Fernando Caló

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“Quero ficar com Jesus sempre...” ‘Sentiu renovar-se no seu interior a força para as perseguir e, quando chegou aos propósitos, leu em surdina, mas ouvindo bem alto dentro de si: “Quero ser um santo sacerdote de Jesus”. Acima, podia ler-se, escrito na sua caligrafia convicta: “quero ser santo desejando sempre «Antes morrer que pecar»”. Arrumou o diário e juntou as mãos para rezar. Pediu a Nossa Senhora pela sua vocação, pelos colegas, pelos superiores, pelo seu Diretor espiritual, pela sua família, pelos pecadores, e depois deitou-se.’

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 225 365 750 geral@editora.salesianos.pt www.editora.salesianos.pt


Titulo: Fernando Caló © 2022 João Martins Copyright desta edição: © 2022 Edições Salesianas Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto | Tel: 225 365 750 www.editora.salesianos.pt geral@edicoes.salesianos.pt Capa e Paginação: Leila Ferreira - Fundação Salesianos Ilustração Capa: Nuno Quaresma - Fundação Salesianos Revisão: Pe. Basílio Gonçalves, sdb Fotografias: Arquivo Província Portuguesa da Sociedade Salesiana 1.ª edição: Abril 2022 ISBN: 978-989-8982-91-9 Depósito Legal: 498518/22 Impressão e acabamento: TOTEM Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.


JOÃO MARTINS

Fernando

CALÓ



CAPÍTULO I

Faltavam dez minutos para o fim da partida. Os jogadores corriam freneticamente de um lado ao outro do campo, perseguindo a bola e atropelando-se em reboliço sob o sol primaveril. Ao lado das balizas e nas linhas finais, os que assistiam iam gritando indicações e esbracejando com emoção, exaltando-se sempre que a bola e as pernas dos colegas não seguiam os seus conselhos. Os ânimos estavam ao rubro, os sentidos completamente focados no jogo renhido – um verdadeiro espetáculo de futebol. “Assim deve ser um desafio do campeonato nacional, mas com muito mais gente”, imaginava o Fernando. Uma multidão de adeptos a cantar, esbracejando com os cachecóis estendidos, verdes dum lado, vermelhos doutro, bandeiras a combinar e muita animação. Os jogadores marchando para a linha de jogo e tomando posições, o apito de largada, o frenesim, as fintas, os remates, os cruzamentos, as faltas e os cabeceamentos. Depois, a vitória. Os festejos do público envolvendo os atletas


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sorridentes, esquecidos já do cansaço, apertando a mão a gente importante e recebendo em troca uma brilhante medalha. E enfim: o tão desejado erguer da taça, suportada pelo esforço e alegria de todos, cingida nas mãos do capitão de equipa. Equipa que só podia ser, claro, o Sporting Clube de Portugal. Sorrindo, o Fernando distraía-se com este quadro, até que a bola saiu disparada do meio-campo e aterrou ao seu alcance. Desatou a correr e dominou-a, avançou sem oposição e ouviu vindo de algures: – Passa a bola, Caló! Levantou a cabeça e viu o António desmarcado em frente aos postes. A defesa adversária apressava-se para ele e em segundos cortar-lhe-ia as linhas de passe. Tinha de agir rápido. Driblou. Trouxe o pé atrás. Pontapeou... e caiu, sem perceber como, ao som de um estalido. Num instante, um calor cobriulhe o tornozelo, mas surpreendeu-se quando a grande dor com que já contava não surgiu. Levantou-se com alguma dificuldade e voltou os olhos na direção do seu chuto. O António vinha a correr para ele, em êxtase. – Eh, Caló! Marcámos! Grande passe! – e com mais calma, acrescentou – Estás bem? – Não foi nada... – respondeu o Fernando – Obrigado! Grande golo! Deu um passo para o colega, mas o seu rosto contraiu-se com a dor que, afinal, sempre lá vinha. O António percebeulhe o trejeito e tomou-lhe o braço pelos ombros. Gritou: – Substituição!! – e depois para o lado, onde outro colega limpava a terra dos calções – Eh, ó tu! Mais cuidadinho, ‘tá bem? Magoaste aqui o Caló!


