamental para a Bíblia e de atualidade para a experiência contemporânea da realidade, só ocupa, no melhor dos casos, um lugar marginal nos dicionários enciclopédicos e nos manuais de teologia dogmática. Tanto nos manuais tradicionais de teologia dogmática como nos mais recentes, a misericórdia de Deus é tratada unicamente como mais um dos atributos que resultam da essência metafísica do mesmo Deus. Deste modo, a misericórdia não desempenha nenhum papel determinante em todo o sistema35. Nos manuais mais recentes está muitas vezes ausente36 e, se aparece, aparece só de pasCf. infra capítulos III e IV. F. Diekamp (Katholische Dogmatik, Vol. 1, Munique, 1957, 225) dedica à misericórdia unicamente 11 linhas, nas quais enumera este atributo juntamente com outros. Tal fato parece insólito quando se trata de uma dogmática elaborada “de acordo com os princípios de São Tomás”, a quem devemos um número considerável de magníficas afirmações sobre a misericórdia. J. Pohle e J. Gummersbach (Lehrbuch der Dogmatik, Vol. 1, Paderborn 1952, 338-340) ocupam-se da misericórdia quase como um apêndice, como o último dos atributos divinos. Em L. Ott (Grundriss katholischer Dogmatik, Friburgo, 1970, 57 s.), a misericórdia não merece mais do que cerca de uma página sob o título dos atributos morais de Deus. Em M. Schmaus (Katholische Dogmatik, Vol. 1, Munique, 1960), são duas páginas e meia, que se encontram mesmo no final de uma seção de 678 páginas sobre a doutrina de Deus, não ocupando assim um lugar capaz de determinar a totalidade do sistema. Na obra coletiva Glaubenszugänge. Lehrbuch der katholischen Dogmatik, Vol. 1, Paderborn, 1995, 392, encontramos apenas uma referência sucinta à misericórdia divina no tratado sobre a criação. O que antecede não são mais do que algumas amostras que se poderiam multiplicar facilmente. 36 Em Grundriss heilgeschichtlicher Dogmatik: Mysterium salutis, Vol. 2, Einsiedeln, 1967, só se fala da misericórdia divina em passagens de teologia bíblica (264, 268, 279, 113), e nunca de um ponto de vista sistemático. Isto vale também para a Initiation à la Pratique de la Théologie (B. Lauret e R. Fefoulé), tomo 3, Paris, 1983 [trad. alemã: Neue Summe Theologie, P. Eicher (dir.), Vol. 1, Friburgo, 1988]. Outro tanto se pode dizer de Handbuch der Dogmatik, T. Schneider (dir.), Vol. 1, Düsseldorf, 1992; da exposição conjunta de G. L. Müller, “Katholische Dogmatik”, Friburgo, 1995, 238.241, in H. Wagner, Dogmatik, Stuttgart, 2003, 361 ss.; é surpreendente que O. H. Pesch (Katholische Dogmatik, Vols. 1 e 2, Ostfildern, 2008) na sua dogmática concebida a partir da sua longa experiência ecumênica, 34 35

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sagem. Existem exceções que confirmam a regra, mas que não logram alterar de maneira relevante as regras gerais37. Isto só poderá ser qualificado de decepcionante, ou até mesmo de catastrófico. É necessário repensar do princípio ao fim a doutrina sobre os atributos de Deus, concedendo à misericórdia divina o lugar que lhe pertence, pois a sobredita constatação não faz justiça à importância fundamental da misericórdia no testemunho bíblico, nem às terríveis experiências do século XX, nem ao medo do futuro que nos interroga nos alvores do novo século. Numa situação em que muitos dos nossos contemporâneos se sentem desalentados, sem esperança e desorientados, a mensagem da misericórdia divina deveria fazer-se valer enquanto mensagem de confiança e de esperança. Deste modo, sublinhar a importância da misericórdia divina à luz da situação atual representa uma enorme provocação para a teologia. O afastamento da reflexão teológica em relação à mensagem da misericórdia, fundamental na Bíblia, tem como consequência que este conceito se tenha degradado com frequência, degenerando numa pastoral e numa espiritualidade “suaves”, numa brandura sem energia nem vigor, carente de determinação e de um perfil claro e que procura unicamente fazer justiça, de um ou outro modo, a qualquer pessoa. Uma prática assim flexível pode ser até certo ponto compreensível como reação a uma prática anterior implacavelmente rígida e legalista. Mas a misericórdia, quando nela já nada se percebe da comoção que supõe estar perante o Deus santo, nem nada se percebe da justiça de Deus, nem do juízo ao qual teremos de nos submeter, quando o sim já não é um sim e o não já não é um não, quando ela – a misericórdia – não supera as exigências da justiça, mas

