FamĂlia: teologia, pastoral e ĂŠtica
Livio Melina
Família: teologia, pastoral e ética Tradução: João Carlos Petrini Rafael Cerqueira Fornasier Douglas de Freitas Ferreira
© Livio Melina, 2015
Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Viviane B. Jeronimo Ilustração de © tatoman/Fotolia Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Revisão: Mônica Aparecida Guedes
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ISBN 978-85-15-04316-3 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015
Sumário
Prefácio .................................................................................................
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A contribuição de São João Paulo II a uma teologia da família ...........................................................
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1. A situação da teologia da família e as urgências do atual contexto ........ 2. O mistério e a analogia ........................................................................... 3. Fundamento trinitário e antropologia de comunhão ................................ 4. O corpo e a Igreja .................................................................................... 5. Comunidade cristã e comunidade familiar .............................................. 6. Caridade pastoral e caridade conjugal .................................................... 8. A missão de testemunhar e comunicar o amor ....................................... Conclusão .......................................................................................................
17 21 22 25 28 30 32 34
Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização: a visão e a tarefa ..............................................................................
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1. O Sínodo sobre a família: a visão ............................................................ 1. A família como um “problema”.......................................................... a. Falta de espaço (a privatização da família: IL 33; RF 9-10 ) ............ b. Falta de tempo (“emocionalização” dos vínculos: EG 66) .............. c. Falta de raízes (a desencarnação da família) ................................ d. Falta de horizonte (a crise das gerações: RF 57-59) ...................... e. Falta de mistério (a secularização da família) ...............................
39 39 40 41 41 42 42
2. A família como um “recurso” ............................................................. a. Recurso para a identidade da pessoa ........................................... b. Um recurso para a sociedade ....................................................... c. Recurso para a história................................................................. 3. A família como um Evangelho (IL 1-7; RF 12-28) .............................. a. A família e a fé ............................................................................. b. A família de Cristo ........................................................................ c. A família e a Igreja .......................................................................
43 43 45 46 47 48 49 49
2. O Sínodo sobre a família: a tarefa............................................................ 1. O renovamento pastoral, a partir de uma abordagem focalizada sobre a família como recurso e como Evangelho.............. 2. As situações difíceis numa abordagem focalizada sobre a família como problema ........................................ a. As convivências sem matrimônio.................................................. b. Os divorciados que vivem em uma nova união civil .......................
50 51 55 55 56
Conclusão .......................................................................................................
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Reflexão teológica sobre a procriação humana .....................................................................
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1. 2. 3. 4.
A interação entre biologia e pessoa na procriação .................................. Uma mutação antropológica .................................................................... Os princípios éticos basilares da doutrina católica ................................. O nexo entre sexualidade e geração, condição da dignidade pessoal da procriação humana .......................................... 5. O ato conjugal como ato procriativo ........................................................ 6. Duas lógicas alternativas ......................................................................... 7. O mito de uma paternidade total .............................................................
65 69 71 72 76 81 83
Prefácio
Por ocasião do aniversário de 20 anos da publicação da encíclica Evangelium vitae, de São João Paulo II, celebrado em 2015, Mons. Livio Melina, presidente do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família — Roma, esteve no Brasil para participar de um seminário de Bioética cujo tema tinha como escopo suscitar uma reflexão no que concerne às exigências éticas atuais para salvaguardar e promover a vida, a partir do posicionamento da doutrina da Igreja exposto na supracitada encíclica. No contexto da vida da Igreja universal quase toda voltada para uma caminhada Sinodal em duas etapas (2014-2015), o estudioso da área da teologia foi também convidado a participar de mais três conferências no Brasil: duas em São Paulo-SP e uma em Salvador-BA. Os três grandes capítulos do presente texto são o resultado dessas conferências, acolhidas com grande 7
receptividade e interesse por um público considerável nos eventos realizados no intuito de debater questões teológicas, pastorais e éticas sobre a família na atualidade. Pareceu-nos pertinente organizar essa contribuição iniciando com uma reflexão teológica sobre a família. Com efeito, o primeiro capítulo aborda “A contribuição de São João Paulo II a uma teologia da família”. Longe de ser uma piedosa devoção a um dos mais novos santos da Igreja católica, chamado pelo papa Francisco de “o papa da família”1, tratase, de fato, de evidenciar seu aporte incontornável e ainda bastante desconhecido, ou mal-entendido, para a teologia no que tange ao desenvolvimento ou ao aprofundamento de uma necessária “teologia da família”. A. Scola afirma que A reflexão cristã referente a matrimônio-família concentrou-se, no longo período que vai da época patrística até o início do século XX, em questões decisivas próprias da teologia do matrimônio. Com efeito, a reflexão antropológica — isto é, referente ao homem como pessoa — era um pressuposto evidente […], enquanto a consideração específica da família permanecia substancialmente marginal, limitada às temáticas da prole como um dos fins e dos bona [bens] do matrimônio2.
