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Sobre o Passado e o Futuro de uma Memória
Wilma Peres Costa e Télio Cravo
O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antônio Brasileiro
Chico Buarque de Holanda, Paratodos
O livro que o leitor tem em mãos reúne trabalhos apresentados no Seminário 3x22: 1822 – Independência: Memória e Historiografia, evento que integrou o vasto empreendimento posto em marcha pela Biblioteca Brasiliana Mindlin da Universidade de São Paulo, em colaboração com o Sesc, em torno da instigante sobreposição de efemérides e temporalidades que terá lugar em 2022 – o bicentenário da Independência do Brasil e o centenário da Semana da Arte Moderna. Menos do que a definição de um lugar de comemoração, o espírito da iniciativa convidava a falar dos múltiplos significados daqueles eventos e da sua reverberação no nosso presente. Sabidamente, uma das virtualidades das comemorações é a de desenhar atalhos inéditos entre os pesquisadores e o grande público, pois nessas ocasiões novas trilhas de pesquisa e interpretações podem dialogar com os lugares de memória e alcançar também as salas de aula, além do campo sempre alargado das tecnologias digitais.
Para os historiadores de ofício, a Independência é temática incontornável. Ela se liga à própria trajetória da disciplina, do seu ensino e da sua pedagogia nos espaços públicos onde se cristalizam memórias e celebrações. Por essa razão, pareceu a nós que o evento, e o livro que dele resulta, devesse enfatizar, ao lado da apresentação de algumas das novas linhagens que têm sido exploradas sobre o tema da Independência, a própria historicidade das suas comemorações. Ao propor a reflexão sobre as comemorações como um dos eixos do evento, buscávamos um modo de revisitar a sempre sensível relação entre história e memória, por meio de alguns relevos que vale a pena aqui explicitar.
O tema das celebrações da independência convidava-nos a olhar não apenas para o passado dessas celebrações, na conhecida acepção de que cada época o recria e reincorpora, a seu modo, mas também para as demandas que as vozes do presente expressam, com urgência sobre o “futuro da memória”, disputa que se manifesta por vezes com grande estridência no ataque a imagens e efígies ou na exigência do tratamento de temas e personagens antes silenciados.
Na busca de um recorte que respondesse ao desafio de pensar a efeméride da Independência a partir de suas celebrações, dois momentos nos ajudaram a organizar os eixos do evento e que se expressam nas duas partes iniciais do livro. O primeiro, analisar, à luz dos debates historiográficos atuais, a narrativa sobre a formação da nação brasileira que se cristalizou em um dos seus “lugares de memória”, o Museu do Ipiranga, às vésperas de sua reabertura à visitação pública, programada para 2022, depois de longa ausência. Entre as manifestações populares que problematizaram alguns dos ícones daquela decoração – a estátua do Borba Gato – e a sonoridade poética da canção
Paratodos de Chico Buarque de Holanda (na epígrafe), que pontuou a mensagem de Ano Novo veiculada pelo Museu (2020-2021), as discussões sobre a memória da independência adquiriram, para nós, pertinência e sentido.
Uma segunda referência orientou nossas escolhas e também nossas apreensões, pois não é demais registrar que vivemos tempos sombrios, doentes e cercados de incertezas. Presentes em nossas discussões estiveram reiteradamente os modos de comemoração/rememoração do Sesquicentenário da Independência (1972). Os eventos de 1972 invadiam nossas falas, pois naquela ocasião se fizeram presentes de modo particularmente significativo as distintas dimensões aqui propostas – comemoração, disputas pela memória e historiografia – razão pela qual reverberam até nossos dias.
Dentre elas vale ressaltar, naquele ano, as cerimônias de repatriamento dos restos mortais de d. Pedro i pelo governo ditatorial, construindo um périplo pelas várias regiões do país, evento que foi um notório investimento político do regime, ecoando na imprensa escrita e televisada, quando se aprofundavam as suas dimensões mais cruéis. Ao mesmo tempo na esfera acadêmica, que fora fortemente vitimada pelo regime, 1972 foi a data de publicação do livro 1822: Dimensões, pela Editora Perspectiva, coordenado pelo historiador Carlos Guilherme Mota, livro que constituiu um marco em torno do qual gravitaram muitos dos debates em torno da Independência pelas décadas subsequentes.
A memória do sesquicentenário se faz presente em nossos debates com admiração e respeito por aqueles historiadores, que souberam naquela altura responder com coragem, rigor e argúcia crítica ao espetáculo patético do funeral extemporâneo do nosso primeiro Imperador. Ao mesmo tempo, somos tomados pela incerteza ao nos defrontar com o fato de que as comemorações do bicentenário da Independência se farão sob a égide de governantes que não têm apreço pela democracia nem pelo pensamento crítico. É certo que não temos mais imperadores para repatriar, mas é impossível imaginar quais cenografias poderão ser projetadas para dar visibilidade a tentações autoritárias que as manifestações do Sete de Setembro de 2021 tristemente prefiguraram.
O livro que apresentamos ao leitor ecoa essas apreensões. Se não podemos responder a elas, registrá-las é um dever do nosso ofício.
Se, em efemérides passadas (1922, 1972) os círculos do poder fizeram-se presentes pelas cerimônias fúnebres (e extemporâneas) dos esquifes de d. Pedro ii (1822) e d. Pedro i (1972), agora trata-se de honrar a memória de mais de 600 mil mortos pela terrível pandemia, agravada pela irresponsabilidade e pelo negacionismo dos nossos dirigentes.
Compartilhamos essa apreensão sobre o “o futuro da memória” com nossos leitores enfatizando, na segunda metade do livro, o esforço de dar lugar àquelas vozes que têm expressado em suas lutas e pesquisas o desejo e o direito de fazer parte da história e da memória da construção da nação: os indígenas, os escravizados, os forros, os livres e pobres, pessoas de todos os gêneros e raças, gente que estava viva e que precisa ser lembrada como quem viveu – em suas lutas, escolhas e nos indícios que deixaram e que pedem lugar de entrada na história escrita, na história ensinada, nos lugares públicos. Por essa, entre tantas razões, é que refletir sobre a Independência no contexto da comemoração é tarefa que envolve um desafio distinto daquele que os historiadores de ofício enfrentam em seu trabalho cotidiano em salas de aula ou em encontros acadêmicos regulares, pois envolve a necessidade de nos questionarmos sobre que respostas seríamos capazes de oferecer, a partir do nosso ofício, nesses tempos insalubres e sombrios, que possam contribuir de algum modo para minorar a incerteza e abrir janelas para o futuro.