não mencione uma só vez a misericórdia divina, apesar de ter podido fazê-lo a partir da experiência de Lutero. Nem eu posso, infelizmente, deixar de me submeter a esta crítica, pois no meu tratado sobre Deus Der Gott Jesu Christi (1982), (WKGS 4, Friburgo, 2008) passei igualmente por alto a ideia da misericórdia e dela fiz omissão. 37 Uma honrosa exceção encontra-se, sobretudo, em J. M. Scheeben, Handbuch der katholischen Dogmatik, Vol. 2 (WW IV), Friburgo, 1948, § 101, 265-267. Um exemplo positivo na teologia recente é o de B. de Margerie, Les Perfections du Dieu de Jésus Christ, Paris, 1981, 255-268.

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antes permanece abaixo delas, então torna-se uma pseudomisericórdia. O Evangelho ensina a justificação do pecador, mas não a dos pecados; é por essa razão que devemos amar os pecadores, mas odiar os seus pecados. A razão deste tratamento negligente da misericórdia manifesta-se quando se observa que, nos manuais, são os atributos divinos que resultam da essência metafísica de Deus enquanto ser subsistente (ipsum esse subsistens) os que ocupam o primeiro plano: simplicidade, infinitude, eternidade, onipresença, onisciência, onipotência etc. A determinação metafísica da essência divina, que impregnou toda a tradição teológica desde os primeiros tempos da Igreja, não tem, de modo algum, de ser radicalmente questionada; no entanto, temos de nos ocupar da sua legitimidade e dos seus limites38. Trata-se aqui unicamente de mostrar que, no marco dos atributos metafísicos divinos, apenas existe lugar para a misericórdia, a qual não resulta da essência metafísica de Deus, mas sim da sua autorrevelação histórica, o mesmo se passando em relação à santidade e à ira de Deus, isto é, à sua oposição ao mal. Nestes termos, esquecer a misericórdia não é um problema marginal e secundário da doutrina de Deus; antes pelo contrário, isso confronta-nos com o problema fundamental da determinação da essência de Deus e dos atributos divinos em geral, e obriga-nos a reformular a doutrina de Deus. O ponto de partida metafísico tradicional da doutrina de Deus implica um problema adicional para o discurso sobre a misericórdia divina. Pois se Deus é o próprio Ser, desta absoluta plenitude de ser resulta a absoluta perfeição de ser de Deus; e uma tal perfeição, posto que o sofrimento é entendido como carência, inclui a impassibilidade (apátheia) divina perante o sofrimento. Assim, em razão do seu ponto de partida metafísico, era difícil para a dogmática falar de um Deus capaz de compartilhar o sofrimento39. Não haveria outro remédio senão excluir o dado de que Deus sofre (pati) com as suas criaturas num sentido passivo: só se poderia falar de compaixão e de misericórdia num sentido ativo, no sentido em que Deus Se opõe ao sofrimento das 38 39

Cf. infra, seção 1 do Capítulo V. Cf. infra, seção 6 do Capítulo VI.

