Por que fazemos coisas estĂşpidas ou irracionais?!
Sylvain delouvée
Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?! Ilustrações: Margot
Tradução: Lúcia Pereira de Souza
Título original: Pourquoi faisons-nous des choses stupides ou irrationnelles?! © Dunod, Paris 2011 5, rue Laromiguière 75240 Paris ISBN 978-2-10-055834-6
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Delouvée, Sylvain Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?! / Sylvain Delouvée ; ilustrações Margot ; tradução Lúcia Pereira de Souza. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. Título original: Pourquoi faisons-nous des choses stupides ou irrationnelles?! ISBN 978-85-15-04219-7 1. Psicologia social I. Margot. II. Título. 15-11938
CDD-302
Índices para catálogo sistemático: 1. Psicologia social
Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Walter Nabas Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Ilustrações: Margot Revisão: Renato da Rocha
Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-04219-7 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015
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Sumรกrio
Prefácio
9
1
“E os outros, o que eles estão fazendo?” Influência social e padronização
13
2
“Os marcianos chegaram, salve-se quem puder!” Multidões e pânico coletivo
27
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“Parece que…” Os boatos se espalham
41
4
“Não acredito no que estou vendo!” Influência social e conformismo
55
5
“Você não passa de um grande burro!” Efeitos da categorização social
69
6
“É o fim do mundo!” Crenças e dissonância cognitiva
85
7
“Continuem, por favor…” Obediência e submissão à autoridade
99
8
“Você não é capaz!” Polarização e pensamento de grupo
111
9
“Não, não ouvi nada. por quê?” Apatia e efeito espectador
125
10
“Deixem-me sair!” A prisão de Stanford
139
11
“E quem é o meu próximo?” A parábola do bom samaritano
153
12 “Suma daqui, seu idiota!” Pensamento social e nexo
167 A seguir…
179 Posfácio
183
Prefรกcio
10 Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?
O jornal deu à agressão que houve ontem à noite o título: “Uma de suas vizinhas foi morta na frente do apartamento dela”. Você vira a página. As notícias se sucedem. Passa o tempo, está na hora de sair. Você para na publicidade da universidade vizinha que procura voluntários para participar de um estudo sobre a memória. Hoje à noite você vai telefonar atrás de mais informações. Quanto às coisas por fazer, não pode se esquecer de mandar o pagamento para o acampamento de férias de sua filha. Veja, um carro de polícia parou na frente da sua casa. Seu filho desce correndo a escada: “É comigo!”. Essa historiazinha condensa alguns dos assuntos que serão tratados neste livro. — Por que seus vizinhos e você mesmo não fizeram nada para socorrer a jovem de ontem à noite? — Por que o estudo sobre a memória vai submeter um perfeito desconhecido a choques elétricos? — Por que sua filha vai de cara detestar alguns companheiros e adorar outros quando não conhece ninguém no acampamento? — Por que seu filho vai ser preso por causa do professor? O fio condutor deste livro se resume à simples questão que constitui seu título: Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?. Jeremy Dean, criador do site Psyblog — Understand your mind (www. spring.org.uk), escreveu em novembro de 2007 um artigo intitulado “Why we do dumb or irrational things: 10 brilliant social psychology studies” (Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais: 10 estudos de psicologia social). Ele permitiu que eu usasse o mesmo título e sou grato por isso. Os estudos que escolhi diferem em parte daqueles trabalhados por Jeremy. Para tentar responder a essa grande questão vou recorrer à psicologia social. Essa disciplina tem inúmeras definições. Vou repetir aquela feita por um pesquisador de Quebec, Robert Vallerand, em 1994: “A psicologia social é o campo do estudo científico que analisa como nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos são influencia
11 Prefácio
dos pela presença imaginária, implícita ou explícita dos outros, por suas características e pelos diversos estímulos sociais que nos ro deiam e, além disso, examina como nossos próprios componentes psicológicos pessoais influenciam nosso comportamento social”. Disciplina científica localizada na junção da psicologia e da sociologia, ela ajuda a perceber melhor a influência do contexto e da presença de outros, através de mais de vinte experiências de psicologia ilustradas. Esses estudos ou experiências clássicas serão apresentados e explicados da maneira mais acessível possível. Evidentemente, foi preciso fazer escolhas, pois as experiências interessantes, originais e surpreendentes são numerosas. Se você vai ao cinema ou assiste à televisão, alguns podem até ser conhecidos. Os Simpsons, Law & Order, Life, CSI, Veronica Mars, Arquivo X, Doctor Who ou ainda Cold Case são algumas séries de televisão que se referiram a algumas experiências apresentadas aqui ou as usaram. O cinema e a literatura não ficam atrás. Falarei disso na ocasião oportuna. Nicolas Vaidis, apelidado Margot, aceitou mais uma vez contribuir para meu trabalho, trazendo Kouik e Kouikette para ilustrar o livro. É realmente uma verdadeira colaboração, e este livro também pode ser lido através de suas ilustrações. Como verão, esses comportamentos estúpidos ou irracionais talvez não o sejam tanto assim. No fundo, eles são estúpidos ou irracionais dependendo do ponto de vista adotado. Parecendo ilógicos, talvez simplesmente tenham outra lógica. Mas não antecipemos, vou deixálos descobrir primeiro esses surpreendentes estudos. Gostaria de fechar este pequeno “Prefácio” com alguns agradecimentos: — aos membros do Laboratório de psicologia social da universidade de Rennes 2 e a meus colegas em geral pelo apoio, ajuda e conselhos; — a Sylvie e a Roxane. Ambas contribuíram com um olhar crítico por ocasião da elaboração dos primeiros capítulos do manuscrito;
12 Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?