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– Não foi nada! – protestou o outro, um rapaz franzino, dois anos mais novo, esticando o peito e abrindo muito os olhos. – Não foi o quê, meia-leca!? – Calma, Tó – interpôs-se o Fernando. Não foi por maldade, deixa-o estar. – Sim, não foi – defendeu-se o culpado – Ele estava ali e tinha a bola... Mas não foi assim com tanta força... – Foi uma entrada a pés-juntos! Não digas disparates, baixote! Não vais pedir desculpa!? O rapaz deitou a língua de fora ao António e escapuliu-se apressado. Este fez menção de largar no seu encalço, mas o Fernando agarrou-se mais ao seu ombro e disse-lhe: – Não te preocupes, já me estou a endireitar. Não é mesmo nada... – Ó Caló, mas o meia-leca merecia uns tabefes! – Não, Tó. A violência não leva a lado nenhum. E é só uma criança, como tu e eu já fomos. Na altura fazíamos o mesmo, não concordas? – Ora... O respeitinho é bonito... – Vá, não percas mais tempo comigo. Olha! Vão recomeçar: a bola já está no meio-campo. – O António ajudou-o a sentar num banco de madeira, e despediu-se: – Vou marcar outro, por ti! O Fernando sorriu-lhe e ajeitou-se no desconfortável assento, examinando o pé: doía-lhe cada vez menos e não parecia querer inchar, ambos bons sinais. Era uma questão de descansar uns momentos, pensou, e talvez fosse mais sensato não voltar a jogar nesse dia. Ficou feliz por ter conseguido, apesar

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de tudo, realizar a assistência. Um outro golo e a sua equipa passaria para a dianteira! – Caló?... Escutando o seu nome, virou a cabeça e deparou-se com um rapaz alto para a idade, de expressão afável e movimentos hesitantes. Devia estar dois ou três anos abaixo nos estudos. – És o Caló?... Estou certo? – Fernando Caló, sim. E tu, amigo? – José Silva Fontes. Ou só Zé Fontes. – Viva, Zé. Em que te posso ajudar? – Bom, ‘tava a olhar o jogo e vi a entrada daquele miúdo sobre ti e, irra!, até a mim me doeu – soltou uma risada tímida – – Vinha perguntar-te se te tinhas magoado. – Oh, não foi nada, estou bem, obrigado. – Pois... Hum... Ainda bem... Ótimo! Mas como ele se quedava, em silêncio, com um sorriso envergonhado no rosto e segurando a boina contra o peito, o Fernando interrogou-o: – Diz lá, Zé. Não temas! O que me queres? – Ah... Pois... Não, era só que... – Força – incentivou o Fernando, mostrando-se simpático. Os mais novos ora se mostravam insolentes, como o que lhe saltara à perna, ora se fechavam num respeito gaguejante para com os mais velhos. Na sua mente desenhou-se um pensamento: “Ser ruim é fácil para todos; o que custa, afinal, é aproximar-se do próximo, ser amigável e falar-lhe do que nos vai no coração”. – Bom, na verdade, achei estranho não teres dado um calduço no marialva que te aleijou daquela maneira... Os mais


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FERNANDO CALÓ COM A EQUIPA DE FUTEBOL.

velhos nunca deixam passar uma dessas! Porque não lhe ensinaste das boas?! O Fernando riu, mas depois pôs-se sério: – Oh, Zé... E batia-lhe para quê? Para sermos dois aqui no banco, fora da partida? O Fontes olhou-o, espantado: – Então, mas há que ter respeito, aquilo não se faz!... Como é que ele aprende? Ao Caló não surpreendiam os argumentos do outro. Há uns tempos, ele próprio teria pensado daquela maneira e, muito provavelmente, vexado o rapazito com palavrões. Entretanto, a sua visão mudara e repudiava a ideia de ser apenas mais um adolescente agressivo que aterroriza os pequenos apoiando-se

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no tamanho e na violência. Além disso, empenhava-se para que os seguintes não caíssem também neste erro, e por isso se lembrou de partilhar com o Fontes uma história que, porventura, o faria repensar a sua lógica. Olhando de frente o colega, perguntou-lhe: – Conheces São Domingos Sávio1, Zé? Aquele, não esperando uma pergunta como resposta, pensou e disse: – Sim, conheço. Falam dele nas aulas, os mestres. – Pois falam. E sabes porquê? O Fontes refletiu, perdendo o olhar no horizonte, e concluiu: – Bom, porque é santo. E era bom, e também era gaiato como nós. – Muito bem. Quantos anos tens, Zé? – Catorze – respondeu o outro, rápido e sem hesitar.

“Ó ZÉ... E BATIA-LHE PARA QUÊ? PARA SERMOS DOIS AQUI NO BANCO, FORA DA PARTIDA?”