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suas criaturas e o remedeia40. A pergunta que permanece em aberto é se, com isto, se faz justiça à compreensão bíblica de Deus, que sofre com as suas criaturas e, enquanto misericors, tem um coração (cors) junto dos pobres e para os pobres (miseri)41. Um Deus concebido de forma tão apática pode realmente sentir empatia? De um ponto de vista pastoral, isto era uma catástrofe, pois, para a maioria das pessoas, um Deus concebido de modo tão abstrato parece-lhes muito afastado da sua situação pessoal; parece-lhes que pouco ou nada tem a ver com a situação de um mundo no qual se sucedem quase diariamente notícias aterradoras e muitas pessoas são invadidas pelo medo do futuro. Esse distanciamento entre a experiência da realidade e o anúncio da fé tem consequências catastróficas. Pois a mensagem de um Deus impassível é uma das razões pela qual Deus é visto por muitas pessoas como um ser estranho e, afinal, indiferente. Por último, no marco da concepção metafísica de Deus, os manuais só podiam abordar o tema da misericórdia em ligação com a questão da justiça divina; mais concretamente, da justiça tal como ela era entendida na filosofia antiga, a saber, como o procedimento que dá a cada qual o que é seu (suum cuique). Dela faziam parte a justiça legal (iustitia legalis), a justiça distributiva (iustitia distributiva) e a justiça retributiva (iustitia vindicativa). Em virtude da sua justiça retributiva, Deus recompensa os bons e castiga os maus. O que, por seu turno, não podia senão levar a formular a pergunta de como é possível harmonizar a misericórdia divina e a justiça retributiva. Como pode a justiça de Deus ser compatível com a circunstância de Ele ser misericordioso e não castigar os pecadores? A resposta era: Deus é misericordioso com os pecadores arrependidos e desejosos de se converter, mas castiga aqueles que não se arrependem das suas más ações e não se convertem. Esta resposta torna evidente que, quando se reconhece a justiça retributiva e a justiça punitiva como ponto de vista superior ao qual a misericórdia fica sujeita, se passa a considerar a misericórdia, por assim dizer, como algo que está subordinado à justiça retributiva e à justiça punitiva. 40 41

Cf. São Tomás de Aquino, S. Th. 1, q. 21 a. 3. Cf. infra, Capítulo III.

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A noção de um Deus castigador e vingativo induziu muitas pessoas a temer pela sua salvação eterna. O exemplo mais famoso e com maior repercussão na história da Igreja é o do jovem Martinho Lutero, a quem a questão “como encontro eu um Deus misericordioso?” suscitou durante muito tempo temores de consciência, até se dar conta de que, segundo a Bíblia, a justiça divina não é a justiça castigadora, mas sim a justiça justificadora e, por conseguinte, a misericórdia de Deus. A Igreja do século XVI viveu a sua cisão no seguimento desta questão. A relação entre a justiça e a misericórdia divinas transformou-se, assim, numa questão determinante do destino da teologia ocidental42. Até ao século XX, não se conseguiu chegar a um consenso fundamental entre luteranos e católicos no respeitante à questão da justificação dos pecadores43. E isso só foi possível porque juntos reconhecemos que a justiça de Deus é a sua misericórdia. No entanto, não foram ainda, até agora, retiradas as consequências do acordo alcançado sobre a doutrina da justificação para a fé para a doutrina de Deus e para um novo discurso sobre um Deus libertador e justificador. Aqui, sob o sinal da nova evangelização, formula-se um desafio comum e fundamental. Assim, estamos perante a tarefa de retirar a misericórdia da humilde existência à qual ela tinha sido condenada na teologia tradicional. O que deve ser levado a cabo sem incorrer na imagem banal e minimizadora do “bom Deus”, que transforma Deus num colega benevolente e não toma já a sério a santidade divina. A misericórdia deve ser entendida como a própria justiça de Deus, como a sua santidade. Só deste modo poderemos fazer com que resplandeça de novo a imagem do Pai bondoso e compassivo que Jesus nos anunciou. Também caberia aqui dizer: é necessário desenhar a imagem de um Deus capaz de empatia. Em face das deformações ideológicas da imagem de Deus, esta posição torna-se, na atualidade, duplamente necessária. Assim o afirma com razão O. H. Pesch, “Gerechtigkeit Gottes II”, in LThK, 6, 506. 43 Cf. “Gemeinsame Erklärung zur Rechtfertigungslehre des Lutherischen Weltbundes und der katholischen Kirche”, in H. Meyer et al. (ed.), Dokumente wachsender Übereinstimmung, Vol. 3, Paderborn – Frankfurt, 2003, 419-430. Cf. Capítulo V.3. 42