Parafraseando o sociólogo P. Donati3, que diz ser hoje ainda necessário tematizar novamente os dilemas da família 1. FRANCISCO, Homilia Santa Missa e Canonização dos Beatos João XXIII e João Paulo II, 27 de abril de 2014. 2. A. SCOLA, O mistério nupcial, Bauru, Edusc, 2003, p. 262. 3. P. DONATI, La famiglia, il genoma che fa vivere la società, Soveria Manelli, Rubbettino Editore, 2013, p. 218 s. 8
no contexto dos estudos sobre a família e a sociedade, Mons. Livio Melina tematiza novamente, tanto para a reflexão teológica quanto para a pastoral, as grandes linhas do desenvolvimento do pensamento de São João Paulo II, que brota ao mesmo tempo de sua atividade intelectual e acadêmica, de sua experiência pastoral junto às famílias e do exercício de missões eclesiais que lhe foram atribuídas ao longo de sua vida, incluindo a de sucessor de Pedro, e que deixaram um incontornável legado para o âmbito da antropologia e, por conseguinte, da teologia da família. No segundo capítulo do presente volume, a atenção do autor se detém sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização: a visão e a tarefa”, com uma forte referência ao Sínodo ou ao caminho sinodal proposto pelo papa Francisco. O que está em jogo, segundo o autor, é propor uma “forma adequada de observar a família” e, ao mesmo tempo, discernir bem a “tarefa pastoral que se espera a propósito da família”. Essa perspectiva vai em direção oposta a um enfoque fatalista ou pessimista no que tange à família na atualidade, vendo-a como um “problema”. Muitas vezes, esse modo de abordagem parece deixar teólogos e pastoralistas acuados, como se os grandes desafios e as graves mutações nas relações conjugais e intergeracionais experimentados na atualidade no lar fossem a evidência de uma situação consolidada de diversas situações familiares em sociedade a ser simplesmente reconhecidas e assumidas. Tal atitude exerce não pouca pressão para o que se pode chamar de propostas pragmáticas e eficientistas ao se sugerir mudança doutrinal ou disciplinar da Igreja sem o apropriado recuo crítico. O que Cristo traz à família? é a pergunta que dá o enfoque propositivo da argumentação do autor. Trata-se de uma 9
postura que insiste no caráter de receptividade, marcado pela contingência do ser humano e da própria família em relação à realização da sua vocação humana e espiritual, e que, por isso, necessita sempre da ação salvífica de Cristo. Isso se dá pela acolhida de sua mensagem, de sua proposta, por assim dizer, de seu Evangelho da Alegria. Desdobrando a breve reflexão sobre a “fragilidade dos vínculos” empreendida pelo papa Francisco na Evangelii gaudium (n. 66)4, L. Melina propõe o tema da família como recurso para a pessoa, para a sociedade e para a história, para finalmente insistir na família como boa-nova. Neste sentido, ela também se torna um recurso para a própria Igreja e para a sua pastoral. Como afirma J. J. P.-Soba, “a família, em meio às suas fraquezas, é o grande recurso para a pastoral da Igreja. No entanto, há necessidade de uma mudança de mentalidade, de uma metanoia, para responder à manifestação de Cristo”5. Para tanto, é fundamental lhe dar um lugar, como identidade própria na vida eclesial, um caminho no tempo, que se traduz pelo acompanhamento ou pela “arte do acompanhamento” como uma das grandes “viragens pastorais” que se espera da aplicação das conclusões do Sínodo, uma palavra, que diz respeito à formação das famílias e também do clero e dos religiosos, não só sob os aspectos canônicos e morais, mas também teológicos e pastorais, abarcando os elementos de maturação humana. É nesse horizonte que se vislumbra 4. Para adentrar um pouco mais na questão, veja-se J. C. PETRINI; R. C. FORNASIER, Família: caminho da sociedade e da Igreja. A geração dos vínculos: pessoa, família, comunidade e sociedade, São Paulo, Loyola, 2015. 5. J. J. PÉREZ-SOBA, “Saper portare Il vino migliore”. Strade di pastorale familiare, in ID. (org.), “Saper portare Il vino migliore”. Strade di pastorale familiare, Siena, Cantagalli, 2014, p. 50 (tradução livre nossa). 10
