NÃO HOUVE MOMENTO EM QUE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NÃO TENHA SIDO BOA. SEMPRE FOI MARAVILHOSA.
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FERNANDO FARO, diretor e produtor musical
não cessam de se ramificar. Baião, choro, samba e rock, música eletrônica e música de concerto, tudo é muito mais. Movimentos e grupos proliferam: Clube da Esquina, tropicália, manguebeat, jovem guarda... também se chamavam sonhos. Extensiva compilação, esta que se desvela ao leitor acompanhada de um pôster da frondosa árvore. Músicos, críticos, acadêmicos, todos empenhados em dar a sua visão de cada um dos 23 gêneros e movimentos selecionados. Respirar as formas da pureza. Mergulhando nos olhares experientes, nas análises historiográficas e nas aproximações subjetivas e objetivas de cada tema, o leitor poderá brincar no regato até que a árvore lhe traga os seus frutos – teu amor, teu coração.
ISBN 978-85-9493-201-3
INCLUI PÔSTER
UMA ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA
Na árvore da música brasileira, há muitos atos que
UMA ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA
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Abacateiro, acataremos teu ato.
Organização: Guga Stroeter e Elisa Mori
SOBRE A ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA Basta folhear Uma árvore da música brasileira, que tem raízes ramificadas no vasto e fértil solo musical do país, para saber que o livro é único. Organizada pelo músico Guga Stroeter e pela pesquisadora Elisa Mori, esta é uma obra frondosa de informações que brotam da compilação de artigos sobre vários gêneros da música criada no Brasil. Árvores produzem sombra, mas esta gera luz e oxigena o conhecimento, por meio de uma leitura que nos faz degustar prazerosamente os seus frutos. Carlos Bozzo Junior, crítico musical e repórter do jornal Folha de S.Paulo
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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Cristianne Lameirinha, Clívia Ramiro, Francis Manzoni Produção editorial Bruno Salerno Rodrigues, Thiago Lins, Rafael Cação Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
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UMA ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA Organização: Elisa Mori e Guga Stroeter
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© Elisa Mori e Guga Stroeter, 2020 © Edições Sesc São Paulo, 2020 Todos os direitos reservados Preparação Luiz Guasco Revisão Fátima Couto, Luciana Moreira Projeto gráfico e diagramação Negrito Produção Editorial Capa e encarte Eder Redder Assessoria de produção Lúcia Rodrigues
Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores dos direitos autorais de poemas e letras de música citados neste livro, a fim de obter a permissão de uso. Caso recebamos informações complementares, elas serão devidamente creditadas na próxima edição.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Ar89 Uma árvore da música brasileira / Organização: Elisa Mori e Guga Stroeter. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020. 388 p. il.: pautas. isbn 978-85-9493-201-3 Encartado pôster com árvore da música. 1. Música. 2. Música brasileira. 3. História. 4. Tipologia. 5. Genealogia da música brasileira. 6. Árvore da música brasileira. I. Título. II. Mori, Elisa. III. Stroeter, Guga. IV. Gustavo Cerqueira Stroeter. V. Stroeter, Gustavo Cerqueira. cdd 780.981
Edições Sesc São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
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Este livro ĂŠ dedicado a Fernando Faro.