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4. A misericórdia sob a suspeita de ideologia A misericórdia não constitui unicamente um problema intrateológico; ela é também, no confronto das ideologias modernas, um problema social. O problema apresenta-se-nos sobretudo em Karl Marx e no marxismo. Marx qualificou a religião de “consolo perante o mundo e justificação do mundo”. Para Marx, a miséria da religião era ou a expressão da miséria real, ou um protesto contra essa mesma miséria. “A religião é o gemido da criatura atormentada, como também é o espírito das situações carentes de espírito. É o ópio do povo.”44 Esta frase tão frequentemente citada costuma ser interpretada unilateralmente num sentido crítico da religião. Todavia, a valoração da religião que nela transparece não é só negativa. Reconhece claramente uma dimensão justificada de protesto na religião: a religião como protesto contra a miséria, a injustiça e a autossuficiência pequeno-burguesa. Mas Marx está convencido de que este protesto inerente à religião foi ideologicamente mal encaminhado, transformando-se, assim, num mero consolo e levando a uma atitude errada de fuga do mundo. Que tenha existido e exista um tal abuso ideológico da religião é algo que não pode ser negado com seriedade. Mas um tal abuso não justifica que sobre a promessa de um consolo religioso se pronuncie de modo indiferenciado o veredicto de ideologia. Isso equivaleria a perpetuar uma nova injustiça contra os seres humanos que, na necessidade, procuram ajuda na religião e nela encontram forças para fazer frente à vida neste mundo. Em nome da religião e da misericórdia protestou-se já, muitas vezes, também contra a injustiça e a violência e atuou-se contra elas de uma forma enérgica. O aparecimento de um movimento social cristão já no tempo de Karl Marx é uma prova desta tese45. Não obstante, a intenção de eliminar todo o mal e todo o sofrimento por meio da violência, tal como é proposto no comunismo K. Marx, “Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie” (1843/1844), in K. Marx, Frühe Schriften, Vol. 1, Darmstadt, 1962, 488. 45 Cf. Capítulo VIII.1. 44

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ideológico e totalitário, não só resultou num fracasso, como ficou bem conhecido por meio de uma experiência dolorosa, mas também, paradoxalmente, ocasionou adicional e indizível mal e sofrimento a milhões e milhões de pessoas. Existem testemunhos comoventes dos cumes de miséria humana e desconsolo a que o mundo ateu e desapiedado do comunismo estalinista, carente de qualquer misericórdia, conduziu. Nesse mundo só importava, supostamente, a justiça, e não a misericórdia, que era considerada uma atitude burguesa antiquada. E era precisamente na ausência total de misericórdia que marcava presença o clamor pela misericórdia46. Uma crítica à compaixão e à misericórdia de cariz muito diferente do do marxismo encontra-se em Friedrich Nietzsche. Este filósofo alemão contrapôs ao pensamento racional, que qualificou de apolíneo, o pensamento criador dionisíaco, que extravasa de toda a forma, e o extático sentimento vital. Em consequência da afirmação dionisíaca da vida, Nietzsche vê na compaixão um aumento do sofrimento. Para ele, a misericórdia não é altruísmo, mas antes uma forma refinada de egoísmo e autofruição, visto que o misericordioso mostra e faz sentir, com desdém, ao pobre a sua superioridade47. Na sua obra principal, Assim Falou Zaratustra, Nietzsche anuncia de certo modo um evangelho antitético ao evangelho cristão da misericórdia: “Deus está morto; a sua compaixão pelos homens matou-O”. A morte de Deus abre espaço para o super-homem e para a sua vontade de poder. Por isso, em antítese ao Sermão da Montanha, Nietzsche pode proclamar: “Não gosto dos misericordiosos”. “Mas todos os criadores são duros.”48 Deste modo, em Nietzsche, levanta-se, afinal, a contraposição entre Dioniso e Cristo, o Crucificado49. Nas escolas de elite do nacional-socialismo alemão contava – podemos aqui prescindir da questão de saber se respeitando o seu sentido original ou traindo-o – o apotegma de Nietzsche: “Louvado D. Granin, Die verlorene Barmherzigkeit. Eine russische Erfahrung, Friburgo, 1993. 47 F. Nietzsche, “Menschliches, Allzu-Menschliches”, in WW 1, 485 s., 1004-1017, entre outros. 48 F. Nietzsche, “Also sprach Zarathustra”, in WW II, 346-348. 49 F. Nietzsche, “Ecce homo”, in WW II, 1159. 46

