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A OUTRA FACE DA PANDEMIA

NATANIEL NGOMANE escritor e presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa

No início da pandemia por cá, Maputo, a capital de Moçambique, em cerca de um mês, só saí de casa duas vezes. Da minha janela, conseguia ver e observar uma das ruas mais movimentadas de acesso ao campus principal da Universidade Eduardo Mondlane. Ruela normalmente apinhada de gente nos dois sentidos, entre estudantes e funcionários, vendedores ambulantes, crianças indo e vindo da escola nos seus uniformes escolares ou, pura e simplesmente, passeando nas suas aventurinhas de crianças. Jovens tagarelando e gesticulando sobre os mais diversos assuntos, namoriscando, adultos indo ou voltando dos seus afazeres, um e outro carro perdido tentando passar pela ruela vedada ao tráfego automóvel, enfim, tal era o normal dessa ruela. Porém, nessa primeira fase da pandemia, tudo ficara diferente: a ruela andava calma. Calma até demais. Absolutamente vazia.

Nesse clima, por sugestão de uma amiga, aceitei escrever uma carta a outra amiga. Mais adiante falo um pouco mais desse fenómeno, do enfraquecimento do corpo versus fortalecimento do espírito, pois essa carta foi sobre o ambiente estranho provocado pela covid. Aceitei. Aceitei sem ter sequer decidido sobre o que, exatamente, escreveria. Seria a volta da pandemia. Pensei: essa outra amiga é escritora; ela vive pensando e registando o seu imaginário em livros. Poderia perguntá-la se aquela calmaria da ruela normalmente apinhada de gente, porém envolta num silêncio enorme, seria prenúncio de uma maior e prolongada tranquilidade, devida ao tal novo coronavírus, ou de algo só do conhecimento de gente como ela, que escreve livros, espécie de videntes da imaginação? O silêncio era enorme. Forte. Fazia-se até ouvir! E eu tentava descortinar nele os ruídos do silêncio referidos por Tiyambe Zeleza, historiador malawiano. Porque aquele silêncio falava, dizia coisas. Eu é que era incapaz de decifrar os seus significados. Mas já tinha o pretexto para escrever a carta para a minha amiga, a pedido da outra. E escrevi. Essa minha amiga desvenda ruídos. Inúmeros. Alguns até seculares. Prova disso são alguns dos seus escritos em livros, como Ngoma Yethu e Por quem vibram os tambores do além?, nos quais se percebe como capta e traduz em palavras simples, compreensíveis para muitos, inúmeros ruídos do silêncio. Ruídos, muitos deles, por demais prolongados. Escrevi-lhe a carta, colocando-lhe questões: Que ruídos captas deste silêncio incomum? Será a tal nova ordem mundial que se fala por aí, estabelecendo-se entre nós?

Ou outra coisa? Que coisa? Tudo parecia parado, insinuando a tal nova ordem das coisas: escolas, fábricas, aviões, empresas, tudo parado. Embora os transportes públicos continuassem a circular, motoristas e cobradores não permitiam passageiros sem máscara. Um novo estado de rostos? Ainda lhe falei das imagens das vendedoras de rua, circulando nos jornais e redes sociais, algumas das quais já surpreendera lendo O Sétimo Juramento. Mostravam-nas mascaradas artesanalmente, com tecidos de capulana. Falei da gritaria e do gargalhar da criançada da minha rua, que sumiram, substituídos pela nova enxurrada da mídia: Wuhan, Itália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Suécia. E insisti: o estado daquela ruela de acesso ao campus universitário seria uma metáfora da tal nova ordem mundial, em miniatura? E perguntei se tal nova ordem tinha cura, porque já estava com saudade da azáfama quotidiana daquela ruela com gente apinhada, indo e vindo de todo o lado, e dos gostosos encontros em família, já inexistentes, e outros… E ela respondeu.

Primeiro lembrou-me o último capítulo do livro Por quem vibram os tambores do além?, cujo título, “Quando o mundo virar”, anuncia uma espécie de apocalipse ambiental. O impacto da covid, logo no começo, fê-la lembrar-se desse capítulo, escrito em parceria com Rasta Pita, seu coautor. Sobretudo quando este afirmava que Deus estava zangado com a humanidade por causa do mau governo da natureza e que, por isso mesmo, iria virar o mundo; e, no novo mundo, os animais seriam os governadores do planeta terra. […] não haverá apocalipse, nem vulcão, nem dilúvio, mas vai virar tudo! E virou, pensei. Ou, pelo menos, estava a virar. Não exatamente como vem descrito nesse livro, mas virando. Estávamos de quarentena. Seria por causa desse mau governo da natureza? Assim, de repente? Seria por isso também que, mais do que estar de quarentena, estávamos literalmente confinados, cada um na sua casa? Pensei.

