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O REDEMOINHO E A IMAGINAÇÃO NO PODER

AFONSO BORGES escritor, jornalista e gestor cultural

O aforismo escrito nos muros de Paris em maio de 68 tornou-se realidade nesta realidade virtual, cheia de telas de plástico e vidro em que fomos lançados. O mais curioso é que nada foi reinventado – estava tudo aí, em desuso ou alheio. As plataformas mais utilizadas, o Zoom e o Meet, já existiam há anos. Mesmo as experiências verbo-voco-visuais, tão decantadas hoje como novidades, datam da década de 1970, vide os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, ao lado de Décio Pignatari.

Mas estávamos em pandemia, isolamento social, e tudo se exacerbou ao extremo. Estas plataformas, antes usadas apenas como laboratório, tornaram-se modos de vida. Até jantares, aniversários e velórios foram transmitidos em meio a tanta dificuldade, dor e espanto vividos por todos nós.

Mas o campo da arte resistiu, bravamente. O campo da arte abriu suas asas para todos, todas e todes. Modificou o cenário do isolamento, distribuindo conteúdo e conteúdos à revelia. Recriou-se, recriando outros modos de produção, democratizando o acesso. E esta palavra batida, remoída, gasta e constantemente combalida foi a mais utilizada. Sim, a Democracia.

A chamada “guerra cultural” encontrou no ambiente artístico, casa da civilização e da educação, o seu mais tremendo campo de batalha. As fake news sobre a Lei Rouanet incensaram um péssimo ambiente nas redes e na formação de opinião. No campo burocrático, travas e mecanismos ilegais foram utilizados à revelia dos bons procedimentos.

Mas o que vale é a reinvenção, a criação de novos e iluminados horizontes de visibilidade e atuação. A criatividade, impulsionada pela tremenda dificuldade que a pandemia nos lançou, criou formas de trabalho, novas formas de ação e impacto que ainda não somos capazes de mensurar em seus efeitos. O virtual brincou com o real, que se fez de híbrido e construiu pactos com a nossa diversidade. Diversidade esta que se renovou, em suas contradições e desafios, traçando também um novo ponto de equilíbrio entre as forças. Nunca mais seremos os mesmos, nunca mais faremos o que fazíamos da mesma forma. O vírus veio para ficar e nos lançar em outras esferas, nas quais a liberdade e a criação artística estarão sempre caminhando sob uma corda de aço, rígida, presa entre dois pontos e um abismo no meio. E nem sempre seguraremos uma longa vara na travessia. Mas estaremos prontos para o enfrentamento e o questionamento.

Preparem-se. Estamos no meio do redemoinho. Mas aprendemos muito para que em breve seja só um ventinho. Sigamos!

ENTRE O ILUSTRE E O DESAMPARADO (FICÇÃO)

PÉROLA MATHIAS socióloga, jornalista e curadora

Às vezes você só precisa que o Google te revele um mísero detalhe para te ajudar a desvendar uma história sobre pessoas públicas, mas é justo isso o que ele não mostra. Quando o verdadeiro Lutz Chafrin faleceu, não teve nenhuma notícia, uma notazinha que fosse na coluna social que mostrasse a família: esposa, dois filhos e quatro netos. Mas já tinha se passado muito tempo para você voltar ao velho bairro do Catete, ver se o outro Chafrin ainda perambulava por lá e conferir: ele era da família?

Isso porque você resolveu jantar no Status Lanches um dia depois do expediente, arrasada com o cansaço, a poluição da cidade e o seu apartamento infernal, em que todos os vizinhos gritavam ou brigavam a qualquer hora do dia. Para o lixo de comida que o Status servia, não era barato, apenas vinha em grande quantidade. Mas era a opção menos pior ali no quarteirão de sua casa. E você só queria comer até a fome se tornar prazer, o prazer se tornar excesso, o excesso ser o peso que te afunda no sofá cheio de pelo de gato e te faz dormir. Naquele dia, você teve a brilhante ideia de pedir um prato de lasanha, como se a lanchonete fosse lá uma cantina italiana. Estava na sua cara a derrota. Até que um senhor, provavelmente aposentado, que vai ali fazer as refeições mais elementares do dia porque nunca deve ir ao mercado nem cozinhar parou na sua frente e desatou a falar. Você sempre tentou desviar desses tipos que, mesmo sabendo o nome de todos os atendentes, os chamam de “psiu” e perguntam se o bauru é novo, de que horas é a coxinha e se a fritura do pastel não está velha.

