Michel Foucault “A verdade de meus livros está no futuro.”
Olivier Dekens
Michel Foucault “A verdade de meus livros está no futuro.” Tradução Roberto Mesquita Ribeiro
Título original: Michel Foucault – “La vérité de mes livres est dans l‘avenir.” © Armand Colin, 2011 21 rue du Montparnasse 75283 Paris Cedex 06, France ISBN 978-2-200-27198-5
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dekens, Olivier Michel Foucault : “a verdade de meus livros está no futuro.” / Olivier Dekens ; tradução Roberto Mesquita Ribeiro. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015 . Título original: Michel Foucault : la vérité de mes livres est dans l’avenir. Bibliografia. ISBN 978-85-15-04261-6 1. Filosofia francesa 2. Foucault, Michel, 1926-1984 I. Título. 15-00969
CDD–194
Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia francesa
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ISBN 978-85-15-04261-6 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015
Sumário
Preâmbulo – Aporética – Do autor.............................. 9 Foucault por ele mesmo................................................... 9 A abolição do nome próprio........................................... 18 Questões de método...................................................... 22 Prólogo – A imaginação no poder (introdução a Sonho e existência, de Binswanger, 1954).............. 25 1 – Ontologia – Da filosofia........................................ 31 Foucault filósofo?.......................................................... 31 A atualidade................................................................. 38 A filosofia como jornalismo radical................................. 41 Arqueologia e análise do presente.................................. 48 Arqueologia e política.................................................... 53 2 – História – Da razão................................................ 57 Foucault historiador?..................................................... 57 Contra o historicismo..................................................... 61 Contra a ideologia........................................................ 62 Cronologias foulcaultianas............................................. 70 A espessura da razão.................................................... 80 Do poder ao saber......................................................... 83 Separações................................................................... 87
O normal e o patológico................................................. 91 Vida e loucura.............................................................. 94 Razão e desrazão.......................................................... 97 Internamento e asilo.................................................... 102 Figura 1 – O louco....................................................... 109 Retrato 1 – Derrida..................................................... 117 3 – Arqueologia – Da verdade.................................. 123 Uma história da verdade............................................. 123 Contra a fenomenologia.............................................. 127 Foucault estruturalista (?)............................................ 129 O inconsciente do saber............................................... 135 A espessura do discurso............................................... 138 O espaço clínico.......................................................... 142 Cosmologias............................................................... 146 O poder da representação........................................... 148 O fim de um reino....................................................... 150 As ciências humanas................................................... 151 A literatura................................................................. 155 Figura 2 – O homem................................................... 157 Retrato 2 – Kant.......................................................... 161 Intermédio professoral – A ordem do discurso (1970)..................................................... 169 4 – Genealogia – Do poder........................................ 177 Analítica do poder....................................................... 177 Poder-saber e saber-poder........................................... 179 O principio da imanência............................................ 181 O poder psiquiátrico................................................... 184
O brilho dos suplícios.................................................. 186 Minúcias disciplinares................................................. 187 A hipótese repressiva................................................... 191 A proliferação do discurso............................................ 194 Rumo à biopolítica...................................................... 195 Da guerra................................................................... 198 Figura 3 – O delinquente........................................... 201 Retrato 3 – Nietzsche................................................. 205 5 – Ética – Do sujeito.................................................. 211 Crítica do sujeito......................................................... 211 O sujeito do sexo........................................................ 214 A hermenêutica do si................................................... 217 Cuidado de si e vontade de verdade............................. 220 6 – Política – Da justiça.............................................. 223 O discurso como política da verdade............................ 223 Filosofia e geologia...................................................... 225 Libertação e liberdade................................................. 226 Epílogo – A impaciência da liberdade (O que são as Luzes?, 1984).................................... 229 Bibliografia.................................................................... 241