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Domingos Sávio, nascido em Chieri (Itália) a 2 de abril de 1842, conheceu São João

Bosco aos 12 anos e tornou-se um dos seus mais brilhantes alunos. Devoto e virtuoso, Domingos complementava o sucesso escolar com uma atitude de alegria cristã e evangelização. A tuberculose levou-o aos 14 anos, em 1857, mas o seu legado e exemplo perduraram, tendo sido canonizado pelo Papa Pio XII em 1954.


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– São Domingos Sávio tinha a tua idade quando Deus o levou. Foi dos melhores pupilos de D. Bosco2, que gostava tanto dele que escreveu a sua biografia. Enquanto falava, Caló fixava o rosto do seu ouvinte. – Posso contar-te uma história da vida dele? Talvez não a conheças... O Fontes assentiu, segurando ainda a boina junto ao peito, mas já mais à vontade com a simpatia do colega mais velho. O Fernando continuou: – Até mesmo no Oratório onde São João Bosco acolhia os seus jovens, como cá nas Oficinas3, onde os Mestres e senhores Padres nos acolhem, havia rapazes que não se entendiam, por vezes. Domingos Sávio estava sempre atento, pois o que mais prazer lhe dava era a alegria, e não se deixava ficar se via que os outros entravam em brigas e confrontos, muitas vezes por caprichos, esquecendo-se da compaixão e sem quererem perdoar. José Fontes escutava-o com atenção. Um dia dois desentenderam-se, e ficou combinado que fariam um confronto à pedrada para se resolver. Ora, Domingos tentou falar-lhes e levá-los à reconciliação, pois a violência não

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São João Bosco (1815-1888), em vida tratado por D. Bosco, exerceu o sacerdócio em

Turim, onde estabeleceu a primeira Casa Salesiana, o Oratório de Valdocco, para acolher e formar os muitos jovens desfavorecidos que povoavam as ruas e cadeias da cidade. Canonizado em 1934, a sua obra, cujo impacto incontornável na juventude lhe granjeou o título de “Pai e Mestre dos Jovens”, espalhou-se por todo o mundo, continuando hoje os Salesianos a educar “bons cristãos e honestos cidadãos”. 3

Oficinas de São José ou OSJ era a antiga designação do atual colégio dos Salesianos

de Lisboa.

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é uma prática cristã, mas, pelo contrário, a arma dos rufiões. Como eles não quiseram ouvir, Domingos Sávio foi até ao local combinado para a luta e, quando os colegas desavindos iam começar, pôs-se no meio, levantando o seu crucifixo na mão, e disse, se fosse para continuar, que atirassem contra ele as primeiras pedras – os olhos do Fontes arregalaram-se. Com isto, os outros tiveram vergonha, desistiram de se magoar e Domingos Sávio convenceu-os a ir à Confissão. O Caló calou-se e reparou no companheiro Zé Fontes. A boina descaíra para a barriga e já não era apertada com tanta força. Ambos sorriram, e este exclamou: – Lá coragem tinha Domingos Sávio!... O Caló assentiu: – Muita. A violência não serve de nada, nem agrada a Deus. Devemos ser como São Domingos Sávio: bons, alegres e corajosos para enfrentar os que não são. E mais ainda: fortes para os convencer a emendar-se. Tendo soado estas palavras, ouviu-se no pátio o apito que indicava o fim do jogo de futebol. Empate a duas bolas. Às vezes é assim, sinal de que as equipas eram equilibradas. Tanto melhor, que ninguém se chateia e todos se congratulam pela partida bem disputada. O António já vinha a correr para ajudar o Caló a levantar-se, mas este punha-se de pé sem dificuldade e verificava que o tornozelo estava a funcionar sem problema. Encarou o Fontes e despediu-se: – Não esqueças, Zé! Sê bom e alegre. Evita a violência. E vai à Confissão! – Sim, Caló! Como Domingos Sávio. Sorriram e foi cada um para onde devia.



“Quero ficar com Jesus sempre...” ‘Sentiu renovar-se no seu interior a força para as perseguir e, quando chegou aos propósitos, leu em surdina, mas ouvindo bem alto dentro de si: “Quero ser um santo sacerdote de Jesus”. Acima, podia ler-se, escrito na sua caligrafia convicta: “quero ser santo desejando sempre «Antes morrer que pecar»”. Arrumou o diário e juntou as mãos para rezar. Pediu a Nossa Senhora pela sua vocação, pelos colegas, pelos superiores, pelo seu Diretor espiritual, pela sua família, pelos pecadores, e depois deitou-se.’

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