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E as risadas feriam o ar, os gritos, o coco pegara logo animadíssimo, aquela gente dançava, sapateava na dança, alegríssima, o coro ganhava amplidão no entusiasmo, as estrelas rutilavam quase sonoras, o ar morno era quase sensual, tecido de cheiros profundos. E era estranhíssimo. Tudo cantava, [...] se namorava, se ria, se dançava, a noite boa, o tempo farto, [...] vibrava uma alegria enorme, uma alegria sonora, mas em que havia um quê de extremamente triste. MÁRIO DE ANDRADE
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Apresentação DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo
Os afluxos de imaginários que permeiam a musicalidade brasileira a tor-
nam singular e, ao mesmo tempo, universal. Mergulhar nessa expressão, que transborda de norte a sul do país, é descobrir e reconhecer as distintas paisagens sonoras e suas particularidades, tão diversificadas quanto a própria constituição de nosso povo. Em tal imersão, de modo atemporal, ecoam as palavras de Mário de Andrade: “Nossa gente em numerosos gêneros e formas de sua música principalmente rural, cocos, sambas, modas, cururus, etc. busca a embriaguez sonora”1. Desse estado inebriante, com corpo e alma embevecidos por sons, ritmos, contrapontos e batuques, é possível alargar a percepção acerca dessa manifestação, construída, principalmente, a partir de elementos indígenas, africanos e europeus. Como linguagem que atravessa o tempo e se expande de modo impreciso, a música agrega influências e características identitárias, assumindo papel essencial na experiência de formação sociocultural. Assim, em um tecido permeável e poroso, com estruturas complexas advindas de diversas etnias, a música brasileira foi sendo forjada e, de forma engenhosa, continua a tecer suas tramas, que seguem dilatadas, tanto pelas invocações às tradições quanto pelos experimentalismos contemporâneos. Nessa cadência, Uma árvore da música brasileira, organizada pelo músico Guga Stroeter e pela pesquisadora Elisa Mori, compõe um registro histórico com testemunhos e reflexões de artistas, pesquisadores e produtores musicais, a partir de suas vivências e experiências. Essas memórias perpassam diferentes manifestações nacionais: modinha, lundu, choro, samba, baião,
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Mário de Andrade, Música de feitiçaria no Brasil, organização, introdução e notas de Oneyda Alvarenga (São Paulo: Martins Fontes, 1963), pp 44-5.
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bossa nova, jovem guarda, tropicália, Clube da Esquina, mangue beat, caipira e sertanejo, dentre outras. A árvore simbólica que colabora para visualizar as múltiplas ramificações musicais consagradas pelo tempo, como também as produzidas num passado recente, está materializada num pôster que acompanha o livro. O caldo cultural brasileiro, comumente adensado, configura-se como raiz e caule dessa estrutura, sendo ramos e folhas concebidos pelas conexões de artistas contemporâneos, que envolvem as camadas das reações naturais de plantio, frutificação e coleta. A música flerta com nossa memória afetiva, trazendo tempos de encantamento e descobertas, matizando nossa biografia. Também marca datas expressivas, situando fatos coletivos e momentos de transformação política e social. Nesse ensejo, em confluência com as demandas de preservação da memória cultural do país, associadas às realizações do Sesc no campo musical, é com prazer que apresentamos ao público este livro.
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Sumรกrio
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Introdução • Guga Stroeter • 13 Prólogo • Fernando Faro • 19 1. A cultura popular, seus mestres e as inspirações criativas • Ari Colares • 25 2. Música de concerto • Edmundo Villani-Côrtes • 43 3. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX • Paulo Castagna • 51 4. Choro • Izaias Bueno de Almeida • 87 5. O amplo e diversificado universo do samba • Nei Lopes • 91 6. Marchinha carnavalesca hoje • Suzana Salles • 109 7. Caipira e sertanejo • Paulo Freire • 115 8. Forró e baião, por Oswaldinho do Acordeon • Liliane Braga • 137 9. Bossa nova • Caetano Zamma • 151 10. Música instrumental • Nelson Ayres • 167 11. Jovem guarda • Netinho • 185 12. Samba-rock • Marco Mattoli • 193 13. Os festivais e a MPB • Solano Ribeiro • 205 14. A tropicália e os loucos anos 1960 • Júlio Medaglia • 213 15. Bituca e o Clube da Esquina • Liliane Braga • 219 16. Black music • Jorge Lampa • 235 17. Rock • Marcelo Nova e Fernando Guimarães • 249 18. A música pelo Brasil no fim do século • Chico César • 263 19. Hip-hop • Xis • 289 20. Música baiana • Bolão • 305 21. Música pernambucana • Eder “O” Rocha • 329 22. Manguebeat • Junio Barreto • 343 23. Música eletrônica • Kassin • 359 Glossário: os gêneros e movimentos musicais brasileiros • 365 Agradecimentos • 377 Sobre os autores • 379 Sobre a linha do tempo e a árvore da música • 387
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Introdução Uma árvore da música brasileira GUGA STROETER
A ideia de criar uma árvore da música brasileira surgiu em São Paulo, no ano de 1991. Iniciei minha vida profissional em 1983, tocando vibrafone e bateria – portanto, já estava na estrada havia, aproximadamente, sete anos. Naquele momento, existia uma poderosa indústria ligada ao mercado fonográfico. Era um cluster de negócios de alta lucratividade, pois estava em curso uma agressiva transição de mídias: ainda se lançavam muitos LPs (discos de vinil), e algumas obras já estreavam na forma de CDs. Outros tantos títulos eram lançados nos dois formatos. Vivíamos um período crítico da política e da economia nacional, chafurdando na ressaca que se seguiu ao confisco bancário do Plano Collor. Apesar disso, a vida cultural paulistana não arrefeceu. Tanto eu quanto meus colegas músicos saíamos para tocar ou ouvir música praticamente todos os dias. Shows, forrós, rodas de samba e choro, orquestras de baile, bares com voz e violão, bares com música instrumental, festas populares. Também gostávamos de algumas expressões da música estrangeira. No meu círculo mais íntimo, tínhamos uma predileção pelo jazz. Mas isso não interferia na certeza de que éramos brasileiros, provavelmente viveríamos no Brasil e pretendíamos contribuir para a evolução das manifestações nacionais, assim como desejávamos usufruir delas. Por outro lado, sabíamos que o nacionalismo exacerbado sempre fora uma energia frequentemente manipulada por poderosos para, em benefício próprio, construir monstruosidades como ditaduras e fascismos. Sabíamos também da incrível capacidade de assimilação e transformação da cultura brasileira. Já havíamos sido inoculados pelo ideário antropofágico dos modernistas de 1922. Acreditávamos – e prosseguimos acreditando – que, quanto mais ingredientes díspares fossem despejados dentro do nosso caldeirão cultural, mais saboroso se tornaria o resultado de nossa mistura. Não enxergávamos a presença do rock, do reggae, do jazz, da música eletrônica, do hip-hop e dos ritmos latinos como meras imposições impuras do imperialismo
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e do capitalismo selvagem. Essas influências sempre foram avaliadas por nós como centelhas de transmutação que contribuem para a evolução criativa da música brasileira. Algumas vezes, em companhia de amigos, consegui participar de verdadeiras expedições musicais. Comprávamos passagens aéreas baratas e alugávamos, por alguns dias, apartamentos simples em bairros alternativos de Nova York ou de cidades europeias. Nessas viagens, percorríamos lojas de discos durante o dia e, de noite, tentávamos assistir a mais de um show. Passávamos o restante do tempo ao lado do toca-discos do apartamento. Cada um de nós tinha o direito de ouvir um lado de um álbum, num revezamento que buscava garantir que apreciássemos boa parte das aquisições do dia. Havia também um rodízio para buscar o vinho ou o uísque que regaria nossas audições e conversas. Numa dessas viagens de gula musical, entrei em uma loja de discos em Amsterdã e lá encontrei à venda um pôster denominado The Jazz Tree (A árvore do jazz), medindo 0,70 x 1,00 m, com 170 fotos de 920 artistas catalogados. Comprei, emoldurei e pendurei na parede da sala de estar da minha casa em São Paulo. Logo notei que diversos amigos, mesmo os que não eram aficionados pelo jazz, aproximavam os olhos desse pôster e, com auxílio