Preâmbulo
Aporética – Do autor
Foucault por ele mesmo Certos filósofos têm o cuidado, muito cômodo para seus futuros leitores, de construir um sistema: em certos casos, essa articulação severa das obras responde às exigências da própria doutrina, que não pode se desenvolver senão racionalmente; em outros casos, a estrutura geral do pensamento aparece pouco a pouco, ou mesmo posteriormente, o autor tendo tido o cuidado, antes de morrer, de propor uma síntese retrospectiva de seu próprio trabalho. Michel Foucault não facilitou nosso trabalho. Em primeiro lugar – e voltaremos a esse ponto fundamental –, enquanto ele se recusa a considerar a si mesmo como autor, do qual o mero nome próprio serviria para unificar, como por mágica, a diversidade de obras; em segundo lugar, porque a obra publicada – alguns livros, pouco mais – não contém tudo o que Foucault quis dizer, sua filosofia, e trata-se bem de uma, disseminava-se dela mesma, tanto em ditos quanto em escritos, tanto em cursos quanto em publicações em boa e justa forma. Ainda mais essencialmente: a natureza mesma do propósito foucaultiano exclui a coerência sistemática. Ainda é necessário aqui precisar a razão dessa exclusão: Foucault não recusa o sistema em princípio, como o faz Nietzsche por exemplo. E seus escritos não tomarão a forma de aforismos, como para esse último. Mas ele concebe o exercício mesmo da filosofia como a forma mais rigorosa para um indivíduo de mudar seu próprio pensamento e, logo, sua existência mesma. À medida
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que avança sua obra, o homem Foucault e o escritor Foucault encontram-se modificados em profundidade, de onde a necessidade permanente de voltar sobre o que foi dito, de anunciar assim projetos que jamais se realizariam, de tentar avaliar a posteriori o valor de seu trabalho. Um indicador disso que acabamos de dizer: quando, em 1984, aparece o Dicionário dos filósofos de Denis Huisman, o verbete consagrado a Foucault fora redigido por um certo Maurice Florence, que não é outro senão o próprio Foucault. Rompendo com todas as práticas da edição, Foucault parece considerar que ninguém senão ele mesmo pode apresentar sua obra. Há certamente algo de gracioso nessa forma de proceder. Mas também a convicção de que somente ele terá a lucidez suficiente para perceber as lacunas de seu trabalho e a capacidade de dissimulá-las em parte na reconstrução de uma coerência momentânea. Leiamos, pois, esse texto, que não deixa de ser uma das boas introduções ao corpus. Foucault chama o que ele tentou construir de uma história crítica do pensamento, situando-se desde o princípio no prolongamento da filosofia de Kant. Mas, enquanto o criticismo visa a estabelecer as condições de possibilidade a priori do conhecimento, pensando-as como universais e atemporais, o projeto foucaultiano concebe-se como “uma análise das condições nas quais são formadas ou modificadas certas relações do sujeito ao objeto, na medida em que essas são constitutivas de um saber possível”1. Não mais a transparência do sujeito transcendental, mas a espessura histórica e institucional do que permitiu o surgimento, em um dado momento, de um objeto, de um saber, e correlativamente de uma forma de poder sobre as coisas sabidas. O interesse desse texto é que ele modifica a impressão que um leitor consciencioso poderia ter da obra de Foucault. Enquanto ela parece inteiramente consagrada aos mecanismos da objetivação – da loucura, da doença, do homem, do delinquente –, ela seria, se levadas a sério as palavras
1 Michel FOUCAULT, Dits et écrits II, Paris, Quarto-Gallimard, 2001, p. 1451. Todas as referências aos Dits et écrits serão a seguir indicadas por DE I ou DE II, segundo o volume citado.
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de Foucault, igualmente uma analítica da subjetivação, naquilo em que um sujeito se constitui, tanto em sua relação a si mesmo quanto em sua relação ao mundo. Vemos bem o que Foucault quer fazer: reler seu trabalho à luz daquilo que ele faz, afinal, poucos anos depois, um estudo do cuidado de si e do nascimento do sujeito ético. Não há nenhuma desonestidade aqui, somente o anseio de oferecer um rosto um pouco mais coerente, assumindo a forma de uma revisão de si mesmo. Uma história dos jogos da verdade, eis o que ele quis fazer. Essa história foi concebida primeiro como um estudo da “constituição do sujeito enquanto ele pode aparecer do outro lado de uma distinção normativa e tornar-se objeto de conhecimento”2: História da loucura, Nascimento da clínica, Vigiar e punir. Ela também assumiu a forma de uma história do sujeito falando, trabalhando, vivendo, no movimento que o faz tornar-se objeto das ciências humanas: As palavras e as coisas. Ela escolheu, enfim, ser história da constituição do sujeito como objeto por ele mesmo: História da sexualidade, o sexo não sendo senão um dos motivos, ou um dos lugares, em que a construção de uma ética de si pode ser lida. É a terceira face da obra de Foucault, que confirma de passagem o estatuto excepcional de As palavras e as coisas, obra isolada e única no conjunto de seu trabalho. Todos esses textos têm em comum manifestar “um ceticismo sistemático a respeito de todos os universais antropológicos”3, recusar a ideia de um sujeito constituinte ao qual deveríamos remontar, abordar enfim os domínios da consciência pelas práticas que aí têm lugar. Um primeiro princípio que modifica totalmente o sentido mesmo da verdade, da razão ou do homem, que são construções históricas, contingentes, mas totalmente eficazes na função que lhes concedemos na organização de um campo do saber ou na legitimação de um campo do poder. Um segundo princípio que rejeita as facilidades do sujeito transcendental, mas recusa também a falsa ideia do desaparecimento completo de toda relação sujeito-objeto. Um terceiro princípio que anula a
