BARÉ: POVO DO RIO

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Eduardo Viveiros de Castro

marina herrero ulysses fernandes (ORG.)

José R. Bessa Freire Professor do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. E quem não é? Aqueles que a feitiçaria capitalista e a máquina colonial conseguiram transformar em “pobres” (perdeu, índio! dançou, negro!), ou aqueles que querem fazer os pobres um pouquinho menos pobres, justo o necessário para que eles possam, como bons trabalhadores de um país que vai para a frente aceleradamente, comprar (a crédito, é claro) o celular ou o televisor que importamos da China. Mas, antes que consigamos, aqui e “lá fora”, transformar todos os índios do mundo em pobres, os pobres terão se retransformado em índios. O mundo está mudando, e não na direção que os herdeiros intelectuais dos séculos xix e xx imaginavam. Os baré estão aí de prova.

BARé povo do rio

O leitor pode cruzar tais relatos não só com fotos de Pisco Del Gaiso, que constituem documentos belos e informativos, mas também com outros textos elaborados a partir de pesquisas acadêmicas, como o do antropólogo Paulo Maia Figueiredo que, após longa convivência em comunidades da região, etnografou a cultura baré, descreveu rituais, registrou narrativas, além de mergulhar na documentação sobre a história do rio Negro. Ele constata “o dilema típico da região rio-negrina – a identificação entre povo e língua indígena”, para o qual Eduardo Viveiros de Castro, seu orientador no doutorado, chama a atenção: os índios que agora “voltam a ser índios” reconquistam seu devir-índio, “reaprendem aquilo que já não lhes era mais ensinado por seus ancestrais” e “se lembram do que foi apagado da história, ligando os pontos tenuemente subsistentes na memória familiar, local, coletiva”. As escavações no sambaqui de palavras estão aqui acompanhadas das pesquisas arqueológicas realizadas no rio Negro, que são poucas – como adverte Eduardo Góes Neves, num balanço do que foi feito até hoje. Ele aponta lacunas e avalia “o imenso potencial de informações históricas que a arqueologia dessa região ainda trará”. Apesar de incipientes, as evidências arqueológicas permitem referendar o “dinamismo silencioso” dos baré “que se refazem a cada dia, quietamente, nas aldeias, vilas e cidades do rio Negro”. A identidade baré, assediada pela invasão religiosa e tecnológica, é vista ainda com o olhar acurado do ensaísta argentino Guillermo David, que observou, sob outro ângulo, o cotidiano dos baré com quem conviveu. Nada lhe escapou. Conversou com velhos. Um deles, indagado por suas lembranças da língua baré falada pela mãe, mencionou palavras castelhanas aprendidas nos balatais da Venezuela. Guillermo registrou ainda a ausência de preconceitos dos baré com relação à tecnologia e ao uso que fazem dela como ferramenta eficaz no processo de etnogênese. Assistiu com eles, em plena floresta, vários programas de TV e os jogos classificatórios da Copa do Mundo de 2014, com temor que se revelou infundado do “que prometia ser um momento incômodo, ao menos para mim, argentino”. Finalmente, Beto Ricardo, que testemunhou o nascimento da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e a luta pela terra, dá depoimento sobre o movimento indígena e suas relações com diferentes instituições militares e religiosas. Eu não sou baré, eu sou baré? É disso que trata o livro, cujos autores devolvem o uso do carimbo identitário aos próprios baré.

BARé povo do rio

isbn 978-85-7995-175-6

marina herrero ulysses fernandes (ORG.)

— Professor, o senhor pode me dizer quem sou eu? A Funai está dizendo que eu sou baré, mas eu não sou baré. Será que eu sou baré? A angustiante pergunta foi feita por um aluno do Curso de Formação de Professores Indígenas Residentes em Manaus, organizado em 2006 pela Secretaria Municipal de Educação. Brinquei: — Quem sou eu para dizer quem é você? Foi aí que ele contou sua vida. Viveu até os dois anos no rio Uaupés em uma comunidade do pai, que é tukano, junto com a mãe, que é karapanã. Lá, convivendo com parentes, balbuciou as primeiras palavras em tukano, mas ouviu canções de ninar em karapanã, ambas da família linguística tukano oriental. Logo o pai foi contratado para trabalhar num sítio distante dali, na área rural de Manaus, onde se fala português. Dentro de casa, porém, a comunicação era feita exclusivamente em nheengatu, língua de comunicação interétnica que passou, assim, a ser sua primeira língua. Por outro lado, os baré, que haviam adquirido o nheengatu e se tornaram bilíngues, deixaram de falar baré – língua aruak – após algumas gerações, ficando apenas com o nheengatu – de base tupi, que se tornou língua de identidade e hoje coexiste em bilinguismo com o português. Processo similar de deslocamento linguístico atingiu falantes de outras línguas, que por isso foram identificados como baré pela Funai. Agora, o professor tukano-karapanã-baré, competente também em português, quer saber como relacionar essas línguas com sua identidade, questão que o livro que você tem em mãos tenta equacionar. Os autores dos textos e das fotos são pesquisadores de várias universidades e de distintos campos do saber, além de dois líderes baré, intelectuais que construíram seus conhecimentos nas assembleias indígenas e na luta por terra, educação, saúde, cultura. Nenhum dos dois fala baré, língua banida do território brasileiro e usada apenas por alguns velhos em San Carlos, na Venezuela. Ambos são bilíngues nheengatu-português, conscientes de que os últimos falantes de baré estão sepultados em Manaus, um cemitério de línguas indígenas. — Hoje, quinhentos anos depois, ainda lembramo-nos das tristes histórias contadas por nossos avós – escreve Bráz França, líder histórico do rio Negro. Ele nos oferece aqui narrativas míticas, ensinamentos e rituais sagrados “que não possuem comprovação registrada em livros ou cartórios”, mas são gravados na memória e repassados de pai para filho. Está tudo lá: a origem e o destino do povo baré, Jurupari e suas flautas, Mira-Boia, Poronominaré, o ritual de iniciação kariamã e o dabucuri. Uma prova da eficácia desse mecanismo de transmissão oral que atravessou três línguas é o jovem baré Marivelton Barroso – o outro autor – de 23 anos, que nos fala de encantados, danças e rituais, da mandioca domesticada e da culinária que se firmam como componentes identitários.

12/03/15 17:24


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