Sonhar, fantasiar, virtualizar – do virtual psíquico ao virtual digital

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Sonhar, fantasiar, virtualizar

Do virtual psĂ­quico ao virtual digital



Serge Tisseron

Sonhar, fantasiar, virtualizar

Do virtual psíquico ao virtual digital Tradução:

Lucia Pereira de Souza


Título original: Rêver, fantasmer, virtualiser – Du virtuel psychique au virtuel numérique © Dunod, Paris 2012. 5, rue Laromiguière 75240, Paris Cedex 5 ISBN 978-2-10-057285-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tisseron, Serge Sonhar, fantasiar, virtualizar : do virtual psíquico ao virtual digital / Serge Tisseron ; tradução Lucia Pereira de Souza. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. Título original: Rêver, fantasmer, virtualiser : du virtuel psychique au virtuel numérique. Bibliografia ISBN 978-85-15-04270-8 1. Imaginário (Psicologia) 2. Psicologia 3. Realidade virtual – Aspectos psicológicos 4. Representação mental I. Título. 15–01534

CDD-153.22

Índices para catálogo sistemático: 1. Realidade virtual: Psicologia

153.22

Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Viviane B. Jeronimo Imagem de © success/Fotolia Diagramação: Rosilene de Andrade Revisão: Mônica Aparecida Guedes

Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-04270-8 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015


Sumário

INTRODUÇÃO................................................................................................................................9 Capítulo 1 O “QUERER VER AUSENTE”: SONHO, FANTASIA E IMAGINAÇÃO.....................................................17 Capítulo 2 VIRTUAL E VIRTUALIZAÇÃO.........................................................................................................37 Capítulo 3 RELAÇÃO COM UM OBJETO PSÍQUICO VIRTUAL E RELAÇÃO VIRTUAL COM O MUNDO...................53 Capítulo 4 OS OBJETOS DAS TELAS ENTRE VIRTUAL E ATUAL, PODER E RECIPROCIDADE................................73 Capítulo 5 O RISCO DA VIRTUALIZAÇÃO DO MUNDO.....................................................................................91


Capítulo 6 A VIRTUALIZAÇÃO CRIANDO IDENTIDADES MÚLTIPLAS..............................................................103 Capítulo 7 A TERAPIA COM O AVATAR........................................................................................................119 Capítulo 8 INTERNET: UM ESPAÇO MALEÁVEL A SERVIÇO DA CONSTRUÇÃO DE SI E DAS APRENDIZAGENS .......................................................................135 Capítulo 9 SONHANDO E DEVANEANDO NA INTERNET................................................................................151 CONCLUSÃO . ...........................................................................................................................167 BIBLIOGRAFIA . ........................................................................................................................173


Para Merlin e Adriane Geração futura



INTRODUÇÃO

Tive um paciente cuja relação com a mulher amada era extremamente particular. Quando estava longe, passava muito tempo pensando nela. Imaginava muitas situações nas quais os desejos que nutria por ela eram plenamente satisfeitos. Escrevia-lhe pouco, mas nas cartas que lhe enviava expressava o desejo que sentia. Contudo, quando a encontrava, parecia que queria fugir da relação. A isso a mulher reagia dizendo: “O que está acontecendo? Você me ama quando não estou perto e deixa de me amar quando estou?”. Ela não estava dizendo que o amor havia realmente desaparecido, e tinha razão. Seu amor era real, mas só se atualizava a distância. A proximidade o matava. Poderíamos dizer que se tratava de um amor imaginário? Não, pois o homem escrevia à mulher e interagia com ela. Não se tratava de um diário íntimo no qual ele estaria escrevendo para uma criatura de sua imaginação. Ele tinha contatos – epistolares ou telefônicos, pois na ocasião não havia a internet – com uma mulher bem real que os recebia e respondia. Ele queria encontrá-la, mas sua presença física o perturbava. As relações sexuais ficavam a quilômetros daquilo que havia imaginado. Ele não