2 Ibid., p. 1452. 3 Ibid., p. 1453.
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neutralidade dos processos cognitivos conectando-os aos procedimentos políticos, que são aqui ao mesmo tempo causa e efeito. Foucault conclui sublinhando a importância da noção de governo, de si e dos outros, no conjunto de seu trabalho; uma forma de reinterpretar a obra de juventude a partir de uma noção mais recente ou, o que vem a dar no mesmo, de interpretar as últimas investigações na continuidade do pensamento anterior. Assim apresentada, a obra de Foucault manifesta uma bela coerência e parece mesmo desenvolver igualmente um programa perfeitamente estabilizado. Essa impressão é o produto de um conjunto de pequenos deslocamentos, que procedem às vezes do autorretrato, frequentemente da autocrítica, algumas vezes também da denegação, em particular quando uma mudança de programa é pintada como um aprofundamento ou uma continuação do que já foi dito. Os Ditos e escritos, mais que os livros publicados, oferecem numerosas ocorrências dessas tentativas de reconstrução de si. A arqueologia do saber abre uma exceção, pois essa obra não tem objeto próprio senão sistematizar os princípios utilizados nos textos precedentes, ou seja, História da loucura, O nascimento da clínica e As palavras e as coisas. Desde a introdução4 Foucault admite que a História da loucura, ao utilizar de maneira pouco crítica o conceito de experiência, deixava supor a existência de um sujeito anônimo da história, do qual ele mostrará em seguida a inanidade. E igualmente O nascimento da clínica, em seu vocabulário, inclinavase claramente em direção à análise estrutural que ele rejeitará mais tarde. Igualmente, enfim, As palavras e as coisas puderam fazer crer na posição de totalidades culturais, enquanto ele queria justamente mostrar a fragilidade dessa ideia. Foucault reconhece, portanto, desde 1969, que seu trabalho merece ser revisado. Precisamente nesse mesmo ano Foucault é candidato ao Collège de France, e ele deve então apresentar seus próprios trabalhos, cuidando certamente de mostrá-los de forma articulada e se possível intelectualmente harmoniosa. Ele dedica-se então a iden4 Cf. ID., Archéologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 26-27.
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tificar o objeto de seu pensamento: “o conhecimento investido nos sistemas complexos das instituições”5, e um método que lhe seja próprio: “No lugar de percorrer, como o fazia espontaneamente, a biblioteca limitada dos livros científicos, seria necessário visitar um conjunto de arquivos compreendo decretos, regulamentos, registros hospitalares ou carcerários, atos de jurisprudência”6. O gosto pelo pequeno, pelo obscuro, mais que a litania dos grandes textos. Foucault esclarece que seu projeto sofreu uma inflexão notável apos o Nascimento da clínica: enquanto em seus dois primeiros livros ele se apegava à articulação entre o poder das instituições e a constituição de um objeto de saber, o terceiro, As palavras e as coisas, neutraliza “todo o lado prático e institucional”7. Ele não o disse no momento em que escreveu esse último texto. Ele o diz aqui, explicitando assim a mudança de óptica que o leitor havia percebido confusamente. Ao indicar a utilidade e a função de A arqueologia do saber, Foucault esboça o terceiro eixo de sua pesquisa, aquele que ligou mais intimamente a análise do poder e a do saber, e que Vigiar e punir vai colocar em prática. O projeto de ensino que se segue imediatamente a esse retrato retrospectivo é ele também muito interessante, precisamente porque quase nada do que é anunciado será realizado. Foucault prevê uma história da hereditariedade da qual ele falará, é claro, muitas vezes em seus cursos, mas à qual ele não consagrará nenhum livro. Ele promete também um estudo mais teórico sobre os instrumentos constitutivos desse saber sobre a hereditariedade, sua gênese e sobre as relações de causalidade que aí se experimenta, o que ele fará de certo modo, mas não no formato aqui previsto. Foucault é, no entanto, perfeitamente claro sobre a meta de seu trabalho, em consonância mesmo com o que ele diz num texto de 1984 citado acima: Não se trata de modo algum de determinar o sistema de pensamento de uma época definida ou qualquer coisa como sua “visão de mundo”. Trata-se ao contrário de notar os diferentes conjuntos 5 DE I, p. 870. 6 Ibid. 7 Ibid., p. 871.
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que são portadores cada um de um tipo de saber bem particular, que ligam comportamentos, regras de conduta, leis, hábitos ou prescrições; que formam assim configurações ao mesmo tempo estáveis e suscetíveis de transformação. Trata-se, assim, de definir as relações de conflito, de vizinhança ou de troca entre esses diferentes domínios8.
A obra é desenhada assim, da mesma maneira em que Foucault a corrige, a retoma, critica, explica o seu objeto, que às vezes parece permanecer invisível para ela. Assim, ele reconhece numa entrevista de 1971 que até A arqueologia do saber ele estava cego ao que fazia9. Ele admite, por exemplo, que História da loucura era ainda expressionista, que ele cedeu ali um pouco rapidamente à crença em uma repulsão social espontânea em relação à loucura, que ele tinha acreditado também em uma continuidade entre o poder das instituições e a construção de um saber. Ele precisava – reajustamento que resultou em Vigiar e punir – rever a maneira como se articulam “as práticas discursivas e as práticas extradiscursivas”10. Essa autocorreção permanente denota uma relação muito livre com seu próprio trabalho: Foucault não se sente obrigado a uma total fidelidade aos seus escritos anteriores. Essa liberdade lhe permite retocar a si mesmo se necessário, negar-se quando constata que estava enganado. Ele chega mesmo a dizer, talvez num tom de gracejo: Eu penso para esquecer. Tudo o que já disse no passado é absolutamente sem importância. Escrevemos qualquer coisa quando já a desgastamos totalmente em nossas cabeças; o pensamento exausto, nós o escrevemos. O que eu já escrevi não me interessa11.
8 Ibid., p. 874. 9 Cf. Ibid., p. 1026: “Digamos que na História da loucura e no Nascimento da clínica eu ainda estivesse cego ao que fazia. Em As palavras e as coisas um olho estava aberto e outro fechado, de onde o caráter manco do livro: em certo sentido muito teórico, em outro insuficientemente teórico”. 10 Ibid., p. 1031. 11 Ibid. p. 1173.
