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O TEATRO: LIÇÕES PARA LIDAR COM A CRISE

GABRIEL FONTES PAIVA diretor e produtor de teatro

O teatro se estabelece na crise, vive na crise e da crise há mais de três mil anos, portanto, é estruturado para lidar com ela. Antes de falarmos da linguagem teatral, vale pensar por que, mesmo em situações adversas, a arte não paralisa. Um artista nunca vai deixar de se expressar, vai sempre encontrar uma forma, ainda que seu meio de expressão esteja impedido. Como a água que preenche cada fresta possível e se modela ao ambiente dado, o artista se adapta para elaborar os impasses de seu tempo e comunicá-los. O teatro não só se adapta aos momentos de crise, mas vive na crise e da crise. Ele se mantém em movimento há mais de três mil anos porque se coloca ininterruptamente em questionamento. O teatro possui também um formato de divisão de trabalho com o qual podemos aprender muito. Soma-se a isso a militância política tão inserida no cotidiano de seus profissionais – porque todos nós estamos imersos na política que afeta diretamente a obra artística.

Matéria-prima do teatro, o encontro entre atores e público pede a partilha do momento presente, assim como a dramaturgia se propõe a elaborar suas questões e dilemas. A relação com o agora coloca esta arte em constante revisão, da ideia de conflito ao modo de pensar o personagem, da fábula à unidade narrativa.

Um ofício em sintonia com aqueles que assistem, ou seja, duas ações simultâneas: fazer e ver. O espectador pensado durante todo o processo. Sobre isso, destaco o manifesto de 1996, na França, que gerou a publicação O teatro é necessário?, de Denis Guénoun, em que se questionou: “Temos uma grande crise no teatro. O público está cada vez mais reduzido, mas ao mesmo tempo o número de cursos e formações para artista está maior…”3 .

Havia uma desproporção, um número elevado de manifestações artísticas e pouco público. Então, os pensadores concluíram que, se existia um teatro necessário, ele não estava disponível. Hoje esses questionamentos já foram superados, substituídos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 3 milhões de paulistanos foram ao teatro pelo menos uma vez em 2018, segundo pesquisa realizada pela J. Leiva do mesmo ano.

Existe ainda uma questão que difere o teatro de outras artes: seu modo de produção e criação. Normalmente os artistas, técnicos e produtores iniciam o trabalho já com uma data de estreia, que pode ser de três meses, por exemplo. Todos se encontram em uma sala de ensaio: diretor, uma equipe construída, provavelmente um texto pronto ou uma narrativa que será escrita em sala de ensaio. Eles têm a data, mas não sabem qual cenário será produzido, qual figurino, trilha sonora… Uma tela livre, um ponto de interrogação, um campo aberto com muito ainda a ser levantado, construído e experimentado durante o processo. Veja a grande dificuldade que é montar uma peça de teatro. Parte do planejamento é deixar as brechas, os espaços para aquilo que vai ser criado ainda, para o que tomará forma. Vocês devem estar pensando: "que grande bagunça". Para um administrador de empresas, essa é a receita do erro. Mas tem dado certo há séculos. Qual o segredo disso? Como é que esses profissionais conseguem trabalhar, fazer conexões e ainda responder a um modelo predeterminado? Predeterminado porque, neste caso, eles terão três meses para estrear, mais alguns outros para prestar contas do orçamento previsto em uma tabela com rubricas determinadas. Dá certo porque as pessoas estão preparadas para improvisar. O planejamento no teatro é deixar as brechas, os espaços para aquilo que vai ser criado ainda.