do dedo indicador, navegavam pelas linhas repletas de nomes e fotos. A partir do reconhecimento da atratividade que o pôster exercia sobre os meus colegas, pensei em trabalhar numa publicação similar, porém voltada para a história da música brasileira. Lembrei-me imediatamente da minha amiga Elisa Mori. Ela morava num bairro paulistano muito distante de mim: eu estava em Perdizes, e Elisa, no Jardim Aricanduva. Entretanto, já fazia anos que nos conhecíamos e colaborávamos um com o outro, trocando opiniões e textos sobre música. Então, reservamos várias tardes de segunda-feira para trabalhar na futura “Árvore genealógica da música popular brasileira”. Não havia internet no começo dos anos 1990 e nem sequer sonhávamos com algo semelhante. Os procedimentos investigativos eram de outra natureza. Já havia alguns dicionários enciclopédicos voltados para a música brasileira, como a Enciclopédia da música brasileira e o Dicionário Cravo Albin. Em busca de conteúdo, frequentávamos livrarias e dedicávamos especial atenção aos sebos. Também buscávamos contato com colecionadores de discos excêntricos. Muitas vezes, o atalho era pegar o telefone e ligar para músicos conhecidos e jornalistas. Alguns deles eram os próprios protagonistas dessas narrativas; outros nos ajudavam indicando personagens desse intrincado enredo. O próximo passo foi uma visita à papelaria do bairro. Adquirimos chapas de isopor, bloquinhos de post-it, alfinetes coloridos e barbante. No fundo de 14 Guga Stroeter
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casa, havia uma sala com instrumentos musicais e uma parede desocupada. Lá, fixamos as chapas de isopor, formando um grande painel. Começamos a preencher etiquetas com os nomes dos artistas, suas respectivas datas e locais de nascimento e morte e, por fim, abreviações de suas atividades musicais (cantor, compositor, maestro, letrista, que instrumentos tocavam). Fomos agrupando-os lado a lado, classificando-os por estilo, tendo como modelo o pôster The Jazz Tree. As etiquetas eram alfinetadas no isopor, e as conexões entre os artistas, feitas com barbante, que ligava os adesivos. Paralelamente à montagem do “diagrama alfinetado”, Elisa anotava as informações em uma planilha. Passamos alguns anos nos dedicando a esse hobby. Quando nos demos conta, nosso projeto de árvore contava mais de 3 mil nomes catalogados. Além dessa coleção de informações, passamos a lidar com interrogações que brotavam sucessivamente como urgências intrínsecas ao processo. O primeiro questionamento dizia respeito aos critérios de seleção que orientariam o trabalho. Qualquer pessoa ligada à teoria da comunicação ou à produção de conteúdo sabe que, independentemente de nossa vontade, não existe nada que se pareça com a tão almejada “neutralidade científica”. Conscientes desse pressuposto irrefutável, conduzimos nossa pesquisa com as limitações circunstanciais. Nossa primeira preocupação foi ampliar a abrangência das escolhas para fronteiras além de nossos gostos pessoais. Adotamos um conceito próximo de um pensamento que batizamos internamente de “critério antropológico”. Assim, buscamos não entrar na polêmica do que é “legitimamente brasileiro” ou não. Ficou valendo a máxima: “Aconteceu em território brasileiro e contou com a participação de artistas brasileiros, então a música é brasileira”. Por isso, na nossa árvore há galhos dedicados à cultura popular, ao samba e ao choro, da mesma forma que existem ramificações para o punk-rock, o hip-hop e a música eletrônica. Por outro lado, e de maneira proposital, nossa compilação buscou trazer à tona personagens que não necessariamente tiveram maior visibilidade na mídia ou na literatura. Uma parcela significativa dos músicos que selecionamos contribuíram para as cenas do final do século XIX, adentrando as três primeiras décadas do século XX. Logo surgiu nossa segunda dúvida basilar: sabemos que não é possível ter uma árvore contemplando todas as pessoas que contribuíram para a evolução da história da música brasileira. Inevitavelmente, alguns nomes estarão no pôster e outros não. Como solucionar esse embate? Eis um dilema que afeta a nós, pesquisadores autônomos e alternativos, da mesma forma que preocupa aos grandes enciclopedistas e dicionaristas. Disse um autor que “um dicionário é um livro que já nasce morto”. Esse pensamento Introdução 15