— a Marie-Laure pelo trabalho sob pressão, a Jean pela compreensão e apoio; — a Michel-Louis por me ajudar a descobrir o nexo e por todo o resto; — a Jean-Baptiste e a Magali. Boa leitura!
Sylvain Delouvée (www.facebook.com/Pourquoi.faisons.nous.choses.stupides)
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“E os outros, o que eles estão fazendo?” Influência social e padronização
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Ih! Vocês viram como aquele cara é ridículo?
15 “E os outros, o que eles estão fazendo?”
1935 Universidade de Columbia, New York, Estados Unidos “Como assim, isso não estava mexendo?” Ora essa, nunca acredito nessas coisas! É a primeira vez que participo de uma experiência científica. Espero fazer tudo direitinho. Ontem cruzei com ele na Butler Library, a biblio teca central da nossa universidade. Ele é um estudante jovem que está preparando sua tese de doutorado e precisa de voluntários. Ele fala com sotaque. Não sei de qual país. Em todo caso, oferece 2 dólares a cada participante de uma experiência sobre percepção visual. É meu primeiro ano na Columbia e quase cheguei atrasado ao encontro depois de me perder pelos corredores. Pergunto a mim mesmo o que estou fazendo aqui. Há mais de meia hora o lugar está mergulhado no escuro e minha cabeça está imobi lizada num estranho aparelho na frente de uma tela. Somos três. Já vimos 76 vezes um pontinho luminoso aparecer na nossa frente. A instrução é simples, mas maçante: “Em pouco tempo, a luz vai come çar a se deslocar. Quando isso acontecer, aperte o botão que está na sua frente. Não espere pelas outras pessoas. Alguns segundos depois, a luz vai desaparecer. Indique a distância percorrida. Tente fazer as estimativas mais precisas que puder”. Nós três ficamos pra ticamente de acordo todas as vezes acerca de nossas estimativas. Mesmo assim me pergunto para que isso pode servir… Finalmente acabou. Como? Tenho que recomeçar tudo, dessa vez sozinho? Cem novos ensaios? Tá, tudo bem… Muzafer Sherif, cujo verdadeiro nome é Muzaffer S¸erif Bas¸ogˇlu, nasceu em 29 de julho de 1906 em Ödemis¸, na Turquia. Depois dos primeiros estudos na Universidade de Istambul, emigrou para os Estados Unidos. Entrou para a Universidade de Harvard, depois foi para Colúmbia, onde defendeu uma tese de doutorado em psicologia sob a direção de Gardner Murphy, famoso psicólogo americano da época.
16 Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?
Sua tese fala da influência de alguns fatores sociais na percepção: nossa percepção do mundo onde vivemos seria influenciada pelos outros? Explicando melhor, ele estuda se numa situação ambígua a percepção e o julgamento de um indivíduo podem ser influenciados pelo conhecimento das percepções e dos julgamentos das outras pessoas ao seu lado. Toda a sua pesquisa repousa no caráter ambíguo da situação na qual ele vai mergulhar os participantes. Já aconteceu de você enfrentar uma situação em que não sabia como agir, como se comportar? Sem dispor de nenhum parâmetro à sua volta ou desconhecendo completamente a situação com a qual você se defronta, o que vai fazer? Você vai olhar para a direita, depois para a esquerda, e certamente vai tomar como exemplo… os outros, tendo na cabeça uma ideia
Mas como vocês aguentam essas velhas roupas de lã... não dão coceira? Hum...