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seja aquilo que endurece”50. Os ditos de Nietzsche sobre a moral dos senhores51 e sobre a raça dos senhores52 tiveram como resultado uma perversa pós-história. As consequências da ideologia nacional-socialista foram desumanas. Daí que, na atualidade, ninguém queira sequer pronunciar expressões como “raça dos senhores”. Isso não significa que a inclemência não impere também com frequência na vida das sociedades ocidentais, nas quais a hostilidade contra os estrangeiros aliada à arrogância perante outras culturas continua, infelizmente, a existir. Ao que antecede juntam-se, na nossa sociedade, tendências de darwinismo social que privilegiam o direito do mais forte e a desconsiderada imposição dos próprios interesses egoístas. Os que não estão em condições de resistir são facilmente arrastados e esmagados. Sobretudo no decurso da globalização da economia e dos mercados financeiros, as forças neocapitalistas incontroladas e sem entraves que transformam amiúde e desapiedadamente as pessoas, e mesmo povos inteiros, em joguetes da sua avidez por dinheiro recuperaram um poder crescente53. É significativo que palavras como “misericórdia” e “compaixão” tenham deixado de estar na moda; aos ouvidos de muitos soam a sentimentalismo. Estão gastas e parecem velhas e antiquadas. Por detrás disto está o seguinte ponto de vista: quem não se curva às habituais regras de jogo dos fortes, dos que têm saúde e sucesso, ou aqueles que não se conseguem adaptar a elas; quem, portanto, se atém às bem-aventuranças do Sermão da Montanha, quem questiona cabalmente esta ordem de coisas e as inverte verdadeiramente é tido como ingênuo e deslocado e torna-se, tal como o príncipe Myschkin na novela O Idiota, de Dostoiévski, digno de uma troça compassiva. Assim, o termo “compaixão” contém com frequência uma nota negativa, quase cínica54. Não parece, pois, que na nossa sociedade a compaixão F. Nietzsche, “Ecce homo”, in WW II, 404. Cf. id., “Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft”, in WW II, 730. 52 Cf. id., “Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre”, in WW III, 521. 53 Cf. Capítulo VIII. 54 Mais exemplos podem ser encontrados em K. Hamburger, Das Mitleid, Stuttgart, 2001. Hamburger sustenta que a compaixão é um fenômeno eticamente 50 51

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e a misericórdia sejam tidas em grande consideração. Contudo, existem também, por sorte, movimentos alternativos.

5. A empatia e a compaixão como novos caminhos de acesso O clamor de busca da empatia e da misericórdia não está de modo algum abafado na atualidade; antes pelo contrário, até se intensificou. Por muito que os termos “compaixão” e “misericórdia” tenham passado de moda, o mesmo não se passa com a demonstração de tantas atitudes e condutas. Existiu, e existe hoje, um desconcertante temor ao sangue frio manifestado na burocraticamente organizada política de aniquilação nacional-socialista, bem como nas alargadas indiferença e frieza de um mundo cada vez mais individualista e nos surtos de violência dos jovens com perturbações que espancam, espezinham e torturam sem motivo algum as suas vítimas, assumindo eles próprios, inclusivamente, o risco de as matar. As catástrofes naturais e as fomes que acontecem no mundo desencadeiam sem cessar impressionantes ondas de empatia e altruísmo. Não podemos da mesma forma esquecer a solidariedade que, de um modo geralmente anônimo e com escasso reconhecimento público, se vive no ambiente familiar, entre vizinhos e comunidades. Graças a Deus, na atualidade, a compaixão e a misericórdia não se tornaram estranhas, nem nos abandonaram. A compaixão – ou, como se prefere dizer, a empatia, isto é, a compreensão por meio da identificação afetiva – transformou-se num novo e importante paradigma das modernas psicologia, psicoterapia, pedagogia, sociologia e pastoral55. Identificar-se com a situação, com o mundo de sentimentos, pensamentos e experiências existenciais de outra pessoa, colocar-se no seu lugar, a fim de entender a sua maneira

neutro que implica distância. Esta ideia é criticada por N. Gülcher e I. von der Lühe em Ethik und Ästhetik des Mitleids, Friburgo, 2007. 55 C. Rogers, “Empathie – eine unterschätzte Seinsweise”, in R. Rosenberg, Die Person als Mittelpunkt der Wirklichkeit, Friburgo, 1980. Cf. K. Hilpert, “Mitleid”, in LThK 7, 334-337.

