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Introdução

Esta obra sobre política cultural tem como objetivo orientar a gestão pública e servir como livro-texto para cursos de graduação e pós-graduação nessa área.

Parte-se do princípio de que, no mundo contemporâneo, a questão da cultura (e das culturas) está adquirindo uma inédita centralidade. Fato que coloca as políticas culturais diante de novos desafios que, para serem enfrentados, exigem uma revisão do arcabouço conceitual, bem como da gestão cotidiana dessas políticas.

Entre os fatores que vêm dando relevância às questões culturais, ressalta o processo de politização da cultura e das identidades culturais. Os conflitos políticos da atualidade, internos e entre as nações, têm tido, em geral, como pano de fundo, razões de natureza cultural, a ponto de se poder falar que o mundo vive hoje um tempo de guerras culturais.

Pode-se discutir se as questões culturais estão, de fato, no cerne desses conflitos ou se, na verdade, não passam de meras justificativas invocadas por líderes políticos para mobilizar populações sob seu domínio. Não obstante, verifica-se que, a partir da segunda metade da década de 1970 – a guerra civil no Líbano (1975-90) e a revolução dos aiatolás no Irã (1979) podem ser tomadas como marcos cronológicos iniciais –, vem ocorrendo, no mundo inteiro, nas palavras da especialista em religião comparada Karen Armstrong, um “extraordinário ressurgimento religioso”, presente nos chamados movimentos “fundamentalistas” de caráter cristão (protestante e católico), judaico e islâmico. Esses movimentos mobilizam uma “religiosidade militante” 1 que impulsiona seus seguidores a envolver-se na política com a mesma devoção com que se dedicam às preces e orações.

Embora tenham objetivos políticos distintos, uns mais, outros menos reacionários, os fundamentalismos comungam a mesma rejeição daquilo que se convencionou chamar de “modernidade”, um conjunto de valores e comportamentos adotados no mundo ocidental a partir da segunda metade do século XVIII; entre eles: liberdade individual, igualdade de todos perante a lei, direito de defesa, abolição da tortura como método de investigação, laicidade do Estado, liberdade de crença e culto, tolerância religiosa, igualdade entre homens e mulheres, livre manifestação do pensamento e valorização da ciência, entre outros.

Independentemente da conclusão a que se chegue – se é a cultura, em especial as religiões, ou outros fatores bem mais concretos, como petróleo, água e domínio territorial, que estão no âmago dos atuais conflitos políticos –, um fato é indiscutível: argumentos culturais são invocados e contribuem para mobilizar pessoas e grupos.

Pode-se contra-argumentar que, do ponto de vista histórico, a politização da cultura não constitui novidade. Afinal, a justificativa que sustentou o regime nazista foi de ordem cultural: a superioridade de uma raça. Contudo, parece que esse fenômeno, hoje, potencializou-se e espraiou-se, pois em sua raiz está um elemento histórico novo: o processo de globalização do capitalismo, que teve início com a desintegração do império socialista soviético e o consequente fim da Guerra Fria (1945-92).

A globalização potencializou fluxos cujos tráfegos independem das fronteiras, das regulações e dos controles dos Estados nacionais, entre eles os do comércio, das finanças, das informações, de bens culturais, do crime organizado e das epidemias. Os bancos centrais dos países já não dão conta de monitorar o intenso movimento de capitais; as polícias nacionais de segurança são incapazes de conter os crimes de lavagem de dinheiro, corrupção e contrabando de armas, drogas, mulheres e crianças; doenças virulentas se espalham periodicamente, desafiando os sistemas nacionais de controle sanitário; o intercâmbio de informações, antes promovido pela diplomacia governamental e pelos órgãos de imprensa profissionais, passou a ser feito também pelos indivíduos, via rede de alcance mundial (internet); e os produtos das indústrias culturais, em particular a cinematográfica e a fonográfica, bem como os de indústrias correlatas, como as do turismo e das comunicações (televisão, rádio e internet), alcançam hoje difusão planetária, em contraste com as culturas locais, histórica e geograficamente situadas.