Outra especificidade do teatro que faz dele tão diferente é o fato de que ele não trabalha com hierarquias rígidas e verticais. É um trabalho feito em grupo, mesmo quando a produção é independente. Não costuma ter hierarquia nem a divisão rígida de tarefas como a do cinema e sua influência industrial. Não por isso é caótico, pelo contrário, trata-se apenas de uma maneira diferente de construir a obra. Uma maneira de trabalhar mais misturada e atravessada. Trabalhamos com muitos elementos: artes visuais no cenário, no figurino e na luz, música na trilha sonora ou música ao vivo, interpretação, literatura. As criações atravessam-se de tal forma que, quando você assiste a um espetáculo, acha difícil saber quanto do cenário, por exemplo, é do cenógrafo, quanto é do diretor, do produtor, do cenotécnico, do ator, pois todos se influenciam. Muitas vezes, são as ações corporais do ator que determinarão parte da cenografia ou a cenografia determinará a construção corporal do ator.

Não é que não exista uma hierarquia, porque ela acaba se impondo naturalmente, mas menos determinada por cargos e funções. Isso dificulta principalmente trabalhos que são de um grupo criado recentemente, porque você ainda não conhece muito bem os indivíduos. Não à toa, reuniões felizes acabam virando uma companhia formal para trabalhos recorrentes, porque, quando você encontra seu grupo, quer permanecer com ele. Diferentemente de outros meios de produção, os limites não são externos. Diferentemente de uma instituição, em que o indivíduo que vai ocupar um cargo terá que executar as tarefas que a função exige com suas habilidades e superar suas dificuldades. No grupo não é assim. Essa maneira de produzir é muito rica porque você compreende o todo e pode exercer suas principais habilidades, assim como aproveitar as habilidades dos outros integrantes.

Essas qualidades colocam a pergunta: como aproveitá-las em momentos de crises? A pandemia é um exemplo flagrante de crise para o teatro, instante em que o encontro subitamente se tornou uma ameaça. Em determinado momento, uma amiga produtora portuguesa me disse: "Se o que fazemos é juntar pessoas, o que vamos fazer agora? Acabou o teatro.” Só que o artista vai sempre encontrar uma maneira de se expressar, e uma linguagem como a teatral está sempre aberta a mudanças, atenta às possibilidades de adaptações e às tecnologias disponíveis. O teatro deu uma grande lição, quebrou muitas barreiras e investiu no teatro digital. Criamos o híbrido do teatro com tecnologia e do teatro com cinema. Só no Brasil foram milhares de dezenas de espetáculos on-line.

O caráter experimental do teatro lhe garantiu portas abertas para pesquisar as tecnologias disponíveis e as possibilidades que existiam diante de uma realidade tão adversa como o momento da pandemia. O trabalho em grupo, atravessado, em que todos têm noção de tudo, permitiu que atores pudessem fazer apresentações de suas casas com noções de luz e cenografia, por exemplo.

Outro fator fundamental nessa adaptação foi a política. A militância política conseguiu que, dentro de um mês da data em que foi decretado o afastamento social, uma instrução normativa permitisse que projetos da Lei Federal de Incentivo à Cultura fossem modificados para o formato virtual. A mesma militância sensibilizou secretários de cultura por todo o país a flexibilizarem suas leis, editais e programas para os formatos on-line. Instituições como o Sesc substituíram sua programação para a virtual, contratando apresentações e adaptações.

Não quero dar a entender que foi fácil passar pela pandemia. Posso garantir que foi o momento mais difícil que minha geração passou, mas as premissas teatrais ajudaram a diminuir a tragédia. O pensamento coletivo também fez nascer iniciativas que ajudaram as pessoas do setor, como é o caso do Fundo Marlene Collé, da Associação dos Produtores Teatrais Independentes (APTI), e do programa da Associação dos Produtores de Teatro (APTR) ao lado do trabalhador do teatro. Foram atendidas dezenas de milhares de pessoas subitamente vulneráveis; profissionais liberais que vivem do que ganham pelo trabalho realizado, então impedidos de estar em ação: técnicos, produtores e artistas. Foi uma lição de como estamos sempre juntos, somos solidários e fortes.

Sairemos modificados da pandemia. As mudanças se refletirão em linguagem, modos de produção e técnica. O teatro continuará se reinventando pelos próximos milênios – ou enquanto a humanidade existir e precisar discutir publicamente seus impasses, imaginando coletivamente um futuro.

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