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Se nos atemos a apontar a principal modificação que Foucault fará em seu trabalho, as coisas se clarificam pouco a pouco. Seu itinerário pode, então, ser lido como a descoberta progressiva dos efeitos de poder próprios ao jogo enunciativo das formações discursivas12. Teria sido necessário, diz Foucault, reescrever História da loucura e Nascimento da clínica insistindo sobre a relação de causalidade entre saber e poder, enquanto esses textos se apoiam sobretudo na relação inversa, constituindo assim um sistema de causalidade recíproca. Seria assim também necessário reescrever As palavras e as coisas renunciando à neutralização do poder que se encontra aí afirmada. Desde o começo dos anos 1970 Foucault admite, pois, não que ele tenha se enganado, mas que ele ainda não sabia o que ele mesmo fazia. Dito de outro modo: ele estaria desde sempre interessado principalmente no poder, enquanto seus livros falavam do saber. E podemos corrigir um pouco o que acabamos de escrever: não seria necessário reescrever os primeiros livros, seria necessário relê-los à luz do que a obra ulterior dirá, um pouco como Foucault o fazia ao reinterpretar todo o seu trabalho à luz dos conceitos de subjetivação e de governabilidade em seu autorretrato de 1984. As palavras e as coisas resiste a essa reinterpretação, porque é mais difícil de ver aí os procedimentos de poder em ação. De maneira geral, o livro, talvez o mais lido e mais conhecido de Foucault, é menos representativo do projeto foucaultiano e de seu gosto por experiências-limite. Ele o diz em outro lugar diretamente: “As palavras e as coisas não é meu livro verdadeiro: é um livro marginal em relação à espécie de paixão que está ativa, que subtende as outras”13. Os anos 1980, antes mesmo do texto do qual partimos, tendem a explicitar a articulação geral do propósito, sobretudo porque a História da sexualidade parece apresentar uma ruptura muito clara
12 DE II, p. 144: “Mas o que faltava ao meu trabalho era esse problema do regime discursivo, dos efeitos do poder próprio ao jogo enunciativo. Eu os confundia demasiadamente com a sistematicidade, a forma teórica ou qualquer coisa como o paradigma”. 13 Ibid., p. 886.
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com a obra anterior. Foucault parece hesitar, naqueles anos, entre dois modelos. Segundo o primeiro, seu trabalho pode se dividir em três partes: “primeiro os diferentes modos de investigação que buscam alcançar o estatuto de ciência”; em seguida “a objetivação do sujeito no que eu chamaria de ‘práticas divinizantes’”14; enfim “a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito”15. Nessa repartição, As palavras e as coisas constitui um primeiro bloco, a História da loucura, o Nascimento da clínica e Vigiar e punir um segundo, e a História da sexualidade encarna o terceiro. Repartição não necessariamente cronológica, que não marca uma inflexão em direção a uma análise do poder que Foucault sublinha em todos os outros lugares. O segundo modelo é talvez nesse sentido mais satisfatório, e mais fiel à singularidade de História da loucura, marginalizando novamente As palavras e as coisas, obra que não é sequer mencionada, mesmo se podemos aproximá-la do segundo eixo aqui descrito: Há três domínios de genealogias possíveis. Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos nas relações com a verdade que nos permite nos constituir como sujeitos do conhecimento. A seguir, uma ontologia histórica de nós mesmos nas relações com um campo do poder onde nos constituímos como sujeitos agentes sobre outros. Enfim, uma ontologia histórica das nossas relações com a moral que nos permite nos constituir em agentes éticos. Portanto, três eixos são possíveis para uma genealogia. Todos os três estavam presentes, mesmo de maneira um pouco confusa, na História da loucura. Estudei o eixo da verdade no Nascimento da clínica e na Arqueologia do saber. Desenvolvi o eixo do poder em Vigiar e punir e o eixo moral na História da sexualidade16.
Apresentação honesta: a História da loucura é, com efeito, um livro híbrido que mistura sem método a gênese do conceito de
14 Ibid. 15 Ibid. 16 Ibid., p. 1212.
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loucura, a história de seu tratamento institucional e mesmo – o que Foucault o diz raramente – um estudo da subjetividade. Somente Vigiar e punir é verdadeiramente uma ontologia do poder. Enfim a História da sexualidade é de fato uma nova direção adotada pela ontologia, mesmo se, como veremos, A vontade de saber pode também ser entendida como um prolongamento do percurso de Vigiar e punir. Deixemos as coisas por aqui no que toca ao autorretrato, nós precisaremos caso a caso as eventuais incoerências e talvez mesmo as mentiras. Acrescentemos simplesmente aqui esse elemento que vem complicar ainda mais as coisas: Foucault nunca deixou de anunciar projetos de pesquisa rapidamente abandonados, como se no fundo ele não desse muito peso ao comprometimento de sua própria palavra. Em 1964, Foucault afirma, como se fosse fazê-lo ele mesmo, que seria necessário estudar o domínio dos interditos de linguagem17 – o que se aproxima, certamente, embora de longe, de A vontade de saber. Em 1966 ele diz trabalhar sobre as formas de existência da linguagem, sem que saibamos exatamente do que se trata18. Ainda mais importante, e voltaremos a esse ponto: o projeto inicial de uma História da sexualidade será totalmente atrapalhado pela amplitude dada ao seu lado antigo, que deveria ser apenas preliminar. Pode-se mesmo considerar que a atenção dada à sexualidade, central em A vontade de saber, vai dar lugar a uma análise muito mais vasta dos modos de subjetivação ética. Foucault, sempre lúcido sobre esse ponto, admite que há um problema com os títulos e os enunciados, e que há um jogo, uma flutuação entre o que promete o título e o que efetivamente se fará: É possível que as obras que eu escrevo não correspondam exatamente aos títulos que lhes dei. É um pouco de falta de jeito de minha parte, mas uma vez que eu escolho um título eu o mantenho.
