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DOIS BRASIS NA PANDEMIA

Cristiane Olivieri

advogada especializada em arte e cultura

É dezembro de 2021 e estou, finalmente, no teatro. Apresentação gratuita, lotada, e um público equivalente a pelo menos duas lotações adicionais voltou para casa por falta de espaço. O primeiro violino, os músicos todos e o maestro estão emocionados com a presença do público e com a inauguração de um novo espaço para a cultura após tanto tempo de isolamento. Estamos todos eletrizados. A plateia é só emoção, aplausos, risos e contentamento: usamos máscaras, mas estamos todos juntos nessa experiência individual e coletiva de viver a arte. A cultura segurou as pontas no ápice do isolamento social através de telinhas e telonas, e continua sendo a resposta para a inclusão e o entendimento entre as pessoas.

Me lembro de março de 2020… as notícias foram chegando esparsas e imprecisas. Corremos – todos que podiam – para ficar em casa. O que prometia ser um mês se transformou em muitos meses de isolamento total, parcial, ou nenhum para aqueles que não podiam ou não queriam ficar em casa. Para a produção cultural –que vive do encontro, da experiência, do fazer junto, do sentir a plateia – o sentimento foi de espanto e insegurança. Os projetos devem ser adiados ou cancelados? Adiados para quando? Cancelados? E depois?

Após o espanto, muitas ações de solidariedade a partir de nossos laptops, tablets e celulares. Todas pensadas e implantadas através da grande rede de amigos e colegas, profissionais da arte e da cultura. As contribuições foram financeiras, de trabalhos pro bono ou de “emprestar ombros”; o importante era tentar continuar atuando na sociedade, mesmo insulados em nossos bunkers improvisados. Foi sem planejamento, sem hora, sem estrutura, sem muita lógica, mas os efeitos foram aparecendo. As doações em geral – dinheiro e tempo – cresceram exponencialmente nos meses que se seguiram ao primeiro alerta de fique em casa. As apresentações artísticas foram para o digital e preencheram o vazio de muitas casas, acolhendo os isolados e os enlutados.

A sociedade civil se juntou e pressionou a classe política, e após auxílio emergencial do governo federal foi criada a Lei Aldir Blanc – quixotescamente defendida por Jandira Feghali e apoiada por todos os deputados, menos um – e que disponibilizou três bilhões de reais para os profissionais da cultura de todo o país. Foi a primeira vez que a verba para cultura foi distribuída nesta monta, por todo o Brasil, em formato atomizado, envolvendo cada secretaria de estado e município. Os efeitos foram para além do emergencial e do esperado, alcançando público nunca atendido pelo Estado, valorizando a produção local diante dos pares, qualificando os profissionais de forma a poderem participar definitivamente de outras seleções e editais públicos ou privados. E o mais importante é que ficou óbvio que é mais democrático e eficiente permitir que as decisões do “quem” e do “como” sejam feitas de forma regional, considerando as condições locais.

Como legado, foi criada uma rede que une cidades, estados e governo federal em uma teia de conexões e repasses: foi criado o sistema de cultura na unha, e a Lei Paulo Gustavo tornará definitivo esse sistema de financiamento.

Mas as batalhas ainda eram muitas. Produzir vacinas, usar as oportunidades e os direitos de comprar vacina, vacinar toda a população, fugir das novas cepas e acompanhar as decisões públicas inacreditáveis, especialmente nas áreas da saúde, educação, meio ambiente e, também, na nossa: a cultura. As políticas de apoio e financiamento à cultura foram desestruturadas, esvaziadas e paralisadas. Nada de novo foi colocado no vácuo do simplesmente não fazer. E, para piorar, passamos a assistir a atos persecutórios a jornalistas, projetos e instituições culturais. Projetos do Instituto Vladimir Herzog, Companhia de Teatro BR116 e Festival de Jazz do Capão foram censurados pelo bloqueio aos recursos financeiros. Personalidades negras foram retiradas da lista pública da Fundação dos Palmares; livros considerados marxistas foram incluídos em relatório para exclusão da biblioteca da mesma fundação; o acervo da Cinemateca Brasileira, em total abandono e sem gestão, pegou fogo; a quantidade de projetos aprovados para uso dos incentivos fiscais federais foi reduzida em quase 80%. Para arrematar tudo, ainda uma lista sem fim de posts nos twitters de alguns gestores públicos da cultura desqualificando profissionais, artistas e produtores.