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de pensar e de agir é hoje, em geral, tido como condição indispensável das relações pessoais bem-sucedidas e demonstração de verdadeira humanidade. Introduzir-se no mundo de sentimentos, de pensamentos e de experiências existenciais de outras culturas e de outros povos é, para além do mais, condição fundamental do encontro intercultural, da convivência pacífica e da colaboração entre religiões e culturas, bem como da diplomacia e de toda a política orientada para a prossecução da paz. Em vez de “empatia”, há os que preferem, numa linguagem atual, falar de “compaixão”. Assim, por exemplo, Compassion é o nome de uma organização de ajuda à infância que procura padrinhos para crianças que passam necessidades no mundo inteiro. O padrinho ajuda a que a pobreza seja superada e a que a criança por ele apadrinhada possa enfrentar o futuro com esperança. Este termo, compassion, designa também um projeto de educação e formação que pretende fomentar a aprendizagem social, as capacidades sociais e a responsabilidade social56. Por último, existe uma Charter for Compassion (“Carta para a Compaixão”) da qual Karen Armstrong aparece como a principal defensora. Com tudo isto, aquilo que era, aparentemente, antiquado regressou sob um novo nome e uma nova forma. A teologia fez seu este desejo e tentou tirar partido dele, partindo de um ponto de vista teológico. Johann Baptist Metz elevou a compaixão a programa universal do Cristianismo numa época marcada pela pluralidade de religiões e culturas57. Já em publicações anteriores este teólogo alemão tinha situado no centro das suas reflexões o problema de Deus tal como ele se apresenta no horizonte das experiências de injustiça e de sofrimento, reclamando uma teologia sensível ao sofrimento e à questão da teodiceia58.

J. B. Metz/L. Kuld/A. Weisbrod (ed.), Compassion, Weltprogramm des Christentums. Soziale Verantwortung lernen, Friburgo, 2009. Cf. também D. Mieth, “Mitleid”, in ibid, 21-25. 57 Publicado originalmente no suplemento cultural do Süddeutsche Zeitung de 24.12.2007, e depois em J. B. Metz, “Compassion. Zu einem Weltprogramm des Christentums im Zeitalter des Pluralismus der Religionen und Kulturen”, in Metz/Kuld/Weisbrod (ed.), Compassion (ver nota 55), 9-18. 58 Cf. principalmente J. B. Metz, “Plädoyer für mehr Theodizee-Empfindlichkeit in der Theologie”, in W. Oelmüller (ed.), Worüber man nicht schweigen 56

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Com o que antecede não se quer referir, certamente, uma compaixão meramente sentimental nem uma misericórdia sem eficácia. O termo “compaixão” não pode ser entendido unicamente como conduta caritativa, mas é necessário escutar como ressoa nele a palavra “paixão” e perceber a reação apaixonada às injustiças clamorosas existentes no nosso mundo, bem como o clamor pela justiça. Já nos profetas veterotestamentários e, mais tarde, no último dos profetas, João Batista, bem como, por último, no próprio Jesus é possível ouvir com total clareza esse clamor. Para além do que antecede, não se pode perder de vista as numerosas palavras de dura crítica contidas tanto no Antigo como no Novo Testamento, nem minimizá-las no sentido de uma misericórdia mal entendida, fazendo assim abrandar as inequívocas e vinculativas exigências bíblicas de justiça. Mas a Bíblia sabe também que a justiça perfeita nunca é alcançável neste mundo. Por isso, em face das injustiças que não podem ser eliminadas, fala-se nela de esperança escatológica na justiça de Deus. Nisto, a Bíblia supera o clamor pela justiça com o apelo à misericórdia. Ela entende a misericórdia como a própria justiça de Deus. Enquanto superação da justiça, e não como relativização da mesma, a misericórdia constitui o núcleo da mensagem bíblica. O Antigo Testamento apresenta Deus como um Deus clemente e misericordioso (cf. Ex 34,6; Sl 86,15 etc.), e o Novo Testamento chama a Deus “o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação”NE (2Cor 1,3; cf. Ef 2,4). Também nos dias de hoje existem numerosas pessoas para as quais, em situações humanamente sem saída, como de catástrofes imerecidas, terremotos devastadores, tsunamis ou reveses pessoais do destino, o apelo à compaixão constitui um último consolo e um último amparo. Uma e outra vez se constata, inclusivamente, que existem pessoas que não praticam a religião de uma forma habitual kann, Munique, 1992, 125-137; J. B. Metz, “Theodizee-empfindliche Gottesrede”, in id. (ed.), Landschaft aus Schreien. Zur Dramatik der Theodizeefrage, Mainz, 1995, 81-102; id., Memoria Passionis. Ein provozierendes Gedächtnis in pluraler Gesellschaft, Friburgo, 2006. NE As citações bíblicas constantes da presente tradução foram transcritas da edição Para o Terceiro Milênio da Encarnação – Bíblia Sagrada, Lisboa/Fátima, Difusora Bíblica, Franciscanos Capuchinhos, 4.ª edição revista, 2005.