17 Cf. DE I, p. 444. 18 Cf. ibid., p. 612.
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Escrevo um livro, o refaço, encontro novos problemas, mas o livro permanece com seu título19.
Articulação de textos, hesitação sobre as estruturas, equilíbrio frágil de uma obra que tem a tendência a se desconstruir sozinha20. “Eu sou pluralista”21, diz Foucault, e deve-se tomá-lo à letra. Mais de uma voz se exprime em seu trabalho, e não é dito que se deva buscar o uníssono nem mesmo a harmonia nesse feixe de investigações que ele tentou desenvolver. Só importa, talvez, o que fazem os livros, o que eles alteram no pensamento e na ação.
A abolição do nome próprio Foucault escreve livros, ele não cria uma obra. Mais precisamente: ele não é o autor de textos, mas o destinador – a palavra é de Lyotard – de um discurso, assim definido no curto prefácio da segunda edição de História da loucura: … ao mesmo tempo batalha e arma, estratégia e choque, luta e troféu ou ferida, conjunções e vestígios, encontro irregular e cena respeitável22.
O pensamento de Foucault recupera por ele mesmo tudo o que ele diz das formações discursivas, que não são jamais puras ideologias nem puras abstrações conceituais, mas sempre a unidade teórico-ativa de um dispositivo de saber e de uma mecânica 19 DE II, p. 1523. 20 A escolha desse termo não é irrelevante. A diversidade de eixos da obra de Foucault não deixa de recordar o “mais de uma língua” pelo qual Derrida define a desconstrução. A disseminação de linguagens, a ausência do monolinguismo impedem toda atribuição, e Foucault, apesar de tudo o que ele opõe a Derrida, em sua recusa ao estatuto do autor, é bem próximo dessa ideia. Cf. Jacques DERRIDA, Mémoires – Pour Paul de Man, Paris, 1988, p. 38; também em seu Prière d’insérer. Le monolinguisme de l’autre, Paris, Galilé, 1906. 21 DE I, p. 702. 22 Michel FOUCAULT, Histoire de la folie à l’Âge classique, Paris, Tel/Gallimard, 1972, p. 10.
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de poder. Foucault quer bem ser qualificado de escritor, e ele repete frequentemente que escreve pelo prazer de escrever23. Ele quer também reivindicar a responsabilidade pelo efeito de seus livros, e não é sem orgulho que vai constatar que certas obras suas, notadamente Vigiar e punir, tiveram um impacto político real24. Mas ele não concebe que lhe seja atribuída a função de autor. Pode-se compreender essa recusa em duplo sentido. Primeiramente, ela denota uma grande reticência em relação à identidade, a todo fechamento policial na forma do nome próprio, que exigiria, em nome do sistema, jamais se contradizer, evoluir, renunciar a projetos ou a programas. O nome do autor seria uma forma de objetivar e de dominar seu trabalho, impedindo o que para Foucault é a essência mesma do esforço intelectual: escrever para mudar-se a si mesmo25. No final da introdução de A arqueologia do saber, Foucault opõe assim a seus eventuais detratores, que reclamavam de suas incessantes mudanças de posição, de seus deslocamentos e arrependimentos, que eles não podem pedir-lhe que seja autor. A afirmação se tornou famosa, por sua virulência e pela acuidade de seu estilo: — Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não preparasse – com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante 23 Cf. DE I, p. 1513: “É preciso sublinhar que não subscrevo sem hesitação o que escrevo em meus livros… No fundo, escrevo pelo prazer de escrever”. 24 Cf. ibid., p. 1588: “Todos os meus livros, seja a História da loucura ou este (Vigiar e punir), são, se quiser, caixas de ferramentas. Se as pessoas querem abri-las, servir-se de uma frase, de uma ideia, de uma análise como de uma chave de fenda ou de uma chave de boca para criticar, desqualificar, romper os sistemas de poder, até mesmo, eventualmente, aqueles dos quais meus livros surgiram... melhor ainda!”. 25 Cf. DE II, p. 861: “Eu sou um experimentador e não um teórico. Eu chamo teórico aquele que constrói um sistema geral seja a partir da dedução, seja da análise, e o aplica de modo uniforme a campos diferentes. Não é o meu caso. Eu sou um experimentador no sentido em que eu escrevo para mudar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa que antes”.
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de olhos que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu sem dúvida, escrevem para não ter mais um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever26.