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conseguia aceitar a realidade dessa mulher e continuava, diante dela, a investir na imagem que havia feito em sua ausência: assim, é evidente que sempre ficava decepcionado, mas, tão logo separado, o desejo voltava outra vez ardentemente. Entendi melhor esse rapaz no dia em que descobri um texto de Winnicott no qual ele falava de uma situação semelhante. Era um paciente que não suportava a mãe e ficava irritado sempre que a via1. Até aí, nenhuma novidade! Mas o curioso é que Winnicott dizia que o paciente era “virtualmente muito ligado à mãe”. Eis aí, sem dúvida, o cerne do problema. Poderíamos dizer que o paciente não amava a mãe na realidade? É claro que não, mas ele a amava quando não estava com ele. Os padres da Igreja diriam que ele a amava in abstentia e, não in presentia, em outras palavras, ele amava a imagem que fazia dela. No entanto, para ele, a mãe não era um objeto imaginário, como um unicórnio ou uma sereia. Ela era um ser real, e podemos até afirmar viva. Se estivesse morta, não haveria sentido em dizer que ele era muito ligado a ela “virtualmente”, porque essa virtualidade não poderia, quaisquer que fossem os desejos do paciente, ser confrontada com sua atualização. A referência a Winnicott nos faz considerar a relação que mantemos com o virtual como um componente da vida psíquica, que pode mesmo ser a chave do extraordinário poder de fascinação que os ditos espaços “virtuais” de nossos computadores exercem sobre nós. Com efeito, o ser humano prefere associar suas emoções e seus sentimentos com representações mentais em vez de com objetos concretos. Quando isso acontece, ele não suporta ter que confrontar uma realidade à qual está muito ligado. Às vezes, esses vídeos mentais trazem tanto prazer que ele prefere não procurar sua atualização com encontros ou ocasiões reais. Essa situação questiona a relação com a ausência, mas também com a presença. O desejo nostálgico de uma realidade inacessível está presente em ambas. A verdade é que preferimos sonhar com o mundo em vez de enfrentá-lo realmente. Mas também acontece de diante dele continuarmos a sonhar com ele em vez de interagir quando surge a oportunidade. 1  D. W. Winnicott [1971], Jeu et réalité, Paris, Gallimard, 1975 (col. Connaissance de l’Inconscient).


INTRODUÇÃO

Mas que lugar ocupa o virtual digital em relação a essa forma de virtual psíquico de que fala Winnicott? Para entender, temos que examinar a cadeia contínua que vai da primeira ferramenta até o tablet digital, passando pela máquina a vapor. As diferentes máquinas inventadas pelo homem sempre tiveram como objetivo prolongar as funções de seu próprio corpo. Foi assim que as ferramentas estenderam as possibilidades da mão e do braço, depois que a domesticação das forças da água, do vento e das energias fósseis aumentou a eficácia delas (Leroi-Gourhan 1964). Esse prolongamento paralelamente afetou nossas funções mentais: a memória encontrou na escrita um suporte capaz de auxiliá-la e aumentar seu alcance, enquanto as operações contábeis ficavam a cargo das máquinas de calcular. Com os computadores, em nossos dias nossas funções de representação, de antecipação e de inovação encontraram um equivalente dentro do mundo concreto (Tisseron 1999). Mas os objetos virtualizados de nossas telas também criaram uma possibilidade inédita: ver o mundo e interagir com ele em tempo real através de representações materiais. Percebi isso há quatro anos quando visitava os famosos afrescos do Juízo Final pintados por Signorelli na catedral de Orvieto, os mesmos citados por Freud em Os chistes e suas relações com o inconsciente. Quando ia sair chegou um grupo de adolescentes. Eles eram guiados por dois acompanhantes que eu imaginava ansiosos para fazê-los descobrir “realmente” aquelas obras cujas reproduções provavelmente eles já teriam visto. Vi, então, a maioria deles enfiar a mão no bolso, pegar o celular e colocá-lo diante dos olhos. Estariam tirando fotos? Foi o que pensei inicialmente. Mas o fato de o manterem permanentemente diante do rosto me fez entender que a realidade era outra. Eles olhavam os afrescos através da tela do celular. Preferiam a imagem do pixel e mais aproximada das pinturas fornecida pelo celular à percepção direta delas. Ou melhor, preferiam provavelmente poder ir de uma para a outra. As imagens das tecnologias digitais constituem, com efeito, uma tela tão eficiente entre o mundo e nós porque podem ser vistas ao mesmo tempo em que ele é. Enquanto a foto e o filme revelado foram concebidos para substituir o mundo real, as imagens digitais permitem ir e vir entre a visão direta – aquela que nos mergulha na cena – e a

