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AO LADO DA LUTA O ENCANTAMENTO
RAISSA DE OLIVEIRA mulher preta, antropóloga e educadora
Numa tarde, nesse tempo estranho de covid-19, eu participava de uma aula do mestre Tiganá Santana e ele nos disse algo como: ao lado da luta, o encantamento. A fala de Tiganá ficou como marca permanente em mim, e em um momento ainda bem incerto da quarentena aprendi a desconfiar das certezas.
Do conforto da minha casa, olhei e confrontei o mundo, a diáspora negra, o Brasil, São Paulo – minha cidade amada; muito assustada, mas esperançosa de, um dia, o horror acabar e poder finalmente voltar à vida na e com a cidade.
A cidade, assim como a fala de Tiganá, é marca permanente em mim, sou idealizadora e pesquisadora do Coletivo Cartografia Negra, em que pesquiso a história negra no centro de São Paulo com dois amores, Carolina Piai Vieira e Pedro Alves, desde 2017. Nossa lida é entender as histórias dos povos negros no território e espalhá-las para toda a gente que quiser ouvir. Fazíamos essas conversas em forma de caminhadas gratuitas que aconteciam uma vez por mês, sempre aos sábados, passando por nove pontos daquele que é popularmente conhecido como centro velho de São Paulo.
Nosso objetivo é iluminar as histórias dos ancestrais afro-brasileiros que viveram e fizeram essa cidade, porém, não são devidamente lembrados, estudados e celebrados graças ao costume colonizador de contar as histórias pela perspectiva da ocupação dos povos europeus, das práticas de dominação e escravização de outros povos, apagando a história que existiu e existe antes dessas chegadas/invasões.
Na pandemia, disseminada em 2020, a gente ficou sem a rua, e a rua sem a gente. Percorrer os territórios que compõem a nossa caminhada, denominada Volta Negra, me coloca para jogo e em contato com as diversas realidades comuns ao centro de uma megacidade: pessoas em situação de rua, feiras e eventos culturais, lugares e pessoas que não aceitavam pessoas negras no espaço do centro, a não ser para servir. Caminhar aos sábados falando de herança negra em São Paulo é uma afronta ao sistema colonial vigente, é produzir e devolver uma narrativa que não a oficial para esses lugares.
Durante os períodos de isolamento, o coletivo teve o privilégio de permanecer em casa, ministrando cursos on-line, fazendo conversas com universidades nacionais e estrangeiras, lives com pesquisadores e artistas parceiros. Foi um momento em que, mesmo saudosos e com receio, costuramos e alargamos a nossa rede.
Ao mesmo tempo, ao permanecer em casa, pude finalmente me dedicar a um novo-antigo projeto de escrita, pesquisa e invenção sobre a vida de Maria Punga – uma mulher negra, como eu, dona do primeiro café da cidade de São Paulo na segunda metade do século XIX –, este foi meu jeito de estar perto do centro da cidade mesmo tendo que estar em casa.
Continua um momento difícil para as artes, comunicação, educação e cultura, que são áreas vitais da vida e para o afloramento de todo ser humano. Me questiono: quem vai lidar com os corpos dos que morreram? Quem vai enxugar as lágrimas dos que ficaram?
Sem a pretensão de dar respostas fáceis ou resolver algo irreversível, sugiro que direcionemos o olhar para o que aconteceu com as produções culturais durante a pandemia. Foi um momento de quebra de contratos, miséria, impossibilidade de trabalhar, gente extremamente qualificada sem trabalho, gente adoecendo. E, ao mesmo tempo, sem esquecer de todo esse cenário, gente produzindo, experimentando formas de se comunicar, expandindo com maior conexão para além da sua rua/bairro/cidade/ país, aparecendo em telas através e pelo Atlântico.
Imersos nessa experiência que, para mim, misturou horror com descobertas riquíssimas, olhamos para o começo de um futuro pós-pandêmico (?) ou entre picos de pandemia (?) sabendo que, assim como meus antepassados foram resilientes, resistentes e criadores de vida, convoco esse mesmo espírito para as áreas da produção e da cultura. É hora de, mais uma vez, reinventar, encantar, falar de toda a dor que passamos e que ainda pulsa, voltar devagarinho aos espaços abertos de convivência, rever amigos e lutar para produzir novos mundos.