Foucault vai levar essa recusa do autor até o ponto de exigir do Le Monde, ao mesmo tempo aceitando o princípio de uma entrevista, que seu nome não seja mencionado. O jornal publica então, em fevereiro de 1980, a entrevista em questão sob o titulo “O filósofo mascarado”. Foucault responde às questões de Christian Delacampagne esforçando-se por apagar realmente todo traço de identidade. Poucos leitores puderam identificá-lo, o que, aos olhos de Foucault, garantia que seu propósito não fosse poluído por sua celebridade e seu estatuto, naquela época já conquistado, de grande intelectual francês. Pouco importa no momento o conteúdo desse texto: Foucault tenta deslizar no anonimato de um pensamento que funcionaria em si, por sua boca certamente, mas independentemente de sua identidade social e profissional. Ele não é cego ao caráter um pouco vaidoso do exercício, mas parece entretanto manter-se firme, retomando aqui o modo menor da bela afirmação que abre sua lição inaugural no Collège de France – voltaremos a isso: Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser encoberto por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome que me precedia há muito tempo: bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser percebido, em seus interstícios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa27.
26 L’Archéologie du savoir, op. cit., p. 28. 27 Michel FOUCAULT, L’ordre du discours, Paris, Gallimard, 1971, p. 7.
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Foucault, que não pretende ser autor, não se contenta em ser modesto. Ele tira todas as consequências do desaparecimento de certos modos de atribuição que puderam ter lugar, ou mesmo legitimidade, mas que não têm mais lugar de ser. A função-autor não funciona mais, como a função-homem tende a desaparecer, a função-louco a não mais servir, ou a função-delinquente a não mais garantir a justiça de um sistema. O filósofo, a cada vez que escreve, é tomado em uma formação discursiva, mesmo quando ela tem por objeto sublinhar a contingência dessa formação discursiva. Reencontramos aqui uma das constantes mais tenazes da filosofia francesa no que ela tem de melhor: uma atenção a não eximir o discurso da filosofia da dureza da crítica. É Derrida fazendo cair seus golpes mais duros na metafísica de quem se diz apaixonado, e redobrar ainda a crueldade diante da crítica da metafísica28. É Lévi-Strauss, em um registro completamente distinto, que conclui O homem nu dando-se conta da morte do sujeito e da do autor que acredita ainda resistir: Se há, com efeito, uma experiência íntima que os vinte anos dedicados ao estudo dos mitos penetraram naquele que escreve essas linhas, ela reside em que a consistência do eu, preocupação maior de toda filosofia ocidental, não resiste à sua aplicação contínua ao mesmo objeto que o invade inteiramente e o impregna do sentimento vivido de sua irrealidade29.
Se o Eu do autor pode intervir, não é senão ao termo de um empreendimento científico no qual ele terá sido deliberada e absolutamente excluído, sua intervenção se limitando a comentar o trabalho efetuado30. Contra a filosofia, diz Lévi-Strauss, o estruturalismo preferirá sempre uma racionalidade sem sujeito a um sujeito 28 Notemos ainda que também Derrida critica a ideia do nome próprio e da assinatura, indicando em que sua identidade é sempre já marcada pelo processo de desmembramento e de disseminação. Cf. Jacques DERRIDA, Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972, p. 392. 29 Claude LÉVI-STRAUSS, L’homme nu, Paris, Plon, 1971, p. 559. 30 Cf. ibid., p. 562.
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sem racionalidade, refúgio de uma identidade pessoal da qual tudo nos diz que ela não é mais que uma miragem31. Poder-se-ia então, sem arrependimento, deixar o sujeito aos que não se dobram à exigência científica, e preferir em seu lugar uma lógica completamente diferente cujo poder explicativo justifica largamente que lhe sacrifiquemos o conforto de uma subjetividade artificialmente preservada, um império dentro de um império. Certo, Foucault, ao recusar obstinadamente que o chamássemos de estruturalista, não subscreveria sem reserva tal propósito, especialmente em sua dimensão abertamente positivista. Mas ele aceitaria de bom grado ver a subjetividade do autor reconduzida ao seu justo lugar, consequência natural da posição firme da dependência de um pensamento individual em relação àquilo que o subtende.
Questões de método O método que escolhemos, em uma obra que pretende ser uma apresentação ao mesmo tempo pedagógica e o mais fiel possível à obra de Foucault, deve adaptar-se à sua singularidade, ao seu desmembramento específico, à pluralidade de línguas que aqui aparecem. Um procedimento puramente temático não daria conta das evoluções de um pensamento que, como vimos, se recusa a conceber-se como definitivo. Uma narrativa cronológica reconstituiria artificialmente a coerência do corpus apresentando o trabalho de Foucault como uma sucessão finalizada de momentos bem ordenados. Desse duplo impasse convém escapar adotando nós mesmos um procedimento fragmentado, que obedecerá a quatro ângulos de ataque de importância desigual. Em primeiro lugar, os textos. Ou melhor, textos, escolhidos e comentados integralmente, como formas autônomas relativamente independentes em relação ao conjunto do pensamento foucaultiano e distribuídos ao longo da vida de escritor de Michel de Foucault. A introdução a Sonho e existência, de Binswanger, escrito 31 Cf. ibid., p. 614.