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faz todo o sentido. Por mais volumosa que seja a obra, no período entre sua compilação e sua publicação a comunidade já terá criado novas palavras e aposentado outras tantas; nem por isso um dicionário deixa de ter valor. O mesmo vale para a nossa árvore da música – que é, aliás, uma árvore entre tantas possíveis, por isso ganhou o artigo indefinido “uma” no título. Mais tarde, decidimos que deveríamos suprimir o conceito de “genealogia” no nosso diagrama. Usar o termo “genealogia” para o universo da produção cultural é um erro, porque embute a ideia de filiação linear, em que um gênero necessariamente se origina de outro ou dá origem a outro. No entanto, a porosidade do fazer artístico não é linear. Alguns filósofos gostam de postular que a ordem não está no mundo, mas é uma necessidade humana. O cérebro não se cansa de catalogar eventos, relacionar causas, agrupar coisas e colocá-las em caixinhas rotuláveis. Nossa árvore responde a esse anseio cartesiano, organizando personagens da música brasileira numa visualização panorâmica, bidimensional e simplificada. Com o intuito de suprimir a divisão entre popular e erudito, optamos por excluir o termo “popular” do título. Para aperfeiçoar essa ideia, criamos dois galhos, que, estrategicamente, passaram a ocupar as laterais do pôster: um dedicado à cultura popular e outro, à música de concerto. Essa modificação foi relevante e deu o contorno inclusivo de que necessitávamos, pois são dois braços opostos que, na sua distância estrutural, emolduram o prisma da diversidade dos modos de fazer música. Os mestres de cultura popular normalmente não escreveram ou leram partituras. Muitos não são compositores, nem sequer os intérpretes mais técnicos daquela tradição. Poucos foram registrados em gravações. No entanto, desempenharam o papel fundamental de arquivar, mediar e transmitir a cultura oral e musical das expressões rurais, urbanas, religiosas e profanas. Foram – e continuam sendo – capoeiras, reis de congo, instrumentistas de cavalos-marinhos, ogãs de terreiros, cirandeiros etc. Em contraposição a esse mundo oral, temos uma linhagem de músicos que dedicaram a vida a trabalhar com orquestras e partituras. Sua contribuição pessoal foi o abrasileiramento do pensamento sinfônico e camerístico. Alguns deles alimentaram-se de temas e sonoridades tradicionais brasileiras, outros buscaram abstrações supranacionais; mas, de uma maneira ou de outra, traçaram caminhos criativos engenhosos para a formação da nossa música de concerto. Há outra confusão que a palavra “popular” traz consigo. Para a expressão “música popular brasileira”, criou-se a sigla MPB. Hoje, fazer MPB engloba diversos estilos, mas é importante saber que essa abreviação foi criada nos anos 1960, em referência à geração de compositores celebrizados nos festivais da Canção e nos festivais de Música Popular Brasileira. Não eram 16 Guga Stroeter
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bossa-novistas, não eram sambistas do morro, tampouco eram roqueiros da jovem guarda. Eram em sua maioria jovens de classe média, inconformados com a ditadura militar estabelecida em 1964, que usavam instrumentação acústica e ingredientes da música regional brasileira – o baião e o samba, sobretudo – para produzir canções com letras de cunho social e político. Por esse motivo, também preferimos retirar a palavra “popular” do título, pois não nos limitamos aos artistas da sigla MPB sessentista e suas descendências. Com o passar dos anos, o protótipo de árvore da música, que estava fixada na parede de isopor com os incontáveis alfinetes coloridos, passou a ser organizado no papel. Norteamos nosso trabalho para que tivesse um alto grau de condensação de informações, mas sempre privilegiando sua função decorativa. Por isso, em 1998, uniram-se a essa empreitada os artistas plásticos Rodrigo Andrade, Maria Andrade e Gisela Moreau. Colaboraram na pesquisa iconográfica (pesquisando, escolhendo e liberando os direitos de fotos e imagens para o pôster) Mônica Vendramini Reis e Lilian Aydar.