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visão parcial – aquela que escolhe um fragmento e o capta de tal forma que podemos alternativamente escolher entre mergulhar no mundo ou então ser seu cenógrafo. Por isso, estaríamos errados se víssemos esse artifício apenas como uma maneira de aliviar uma carga emocional muito intensa. Existe um prazer em ver as partes dentro de uma visão fragmentada na qual o mundo parece mais fácil de dominar porque está dividido. O fetichismo é um bom exemplo disso, mas o universo dos mangás, no qual as imagens justapõem os grandes planos, é uma demonstração importante desse desejo. Ele não esperou as tecnologias digitais para existir. Diríamos mesmo que o que aconteceu foi o contrário: o homem as inventou porque elas podiam satisfazer esse desejo bem melhor que todas as tecnologias já existentes. Recortar o objeto, separar todas suas participações sensoriais – a imagem de um lado, o barulho de outro, o cheiro de um terceiro... –, em seguida recompô-lo de outro jeito, tudo isso está na essência da utilização das tecnologias digitais, porque está na essência da vida psíquica. Pode-se dizer que os objetos virtuais e os simulacros criados por eles são muito menos importantes que o processo em si: a possibilidade de virtualizar os dados da experiência para que sirvam para novas sínteses. Se nosso espírito já não funcionasse dessa maneira, os computadores e seus formidáveis poderes de virtualização nunca teriam sido inventados. Isso não significa evidentemente que nosso espírito funcione como um computador, mas insensivelmente o homem fabricará computadores que se aproximarão cada vez mais do funcionamento de sua mente. Portanto, o virtual importa menos que a virtualização. E esta não tem apenas um só polo, mas dois. Dois polos que são como duas irmãs gêmeas, para não dizer inimigas: uma do lado do empobrecimento do mundo, a outra do lado da multiplicação e de seu enriquecimento. Com efeito, de um lado a virtualização suprime corpo, carne, emoções, a rigor, ela suprime a humanidade e a reduz ao estado de objeto. Mas de outro lado ela utiliza a capacidade de abstração para fazer novas sínteses que são o ponto de partida de novas representações. Aliás, essa possibilidade é utilizada em testes de projeção usados habitualmente em psicologia, como o Rorschach ou o Patte Noire. A pessoa testada é convidada a decompor mentalmente a imagem apresentada e a recompô-la


INTRODUÇÃO

de outra forma, de modo a revelar seu mundo interior e sua subjetividade. Com crianças, o desenho é frequentemente usado para revelar preocupações psíquicas que sem ele continuariam invisíveis e, podería­ mos mesmo dizer, virtuais. Pois virtualizar não consiste somente em partir da realidade para suprimir a carne; às vezes, acontece exatamente o contrário: aceitar a perda de atualização de alguns parâmetros para produzir outros. A virtualização não é uma forma de preferir a representação psíquica à realidade. Muito ao contrário, ela é um processo que multiplica as representações a partir de um estímulo único, que permite mudar o ângulo de ataque na resolução de um problema, libertar-se dos hábitos de pensamento e finalmente inovar, desde que, é claro, ela seja seguida por uma atualização que permita recolher seus frutos. Mas respondamos imediatamente a uma crítica que possivelmente o leitor já tenha feito. A tentativa de fundamentar na psicologia as categorias do virtual e da virtualização não encerra um risco de “virtualizar” a vida psíquica? Não mais do que o fato de falar de sua atualização nos fizesse correr o risco de “atualizá-la”. Lembremos inicialmente que o emprego de palavras derivadas das tecnologias para falar do funcionamento da mente é muito banal. Nesse sentido, Freud foi um “traficante”: os conceitos de força, de recalque ou de sublimação, para não falar de outros, foram diretamente retirados da termodinâmica de sua época. Mas, principalmente, o fato de o homem evocar os objetos na ausência destes não quer dizer que os “virtualize”. Longe de nós nos fecharmos numa lógica quantitativa na qual a capacidade de “virtualizar” seria indispensável à vida psíquica, mas na qual um excesso de virtualização poderia criar uma preferência pelo mundo das representações em vez de pelos corpos e pela realidade concreta. Veremos mesmo que na verdade não é o demais ou o não suficiente que importam, mas a presença ou não de um anel de virtualização, em outras palavras, a articulação do “querer ver ausente” e do “querer ver presente”. Nesse aspecto, o problema que temos para resolver é duplo. Em primeiro lugar, como a categoria do virtual ajuda a compreender melhor nossa vida psíquica? E, depois, como os objetos virtualizados em nossas telas modificam nossa relação com esse virtual psíquico e, portanto, indiretamente com o mundo? Essas duas questões são evidentemente ligadas. Nem por isso são equivalentes. As respostas que temos