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menor, datado de 1954, mas igualmente inaugural, e que abre os Ditos e escritos; A ordem do discurso, como um intermédio professoral, fazendo o balanço e a perspectiva no meio da obra, em 1971. Enfim, O que são as Luzes?, em 1984, algumas semanas antes da morte de Foucault, um texto que tenta dar legitimidade a posteriori ao trabalho de uma existência. Em segundo lugar, os homens. Ou melhor, os filósofos com quem Foucault dialogou, que ele admirou ou combateu. Escolha arbitrária talvez, mas da qual trataremos de mostrar o significado: Derrida para começar, o contemporâneo próximo e distante, com quem a controvérsia foi às vezes dura e útil. Kant em seguida, figura respeitada e fonte parcial de inspiração, objeto constante de uma atenção fiel e amorosa. Nietzsche, enfim, o mestre, aquele cujo pensamento terá mais constantemente alimentado a reflexão de Foucault. Em terceiro lugar, os personagens. Pessoas certamente, mas também momentos históricos, funções, papéis emprestados, classes instituídas. É o louco aparecendo ao fim do século XVIII como rosto obscuro da humanidade. É o homem que, no mesmo momento, emerge como ponto focal de novas positividades que será necessário articular; é o delinquente, criação da penalidade ou da forma-prisão, que justifica através dele sua hegemonia e a resistência que ela oferece ao tempo, apesar de sua ineficácia evidente. Em quarto lugar, os dispositivos. Os sistemas complexos de conceitos, de escolhas metodológicas, de invenções e criações, que permitem à obra funcionar em adequação com os domínios históricos que ela se dá por objeto. O dispositivo ontológico, que, aplicado à atualidade, constitui o conteúdo da filosofia para Foucault. O dispositivo histórico, que institui uma nova maneira de compreender a racionalidade. O dispositivo arqueológico, que revela os modos mais espessos e mais densos da verdade em sua historicidade. O dispositivo genealógico, que estrutura a analítica dos poderes. O dispositivo ético, que aparece progressivamente no estudo da relação consigo mesmo. O dispositivo político, finalmente, que permite o efeito liberador do conjunto dos outros dispositivos.
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Dado que se impunha um princípio ordenador, escolhemos dar mais amplitude à análise dos dispositivos e fazê-los corresponder, com a exceção do primeiro e do último deles, aos maiores livros de Foucault: História da loucura, As palavras e as coisas, Vigiar e punir e os três volumes de História da sexualidade.
Prólogo
A imaginação no poder (introdução a Sonho e existência, de Binswanger, 1954)
1954. Foucault é assistente de psicologia em Lille e repetidor de filosofia na escola normal superior da rua d’Ulm. Conforme essa dupla orientação de seu trabalho, ele se consagra, já há vários anos, à psicologia experimental, ao mesmo tempo em que lê, aparentemente com paixão, Nietzsche, Heidegger, Marx, Hegel e Freud. Em 1953, Lacan pronunciou seu célebre discurso de Roma, “Função e campo da palavra e da linguagem em psicologia”, e Deleuze publicou Empirismo e subjetividade, dedicado a Jean Hyppolite, a quem Foucault faz também um tributo, bem mais tarde, ao fim de sua aula inaugural no Collège de France. No domínio da psicologia, um autor ocupa um lugar singular. Trata-se de Binswanger (1881-1966), que tentou introduzir a analítica do Dasein, elaborada por Heidegger, no exercício da psicanálise. Foucault o lê, traduz certos artigos seus, mas sem publicá-los, pois se lança desde junho de 1953 à tradução integral de Traum und Existenz (Sonho e existência), o texto fundador do que se chamará a partir de então psiquiatria existencial. Em 1954 portanto, junto com Doença mental e personalidade, aparece o resultado desse trabalho, precedido de uma longa introdução, retomada depois na abertura do primeiro volume de Ditos e escritos.
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Seria exagerado e mesmo absurdo considerar esse texto de juventude a matriz de futuras obras ou o esboço de teses ainda implícitas. Mas, pelo desvio do que pretende ser um comentário fiel, elabora-se já uma compreensão do jogo entre contingência e necessidade, tão significativo na análise arqueológica das formas discursivas, um jogo aqui pensado no interior de uma forma bastante estranha de fenomenologia da imaginação. Antes de ler em detalhe essas páginas luminosas em que se anuncia uma antropologia da expressão – definida como o movimento da existência realizando-se numa história objetiva –, detenhamo-nos brevemente sobre certas afirmações de Foucault, disseminadas no conjunto da “Introdução”, que poderiam ser lidas à luz da obra por vir. Foucault se dá conta da validade do procedimento de Binswanger: fazer uma antropologia que não seria nem uma filosofia nem uma psicologia. A análise do sonho de Binswanger se apoia amplamente, é claro, nas aquisições da ontologia heideggeriana, aquela de Ser e tempo principalmente: mas é também tributária do gesto freudiano que deu aos fenômenos empíricos sua significação, manifestações de estruturas mais gerais do inconsciente. O sonho e, nele, as imagens adquirem uma espessura – termo do qual Foucault fará uso frequente em seguida –, fornecendo à psicanálise seu objeto privilegiado. Comentando a síntese que Binswanger realizou em Sonho e existência, Foucault faz em seguida uma breve história dos tratamentos psicanalíticos da imagem e uma leitura das Investigações lógicas de Husserl. A psicanálise compreendeu que a imagem era o lugar de sentido, mas sem dizer por que um sentido devia precisamente dizer-se em imagens. A fenomenologia, por sua vez, “conseguiu fazer falar as imagens; mas ela não deu a ninguém a possibilidade de com preender sua linguagem”1. Esse é o problema de Binswanger. Ou melhor, como Foucault o reconhece: eis a reconstrução do momento Binswanger, 1 DE I, p. 107.
