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1. Sobre o conceito de cultura
Já se tornou lugar-comum dizer que não é simples definir o significado da palavra “cultura”. Em geral, a literatura sobre esse tema começa buscando a origem do termo na antiga língua latina, na qual ele possui vários significados, associados aos verbos habitar, cultivar, proteger e cultuar com veneração.1 No desenvolvimento histórico, o termo é atribuído ao cuidado com plantas, animais e crianças, sentido que mais tarde se estende ao cultivo do espírito e da mente.
Outra referência constante na bibliografia é a distinção entre Kultur (em língua alemã), termo utilizado no final do século XVIII na obra de Johann Gottfried Von Herder (Sobre a filosofia da história para a educação da humanidade), e civilização, cujo sentido atual aparece na mesma época entre pensadores franceses. Kultur designa os modos de viver de um povo, nação ou comunidade étnica, suas crenças, festas, seus costumes, mitos e valores. Civilização, por sua vez, designa um alto estágio de desenvolvimento humano, material e técnico, no qual a vida social alcança ordem e refinamento, em contraste com a selvageria e a barbárie, consideradas primitivas.
Na busca do sentido contemporâneo do termo, Renato Janine Ribeiro encontra na história da filosofia distintas concepções que foram se somando para chegar ao significado atual. Na Renascença, o termo é associado a patrimônio, mais precisamente ao valor que os humanistas dão à herança e ao legado da Antiguidade greco-romana, em oposição às “trevas” do período medieval. Em um segundo momento, situado na ruptura provocada pela obra de René Descartes, a cultura é associada à razão, concebida como potencialmente inovadora, em oposição à memória, lugar onde se alojam os preconceitos. E em um terceiro momento, que corresponde ao Iluminismo, a ideia de razão é engatada à de liberdade, e o pensar é associado à ação. Da junção dessas três concepções emerge o conceito atual de cultura, que engloba patrimônio (algo que excede o imediato e confere dignidade a quem o assimila), criação (que institui o novo) e libertação, que pressupõe uma intervenção no mundo, um agir e um sentir que ultrapassam a mera fruição.2
1 Raymond Williams, Cultura [verbete], em: Raymond Williams, Palavras-chave: um vocabulário da cultura e sociedade, op. cit., 2007, pp. 117-24.
Peter Burke, ao refletir sobre a história cultural, seus temas e métodos, distingue dois tipos: “história cultural tradicional” e “nova história cultural” (ou história antropológica). Entre elas, aponta as seguintes diferenças:
(1) para a primeira, cultura tem o sentido restrito às atividades artísticas e intelectuais, ao passo que a segunda abrange “uma variedade muito mais ampla de atividades”, com suas dimensões materiais e simbólicas; (2) a primeira postula a cultura como algo uno e consensual – a “cultura brasileira”, por exemplo –, desconsiderando o que a segunda admite, ou seja, a existência de contradições e fragmentações que se vinculam a grupos ou classes dentro do mesmo contexto sócio-histórico; (3) a primeira entende a tradição como um legado que é herdado tal como foi transmitido, ao contrário da nova história cultural, que enfatiza o papel do grupo receptor na transformação, adaptação ou tradução dos elementos herdados; (4) a história cultural tradicional teria sido “escrita pelas elites europeias a respeito de si mesmas”; a nova história cultural, por sua vez, amplia e diversifica seu objeto “em termos geográficos e sociais”. A diferença principal entre as duas abordagens situa-se na rejeição, pela história antropológica, da distinção que a história cultural tradicional faz entre sociedades com e sem cultura (bárbaras ou selvagens). Ao adotar uma perspectiva relativista, a nova história cultural conclui que hoje só é possível falar em culturas, no plural.3
Na análise de Peter Burke, identifica-se a influência exercida pelos intelectuais fundadores dos estudos culturais. Embora tendo como ponto de partida o marxismo, os estudos culturais questionaram teses vinculadas a esse campo teórico; entre elas, a de que a cultura popular está irremediavelmente submetida à cultura das classes dominantes e a de que a vida cultural pertence à “superestrutura” da sociedade. Esta tida como simples reflexo da “infraestrutura” econômica, considerada a base sobre a qual se edifica toda a vida social. Diferentemente, eles sustentaram o princípio de que a cultura, na relação com a ordem social, é ao mesmo tempo constituída e constituinte. A partir dessa constatação, evoluíram para considerar como centrais na definição de cultura as relações e contrastes entre a produção “material” e a produção “simbólica”. Para Raymond Williams, a cultura é um “sistema de significações mediante o qual necessariamente (embora o seja também por outros meios) uma dada ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada”.4 Nessa visão sistêmica, os dois sentidos de cultura comumente aceitos – de ordem social global e de atividades artísticas e intelectuais – são convergentes.