enfrentar as situações familiares mais difíceis, como é o caso dos divorciados recasados, segundo uma compreensão e uma experiência adequadas da misericórdia. No terceiro e último capítulo desenvolve-se uma “Reflexão teológica sobre a procriação humana”: assunto de grande atualidade. Com efeito, o tema da procriação humana faz parte do conteúdo programático da disciplina de moral sexual e matrimonial ou familiar nas grades dos cursos de teologia. No entanto, por influência de uma cultura permissiva no que concerne à prática sexual, propagada de modo ostensivo e por vezes intrusivo em praticamente todos os meios de comunicação de massa, para a qual o que conta é a transmissão de orientações quase exclusivamente sanitárias e contraceptivas, a reflexão da ética cristã sobre a procriação humana parece não ter impacto nem eclesial nem, muito menos, social. Essa postura manifesta seus paradoxos ou incongruências ao conduzir uma boa parcela dos jovens, em particular mulheres, para a ladeira da infertilidade, haja vista que durante anos da vida fértil, tendo prática sexual ativa antes ou depois do casamento, essas jovens se medicam para fins de controle de natalidade, evitando categoricamente a abertura à vida ou postergando por tempo indeterminado a acolhida à vida. Quando aparece o desejo do filho, ou “o filho do dese6 jo” , quase como um capricho em certos casos, e o casal, ou somente um dos dois (no caso de procriação “autônoma”), se encontra numa situação de complicações no âmbito da fertilidade humana, busca-se, então, quando as condições 6. Expressão do filósofo francês Marcel GAUCHET em seu artigo L’enfant du désir, Le débat, Paris, n. 132 (2004/5) 98-121. 11
materiais lhe permitem, o recurso às chamadas técnicas de Reprodução Assistida (RA) para chegar ao seu objetivo de ter um filho, por vezes a todo custo. O filósofo francês Marcel Gauchet, numa reputada revista laica, aponta com lucidez para os dilemas pessoais, em particular os da criança, provocados pelo emprego dessas técnicas. Num estilo bastante rebuscado, ele diz: Começa-se a entrever o número de filhos do desejo que nunca saberão bem quem eles são, nem o que eles querem. Em graus diferentes, lhes faltará o poder que nasce de se sentir absolutamente contado por seus atos e por seu destino, assim como da sua segurança de sua unicidade, ao mesmo tempo de sua banalidade. […] A individualização precoce à qual foram submetidos perturbou, ou até mesmo bloqueou, o acabamento da individuação7.
Levando em conta os sofrimentos reais que podem padecer os casais que atravessam problemas com a fertilidade humana, L. Melina intenta repropor, a partir de uma perspectiva personalista, discernida segundo os ensinamentos morais da Igreja, “o respeito da dignidade da procriação humana”, a fim de que a “busca de soluções éticas8 seja precedida e contextualizada num horizonte de significado 7. Ibid., 120. 8. Vale ressaltar a pertinência e a grande atualidade das técnicas éticas da medicina de reparação da fertilidade que há mais de trinta anos vêm sendo aplicadas nos Estados Unidos e também na Europa, e que já estão também sendo implementadas no Brasil, embora ainda de modo tímido devido à falta de conhecimento ou interesse dos profissionais e gestores da saúde. Para aprofundar o assunto, veja-se T. W. HILGERS, The NaProTechnology Revolution: Unleashing the Power in a Woman’s Cycle, New York, Beaufort Books, 2010. 12
maior do que os casos particulares a ser resolvidos: o Evangelho oferece, de fato, mais do que normas morais, uma visão do homem, na qual as humanas experiências originais da geração, da sexualidade, do nascimento, da doença, do sofrimento e da própria morte encontram luz”. Na verdade, a procriação humana é sempre mais do que somente um ato biológico9, pois imbuída de um caráter essencialmente espiritual devido à natureza mesma do dom do amor conjugal que se realiza por meio da geração e da acolhida gratuita do dom da vida. Possa o presente texto tornar-se uma contribuição para os diálogos teológicos no meio acadêmico ou nas formações para leigos em nossas Igrejas particulares, para os aprofundamentos e reflexões do agir e da vida da Pastoral Familiar no Brasil, dos movimentos, serviços e institutos familiares, bem como ser instrumento de estudo para muitos, em termos de grande interesse sobre o tema da família. Rafael Cerqueira Fornasier
9. Cf. P. D’ORNELLAS et al., Bioéthique: propos pour un dialogue, Paris, Lethielleux-Desclée de Brouweer, 2009. 13