A globalização cultural está provocando tensões que se manifestam de forma explícita quando pessoas, movimentos étnicos e de gênero, cidades e regiões buscam reafirmar sua história, tradições, costumes, crenças e instituições, em contraposição aos valores difundidos pela indústria cultural. As identidades nacionais, nesse novo contexto, passaram a sofrer pressões que vêm de fora e de dentro, e que resultam na perda relativa de seu poder de mobilização das sociedades. Como escreve Stuart Hall, apesar de as identidades nacionais permanecerem fortes, “especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania”, “abaixo” delas as “identidades locais, regionais e comunitárias” têm adquirido cada vez mais importância na vida de pessoas e grupos e, “acima” delas, “as identificações ‘globais’ começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar as identidades nacionais”. No mundo global interconectado, novas identidades surgem e desaparecem no ritmo frenético de estilos, modas e eventos. Elas não têm vínculo com lugares, histórias ou tradições, parecem “flutuar livremente” 2 .

O que há de comum entre os impulsos locais e globais é o fato de desencadearem um processo de fragmentação das identidades coletivas, que introduz desafios até então inéditos para as políticas culturais. Acostumados a lidar apenas com a construção e preservação de identidades nacionais e subnacionais, os governos se veem, hoje, frente a situações novas e complexas, tais como atender a demandas de reconhecimento e proteção de novos movimentos sociais de identidade, ou serem forçados a mediar eventuais conflitos entre coletivos identitários rivais. Se a esse fenômeno for acrescentado o processo de interpenetração das culturas, provocado pela intensificação do turismo e pelos movimentos de populações que fogem de guerras locais ou que buscam melhores condições de vida, tem-se uma ideia do tamanho do desafio.

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Uma conjunção de fatores de ordem econômica também contribui para dar relevância ao tema da cultura na agenda dos governos. Nas últimas décadas, a produção e o comércio de bens de consumo cultural no mercado global vêm crescendo. Em 2012, o Banco Mundial estimou que a contribuição da economia da cultura representava então 7% do PIB global, e a taxa anual de crescimento prevista era de 10%.3 Some-se a isso a valorização dos bens culturais, fomentada sobretudo pelas características que lhes são inerentes: a singularidade e a raridade, presentes não só nos objetos de arte como também nos sítios de valor histórico e paisagístico. Sendo verdade que quanto mais raro e singular um produto, maior é seu preço, tem-se que os produtos artísticos são potenciais geradores de valor econômico, tendência que é reforçada quando contrastada à crescente estandardização de outras mercadorias ofertadas no comércio global, como televisores, geladeiras, fogões, automóveis e cartões de crédito. Isto também se aplica aos bens do patrimônio cultural – artístico, histórico, antropológico e paisagístico –, cuja beleza e significado particulares atraem turistas sequiosos de conhecer, fruir e experimentar os variados modos de viver, fazer e criar de inumeráveis grupos e comunidades humanas.

1 Karen Armstrong, Em defesa de Deus: o que a religião realmente significa, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 288.