A moderna antropologia cultural, em especial as pesquisas desenvolvidas sobre as artes por Clifford Geertz, articula as dimensões simbólica e material, cujas conexões podem ser compreendidas pela semiótica (ciência dos signos, sinais, símbolos e significações).5 Toda ação humana, incluindo a arte, é socialmente construída por meio de símbolos que, entrelaçados, formam redes de significados (sistemas) que variam entre as diversas culturas. A arte deve ser compreendida como um dos subsistemas simbólicos da cultura, o sistema estético, que reflete significados subjacentes à vida social como um todo, presentes também em outros subsistemas, como os que envolvem as relações de parentesco, trabalho e poder, assim como as estabelecidas entre os vivos e os mortos (rituais). A análise feita por Geertz sobre o significado do traço (ou linha) na cultura ioruba é ilustrativa. O desenho de linhas, que aparece nas esculturas, na cerâmica e em outros objetos, está também nos cortes lineares aplicados no rosto dos iorubas, cuja quantidade sinaliza o status social e político do indivíduo. A linha, ou traço, surge também nas estradas e fronteiras que demarcam o território da tribo. Em todos esses usos, o desenho está associado à civilização, no sentido de “imposição de um padrão humano sobre a desordem da natureza: ‘este país tornou-se civilizado’, em ioruba, quer dizer, literalmente, ‘esta terra tem linhas em sua face’”.6 A linha traduz um modo de pensar e viver que se torna visível e se materializa nos objetos, nos rostos, no território.7 A ampla gama de expressões artísticas existentes no mundo, conclui o autor, resulta da diversidade de “concepções que os seres humanos têm sobre as coisas e sobre como elas funcionam”.8
2 Renato Janine Ribeiro, Cultura e Imagem em Movimento, em: Revista do Forumbhzvideo (Festival de Vídeo de Belo Horizonte). Belo Horizonte, Secretaria Municipal de Cultura, n. 1, 1992, pp. 74-9.
3 Peter Burke, Variedades de história cultural, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 234-43.
4 Raymond Williams, Cultura, São Paulo: Paz e Terra, 1992, p. 13.
5 Clifford Geertez, Arte como sistema local, em: Conocimiento local, Barcelona/ Buenos Aires/México: Paidós, 1994.
6 Ibid., pp. 148-9.
Esse breve giro em torno dos conceitos de cultura nas diversas ciências sociais demonstra como o tema é complexo. Como escreve Peter Burke, “parece ser tão difícil definir o termo quanto prescindir dele”.9 Combinando as várias definições, é possível chegar a três significados de uso corrente: (1) “cultura humana”, em sentido geral (modo de vida) e universal; (2) “culturas humanas”, em sentido geral, mas referente a distintos grupos situados no tempo e no espaço; e (3) cultura como o conjunto de atividades intelectuais e artísticas.
O primeiro sentido deve ser compreendido como uma abstração ou, na melhor (ou pior) das hipóteses, como uma projeção futura, já que, de fato, não existe um modo de viver que seja comum a toda a humanidade; pelo contrário, o que há é uma enorme diversidade, embora todos pertençam à mesma espécie humana. No segundo sentido, convém falar também de subculturas, para indicar a existência de modos de vida próprios de grupos, classes e comunidades no interior de uma cultura mais ampla. E, no terceiro sentido, também cabem subdivisões. Apesar de todas as contestações,10 a tradicional distinção entre cultura popular, cultura erudita e indústria cultural continua válida, pelo menos do ponto de vista metodológico e analítico (ver capítulo 5).
Adotar estes três grandes conceitos de cultura – cultura humana, culturas humanas e atividades intelectuais e artísticas (divididas nos campos erudito, popular e da indústria cultural) – não suprime a complexidade que envolve o termo, mesmo porque o terceiro significado, que é mais restrito, está contido no segundo, que, por sua vez, é englobado pelo primeiro. No entanto, para a finalidade destes capítulos de política cultural, a referência conceitual predominante será a formulada pela antropologia cultural, que engloba: toda a herança não biológica que faz a diferença entre os povos, vale dizer, os diversos processos de designação e simbolização (linguagens), as inúmeras maneiras de lidar com a morte, o desconhecido e o imaginado (religião e artes), as formas singulares de se relacionar com a natureza (as tecnologias), as maneiras particulares de regular as relações sociais (instituições), incluindo a distribuição de bens (economia) e as diferentes formas de sociabilidade gratuita (festas, jogos e brincadeiras).11
Definição semelhante é dada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco): “A cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e que abrangem, além das artes e das letras, os modos de vida, as formas de viver em comunidade, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.
7 Ibid., p. 150.
8 Ibid., p. 181.
9 Peter Burke, op. cit., p. 233.
10 Néstor Canclini, na obra Culturas híbridas (São Paulo: Edusp, 1998.), propõe “demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura…” (p. 19).
11 Frederico Lustosa Costa, Cultura e desenvolvimento: referências para o planejamento urbano e regional de bacias culturais, em: Lia Calabre (org.), Políticas culturais: diálogos e tendências, Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2010, pp. 142-3.