O senhor, então, te perguntou sobre a lasanha – “tá boa?”, “veio quente?” – e coisas que não faziam a menor diferença ele saber ou não, porque o prato era apenas um amontoado de massa dura com extrato de tomate ácido, muito queijo muçarela e carne moída –que, se fosse de cachorro, já era lucro. “Como você chama? Você mora por aqui? O que você faz?”, ele prosseguia. Você deu uns grunhidos como resposta, com a boca cheia, pensando na hora em que abriria a porta de casa mandando a sapatilha apertada pelos ares para ver a novela das 19h e comer o resto da barra de chocolate que tinha ficado pela metade na geladeira no dia anterior. Mas o homem insistia, te entregou um guardanapo com o nome dele escrito, “Lutz Chafrin”, e nada mais. “Eu sou músico”, ele completou. Do mesmo jeito que ele começou a conversa, ele foi embora. Você até que ficou curiosa para saber se ele era músico mesmo, com esse nome estranhão assim, mas não deu bola. Até vê-lo de novo. Era um dia chuvoso, você estava de folga. A vizinha de cima brigava com a mãe surda, enquanto seu filho adolescente, cujo único traço de doçura no vocabulário era o Los Hermanos que cantava quando estava sozinho, batia com força a porta do quarto. A feira da Glória seria só no dia seguinte e na sua geladeira restavam, solitárias, umas cenouras murchas. “Não quero comer mal hoje. Vou no Nova República e tento colocar só uns 300g no prato”. O Nova República era o restaurante da esquina oposta à do Status. Você estava concentrada no buffet, escolhendo cada grama do seu almoço, quando sentiu uma sombra se aproximando do seu lado. Era ele. Você disparou e foi para o balcão de churrasco, fingindo que não era com você. Ele deu o bote em outro cliente, jorrando perguntas pastéis sobre o provolone ou o strogonoff. Depois de muito tempo rodando os pratos, ele pesou e foi comer. Sozinho. Concentrado. Parecia que conversava com a comida e recebia resposta. Ele tratava o prato como se os brócolis, o arroz e o feijão formassem uma roda de amigos com a qual ele interagia. De vez em quando, arrumava os óculos de massa preta com a falange do dedo indicador. Ele se vestia sempre igual, camiseta sobre a barriga de melancia, bermuda de brim e um chinelo de tiras grossas que não era de plástico, mas que também não era de couro.

Você passou uns anos fugindo do velho no balcão do Status ou nas esparsas vezes em que ia ao Nova República. O papel com o nome dele escrito foi parar dentro de um livro. Às vezes o papel caía, se você voltava àquele exemplar, aí você jogava dentro de outro livro para marcar a página, mas nunca jogou fora. É engraçado como, às vezes, a curiosidade existe, mas não precisa ser sanada. Vez ou outra pensava: e se ele for um grande músico no ostracismo? A busca não valeria a pena? Não. Além de chato e uma provável companhia irritante, poderia também ser um abusador. Até o fatídico dia em que a capa do jornal anunciou com pesar a morte de Lutz Chafrin, estampando a foto de um senhor bem mais velho do que o desamparado do Catete. Aí é que você quis saber quem eles eram, de fato. O esquecido e o que foi para a eternidade.

O que foi para a eternidade nasceu no Rio de Janeiro, em 1921, formou-se em música no Conservatório Nacional e em direito na Universidade do Brasil. Virou diplomata, morou no Leste Europeu. Foi daquelas pessoas que viram as grandes mudanças da humanidade e atravessaram dois séculos distintos, com alguma fama e distinção. Tipos de respeito, que frequentaram como protagonistas os prédios históricos à sua volta, e você, ignorante, nunca nem tinha ouvido falar.

Mas e o Chafrin do Catete? Seria um senhor com distúrbio de personalidade? Se você tivesse falado com ele de novo, será que ele continuaria sendo Chafrin, ou seria algum dia Villa-Lobos, Vinícius de Moraes ou Manuel Bandeira? Mas e se ele de fato se chamasse Lutz Chafrin e fosse um homônimo, com semelhanças na carreira – no caso, da música? Você digita o nome no Google, lê todos os obituários e não acha sequer uma nota que traga o nome dos filhos do ilustre. Ele poderia ser um dos filhos. Será que vai, ainda, todo dia ao Status da Silveira Martins? Hoje a Tijuca está mais distante do Catete do que a Moldávia.

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