Assim como eu, muitos músicos gostam de escrever. Por isso, em vez de buscar professores ou jornalistas, decidimos convidar prioritariamente músicos com disposição para escrever sobre suas vivências. Nossa compilação não tem rigor acadêmico, pois nos interessam mais os textos em primeira pessoa, relatando experiências e opiniões. Com o auxílio dos parceiros Jussara Salles, Lilian Aydar, Ligia Fernandes, Regina Porto, Fernando Guimarães, Wladimir Mattos, Rosângela Matua e Liliane Braga, contatamos os diversos artistas, solicitando-lhes que escrevessem, sem imposição de número específico de laudas nem cerceamento do que deveria ou não constar de suas reflexões. Além de criar os textos, esses colaboradores foram entrevistados por nós para que, pessoalmente, revisassem os galhos do pôster da árvore. Precisávamos garantir que a seleção de artistas fosse acertada e justa. O livro é, portanto, um verdadeiro caleidoscópio de diferentes cores, reflexos e visões de mundo. É também o mapeamento de uma época (todos os autores viveram a passagem do século XX para o XXI) e um panorama cartográfico – entre os autores, figuram fluminenses, paulistas, mineiros, baianos, sergipanos, alagoanos, pernambucanos, paraibanos etc. Com a inestimável participação da produtora cultural Lúcia Rodrigues e o talento do infografista Éder Reder, aprimoramos nosso produto e, finalmente, em 2016, nos associamos à editora do Sesc São Paulo para lançar a obra que o leitor tem em mãos.
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A árvore nasce pelo esforço de pessoas que comungam a convicção de que é urgente investir em procedimentos de memória e registro. Acreditamos que é preciso criar novos agentes para trabalhar na preservação desse patrimônio imaterial, pois a música brasileira é especialmente diversa e rica – uma constatação que pouco ou nada tem de ufanismo patriótico. É que o país tem uma dimensão continental e uma pluralidade de ecossistemas em que se desenvolveram as mais diversas formas de relações de trabalho e produção cultural. Além disso, a baixa taxa de alfabetização nos séculos passados contribuiu para tornar a oralidade e a música elementos ainda mais fundamentais na comunicação e na manifestação de anseios coletivos. Toda música é uma caixa que contém em seu interior informações que nos fazem viajar no tempo e no espaço, sempre revivendo a dramaticidade da experiência humana. O fazer musical combina sons e gramáticas pré-existentes com a ousadia de propor caminhos inusitados. Cito como exemplo o livro The World in Six Songs, em que o neurocientista norte-americano Daniel J. Levitin elege ao menos seis tipos de funções primordiais da música na civilização humana. São elas: amizade, alegria, conforto, conhecimento, religião e amor. A música permite que o conhecimento se transmita de geração para geração, além de sincronizar o movimento dos corpos – seja para desfilar numa escola de samba, seja para apavorar o inimigo no campo de batalha. Reafirmamos nossas territorialidades primitivas ao cantar os hinos nacionais, celebramos nossa alegria ao som de música eufórica, mitigamos nosso luto ao som de canções fúnebres. Na música triste encontramos alegria, pois ali percebemos que não somos os únicos a chafurdar naquele mesmo pântano aparentemente solitário e instransponível. E não existe religião no mundo que não utilize a música como instrumento de conexão com a espiritualidade. Isso sem falar das canções de amor. Não fazemos música por mera diversão ou casualidade. Certamente, somos descendentes de outros seres humanos que gostavam de música e a praticavam. O que aconteceu às ramificações da espécie que não cultivavam a prática da musicalidade? Provavelmente, extinguiram-se. Como diz o provérbio capiau coletado por Guimarães Rosa: “O sapo não pula por boniteza, mas porém, por precisão!”.