O reconhecimento do potencial econômico da cultura abre o caminho para que as políticas culturais sejam incluídas nas estratégias governamentais de promoção do desenvolvimento. A inter-relação conceitual entre cultura e desenvolvimento é recente e implica uma tripla argumentação: (1) alguns entendem que projetos de modernização econômica são bem-sucedidos somente quando consideram as especificidades culturais (os modos de vida) de cada país; (2) há os que defendem fomentar a economia da cultura, considerada como vetor moderno do desenvolvimento, porque é baseada na criatividade e no conhecimento;4 (3) e há os que propugnam que a cultura deva ser o eixo estruturante das políticas de desenvolvimento, particularmente nos países periféricos, que teriam na sua criatividade própria um diferencial competitivo em face do insuperável domínio tecnológico dos países centrais.5 Em todos esses argumentos, o investimento em cultura é considerado estratégico. Fato inequívoco é que a política cultural, antes compreendida como relacionada somente ao preenchimento do tempo livre dos cidadãos, passa agora a ser vista como uma política pública capaz de gerar desenvolvimento econômico, social e humano, aí incluídos o mundo do trabalho, do comércio (interno e externo), dos serviços e da indústria. No que se refere especificamente às políticas industriais para a cultura, além do viés econômico, importam também fatores sociais e políticos. Como observa Néstor Canclini: “não é possível ignorar que 70% dos habitantes vivem em cidades, dos quais um número cada vez maior está conectado quase que exclusivamente às indústrias culturais”, particularmente aos meios de comunicação privados e transnacionais, que “se convertem nos principais organizadores do entretenimento e de informação das massas”. Enquanto isso, as políticas culturais “continuam centradas na preservação de patrimônios monumentais e folclóricos e em promover as artes cultas”.6 Também não é possível ignorar a massificação do acesso às novas mídias globalmente conectadas, que multiplicaram as alternativas de emissão e recepção de informações, opiniões, mensagens e produtos culturais. Ainda não há consenso a respeito da real consequência das novas tecnologias para a vida econômica, social e política. É possível dizer que o espaço público de debate, a democracia e a liberdade de expressão do pensamento saem ganhando, particularmente em países como o Brasil, onde a maioria dos meios de comunicação tradicionais (rádio, TVs, jornais e revistas) é monopolizada e veicula uma ideologia de viés conservador. Também é verdade que as novas tecnologias de informação e comunicação ampliam as possibilidades e oportunidades de criação e organização de novos negócios, baseados na cooperação entre agentes situados em diferentes partes do globo. Por outro lado, é inegável que, sob o manto protetor do anonimato, o espaço cibernético é constantemente invadido pela prática de crimes de injúria, calúnia, difamação, ameaça, incitação ao ódio, racismo, homofobia, pedofilia, entre outros, de difícil rastreamento. Há também o risco de que o poder de manipulação das indústrias culturais, detectado nas décadas de 1950-70 pelos filósofos da Escola de Frankfurt, fique ainda mais acentuado no espaço cibernético. Isso porque as grandes empresas proprietárias de sites (privados e transnacionais) que prestam serviços de busca de informações e de “redes sociais” (Facebook, Twitter, Google, Skype, Yahoo, Apple, entre outras) são, na prática, indústrias culturais e de comunicação de tipo novo, nas quais os usuários cumprem o papel muitas vezes inconsciente de acionistas minoritários. Há evidências de que essas empresas, além de colaborar com o governo dos Estados Unidos na vigilância de seus cidadãos (e também dos de outros países), estão realizando pesquisas sobre a “contaminação” de ideias e comportamentos entre seus usuários, a fim de desenvolver métodos e técnicas de manipulação capazes de influir até mesmo no resultado de eleições.

3 Paulo Miguez, As relações entre cultura e economia e a economia criativa, em: Monica B. de Lima Starling; Marta Procópio de Oliveira; Nelson A. Quadros Filho (org.), Economia criativa: um conceito em discussão, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2012, p. 23.

4 Cf. Anthony Giddens, “Globalização, desigualdade e estado do investimento social”, em: Unesco, Informe mundial sobre a cultura: diversidade cultural, conflito e pluralismo, São Paulo: Moderna; Paris: Unesco, 2004, pp. 64-71.

5 César Ricardo Siqueira Bolaño (org.), Cultura e desenvolvimento; reflexões à luz de Furtado, Salvador: Edufba, 2015, p. 30.

6 Néstor García Canclini, Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

Enfim, a soma de todos os fatores descritos – políticos, sociais e econômicos – introduziu novos desafios para as políticas culturais que, dessa forma, se veem diante do imperativo de rever suas premissas conceituais e seu campo de ação. Esse é o objetivo maior deste livro. * * *

