4 minute read
TEMPO, TRAÇAS E CUPINS
EDSON NATALE músico, escritor e produtor cultural
Meus pais decidiram escrever um livro com suas histórias quando avançavam as primeiras semanas da pandemia. Para além dos detalhes e curiosidades que sempre se revelam através das conversas e reminiscências familiares, principalmente quando os protagonistas têm 89 e 84 anos, o projeto deles despertou em mim reflexões incessantes a respeito do tempo. Talvez por conta da maneira que decidiram escrever: manuscrevendo tudo em folhas soltas que juntaram, trocaram, comentaram, alteraram e numeraram. Descartaram a rapidez do computador e preferiram a vagarosidade milenar dos textos à mão, às vezes com caneta, outras a lápis. Me explicaram que assim conseguiram lidar simultaneamente com suas próprias memórias e com o tempo que teimava em desafiá-los quando olhavam através portão e, vendo a rua vazia a qualquer hora do dia, se perguntavam quando é que chegaria a vacina – o passe livre para retomarem passeios, abraços e as visitas até a padaria. Sorveram cada gota daquelas arrastadas horas pandêmicas através de lembranças e conversas e, muitas vezes, me contaram: “o dia termina e ainda há tanto para lembrar e escrever…”.
Desde então, não deixei mais de refletir a respeito do tempo, relacionando pequenas coisas e acontecimentos do cotidiano, também pesquisando até chegar novamente ao mestre que me inspirou tanto durante o processo de gravação de Âmbar, álbum que lancei durante a pandemia e que traz uma frase sua tatuada em uma das músicas: “cada lugar é, a sua maneira, o mundo”. Foi novamente através de um texto dele, Milton Santos, que soube de seu desejo em organizar um curso de pós-graduação justamente a respeito do tempo. Que maravilha!
Por causa desse texto, soube das convergências e divergências do tempo e das diferenças entre os tempos cósmicos, históricos e existenciais. O mestre contou também da transição da São Paulo que conheceu em sua juventude – quando os relógios eram “apenas uma mostra da modernidade” – até transformar-se em Cronópolis e escancarar de vez os contrastes entre a rapidez do tempo das firmas, dos indivíduos e das instituições hegemônicas e do tempo lento das instituições, firmas e indivíduos hegemonizados…
Em outros dias, gostei de pensar que o tempo musical é parceiro e cúmplice de músicos geniais, como Wilson das Neves, Naná Vasconcellos, Mariá Portugal, Gigante Brasil, Simone Sou, Maurício Badé, Marcos Suzano, Beth Beli, Trio Manari, Mestre
Gabi Guedes, Sérgio Reze, Lilian Carmona, Edú Ribeiro, Lanlan, Mestre Marçal, Carneiro Sândalo, Airto Moreira, João Parahyba, André Magalhães, Guello, Pascoal Meirelles, Sisa Medeiros, Biel
Basile, Ari Colares, Robertinho Silva, Nath Calan, Papete, Nenê, Djalma Corrêa, Ricardo Mosca, Bré, Roberta Valente, Kuki Stolarski, Neném, Caíto Marcondes, Duda Neves, Curumin, Azael Rodrigues, Adriano Busko, Vera Figueiredo, Celso Almeida, Carlinhos Brown, Matheus Marinho, Cleber Almeida e Léo Rodrigues, artistas que se integram e desvendam as possibilidades rítmicas que existem no tempo. Certo dia, ouvi música preocupado com aquilo que andam chamando de “audição ansiosa”, que tenta explicar o motivo pelo qual as músicas devam ser mais curtas, porque atualmente as pessoas não têm paciência para ouvir nada além de um minuto de duração. A quem interessa essa rapidez indutora de ansiedades? Quem teria falta de vergonha suficiente para sugerir a Egberto
Gismonti, Juçara Marçal, Cátia de França ou Mateus Aleluia músicas de até um minuto, no máximo?
Os dias continuaram caminhando, até que em alguma entrevista alguém expeliu a frase recorrente e escutei: "tempo é dinheiro!". E lembrei de outro mestre, Antonio Candido, que considerava esta frase, atribuída a Benjamin Franklin, como uma verdadeira aberração, para, em seguida, ensinar:
[…]tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos estou mais próximo da morte. Portanto eu tenho direito a esse tempo; esse tempo pertence a meus afetos, é para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis: isso é o tempo2 .
Por este fio, fui levado ao início dos anos 1980, quando entrei na faculdade de agronomia, onde descobri que seria músico. Recordei vagamente de algumas aulas e me peguei pensando: o tempo para os outros seres vivos existe? Sei que árvores possuem anéis de crescimento através dos quais os humanos podem estimar a idade que têm. Gostava das aulas de entomologia e do professor que ensinou a respeito da morfologia das traças e dos cupins. Seres que, creio, não conhecem dias, meses, anos, horas ou minutos; indiferentes a isso, exercem plenamente suas funções na natureza e, quando encontram livros, documentos, fotografias e manuscritos, simplesmente os comem. Então pensei na lentidão do tempo para a construção e na rapidez para a destruição. Fui levado a tentar classificar cientificamente a subespécie de cupins e traças humanas que se alimenta da insanidade, estupidez e preconceito na tentativa de destruir ou alterar a história; se esgueirando e se alojando em fissuras e rachadinhas na tentativa de corroer e corromper memórias. Matutei a respeito da importância do tempo para a constituição de legados, como os que nos deixaram Milton Santos e Antonio Candido, e pensei também com amor, respeito e carinho em artistas que partiram recentemente, como Letieres Leite, Sebastião Tapajós, Ismael Ivo, Eva Wilma, Aldir Blanc, João Acaiabe, Naomi Munakata, Nelson Sargento, Abraham Palatnik, Paulo Gustavo, Martinho Lutero, Ubirany, Nelson Freire,
Daniel Taubkin, Renata Montanari, Tarcísio Meira, Monarco, Marília Mendonça, Jaider Esbell, Mestra Aurinha do Coco, Pelão, Zuza Homem de Melo, Elza Soares, Sérgio Mamberti, Ruth Rachou, Daniel Azulay, Françoise Forton, e os reverenciei.
Pensei no privilégio de poder refletir sobre isso tudo fazendo três refeições por dia, enquanto a fome avança ainda mais pelo país, e pensei na luta contra o tempo que todos empreendemos à custa da segurança e saúde de motoboys, motogirls e atendentes, para assim ganharmos tempo para ouvir uma maior quantidade de músicas com, no máximo, um minuto de duração.
E por falar em música: quanto tempo será que Wilson Batista e José Batista levaram para compor “Meu Mundo é hoje”? Quanto tempo levou Paulinho da Viola, no estúdio, para gravá-la?
Coloco Paulinho da Viola para rodar na vitrola e penso na letra da música: não existirá amanhã para nós sem ar, floresta e decência. Penso nas milícias de traças e cupins. Meu tempo é hoje.