Hein?! Sim, coça um Nossa, eu pouco debaixo também. do gorro. CHEC CHEC CHEC
CHEC HEC C CHEC
17 “E os outros, o que eles estão fazendo?”
simples: se não sei o que fazer, os outros devem saber… Só que os outros vão fazer exatamente a mesma coisa! Você os olha; eles olham para você. Você está na situação que denominamos em psicologia social situação de ignorância coletiva, na qual cada um observa o outro para saber como agir ou se comportar. Voltemos no tempo. Estamos em 1899 e Edwin Emery Slosson é professor de química na Universidade de Wyoming. Ouçamos sua história: “Eu havia enchido uma garrafa com água destilada, a qual enrolei cui dadosamente em algodão e fechei numa caixa. Depois de algumas outras experiências, declarei que gostaria de saber com que rapidez um cheiro se espalharia no ar e pedi aos assistentes que levantas sem a mão tão logo o sentissem. Desembrulhei a garrafa e despejei a água no algodão, afastando o rosto enquanto o fazia, depois pe guei um relógio com segundos e esperei o resultado. Expliquei que tinha certeza absoluta de que ninguém no auditório nunca havia senti do o cheiro daquele composto químico que acabara de derramar. Em quinze segundos, a maioria dos que estavam na frente levantaram a mão, e em quarenta segundos o cheiro se espalhara até o fundo da sala em ondas paralelas bem regulares. Aproximadamente três quartos da assistência declararam ter sentido o cheiro. Um número
... é mesmo, isso coça demais... CHEC C CHE
CHEC CHEC
CHEC CHEC CHEC
É realmente insuportável!
18 Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?
maior ainda provavelmente teria aderido à sugestão se, depois de um minuto, eu não houvesse sido obrigado a parar a experiência, pois alguns dos assistentes das primeiras fileiras ficaram desagrada velmente afetados pelo cheiro e quiseram deixar a sala.” A história é particularmente interessante. O conteúdo de uma simples garrafa cheia d’água destilada rapidamente se vê dotado de um cheiro. Todos, de boa-fé, foram persuadidos a sentir alguma coisa. Não estamos assim tão longe da alquimia! Por quê? Como? Por sugestão, responde Slosson. Pela influência recíproca de uns sobre outros, diríamos hoje. Por influência social, portanto. Se o professor diz que vamos sentir alguma coisa, então temos que sentir alguma coisa… Basta, portanto, que uma única pessoa levante a mão para que todos a imitem. Voltemos a Sherif e à Universidade de Colúmbia. O que interessa ao nosso aprendiz de psicólogo são as normas, mais particularmente as normas sociais. O que é uma norma? Segundo o dicionário, uma norma “designa um estado habitualmente difundido ou convenção considerados quase sempre como uma regra a seguir”. Uma norma social remete, então, a uma regra de conduta numa sociedade ou num grupo: saber como se comportar, como agir, o que dizer, que roupa colocar, de que forma julgar ou ainda o que é mais desejável ou o que não é — tudo isso propicia uma uniformização dos comportamentos e dos julgamentos no interior de um mesmo grupo ou, em maior escala, de uma mesma sociedade. Evidentemente, as normas sociais não são fixas nem cristalizadas. Elas podem se transformar, evoluir ou desaparecer. Elas estão ligadas ao grupo que as definiu e, de forma mais geral, à cultura ou à história desse grupo. Se as normas de vestimenta proibiam as mulheres de usar calças compridas no século XVIII, já não é o caso hoje, mesmo que a lei do 26 Brumário do ano IX da República1 1
Segundo o calendário revolucionário francês, também chamado de calendário republicano, criado em 1792.
19 “E os outros, o que eles estão fazendo?”
(obrigando toda mulher que quisesse se vestir como homem a procurar a Prefeitura para conseguir uma autorização) nunca tenha sido revogada! Senhoras e senhoritas, da próxima vez reflitam bem antes de se vestir! Acalmem-se… Com o passar do tempo as normas sociais evoluem dentro de uma mesma cultura. Contudo, ainda em nossos dias, a charia — a lei islâmica — proíbe as mulheres de usar calças em certos países muçulmanos: como no Sudão, onde muitas mulheres foram condenadas ao açoite por terem usado calças. Se uma norma social remete a uma regra, esta é passível de variações dentro de uma margem de condutas, atitudes e opiniões permitidas e/ou repreensíveis. As normas correspondem, assim, a modelos de conduta ou de atitude e de opinião em torno dos quais algumas variações, dentro de certos limites, podem ser permitidas. Fazer barulho às 22 horas e 5 minutos é, por exemplo, ainda aceitável apesar de a
Tudo bem! Não se preocupem... Tenho um monte de roupas dentro da minha van!