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e que, quando confrontadas com essas situações, procuram espontaneamente refúgio na oração. Podemos pensar em inúmeras pessoas que padecem de graves enfermidades ou que nas suas vidas se viram envolvidas nalgum tipo de culpa humanamente insuperável: o único consolo que com frequência lhes resta é saber que Deus é clemente e misericordioso. Esperam que, no final, Deus apague e ponha fim à terrível teia de destino, culpa, injustiça e mentira e que Ele, que aparece na escondida profundidade do coração humano e conhece as suas motivações ocultas, seja um juiz clemente. Daí que o Kyrie eleison que se pronuncia em muitos cantos litúrgicos e no início de cada missa seja hoje, para muitos, uma interpelação; o mesmo se pode dizer da oração do coração “Senhor Jesus Cristo, tem misericórdia de mim”, habitual na tradição ortodoxa e cada vez mais apreciada também na Igreja do Ocidente. Quem poderá afirmar que não precisa de fazer esse pedido? Assim, o tema da misericórdia não tem a ver só com as consequências éticas e sociais desta mensagem; trata-se sobretudo de uma mensagem sobre Deus e a sua misericórdia que só em segundo lugar é sobre o mandamento que daí resulta para a conduta humana. O discurso sobre a empatia e a compaixão pode constituir um ponto de partida para a reflexão teológica sobre este tema. Pois o mal e o sofrimento são tão antigos como a humanidade, são uma experiência humana universal. Todas as religiões se interrogam, de um ou outro modo, sobre a origem e a causa do sofrimento, bem como sobre o seu sentido; questionam-se sobre a salvação em relação com o mal e o sofrimento, mas também sobre a forma de os enfrentar e a fonte onde poderão obter a força para os suportar59. Assim, a compaixão não é unicamente uma experiência do mal e do sofrimento próprios do nosso tempo, mas sim um tema que responde a uma experiência humana universal. Precisamente por isso é que a compaixão é adequada como ponto de partida para a teologia; de Deus, como realidade que tudo determina, não se pode falar em categorias particulares, mas só com a ajuda de categorias universais; só elas se adéquam à pergunta. Cf. P. Hünermann/A. T. Khoury (ed.), Warum leiden? Die Antwort der Weltreligionen, Friburgo, 1987. 59

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Com base no esboço do problema que traçamos, embora incompleto, fica formulada, para as considerações que se seguem, uma série de perguntas: o que quer dizer crer num Deus misericordioso? Que relação existe entre a misericórdia de Deus e a sua justiça? Como podemos falar de um Deus simpático, isto é, de um Deus compassivo? O mal imerecido e a misericórdia de Deus são conciliáveis? E do que antecede resultam outras perguntas de índole ética: como podemos responder à misericórdia de Deus na nossa forma de agir? O que significa a mensagem da misericórdia para a prática da Igreja, e o que podemos fazer para que resplandeça na vida dos cristãos e da Igreja a mensagem fundamental da misericórdia divina? Por último, o que significa esta mensagem para uma nova cultura da misericórdia na nossa sociedade? Numa palavra, o que quer dizer a máxima do Sermão da Montanha “Felizes os misericordiosos” (Mt 5,7)?

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