Mas, como diz nosso querido Danilo Santos de Miranda, seguimos com dois Brasis: esse, negacionista, que censura e não compreende a função social da arte; e o outro Brasil, que acolhe, é empático, produz arte, exporta para o mundo, resiste e continua resistindo. O Instituto Vladimir Herzog seguiu com suas plataformas pelos direitos humanos; a Companhia de Teatro BR116 montou seu espetáculo O Santo Inquérito no Festival Sem Censura de São Paulo; o Festival Jazz do Capão foi financiado pela Fundação Paulo Coelho. São esses os exemplos públicos, mas, infelizmente, houve muitos outros, e nem todos conseguiram implementar plano alternativo. Com a intenção de defender e proteger todos, as associações e instituições se organizaram e passaram a contestar judicialmente as ações do Estado contra a classe artística e os profissionais de cultura.

É fato que as primeiras ações judiciais não encontraram eco, mas as reiteradas atitudes ilegais ganharam voz na imprensa e nas redes, despertando a opinião pública e o controle jurisdicional. A democracia e a liberdade de expressão são valores essenciais para nosso país, no qual felizmente habitam o Supremo Tribunal Federal e a grande parte dos parlamentares. A última ação enviada ao STF1, que se juntou a outras específicas que já estavam lá, pede o reconhecimento da situação de inconstitucionalidade na área da cultura em diversas frentes e demonstra como, independentemente de ideologia ou partido, a política cultural brasileira sofreu indiscutível retrocesso que precisa ser consertado. O gestor público, ainda que eleito, não pode tudo e deverá dar conta de suas decisões mediante o STF e as regras da Constituição Federal.

Tantas incertezas na saúde, na economia, e as atitudes inesperadas nas políticas de cultura às vezes nos tiram o ar. Mas as instituições e o equilíbrio dos poderes vêm garantindo que as normas constitucionais sejam respeitadas.

Vivemos um período incerto, nos assustamos com as notícias, mas em perspectiva enxergamos o quanto alcançamos. Somos muitos nesse Brasil humanista e seguiremos produzindo, usufruindo e resistindo até que chegue o tempo em que seremos um só Brasil, que acredita na ciência, na cultura e na liberdade.

Um Tempo Para Sentir A Morada

Alemberg Quindins

músico, produtor e gestor cultural

Diante da pandemia, vi as pessoas ficarem dentro de suas casas sem saber o que iria acontecer e qual era a gravidade de tudo disso: só se ouvia falar de morte. Todos vimos o mundo vazio de gente, correram o mundo imagens de lugares antes frequentados por milhares de turistas e que, de repente, passaram a ser ocupados pelos animais que tomaram as ruas e as praças, enquanto as pessoas permaneceram fechadas em suas casas, na minha mente veio logo um roteiro de cinema e me lembrei do filme Ana dos seis aos dezoito (1995), do diretor russo Nikita Mikhalkov. No início da pandemia, chegou a este mundo minha primeira neta, e ao lembrar-me desse filme, comecei a documentar a vida dela com meu celular e a gravar tudo que ela fazia: as brincadeiras, explorações pela minha casa e as caminhadas dentro dela. Fotografei-a no quarto de sua mãe, o mesmo que minha filha, mãe de minha neta, brincava com suas bonecas; nesse momento vi a importância de termos feito nossa casa assim, e me lembrei que desde o início eu e Roseane pensávamos: que casa teremos para os nossos netos? Com minha neta aqui tudo se realizou. Esta casa foi projetada pela arquiteta Maria Elisa Costa, que a concebeu com altos e baixos, com inúmeros relevos e, de certa forma, com a ideia de que pudesse ser um playground, uma casa cognitiva para poder atuar em parceria com a cabeça da criança. Nesta casa a arquitetura se relaciona com a vida – e a vida passa por altos e baixos – por isso aqui tem degrau subindo e degrau descendo, e que alegria ver tudo isso se materializando simultaneamente em minha frente: o roteiro do filme de Nikita Mikhalkov ao lado de tudo o que Maria Elisa projetou, e então também lembrei do que ela sempre nos dizia: a arquitetura é a única arte na qual você pode andar dentro dela!

Nesse momento ampliei a compreensão a respeito da importância do espaço e de se construírem dentro dele volume e profundidade. Parei e apreciei minha casa e minha neta; fui percebendo nas fotografias e registros que fiz qual é a dimensão da importância dessa nossa casa, desse nosso abrigo que construímos com tanto amor e sonho. Fui pensando sobre como os espaços foram sendo subtraídos e perdendo suas possibilidades de terreiros, varandas, árvores, quintais; foram subtraindo, subtraindo, subtraindo para que as pessoas vivessem muito mais no espaço do trabalho do que em suas próprias casas, quando as têm.

E nesse período de pandemia, o que fazer dentro de casa? O que encontramos dentro dela? Fui filmar e compreender a partir destas minhas reflexões ligadas ao cinema, arquitetura, luzes, sombras, relevos e, sobretudo, também a partir da pequenina e nova habitante deste lugar.