CHEC CHEC
CHEC HEC C
20 Por que fazemos coisas estúpidas ou irracionais?
norma social proibi-lo depois das 22 horas. Trata-se, efetivamente, de uma norma social, pois todo barulho excessivo é normalmente proibido tanto de noite como de dia. Uma norma social é sempre expressão de certa coletividade e não é natural: ela se impõe ao indivíduo por intermédio de uma transmissão social. Enfim, notemos que a norma social repousa numa atribuição de valor: ela define um conjunto de ações desejáveis para o grupo que a cria. O valor independe de qualquer critério de verdade, pois desejável não quer dizer verdadeiro. Sherif, que queria estudar o efeito dos fatores sociais sobre a percepção, destaca a forma como as normas são criadas dentro do grupo. A isso se dá o nome de padronização. Para ele, é a ambiguidade de uma situação que forja uma uniformidade nas condutas, ou seja, a construção de normas sociais. Assim, numa situação em que não existe nenhuma norma, o que vai acontecer? Qual comportamento um indivíduo sozinho vai adotar nessa situação? Vai estabelecer uma norma individual? Se sim, o que acontecerá com ela quando o indivíduo estiver com outras pessoas? Para Sherif, a dificuldade estava na situação experimental, que deveria poder ser vista de vários modos pelos indivíduos e sem nenhuma norma preestabelecida. Para conseguir essa situação ambígua ele lançou mão de um efeito bem conhecido pelos astronautas: o efeito autocinético. Trata-se de uma ilusão perceptiva que acontece quando uma estrela isolada, vista num céu uniforme, parece se deslocar no nosso campo visual. Sem nenhuma referência, temos a ilusão do movimento. Não há nada mais ambíguo do que uma ilusão de óptica! A experiência foi feita na Universidade de Colúmbia (Estados Unidos). Os participantes, todos eles rapazes de 19 a 30 anos, univer sitários, estão dentro de uma sala comprida e escura. Ao fundo, um engenhoso dispositivo faz aparecer e desaparecer um ponto luminoso. Sem ponto de referência, mergulhados no escuro, os partici-
21 “E os outros, o que eles estão fazendo?”
pantes vão ter a ilusão de que o ponto se desloca de forma mais ou menos errática. Na verdade, é claro que ele continua imóvel. Cada participante devia avisar o momento em que “via” o ponto luminoso se mexer, e no final da experiência qual havia sido, segundo ele, a amplitude do deslocamento do ponto. Cada participante realizava várias séries de cem avaliações em vários dias. Sherif comparava na verdade várias condições experimentais, ou seja, muitas variantes: — situação individual: cada participante está sozinho com o experimentador; — situação individual seguida de uma situação coletiva (grupo de dois ou três no qual cada um fica sabendo as estimativas do outro em cada experimento); — situação coletiva seguida de uma situação individual. Na condição de situação individual, Sherif constatou que as primeiras estimativas eram bem diferentes umas das outras. “Teste 1 — Nossa, o ponto mexeu muito… hum… diria uns 40 cm. Teste 2 — Agora, tenho a impressão de que ficou mais parado… ve jamos… diria 5 cm. Teste 3 — Não sei muito bem… 30 cm na minha opinião. Teste 4 — Quem sabe 12 cm?” Progressivamente, a variabilidade diminui. “20 cm… 22 cm… 19 cm… 21 cm… 20 cm…” Com o tempo, os participantes forjaram sua própria norma. Essa norma individual ia, assim, servir de referência para novos julgamentos na falta de qualquer medida objetiva, impossível nessa situação. Evidentemente, essa norma individual (aqui, no exemplo, 20 cm) podia apresentar desvios importantes com a estimativa dos outros participantes: eram as chamadas variações interindividuais, portanto entre os indivíduos. Cada indivíduo criava sua própria norma reduzindo rapidamente a variação das suas próprias respostas em torno de um valor central. Mas, como somos todos diferentes, esse valor central podia variar enormemente de indivíduo para indivíduo.