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Prólogo MPB: lembranças da melhor música do mundo F E R N A N D O FA R O
A música popular brasileira é, talvez, a mais rica do mundo no gênero, se não uma das mais ricas. A gente ouve deslumbrada uma grande variedade de ritmos: certas modas nordestinas, desde o aboio até as danças populares, como reisados e bumba meu boi. E há, também, as canções de marinheiros. No meu tempo de menino, havia um cortejo em que as pessoas cantavam:
Chega na janela, Chega na janela, Venha ver marujo, meu bem Que ele vai pra guerra...
Essa era uma canção de chegança. Certa vez a cantei para Baden Powell, e ele a adorou. Teve vontade de compor uma segunda parte para ela, e pediu que eu repetisse seus versos. Mas não cantei. Aquela canção não precisava de segunda parte.
Durante minha infância, vivida na cidade sergipana de Laranjeiras, conheci a negra Bilina. Era a responsável pelas taieiras, o reisado das mulheres. Era mãe de santo também. O pessoal do sobrado onde eu morava não me deixava ir à casa da Bilina, justificando: “Lá só tem negros...”. Mas eu ia assim mesmo, escondido, por causa das cantorias que aconteciam ali, seduzido por seus ritmos e enredos. Um evento fantástico era a Procissão dos Passos. Contava a via-crúcis de Jesus Cristo. Percorria a cidade, enquanto os devotos entoavam aquelas ladainhas bonitas:
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Louvando a Maria, O povo fiel A voz repetia De São Gabriel. Ave, ave, ave Maria Ave, ave, ave Maria.
No interior de Sergipe, a música chegava pelo rádio. Ouviam-se os programas da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, em que se executava muita música de Carnaval e, principalmente, onde Francisco Alves se apresentava. Chico era o ídolo absoluto, perfeito. Um pouco depois vieram Orlando Silva, Sílvio Caldas e tantos outros – vozes que expressavam a sensibilidade de uma época, traduzindo-a em timbres marcantes.
Em frente à minha casa, em Laranjeiras, vivia uma mulata fantástica. Não dava bola para ninguém. Um dia, apareceu por lá um sujeito de Aracaju e saiu com ela. Lembro-me deles, mais tarde, na janela do sobrado, e o rapaz cantarolando: “Quem é você que não sabe o que diz...”, verso da famosa composição “Palpite infeliz”, de Noel Rosa. E eu, mordido de inveja, pensando comigo: “Filho da puta!”.
Na TV Tupi paulistana, Abelardo Figueiredo fazia o programa Spot Light, apresentado por Hélio Souto. Convidaram João Gilberto para participar. Foi quando o conheci pessoalmente. Nesse dia, João contou uma história da época em que vivia em Salvador. Ele morava na Barra e costumava ir até Amaralina a pé ou de bicicleta. Um dia, passando em frente a uma casa em construção, encontrou um menino trabalhando como pedreiro. “Qual é a sua idade?”, João perguntou. “Tenho 11 anos”, disse o menino. Em seguida, quis saber o nome do moleque, que timidamente respondeu: “Vasconcelos”. João ficou com vontade de chorar, porque, segundo ele, meninos de 11 anos têm de se chamar, na realidade, Toninho, Zezinho – e jamais se apresentar como um adulto...
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A bossa nova chegou de mansinho. Em 1961, eu fazia um programa na Tupi de São Paulo. Compareciam a ele, como convidados, João Gilberto, Norma Bengell, Geraldo Vandré, Alaíde Costa, Pery Ribeiro e Marisa Gata Mansa. Chamava-se Hora de Bossa. Gerava telefonemas à beça. Os telespectadores diziam assim: “Isso não é música! Tirem esse pessoal daí e chamem Orlando Silva e Sílvio Caldas”.