Depois contou que, nesse período, saiu de casa para tratar de assuntos urgentes. Apanhou um susto: a cidade parecia um cemitério. As casas mais ricas pareciam mausoléus e lajes. Em plena manhã, prosseguiu, teve medo de caminhar naquele deserto de gente, para não ser assaltada por um fantasma. Era um silêncio de morte, assustador. Longe de trazer a paz de espírito, como se espera, aquele silêncio destranquilizava a alma. Era um silêncio de morte, assustador. Ela voltou para casa deprimida. Ligou a televisão. Mas ficou mais deprimida ainda com a enxurrada da mídia debruçando-se sobre mortes por todo o lado, comparando estatísticas de infecções e mortes entre países, como se tratasse de um relato de jogo de futebol, anunciando o país que meteu mais gols mortais nas últimas 24 horas. Assustador que era tudo aquilo, desligou o televisor, deprimida. E pôs-se a refletir sobre tudo isso que povoara a sua mente e que, comigo, partilhava.

A dor é uma experiência terrível, disse-me mais tarde na sua carta-resposta. Aí, pela primeira vez, e conscientemente, experimentamos uma dor multifacetada. A dor do silêncio e do deserto humano; da quarentena e do confinamento; da chegada da má notícia e da perda mesmo de pessoas desconhecidas. A dor do medo da dor, da dor multifacetada. E a minha amiga dizia, nessa sua carta-resposta, que quem consegue atravessar e vencer essa barreira, da experiência terrível dessa dor multifacetada, torna-se mais forte e mais habilitado a dar o suporte necessário a quem nunca passou por uma tal experiência. E mais: A dor enfraquece o corpo, mas fortalece a alma. Habilita a mente a compreender realidades novas.

Das experiências hauridas dessa dor múltipla, muitos corpos enfraqueceram. Na quarentena e confinamento forçados, marcados por silêncios aterradores e depressões; na súbita e violenta falta de alimentos do dia a dia, pois essa dor também secara as fontes. Milhares perderam as suas bases de sustentação, despedidos de empresas falidas ou na eminência disso, ou ao se chocarem com o deserto das ruas, onde diariamente tinham as bases da sua sobrevivência. E outros corpos, pura e simplesmente, sucumbiram a essa dor múltipla, de tão enfraquecidos, sem direito, sequer, a serem dignamente acompanhados à sua última morada. Mas, como ela também o disse, essa mesma dor fortalece o espírito.

Habilita a mente a compreender realidades novas. E foi isso que passamos a viver; é isso que precisamos experimentar e habilitar a mente a compreender: fortalecer o espírito, apesar de tudo.

Demo-nos tempo para refletir e escrever cartas sobre essa dor e, no meio dela, tempo para redescobrir novos caminhos de escrita, jamais imaginados, tempo para fazer, no confinamento forçado, novas composições musicais e novos quadros de pintura, novas esculturas, vasculhar bibliotecas caseiras empoeiradas e redescobrir novos caminhos de reflexão e de pesquisa sobre nós mesmos, enquanto parcelas fundamentais da sociedade humana, redescobrir, perseguir tenazmente e resgatar a nossa ancestralidade e os longos caminhos percorridos e por percorrer para a construção, consolidação e desenvolvimento das nossas identidades. Inclusive, descobrimos que as distâncias que nos separam e, de certo modo, nos distanciam, são facilmente debeladas por esses novos caminhos que essa dor multifacetada nos habilitou a compreender. As televisões se reinventam, as parcerias e os palcos se reinventam, as conferências, colóquios, congressos e, agora mais do que nunca, apesar de todas as batalhas ainda por travar e vencer, o ser humano está mais próximo um do outro do que antes. Aliás, por isso mesmo, daqui da minha distante costa do Índico, escrevo e diálogo convosco, dessa também distante costa do Atlântico, porque, no final das contas, esta dor multifacetada que hoje nos assola, e a enfrentamos, habilita-nos a compreender realidades novas ainda por viver: para a frente é que é o caminho!

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