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2. Direitos humanos e direitos culturais
A Segunda Guerra Mundial e os eventos que a ela se seguiram marcaram profundamente a história contemporânea. Ainda antes do final do conflito, a Conferência de Bretton Woods (1944) estabeleceu as bases de uma nova ordem econômica mundial, amparada no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird, também chamado Banco Mundial). Logo após a guerra, a Conferência de São Francisco (1945) buscou reorganizar o sistema político mundial através da criação da Organização das Nações Unidas (ONU). A decisão de Stalin, chefe do Estado soviético, de não participar do plano norte-americano para soerguer a Europa (Plano Marshall/1947/8-1951)) deu início à chamada Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois blocos ideológica e militarmente antagônicos. Finalmente, em 1948, os países que aderiram à ONU firmaram, em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, visando restabelecer a ordem jurídica internacional profundamente afetada pela experiência totalitária.
De fato, o totalitarismo, ao tratar o ser humano como coisa supérflua e descartável, havia inaugurado o mundo do “vale-tudo”, esfacelando, dessa forma, os “padrões e categorias que, com base na ideia de um Direito Natural, constituíam o conjunto da tradição ocidental”, que havia feito da pessoa humana “o valor-fonte da experiência ético-jurídica”.1 Essa tradição remonta às declarações de direitos proclamadas na Revolução Gloriosa (Inglaterra,
1 Celso Lafer, “A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt”, Estudos Avançados, São Paulo:
Universidade de São Paulo, Instituto de Estudos Avançados, mai/ago, 1997, vol. 11, n. 30, pp. 55-67.
1689), na Revolução Norte-Americana (Estados Unidos, 1776) e na Revolução Francesa (1789), embora sua emergência na história do pensamento esteja situada bem antes, num arco que vai de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, Vico e Montesquieu, pensadores da chamada escola do jusnaturalismo. Ao sustentar que o indivíduo era portador de direitos inerentes à natureza humana, como os direitos à vida e à liberdade, as declarações instituíram uma alteração fundamental na relação entre governantes e governados. Antes, os governantes (monarcas) detinham todos os poderes, e os governados (súditos) lhes deviam total obediência. A partir das revoluções, que instituíram monarquias constitucionais e repúblicas, os governantes passaram a ter também deveres; e os governados, antes súditos, foram alçados à condição de cidadãos, ou seja, indivíduos portadores de direitos e deveres.
A ruptura dessa tradição, provocada pelos regimes totalitários, ensejou, após a vitória dos países aliados na Segunda Guerra Mundial, uma resposta, consubstanciada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além da retomada da tradição jurídica rompida, a Declaração fez avançar o alcance e o conteúdo desses direitos. Até 1948, os direitos dos cidadãos estavam assegurados nos limites dos Estados nacionais; no plano internacional, os principais atores eram os Estados. A Declaração Universal marcou “a emergência, embora débil, tênue e obstaculizada, do indivíduo no interior do espaço antes reservado exclusivamente aos Estados soberanos”. 2 Além disso, a Declaração incorporou na ordem jurídica internacional os direitos que haviam sido conquistados no interregno entre as Revoluções (Inglesa, Norte-Americana e Francesa) e a Segunda Guerra Mundial, particularmente os direitos econômicos, sociais e culturais, que se somaram aos direitos civis e políticos já instituídos.