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são provisórias, até mesmo porque os espaços virtuais evoluem muito depressa e o virtual psíquico que está ligado a eles, às vezes até mesmo preso a eles, é levado a evoluir igualmente depressa. Enfim, tenho consciência de que algumas coisas apresentadas agora podem ser contestadas, e espero que sejam, mas o rigor que coloco para demonstrá-las me faz desejar que seja o mesmo usado para contestá-las. Na prática, veremos inicialmente que o virtual é um precursor comum de estados psíquicos muito diferentes, mas caracterizados por um mesmo “querer ver ausente”: o devaneio, o sonho e a imaginação. Em seguida, esboçaremos nossa virada do virtual para a virtualização (capítulo 2). O capítulo 3 completará essas distinções abordando as noções de relação com um objeto psíquico virtual (ou relação de objeto virtual) e da relação “virtualizante” com um objeto que designaremos como relação virtual de objeto. Depois deixaremos o domínio do virtual aplicado apenas a nossos objetos internos para abordar nossas relações com tecnologias digitais. O capítulo 4 introduzirá os diversos usos e relações possíveis com os objetos virtualizados de nossas telas. O capítulo 5 examinará como eles podem encorajar a criação de relações virtuais empobrecedoras e, às vezes, até reificantes. Mas logo depois veremos, no capítulo 6, que a virtualização proporcionada por nossas telas também tem efeitos positivos, desde que alternem o investimento do polo virtual e do polo atual de toda relação. E veremos suas consequências hoje na multiplicação das identidades e seus efeitos sobre o nascimento de uma consciência dramatúrgica universal. O capítulo seguinte tratará das perspectivas clínicas abertas, principalmente com os adolescentes, pela existência dos “avatares”, aquelas marionetes de pixel encarregadas de representar os jogadores nos espaços digitais (capítulo 7). Prolongaremos essa visão clínica especificando a possível semelhança entre os espaços virtuais e o conceito de meio maleável (capítulo 8). Finalmente, retomaremos a questão dos videogames do ponto de vista das formas de atividade psíquica que são mobilizadas (capítulo 9). Veremos que a oposição entre devanear, sonhar e imaginar, colocada no capítulo 2, aparece justamente nas diferentes práticas lúdicas do vídeo e ajuda a fundamentar uma visão clínica e terapêutica dos jogadores livre da referência ao vício que provou ser cada vez mais incapaz de entender sua complexidade.


INTRODUÇÃO

Esperamos que o leitor saia convencido de que nenhuma tecnologia reproduziu tão bem as condições de nossas produções psíquicas quanto as do virtual. Consequentemente, todas as vantagens e todos os benefícios que o ser humano pode extrair dessas tecnologias são os que ele tira dos recursos de sua própria mente, e o mesmo acontece com os riscos que corre. É pena que muitos especialistas do fato psíquico só enxerguem este segundo aspecto e deem tão pouca atenção ao formidável modelo constituído por nossa relação com nossa própria mente para entender nossas relações com as telas. É com esse imbróglio que queremos acabar.

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