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no cruzamento de certas descobertas e certos fracassos comprovados. Espacialização da história das ideias, dramaturgia fictícia destinada a marcar as rupturas, a sublinhar também simultaneamente a necessidade de um problema e a contingência da solução proposta. Pode-se recriminar Foucault por seu pouco respeito pela gênese de uma tese ou de uma ideia. Ele responde aqui, como o fará a cada vez que se ataquem os artifícios de seu método: Essa queixa tem pouco peso para nós, pois nós temos a fraqueza de acreditar na história – mesmo quando se trata da existência. Nós não estamos preocupados em apresentar uma exegese, mas em identificar um sentido objetivo2.
O interesse de Binswanger é reconectar, mas integrando a psicanálise e a fenomenologia, com uma compreensão do sonho em termos de teoria do conhecimento, nascida junto com a onirocrítica antiga, e que encontra uma de suas figuras mais belas na análise spinoziana das imagens proféticas. O sonho – é seu perigo e sua glória – é aquilo que é o homem, designa seu “ser transcendido”3, marca de uma verdade que o ultrapassa e que permanece para ele definitivamente inalcançável. Mas ele é também – outra forma de superação – uma maneira de experimentar a existência em suas possibilidades, antes que ela se determine no universo da objetividade. Assim fazendo, Binswanger torna possível uma antropologia da expressão da qual cremos poder dizer que venha a se realizar parcialmente em Foucault. Não se trata de dar novamente existência a suas determinações inconscientes ou econômicas, nem mesmo a uma estrutura fixa que revelaria a priori seu rosto, mas de compreender como de um inventário de possibilidades emana um tipo particular de vida, marcada então pelo selo da necessidade. Na linguagem ainda lírica de 1954: 2 Ibid., p. 108. 3 Ibid., p. 111.
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Não pode, com efeito, se tratar de reconduzir as estruturas de expressão ao determinismo das motivações inconscientes, mas de poder restituí-las ao longo dessa linha segundo a qual se move a liberdade humana4.
Ou nas palavras de 1984: a exigência de um trabalho intelectual sobre nossos limites, quer dizer, “um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade”5. A articulação entre o possível e o real, entre aquilo que permanece na indeterminação de uma manifestação eventual e aquilo que vai assumir o caráter do destino de uma realização efetiva, aparece nas últimas páginas da “Introdução”, quando Foucault, polemizando com o Sartre de O imaginário, vai propor, coisa rara nele, uma análise estritamente fenomenológica da imaginação. Nada de arqueológico aqui. Mas de maneira muito significativa Foucault crê já ultrapassar a antropologia e se orienta em direção de uma ontologia fundamental de inspiração certamente heideggeriana, e que faria a economia do conceito de homem ao mesmo tempo em que refutaria o psicologismo. “É necessário inverter as perspectivas familiares.”6 Nesse caso, é necessário parar de pensar no sonho a partir do real, a imaginação a partir da percepção, ou mais amplamente o possível a partir do efetivo. O ato da imaginação não mais consiste, agora, em pensar o objeto real como ausente, mas em ausentar-se a si mesmo de um mundo onde esse objeto não pode mais estar presente. Aniquilação não daquilo que é visado intencionalmente – Sartre –, mas aniquilação do sujeito ele mesmo, despossuído de toda primazia, jogado em um mundo onde se apagam as linhas de força que fazem que exista para nós um mundo da necessidade. Pensar em Pedro não é mais fixar a imagem de Pedro ausente, mas excluir-me de um mundo onde Pedro não pode mais estar lá no campo da percepção.
4 Ibid., p. 133. 5 DE II, p. 1397. 6 DE I, p. 138.
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Imaginar, é “visar-se a si mesmo como sentido absoluto de seu mundo, visar-se como movimento de uma liberdade que se faz mundo e finalmente ancora-se nesse mundo como em seu destino”7. A imaginação põe em destaque a distância entre o possível e o destino, ela situa o movimento originário que endurece em estrutura a contingência de um mundo sonhado. Fim do sujeito, posição justamente da necessidade do mundo e ao mesmo tempo revelação da contingência dessa mesma necessidade para a visão de outra realidade – aqui a do sonho –, de outro pensamento, de outra ação. Seria forçar o texto tentar fazê-lo ressoar com a obra ulterior? O que quis Foucault ao longo de seus escritos senão, como faz a imaginação, “tomar em diagonal a presença para fazer aparecer suas dimensões primitivas”8, senão lançar um olhar oblíquo sobre as formações discursivas para destacar o que as faz impor-se entre outras possibilidades teóricas? Reaprendamos a sonhar, não para fugir do real, mas para voltar ao gesto que o fez surgir como tal. Reaprendamos a nos abolir como sujeitos para perceber de novo em sua densidade o espaço do qual nós terminamos por emergir. Fim do prólogo. Alguns anos mais tarde, rompendo definitivamente com essa curiosidade juvenil pela Daseinanalyse, Foucault inaugurará com a História da loucura um empreendimento de outra amplidão.
7 Ibid., p. 140. 8 Ibid., p. 142.