Noberto Bobbio propõe uma reintepretação dos direitos humanos sustentando que eles, antes tidos como naturais, são, na verdade, históricos.3 Essa tese tem várias consequências. A primeira e mais óbvia é que a origem desses direitos não deve ser procurada na natureza humana enquanto tal, mas sim em contextos históricos específicos, marcados por lutas políticas (pelas liberdades) e sociais (pela igualdade). Em decorrência, é possível afirmar que a evolução desses direitos nunca se deu de forma tranquila; ao contrário, esteve sempre sujeita a avanços e recuos, marchas e contramarchas. Entre os inúmeros fatos históricos que comprovam essa afirmação, basta citar, como exemplares, a restauração da monarquia na França no período napoleônico e a emergência dos regimes totalitários no século XX. Outra consequência da tese da historicidade é a impossibilidade de se ter uma teoria pronta e acabada dos direitos humanos, porque eles estarão sempre em construção e, ocasionalmente, sujeitos à dissolução. Também não se pode pretender que haja lógica e coerência no conteúdo desses direitos, pois um novo direito reivindicado pode entrar em contradição com outro já instituído, mas ainda assim desejável; ou seja, o corpo doutrinário dos direitos humanos sempre estará sujeito a ambiguidades, que resultam da tensão existente entre as exigências de liberdade e de igualdade. No âmbito da cultura, por exemplo, o direito autoral assegura ao criador a liberdade de fazer da sua obra (propriedade intelectual) o que bem entender, condição que entra em choque com o direito de acesso universal – igualdade – aos bens da cultura. Nesses casos, é sempre possível encontrar meios-termos.
Embora indivisíveis em seu exercício, os direitos humanos, tais como se encontram hoje, podem ser divididos, para fins analíticos, em civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Recentemente começaram a ser demandados também os chamados direitos difusos, ou transindividuais.
Os direitos civis, nascidos das revoluções contra os Estados absolutistas e coloniais, são os seguintes: direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; direito à propriedade, à livre iniciativa e ao comércio; direito à livre expressão do pensamento; direito de resistir e, no limite, de rebelar-se contra qualquer tipo de opressão. Em primeira e última instância, as liberdades civis pertencem ao indivíduo enquanto tal e seu exercício objetiva limitar o poder do Estado e impor-lhe obrigações. Assim, os direitos civis, como mostra Bobbio, buscam assegurar as liberdades em relação ao Estado.
Os direitos políticos, conquistados paulatinamente durante o século XIX, são os de votar e ser votado, bem como o de associar-se em partidos políticos para chegar ao poder. O exercício dos direitos políticos pressupõe a alternância dos governos e a livre escolha dos governantes por meio de eleições periódicas. Exige, portanto, o regime democrático. Os direitos políticos asseguram o gozo da liberdade no Estado.
A conquista dos direitos econômicos e sociais está historicamente vinculada às lutas dos movimentos operário e camponês por mais igualdade. Os direitos econômicos são relacionados às condições de trabalho, englobando: livre escolha do emprego, justa e igual remuneração para homens e mulheres, liberdade de organização e ação sindical, proteção contra o desemprego, segurança e higiene no trabalho, descanso semanal, férias remuneradas, oportunidades de promoção na carreira profissional e direito de greve. Os direitos sociais são os seguintes: o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado, para si e sua família, incluindo alimentação, vestimenta, moradia e proteção especial para as mulheres grávidas, crianças, jovens e idosos; direito à educação, que assegura a todos o acesso à educação fundamental, obrigatória e gratuita; direito à saúde, física e mental, que implica a criação de condições que possibilitem a todos a assistência médica em caso de enfermidade; e o direito à previdência social. Os direitos sociais afirmam as liberdades por meio do Estado, ou seja, exigem que o Poder Público garanta, através de políticas públicas, as condições de subsistência de todos os cidadãos, particularmente dos que não têm como sobreviver por si próprios, ou seja, os mais pobres e vulneráveis.
2 Norberto Bobbio, A era dos direitos Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 5. Bobbio cita: A Cassese. I diritti umani nel mondo contemporaneo, Bari: Laterza, 1988, p. 143.