Não houve momento em que a música popular brasileira não tenha sido boa. Sempre foi maravilhosa. Até mesmo naquela época em que sofreu influência de tangos, boleros ou música americana.
Sempre surgia gente interessante. Na Tupi, sugeri ao Cassiano Gabus Mendes: “Vamos contratar o Chico Buarque”. Ele me respondeu com uma pergunta: “Para fazer o quê?” Eu também não sabia, mas o Chico tinha que ser contratado. Tempos depois, voltei a falar com o Cassiano: “E o baianos, vamos contratá-los?”. Ele achou que a ideia era boa, e fizemos o programa Divino Maravilhoso, com Caetano Veloso e Gilberto Gil. O elenco contava, entre outros, com Jorge Ben e o Trio Mocotó. Um dia convidamos o Orlando Silva para participar. No meio de uma interpretação dele, um hippie que estava assistindo à gravação gritou: “Chega!”. Caetano, que adorava Orlando Silva, ficou muito bravo com o rapaz. “Seguranças, levem esse cara daqui!”, bradou.
Dos discos que produzi, tenho muito orgulho do LP Mestre Marçal interpreta Bide e Marçal. A gravação contou com arranjos de Nelsinho do Trombone e base executada pelo Regional do Canhoto. Além de todos os grandes percussionistas que se possa imaginar. Como o Marçal trabalhava com os maiores artistas da época, convidamos essa turma para participar. O coro do disco é formado por Chico Buarque, Clara Nunes, Cristina Buarque, dona Ivone Lara, Elton Medeiros, Gonzaguinha, João Nogueira, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Miúcha, Paulinho da Viola e Roberto Ribeiro. Certa vez cheguei à casa do Paulinho, e ele estava com esse LP na vitrola.
Prólogo 21
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“Conheço esse disco”, brinquei. “É o maior disco de música popular”, ele respondeu.
A música brasileira não tem fim.
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NÃO HOUVE MOMENTO EM QUE A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA NÃO TENHA SIDO BOA. SEMPRE FOI MARAVILHOSA.
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FERNANDO FARO, diretor e produtor musical
não cessam de se ramificar. Baião, choro, samba e rock, música eletrônica e música de concerto, tudo é muito mais. Movimentos e grupos proliferam: Clube da Esquina, tropicália, manguebeat, jovem guarda... também se chamavam sonhos. Extensiva compilação, esta que se desvela ao leitor acompanhada de um pôster da frondosa árvore. Músicos, críticos, acadêmicos, todos empenhados em dar a sua visão de cada um dos 23 gêneros e movimentos selecionados. Respirar as formas da pureza. Mergulhando nos olhares experientes, nas análises historiográficas e nas aproximações subjetivas e objetivas de cada tema, o leitor poderá brincar no regato até que a árvore lhe traga os seus frutos – teu amor, teu coração.
ISBN 978-85-9493-201-3
INCLUI PÔSTER
UMA ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA
Na árvore da música brasileira, há muitos atos que
UMA ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA
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Abacateiro, acataremos teu ato.
Organização: Guga Stroeter e Elisa Mori
SOBRE A ÁRVORE DA MÚSICA BRASILEIRA Basta folhear Uma árvore da música brasileira, que tem raízes ramificadas no vasto e fértil solo musical do país, para saber que o livro é único. Organizada pelo músico Guga Stroeter e pela pesquisadora Elisa Mori, esta é uma obra frondosa de informações que brotam da compilação de artigos sobre vários gêneros da música criada no Brasil. Árvores produzem sombra, mas esta gera luz e oxigena o conhecimento, por meio de uma leitura que nos faz degustar prazerosamente os seus frutos. Carlos Bozzo Junior, crítico musical e repórter do jornal Folha de S.Paulo