Agora quero falar da Fundação Casa Grande durante estes tempos da pandemia: observamos que seus alicerces são os nossos valores, e outro ponto importante que percebemos foi que não vínhamos nos ouvindo, por isso, uma das estratégias que utilizamos foi organizar algumas lives com os próprios membros e depois com amigos e amigas da Fundação Casa Grande. Através desses encontros virtuais, nos reencontramos e nos surpreendemos com as coisas que tínhamos para falar entre nós e com tudo aquilo que não estávamos ouvindo, e quando finalmente nos ouvimos, percebemos o tanto de valores que tínhamos agregado e o tamanho da riqueza que acumulamos desde 1992, ano da criação da Casa Grande, tudo através da profundidade dos trabalhos gerados ou finalizados em nossos laboratórios de conteúdo.

Nesse momento, percebemos nosso potencial e nos permitimos ter mais admiração por nós mesmos e pela profundidade das reflexões das 15 lives que realizamos com resultados muito positivos: fomos acompanhados por um público de 45 mil acessos, vindos de 10 países diferentes. Isso nos trouxe um farol para enxergarmos mais à frente, pois se nas visitas presenciais chegamos a receber um público de 50 a 70 mil pessoas por ano, em um mês –de forma virtual – chegamos a 45 mil pessoas! Muito mais gente teve acesso a nossa história, e assim sentimos que, quando a casa reabrir, muito mais gente poderá vir nos visitar aqui no sertão. Pensando em uma metáfora para este tempo, me vem à mente o tempo da formiga e o tempo da cigarra: nós estávamos vivendo o tempo da formiga e só trabalhávamos e vivíamos em aglomerações, mas, com a vinda da pandemia, instaurou-se o tempo da cigarra, e começamos a nos comunicar a distância e as lives e os podcasts passaram a ser os meios possíveis para nossa comunicação. Considero que, nessa época da pandemia, quem soube cantar como cigarra soube atravessar esse tempo. Nós vivíamos trabalhando como formiguinhas na Fundação Casa Grande e, de repente, quando se instaurou a pandemia, percebemos logo que seria preciso vestir a roupa da cigarra e trabalhar cantando. Atualmente existem muitas pessoas entrando em contato com a Fundação, não apenas para nos visitar fisicamente, mas também para colaborar mais com a gente: percebo que isso tudo da pandemia trouxe também um senso maior de solidariedade entre as pessoas, que passaram a perceber mais o outro.

Eu vejo o futuro para arte e cultura de uma forma muito otimista. Por quê? Porque as pessoas perceberam quem estava próximo, criaram redes de solidariedade e de cuidado. Por exemplo, no meu bairro começou um projeto de proteção aos pássaros: um vizinho colocava comida, eu colocava os potes de água, o dono do mercadinho começou a juntar frutas que não eram vendidas, mas que ainda estavam boas para comer e forneceu aos outros vizinhos darem às aves. Assim começou um movimento de proteção às aves, e, de repente, nós começamos a ouvir mais os pássaros e, também, as árvores. Quando se iniciou o tempo tão esperado da vacinação, após tomar a primeira dose e munido de todos os aparatos de segurança, fui até à Serra da Ibiapaba para implementar outros museus orgânicos, que são projetos que narram as histórias das pessoas, suas casas, seus valores e seus fazeres culturais em nossa região. Durante a pandemia foi possível fortalecer dois projetos da Fundação Casa Grande: os museus orgânicos, dos mestres e mestras de cultura tradicional do Cariri, e as moradas de conteúdo, lugares de memória e afeto. Nesse período também gestamos, na região do Cariri, o projeto da Chapada do Araripe como Patrimônio da Humanidade, propondo à sociedade pensar um patrimônio que humaniza, por isso, transformamos a preposição da em um verbo, uma ação na qual o patrimônio tem como objetivo ofertar humanidade. Dentro deste projeto, buscamos desenvolver uma gestão participativa e pensar de forma coletiva a preservação dos nossos bens culturais.

Vejo que no futuro teremos que olhar cada vez mais para o nosso território, sua importância, e buscar conhecimentos ancestrais que nos possibilitem reencontrarmos com os pontos mitológicos. Eu gosto de relacionar o sítio arqueológico com o sítio mitológico; digo que o sítio mitológico é a maternidade e o sítio arqueológico é o cemitério. Acredito que devemos olhar com mais atenção para os sítios mitológicos, as maternidades que falam e mostram a importância da cultura imaterial, da importância do sagrado. Se observarmos com cuidado e atenção os territórios, seremos capazes de perceber a geografia e seu impacto no bioma, o bioma e seu impacto na cultura, e a cultura expressada através da arte. Nossa expressão artística precisa voltar-se à importância dos territórios, assim veremos a necessidade da preservação e da consciência humana.

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