3 Ibid., p. 2.
A reivindicação dos direitos denominados difusos ou transindividuais (porque são devidos a coletivos, e não às pessoas singulares) tem origem nos movimentos políticos e sociais das décadas de 1960 e 1970. O direito a um meio ambiente saudável e o direito dos consumidores são, até o momento, os que mais se firmaram no plano jurídico. A satisfação desses direitos exige não só a presença de instituições estatais, mas também de organizações não governamentais e movimentos sociais. * * *
Para uma síntese dos direitos culturais, foram consultadas várias fontes internacionais, especialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)4 e os dois pactos que a ela se seguiram e que pretenderam estabelecer o compromisso dos Estados signatários com sua efetiva aplicação: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais 5 e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos,6 ambos de 1966. Da ONU, foi consultada ainda a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas (1992).7 Também foi consultado o texto resultante da Conferência de Haia de 1954, a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Convenção de Haia).8 E da Unesco, órgão da ONU responsável pela educação, ciência e cultura, foram consultados vários documentos, entre eles: a Convenção Universal sobre
Direito de Autor,9 a Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional,10 a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural,11 a Recomendação sobre a Participação dos Povos na Vida Cultural,12 a Recomendação sobre o Status do Artista,13 a Declaração do México sobre Políticas Culturais,14 a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular,15 o Informe mundial sobre a cultura: diversidade cultural, conflito e pluralismo, da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento,16 a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural,17 a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial18 e a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais.19 Embora esses documentos imponham aos Estados-membros distintas obrigações de natureza jurídica, a Convenção tem mais “força” que a Declaração; e essa, maior poder que a Recomendação. Neste capítulo – cujo enfoque é histórico-político, e não jurídico –, tais documentos são interpretados como pactos de natureza política estabelecidos entre os Estados-membros da ONU/Unesco.
No Informe de 2000, a Unesco enfatiza a necessidade de se elaborar um inventário dos direitos culturais que, no entender dessa agência, se encontram formulados de maneira fragmentada e dispersa nos diversos
4 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nova York, 1948.
5 ONU. Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York, 1966.
6 ONU. Pacto dos Direitos Civis e Políticos. Nova York, 1966.
7 ONU. Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas, Nova York, 1992.
8 Conferência de Haia. Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais no Caso de Conflito Armado. Haia, 1954.
9 Unesco. Convenção Universal sobre Direito de Autor. Genebra, 1952.
10 Unesco. Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional. Paris, 1966.
11 Unesco. Recomendação sobre a Participação dos Povos na Vida Cultural. Paris, 1976.
12 Unesco. Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. Paris, 1972.
13 Unesco. Recomendação sobre o Status do Artista. Paris, 1980.
14 Unesco. Declaração do México sobre Políticas Culturais. México, 1982.
15 Unesco. Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular. Paris, 1989.
16 Unesco. Informe mundial sobre a cultura: diversidade cultural, conflito e pluralismo. São Paulo/Paris: Moderna/Unesco, 2004.
17 Unesco. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. Paris, 2001.
18 Unesco. Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris, 2003.
19 Unesco. Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Paris, 2005.
Sobre o autor
Bernardo Mata-Machado é historiador, cientista político, ator e diretor de teatro. Fez graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1976) e mestrado em Ciência Política pela mesma universidade (1985). Entre suas publicações destacam-se os livros História do sertão noroeste de Minas Gerais – 1690-1930 (Prêmio Diogo de Vasconcelos, 1989) e Do transitório ao permanente: Teatro Francisco Nunes – 1950-2000. Destacou-se como ator interpretando o personagem Eduardo Marciano, na adaptação teatral de O encontro marcado, de Fernando Sabino (prêmio de Melhor Ator Mineiro, 1982) e como diretor em Fando e Lis, de Fernando Arrabal (1975). Foi pesquisador da Fundação João Pinheiro (1977-2018), onde se dedicou aos temas da política cultural e da história econômica, política, social e cultural de Minas Gerais. Exerceu cargos públicos de gestão cultural na Prefeitura de Belo Horizonte (secretário adjunto de cultura, 1993-1996), governo do Estado de Minas Gerais (secretário adjunto de cultura, 2015-2016) e governo federal (coordenador-geral, diretor e secretário nacional substituto da Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da Cultura, 2009-2014).