Em face da amplitude do tema – cultura e política cultural –, este trabalho exigiu incursões nos campos da administração pública, antropologia, ciências da comunicação, ciência política, direito, economia, filosofia, história, psicologia e sociologia. Por seu caráter interdisciplinar, a pesquisa fica mais bem situada no campo dos chamados “estudos culturais”, termo cunhado, em 1963, pelo crítico literário e professor de literatura inglesa moderna Richard Hoggart, que fundou, junto com Raymond Williams, Edward Palmer Thompson e depois Stuart Hall, o Centro de Estudos Culturais Contemporâneos, vinculado ao Departamento de Língua Inglesa da Universidade de Birmingham (Inglaterra). Na concepção original, “estudos culturais deveria ser um campo de pesquisa interdisciplinar em nível de pós-graduação, que recrutasse pessoas já formadas em ciências sociais, história, psicologia, antropologia e estudos literários”.7 Com o tempo, esses estudos foram adquirindo a feição de uma nova disciplina acadêmica, organizada em cursos e departamentos independentes, espalhados por universidades de todos os continentes. Buscando relacionar cultura, história e sociedade de classes, a preocupação inicial dos fundadores foi a de reagir ao elitismo dos estudos literários tradicionais. Nessa linha, assumiram o compromisso com o estudo da cultura popular, a fim de demonstrar a autonomia, o valor cultural e o poder de resistência dessa cultura, ao contrário da perspectiva elitista, que desdenhava a cultura popular, classificando-a como “baixa cultura”, em oposição à “alta cultura” produzida pelas elites intelectuais e artísticas. Também do período da fundação são as primeiras pesquisas sobre o impacto dos meios de comunicação de massas na cultura, com foco na análise ideológica das mensagens emitidas por esses meios. Num segundo momento, os estudos culturais começaram a abordar questões relativas à construção das identidades (étnicas, de gênero, geracionais e outras), com ênfase nas culturas negra e latina e no movimento feminista, além de incluir temas como multiculturalismo e pós-colonialismo. Numa terceira fase, quando se expandiram pelo mundo, foram introduzidas pesquisas sobre as artes em geral e se multiplicaram análises sobre as práticas comunicativas, agora centradas na audiência e na recepção das mensagens. Para Ana Carolina Escosteguy, os estudos sobre o feminismo provocaram inovações teóricas: o entendimento do âmbito pessoal como político, a expansão da noção de poder para além da esfera pública e a inclusão de questões em torno do subjetivo e do sujeito, culminando com a “abertura da fronteira entre teoria social e teoria do inconsciente – psicanálise”.8 * * *

Este livro é dividido em 12 capítulos, que podem ser lidos separadamente, conforme o interesse de gestores, professores, estudantes e leitores em geral. Contudo, recomenda-se atenção especial aos dois capítulos iniciais. O primeiro porque expõe o conceito de cultura adotado em todo o livro, e o segundo porque discorre sobre os direitos culturais, considerados como o alicerce sobre o qual devem ser erguidas as políticas culturais nos regimes democráticos. Alguns capítulos (2, 3, 4, 6 e 8) já foram publicados em sítios da internet, mas, para esta edição, foram revistos, sendo acrescentados vários trechos e suprimidos uns poucos. Os exemplos, quando necessários para clarear algum conceito ou prática, foram em geral retirados da experiência brasileira, particularmente nos capítulos 4, 10 e 12. Todavia, espera-se que o livro sirva a diferentes contextos nos quais são colocados em pauta temas de política cultural.

Ao longo dos capítulos, o leitor por vezes irá se deparar com tabelas que expõem tipologias. Construí-las é uma estratégia metodológica das ciências sociais, introduzida pelo sociólogo alemão Max Weber. Ela consiste em selecionar na vida social campos predeterminados de análise, que o pesquisador destaca, focaliza e amplia, a fim de sintetizá-los em conceitos puros – chamados “tipos ideais” –, que ajudam a compreender o mundo, mas que, na realidade concreta, frequentemente aparecem misturados ou entrelaçados.

Embora seja tão somente historiador (graduação), cientista político (mestrado), ator e diretor de teatro, com passagens pela gestão pública da cultura no município (Belo Horizonte), no estado de Minas Gerais e na União

7 Andrew Milner, Estudos Culturais [verbete], em: Raymond Williams, Palavras-chave: um vocabulário da cultura e sociedade, São Paulo: Boitempo, 2007, pp. 420-7.

8 Ana Carolina D. Escosteguy, Cartografias dos estudos culturais: uma versão latino-americana, Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 31.

(Ministério da Cultura do Brasil), o autor destes capítulos viu-se obrigado, por diversas vezes, a aventurar-se noutros campos das ciências humanas. Por isso, antecipa as devidas vênias aos especialistas dessas matérias, que possivelmente encontrarão no texto erros pelos quais este autor assume inteira responsabilidade.

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